A grande polêmica entre materialismo e idealismo no marxismo

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Lênin

A política de Zdanov e Stálin

A famosa expressão materialismo histórico e dialético, ou materialismo dialético e histórico, embora se deva principalmente ao pensamento sistematizado por Friedrich Engels (1820-1895) em finais do século 19, não se encontra literalmente nem em Karl Marx (1818-1883) nem em Engels, mas surge depois, com Josef Stálin (1878-1953), nas revistas e livros de filosofia da URSS (vide o compêndio Materialismo Dialético de 1922 da Academia de Ciências da URSS, Instituto de Filosofia) e no “Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico” de 1938, assinado pelo próprio Stálin (publicado no Brasil pela edições Horizonte, Rio de Janeiro, em 1945), em que este afirma que esta é a concepção do partido marxista-leninista. Um parágrafo que evidencia o caráter persecutório e direitista do Politiburo contrarrevolucionário sob Stálin foi excluído do volume das edições Horizonte, mas está presente na edição “Sobre os Fundamentos do Leninismo” da Editorial Calvino Ltda., Rio de Janeiro, 1945: “[…] Por aí se vê que extraordinária riqueza teórica era defendida para o Partido de Lenine, contra os ataques dos revisionistas e dos degenerados [grifos meus], e quão grande foi a importância da publicação de sua obra Materialismo e Empiro-Criticismo para o progresso do Partido Bolchevique.” Fazendo questão de nomear Stálin, um certo M. A. Leonov intitula o texto “O Materialismo Dialético e Histórico, Fundamento Teórico do Comunismo” (1955), em que também traz a mesma junção…
Lênin (1870-1924), duas ou três décadas antes de Stálin, sempre a partir de Marx e Engels, falava em materialismo filosófico, materialismo dialético e materialismo histórico (cf., por exemplo, “As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo“, de 1913, em que se afirma que “A filosofia do marxismo é o materialismo”). A expressão Materialismo dialético também aparece já em seu Materialismo e Empirocriticismo de 1909. Lênin já contrapunha materialismo contra idealismo, dialética contra metafísica, etc., mas para fins mais intelectuais do que deturpatórios. É notável, por exemplo, que em seu instigante texto “Sobre o significado do materialismo militante” (1922), para a revista filosófica e socioeconômica Pod Známeniem Marksizma (“Sob a Bandeira do Marxismo”), Lênin tenha conseguido equilibrar uma crítica lúcida ao sectarismo (“Um dos maiores e mais perigosos erros dos comunistas […] é imaginarem que a revolução pode ser levada a cabo só pelos revolucionários”) com a importância de educar trabalhadores com textos materialistas franceses do século 18 (algo que já era sugerido por Engels no Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna) e duma militância materialista contra o obscurantismo e a ignorância religiosas, que se apoiasse na ciência (ele chega a citar Einstein, o nome mais famoso da ciência mais avançada da época). Apresentei este texto leniniano para um jovem que havia sido evangélico; ele me contou que, a partir de então, virou materialista…
Um pioneiro dessa contraposição dicotômica oficial é Paul Lafargue (1841-1911), genro de Marx (escreveu reminiscências importantes sobre o sogro, anos depois de sua morte), um dos principais membros do movimento socialista francês, tendo desempenhado papel importante no desenvolvimento do movimento socialista espanhol, amigo próximo de Engels em seus últimos anos, tendo tratado de uma variedade de tópicos – direitos das mulheres, antropologia, etnologia, reformismo, mileranderismo, economia – sob uma perspectiva marxista bastante ortodoxa. Escreveu, por exemplo, o livro O Materialismo Econômico de Karl Marx, que Engels chegou a conhecer e cita em cartas; em 1895, ano da morte de Engels, profere palestra ao Grupo de estudantes Coletivistas de Paris, intitulada “Idealismo e Materialismo na concepção da história” , documento pioneiro numa contraposição mais explícita da dicotomia, frente à popularização do desenvolvimento das ciências na época. Nessa palestra, Lafargue alude ao “ambiente natural”, deixando claro que não se referia a uma idealização da Natureza enquanto “entidade metafísica”, “como fizeram os filósofos do século 18”, afirmando que “é o ambiente natural que forma o cérebro e os outros órgãos”.
György Lukács (1885-1971), como veremos no final deste breve apanhado que ora escrevo, se distanciará da dicotomia materialismo e idealismo, que, à época, eram identificada por ele como sectária e dogmática, recebendo a alcunha de “revisionista” por certos círculos identificados com o pensamento da burocracia soviética.
O marxista e marxilógo José Paulo Netto (1947-), Professor Emérito da UFRJ, em exposição na UnB em abril de 2016 sobre o método em Marx, rechaça com força tais dicotomias – dialética x metafísica, materialismo x idealismo -, e, em influência explicitamente luckásiana, certamente lhe transmitida por seu amigo, o conhecido marxista Leandro Konder, declara em determinado momento:
“[…] Em Marx, a concepção de teoria e a concepção de categoria é ontológica. Escutem, não tenham medo da palavra ontologia nem façam dela algo misterioso. Ontologia significa teoria do ser. É isto o que teoria significa. […] Em Aristóteles, que não é um velho da antiguidade, mas um companheiro nosso, um incômodo companheiro, na obra de Aristóteles a discussão da teoria do ser estava na parte além da física, estava na meta-física. A ontologia é aquilo que a filosofia clássica chamou de metafísica. Mas, como entre os ilustrados e entre os marxistas, metafísica virou xingamento, não é?… Porque vocês aprenderam nos cursinhos de Serviço Social, e não só nos de Serviço Social, que a dialética se opõe à metafísica. Quem sou eu para lutar contra essa tolice, que teve o aval de Engels?! Mas eu não leio as obras de Marx e Engels como as escrituras sagradas. Se eu não creio na Bíblia, vou crer em Marx e Engels?! Mas eles são teóricos, nem sempre acertaram. Ontologia é teoria do ser. Quando Lukács recupera essa palavra, que ele abominou, que ele teve medo de usar, quando ele recupera a expressão, a palavra ontologia, ele vai dizer que ‘em Marx eu tenho uma ontologia do ser social, eu tenho uma teoria do ser social’. Marx tem uma preocupação ontológica, seus enunciados se referem ao ser, ao modo de ser. Ontologia do ser social é o estudo do modo de ser e reproduzir-se o ser social. Ponto. É isso. Claro que se contrapõe a uma tradição muito forte e dominante no pensamento ocidental desde o Renascimento, e com forte ênfase no Iluminismo, pensem em Kant, que se preocupou em como conhecer. Marx se preocupou em como conhecer algo preciso, determinado. É claro que há em Marx uma epistemologia, uma teoria do conhecimento, mas, em Marx, não é a epistemologia que se subordina à ontologia, e sim o contrário. Mais-valia não é uma categoria intelectiva, criada aqui [na cabeça], ela é um modo de ser da realização do capital em face do trabalho. […]”
É válido atribuir à renitência implacável dos soviéticos em relação a materialismo x idealismo e dialética x metafísica não apenas como matéria intelectual e filosófica, mas como uma nova política para varrer o poderio contra a Igreja e a religião ortodoxa dos russos diante do marxismo? Sim, e este é um caráter que tem uma parcela positiva, em termos de transformação de valores e ideológicos. Lembremos das charges e pôsters do período.
Cartaz soviético dos anos 1930. “RELIGIÃO É VENENO! PROTEJA SUAS CRIANÇAS!” Do lado esquerdo, a igreja. Ao lado direito, a ESCOLA.
Dessa forma, não se pode , sem considerar os aspectos sociais e culturais da União Soviética; basta considerar que mesmo décadas e décadas de concepção materialista não apagaram os resquícios misticistas e religiosos daquela região, e notamos isso dando uma olhada na Rússia atual. O problema seria reduzir o embate filosófico a tais dicotomias; isto talvez seja necessário em um estágio inicial e introdutório, que deve amadurecer para outras oposições filosóficas no curso do próprio progresso intelectual do povo.

Politzer entre o marxismo e a deturpação “stalinista”

é, entretanto, apelativo, no bom sentido da palavra, isto é, incita um movimento revolucionário contra ordens estabelecidas, mesmo das religiões dominantes; motiva a militância jovem e a consciência crítica dos trabalhadores contra crendices. O perigo consiste no fato deste movimento, abandonando a dialética revolucionária, tornar-se ele próprio uma ordem estabelecida contra movimentos transformadores.
e pertinente para uma introdução ao marxismo, em que ; até chegarmos em uma amadurecimento filosófico com Lukács… Devo a Politizer nos anos 1930,
pretende estudar primeiro o materialismo, depois o materialismo dialético e, por fim, o materialismo histórico, estabelecendo as relações entre o materialismo e o marxismo.
ataca bastante a concepção metafísica do mundo e das coisas, difere as acusações de que a mais-valia da França seria a mesma da União Soviética (defendendo-a excedente para o Estado socialista, para os trabalhadores), mas
O termo materialismo dialético aparece mais de 50 vezes. Materialismo histórico, quase 20. Há uma página “sectarismo”, algo que jamais estaria nos textos do período de Stálin. Da política soviética, este livro resume-se a citar Lênin, e em uma das páginas lemos: ” Porque nenhuma sociedade fica imóvel, a socialista, edificada na União Soviética, está destinada, também ela, a desaparecer.”
Neste livrinho, os alunos de Politzer, a partir de suas aulas,
1) Por seu caráter de militância , não é mal começar  formação (o livro de Politzer é uma boa introdução, acrescido dos textos eventuais de Lênin), porque fornece o básico;
1b) Para , em caráter de transição, Teologia da Libertação de cunho marxista e a pesquisa de Rosa Luxemburgo sobre o cristianismo e o comunismo primitivos;
2) Deve-se amadurecer a formação com Lukács e sua contraposição entre racionalismo e irracionalismo;
3) Outros elementos bibliográficos da própria obra marxiana e de Gramsci, etc.
E, nesse particular, é preciso um alerta pouco divulgado, mas que faço questão de empreender em meu grupo: não confundir com o , que mostra como os correligionários de Stálin e do Politiburo contrarrevolucionário, mesmo antes da dissolução da III Internacional, feita para agradar as potências liberais dos Aliados, sobretudo EUA e Inglaterra, cooptaram praticamente todos os Partidos Comunistas, e fizeram dos PCs , décadas e décadas , que se prolongaram mesmo com os sucessores de Stálin, que, orgulhosos de terem mostrado seus crimes, também estavam cada vez mais distantes do marxismo.)

Engels, o grande historiador e iniciador da concepção dicotômica

Voltemos às “origens”. Nos debrucemos rapidamente na obra engelsiana. É nela que está a semente de Politzer e Lênin e outros.
Engels usa várias vezes, em livros, artigos de jornal e cartas (por exemplo, Carta a Laura Lafargue, 15 de julho de 1887 e Carta a Conrad Schmidt, 12 de abril de 1890) , a expressão materialistische Geschichtsanschauung (“concepção marxista da história”), ora referindo-se a Marx ou à influência de Engels em algum conhecido (por exemplo, o jovem Dr. Conrad Schmidt of Königsberg teria descoberto a materialistische Geschichtsanschauung na obra do escritor Zola, o representante mais expressivo do Naturalismo). Deve-se salientar que Engels, LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ (Obras Escolhidas de Karl Marx e Friedrich Engels. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, s/d. Vol. 3, pp. 171-207), e afirma:
“[..] revestia para a Igreja a seguinte forma aguda: o mundo foi criado por Deus, ou existe de toda a eternidade?
Segundo a resposta que dessem a esta pergunta, os filósofos dividiam-se em dois grandes campos. Os que afirmavam o caráter primordial do espírito em relação à natureza e admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de uma ou de outra forma (e para muitos filósofos, como para Hegel, por exemplo, a gênese é bastante mais complicado e inverossímil que na religião cristã), firmavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a natureza como o elemento primordial, pertencem às diferentes escolas do materialismo.
As expressões idealismo e materialismo não tiveram, de início, outro significado, e aqui jamais as empregaremos com outro sentido. Veremos, mais adiante, a confusão que se origina quando se lhes atribui outra acepção. […]”
Enquanto materialismo do século passado, ou seja, do século 18, mecânico, : “A segunda limitação específica deste materialismo consistia em sua incapacidade de conceber o mundo como um processo, como uma matéria sujeita a desenvolvimento histórico. Isto correspondia ao estado das ciências naturais naquela época e ao modo metafísico, isto é, antidialético [grifo meu] de filosofar, que lhe correspondia. Sabia-se que a natureza estava sujeita a movimento eterno.”
, no importante Anti-Dühring (1878), que formou a primeira geração de marxistas ao apresentar a sua ideologia comunista e a de Marx (anos depois da morte deste), e na elucidativa carta para Joseph Bloch, fala em materialismo moderno e concepção materialista da história e da natureza. A Dialética é citada sempre à parte, embora seja complementar. No artigo para jornal Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna, Engels escreve que, para os operários sociais-democratas alemães, o ateísmo “já fez a sua época”, que essa “palavra puramente negativa já não tem para eles qualquer aplicação, uma vez que eles já não estão mais numa oposição teórica à fé em deus, mas numa oposição prática: eles desembaraçaram-se simplesmente de deus, pensam e vivem no mundo real e são, portanto, materialistas”. Linhas seguintes, escreve que “[…] O conselho dos trinta e três adopta agora este programa com toda a sua visão materialista da história […]” (itálico meu). Porém, no célebre ensaio “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, lemos a seguinte explicação:
A consciência da total inversão em que incorria o Idealismo alemão levou necessariamente ao materialismo; mas não, veja-se bem, àquele materialismo puramente metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII. Em oposição à simples repulsa, ingenuamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo moderno vê na história o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas leis dinâmicas é missão sua descobrir. Contrariamente à idéia da natureza que imperava entre os franceses do século XVIII, assim como em Hegel, em que esta era concebida como um todo permanente e invariável, que se movia dentro de ciclos estreitos, com corpos celestes eternos, tal como Newton os representava, e com espécies invariáveis de seres orgânicos, como ensinara Linneu, o materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, revestem dimensões infinitamente mais grandiosas. Tanto em um como em outro caso, o materialismo moderno é substancialmente dialético e já não precisa de uma filosofia superior às demais ciências. Desde o momento em que cada ciência tem que prestar contas da posição que ocupa no quadro universal das coisas e do conhecimento dessas coisas, já não há margem para uma ciência especialmente consagrada ao estudo das concatenações universais. Da filosofia anterior, com existência própria, só permanece de pé a teoria do pensar e de suas leis: a lógica formal e a dialética. O demais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história.
Este parágrafo foi, sem dúvida, a base para as aulas de Politzer e para certas linhas decisivas de Lênin.
A dicotomia também é evidenciada na Carta a Conrad Schmidt (5 de agosto de 1890):
Houve também uma discussão no Volks-Tribüne acerca da distribuição dos produtos na sociedade futura, sobre se ela deverá acontecer segundo o quanto de trabalho [Arbeitsquantum] ou de outra maneira. Abordou-se a coisa também muito «materialistamente» contra certos fraseados idealistas sobre a justiça.
Já em seu tempo, entretanto, Engels tinha de exaustivamente desfazer equívocos. Intensos debates já se davam nos anos finais do século 19, após a morte de Marx e sobre a sua obra; Engels era o companheiro mais próximo de Marx que estava vivo, servindo de guardião ou paladino de seu pensamento. Da mesma carta, não sem falta de paciência:

A palavra «materialista» [materialistisch], na Alemanha, serve, em geral, a muitos escritores jovens de simples frase com que etiquetam, sem ulterior estudo, tudo e mais alguma coisa, isto é, colam esta etiqueta e, então, crêem ter resolvido a coisa. A nossa concepção da história, porém, é, antes de tudo, uma diretiva [Anleitung] para o estudo, [não é] nenhuma alavanca de construções à la hegelianos [Hegelianertum]. A história toda tem de ser estudada de novo, as condições de existência [Daseinsbedingungen] das diversas formações sociais [Gesellschaftsformationen] têm que ser investigadas em pormenor, antes de se tentar deduzir a partir delas os modos de ver [Anschauungsweise] políticos, de direito privado, estéticos, filosóficos, religiosos, etc., que lhes correspondem. Relativamente a isto, até agora, só pouco aconteceu, porque só poucos se puseram seriamente a isso. Relativamente a isso, precisamos de ajuda em massa, o domínio é infinitamente grande e quem quiser trabalhar seriamente pode conseguir muito e distinguir-se. Em vez disto, porém, as frases do materialismo histórico ([e], precisamente, de tudo se pode fazer uma frase) servem a muitos jovens alemães apenas para construir ordenada e sistematicamente [systematisch zurechtzukonstruiren], o mais rapidamente possível, os seus próprios conhecimentos históricos relativamente parcos — a história económica ainda anda de cueiros! — e para parecerem então muito formidáveis. E então pode, pois, vir um [Paul] Barth [que havia escrito o livro A Filosofia da História de Hegel e dos Hegelianos até Marx e Hartmann]  e atacar a coisa mesma que, pelo menos no seu meio [Umgebung], fora degradada a mera frase.

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Marx, a grande base

Marx, por sua vez, torna-se “materialista” a partir de 1843, sob a influência de Feuerbach (computado como “a fundação do verdadeiro materialismo e da ciência real, na qual Feuerbach faz da relação entre ‘homem e homem’ o princípio fundamental de sua teoria”, tal como lemos nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, que, na realidade, estão mais além de Feuerbach do que se percebe ou declara, porque, conforme conclui Ernest Bloch em O Princípio Esperança, a relação “homem e homem” desses manuscritos não é antropologia abstrata, como o é em Feuerbach, mas, ao invés, “a crítica da autoalienação humana (transferida da religião para o Estado) já penetra [no texto] no coração econômico do processo de alienação”.)
Assim, nas 11 teses (sobre ou contra Feuerbach, dependendo da tradução) de , Marx alude ao novo materialismo (que pode ser associado ao materialismo moderno citado por seu companheiro Engels), para se contrapor ao materialismo de Feuerbach e ao idealismo. Leiamos o início da primeira tese:
“A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias [ou seja, até – o de Feuerbach incluído – é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto [des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal. […]”

Marx tateia e , não contextualiza de maneira aprofundada  – esta tarefa seria de Engels, sobretudo após a morte do companheiro. O materialismo retorna nas teses 9 e 10: “O máximo que o materialismo contemplativo [der anschauende Materialismus] consegue, isto é, o materialismo que não compreende o mundo sensível como atividade prática, é a visão [Anschauung] dos indivíduos isolados na “sociedade civil”.” e “O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade “civil”; o ponto de vista do novo [materialismo é] a sociedade humana, ou a humanidade socializada.”

Em A Sagrada Família, escrito com Engels, Marx explica a gênese e o conteúdo de seu pensamento. Ernest Bloch afirma, em O Princípio Esperança, que é nesta obra que nasce a interpretação materialista da história em 1844, e com ela o socialismo científico. Conforme retoma Antonio Gramsci, do cárcere fascista: “No trecho sobre o ‘materialismo francês no século XVIII’, (A Ideologia Alemã) refere-se com bastante clareza à gênese da filosofia da práxis: é o ‘materialismo aperfeiçoado’ pelo trabalho da própria filosofia especulativa e fundido com o humanismo. É verdade que com esses aperfeiçoamentos do velho materialismo permanece apenas o realismo filosófico” (CC, 1, 320).

No esclarecedor posfácio à segunda edição do livro primeiro de O Capital – Crítica da Economia Política, Marx fala em materialismo (sem qualquer outra junção) e em método dialético (para contrapor o seu método ao de Hegel, “não apenas diferente, mas seu oposto direto”). Nesse posfácio, Marx usa as seguintes palavras, sem “ismo”s: Idee (“Ideia”), wirklichen (“real”), Ideelle (“ideal”), Materielle (“material”) ao afirmar que, para Hegel, o processo do pensamento é o “criador do real” e o “real”, apenas sua “manifestação externa, enquanto que para Marx, ao contrário, o “ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado” (tradução de Reginaldo Sant’Anna, Difusão Editorial S.A). E termina com estes parágrafos que constituem uma ácida provocação:

[…] Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional do invólucro místico.

A dialética mistificada tornou-se moda na Alemanha, porque parecia sublimar a situação existente. Mas, na sua forma racional, causa escândalo e horror à burguesia e aos porta-vozes de sua doutrina, porque sua concepção do existente, afirmando-o, encerra, ao mesmo tempo, o reconhecimento da negação e da necessária destruição dele; porque apreende, de acordo com seu caráter transitório, as formas em que se configura o devir; porque, enfim, por nada se deixa impor, e é, na sua essência, crítica e revolucionária.

Para o burguês prático, as contradições inerentes à sociedade capitalista patenteiam-se, de maneira mais contundente, nos vaivéns do ciclo periódico, experimentados pela indústria moderna e que atingem seu ponto culminante com a crise geral. Esta, de novo, se aproxima, embora ainda se encontre nos primeiros estágios; mas, quando tiver o mundo por palco e produzir efeitos mais intensos, fará entrar a dialética mesmo na cabeça daqueles que o bambúrrio transformou em eminentes figuras do novo sacro império prussiano-alemão.

Londres, 24 de janeiro de 1873

Karl Marx

A contribuição de Gramsci

Décadas depois, já no curso da primeira metade do século 20, o marxismo, para Gramsci, “supera (e, superando, integra em si seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicionais” (Cadernos do Cárcere, Civilização Brasileira, 6, 373). A teoria marxista é denominada ‘materialismo histórico‘, ou seja, atividade do homem (história) no concreto, aplicada a uma certa ‘matéria’ organizada (forças materiais de produção), à ‘natureza’ transformada pelo homem. Mas Gramsci alerta: “Deu-se maior peso à primeira parte da expressão ‘materialismo histórico’, quando deveria ter sido dada à segunda: Marx é essencialmente um ‘historicista’ etc.” (CC, 6, 359), ou seja, além de tratar da Economia, foi um autor de livros políticos e históricos.

Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci polemiza e diverge várias vezes do Ensaio Popular do prolífico revolucionário Nikolai Bukharin. (Um bom apanhado que serve como síntese para o assunto é encontrado no verbete “Materialismo e materialismo vulgar” do Dicionário Gramsciano.) No Manual de Bukarin, sobre o qual Gramsci se debruça e dedica-se em linhas inteiras nos Cadernos, o materialismo histórico é identificado com a pesquisa da causa última e única, problema esse, entretanto, que Gramsci vê como eliminado pela dialética de Marx (Q 4, 26, 445). Ainda que preserve de Engels de que a economia é, em última instância, o agente principal da história, Gramsci chama de “infantilismo primitivo” (CC, 1, 238) associar toda a flutuação da política e da ideologia (ou seja, toda a superestrutura) como expressão imediata da estrutura (a partir de tal conclusão, Gramsci desenvolve o conceito de bloco histórico, que recupera a visão marxiana do sentido dialético, mas com particularidades originais do próprio Gramsci).

O comunista sardo via resíduos de mecanicismo mesmo no materialismo histórico, como na unidade entre a teoria e a prática, em que a teoria se torna mero acessório da prática (CC, 1, 104). Para ele, os progressos das ciências modernas afirmaram o método “que verdadeiramente separa dois mundos da história e inicia a dissolução da teologia e da metafísica e o nascimento do pensamento moderno, cuja última e aperfeiçoada expressão filosófica é o materialismo histórico” (CC, 6, 366). O materialismo histórico, em Gramsci, é “uma reforma e um desenvolvimento do hegelianismo, é uma filosofia liberada de qualquer elemento ideológico unilateral e fanático, é a consciência plena das contradições, na qual o próprio filósofo […] não somente compreende as contradições, mas coloca a si mesmo como elemento da contradição” (CC, 6, 364). Trata-se de uma perspectiva em devir, em que a dialética já está contida. Diante de uma máquina, o materialismo histórico não estabeleceria sua estrutura físico-químico-mecânica (papel das ciências modernas), mas a máquina enquanto objeto de produção e de propriedade ligada a uma relação social de determinado período histórico.

Gramsci teve alguma notícia sobre História e Consciência de Classe, livro de Lukács; entra numa suposição a respeito de que se a dialética pode tratar apenas dos homens, não da natureza, afirmando que, caso tenha sido esse o tratamento do livro: “Penso que Lukács, insatisfeito com as teorias do Ensaio Popular, caiu no erro contrário: toda conversão e identificação do materialismo histórico com o materialismo vulgar só pode determinar o erro oposto, a conversão do materialismo histórico em idealismo ou até mesmo em religião” (CC, 1, 166).

Lukács e a grande mudança

No período revolucionário que se seguiu à Revolução Russa, Lukács e — em medida menor — Korsch introduziram a primeira fenda entre as ideias de Marx e as de Engels. Numa crítica deferente mas venenosa ao Anti-Düring, Lukács reprovou Engels — de um ponto de vista radicalmente hegeliano — por sua busca de uma dialética uniforme que ligasse a história humana e a história natural e, particularmente, por sua distinção entre ciência “metafísica” ciência “dialética”, sustentando que desse modo se obnubilava a dialética autenticamente revolucionária de Marx: a do sujeito e do objeto no âmbito da história do homem. Essa crítica não partia de um terreno puramente epistemológico. Com efeito, aos olhos de Lukács, o prestígio de que desfrutaram Darwin e a ciência evolucionista junto à II Internacional ligava-se intimamente a uma distinção adialética entre teoria e prática, e daí se derivavam o imobilismo e o reformismo da sua política. Embora a crítica de Lukács não tenha tido efeito imediato — ele próprio mais tarde se retratou — tratava-se de uma prefiguração da forma que assumiriam muitas outras críticas posteriores. (JONES, G. S. “Retrato de Engels.”. In: HOBSBAWM, E. (org). História do marxismo. Vol. I – “O marxismo no tempo de Marx”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 377-421).
“Zdanov apresenta, com Stalin, toda a história da filosofia como a luta entre materialismo e idealismo. A Destruição da Razão, ao contrário, que, no geral, foi escrita durante a guerra, põe no centro da reflexão uma oposição totalmente diversa, isto é, a luta entre filosofia racional e irracional. É verdade que os irracionalistas eram todos idealistas, mas eles também tinham antagonistas racionalistas-idealistas. Portanto, a oposição que exponho em A Destruição da Razão é totalmente incompatível com a teoria zdanoviana” (Lukács, Pensamento Vivido, página 132).
Importante – a crítica de Lukács não se refere a uma rejeição do materialismo e do idealismo e de seu antagonismo, mesmo na história da filosofia, já que ele usará abundantemente tais termos (inclusive a expressão “deformação idealista”) de maneira correta em obras posteriores (cf., p. ex., “O PARTICULAR À LUZ DO MATERIALISMO DIALÉTICO” em Introdução a uma Estética Marxista, escrito e lançado anos depois de A Destruição da Razão). A crítica lukacsiana é sobretudo à clivagem única de que toda a filosofia e sua história se dividissem entre materialismo e idealismo, entre dialética e metafísica.
Finalmente, por falar em Lukács, entremos na distância que evoquei no início deste texto, distância que este grande intelectual assume em relação ao marxismo-leninismo oficial de sua época. Lukács viveu muito – 86 anos – e em liberdade (ao contrário de um Gramsci, por exemplo, morto prematuramente aos 46 anos e preso), ocupou, hora ou outra, cargos políticos do “socialismo real”, podendo acompanhar mais de uma geração de marxistas e os desdobramentos entre revoluções sociais e o futuro da História.
Stálin, no texto supracitado do primeiro parágrafo, afirmava (há sempre dúvidas de que se era ele mesmo quem escrevia ou se eram seus correligionários ou um ghost writer oficial) que a clivagem principal na história da filosofia se daria entre o “materialismo” e o “idealismo”. Há uma série de deturpações contidas nesse pensamento estreito – não em relação aos vícios baratos da metafísica e do idealismo e da religião cristã, que podem ser combatidos no curso de uma revolução, porque são elementos reacionários a serviço das classes dominantes, mas no fato de que a burocracia contrarrevolucionária pressupunha, de cima para baixo, um esmagar inflexível da vanguarda revolucionária e seus remanescentes, ou seja, era, no plano prático, abertamente contra a própria dialética (a diferenciação que coloquei parágrafos acima entre o Princípios Elementares de Filosofia e o Princípios Fundamentais de Filosofia evidencia.)
Pois bem! Não muito tempo depois, porém, o grande Lukács escreveu um livro enorme e “maldito” – A Destruição da Razão, 2 volumes, de 1955, que o Instituto Lukács lançará em breve em tradução brasileira, como ação final do fim do Instituto -, argumentando que a divisão principal da filosofia, ao contrário de opor materialismo e idealismo, opunha o “racionalismo” ao “irracionalismo”. (Lukács toma como ponto de partida a confrontação Schelling-Hegel para desmascarar Nietzsche, Heidegger, etc. O “racional” – e “irracional” – sobre o qual ele se debruça refere-se principalmente ao famoso prefácio da Fenomenologia do Espírito, em que Hegel tomou posição contra o “formalismo monocromático” da intuição intelectual schellinguiana, mas – intencionalmente ou não, e esta é uma afirmação pessoal minha – Lukács acaba referindo-se também àquele “invólucro racional” que Marx alerta no posfácio de O Capital a respeito de Hegel). Assim, escapando da dicotomia oficial, Lukács abriu um importante flanco para resgatar autores decisivos dos porões da história do pensamento, incluindo alguns de seus antigos mestres (Georg Simmel e Max Weber), mesmo que fosse para criticá-los, romper com eles e superá-los.
Ou seja, ao situar no centro de sua análise o antagonismo racionalismo-irracionalismo, Lukács se posicionava de forma heterodoxa em relação ao marxismo-leninismo oficial da época. Em entrevistas para seu texto autobiográfico, Gelebtes Denken, Lukács lembra que, enquanto Stálin e seu correligionário Andrei Jdanov (este, aliás, chegou ao alto escalão do partido após o assassinato de Serguei Kirov, marcando o início do Grande Expurgo, deplorável em termos de marxismo e revolução!) tinham reduzido essencialmente a história da filosofia à luta entre materialismo e idealismo, sua ideia de escrever uma obra no centro da qual estava colocada a contradição racionalismo-irracionalismo não deixa de lhe atrair os raios (“foudres”) de certos sectários e dogmáticos pertencentes ao establishment socialista: “Os sectários”, afirma Lukács, “se mostraram seguramente muito escandalizados que o dogma de Jdanov sobre a oposição entre materialismo e idealismo como único objeto da história da filosofia – dogma tido por eles com aura de santidade – tenha sido ridicularizado e eles tentaram – através das mais grosseiras falsificações de citações – demonstrar o caráter ‘revisionista’ do livro.” (Lukács referia-se sobretudo ao texto de um certo Balogh, reproduzido em György Lukács e o revisionismo, publicado em 1960 na Alemanha Oriental, e que seguia o mesmo viés de revistas soviéticas. V. “A destruição da razão: 30 anos depois, 1986, de Nicolas Tertulian, tradução de Antônio José Lopes Alves para a Verinotio – revista online de filosofia e ciências humanas, n. 13, Ano VII, abr./2011 – Publicação semestral.)

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