Antes de qualquer coisa…
Veremos neste presente texto que Antonio Gramsci, líder dirigente do Partido Comunista Italiano, militante da Internacional, deputado preso pelos fascistas (mesmo com a imunidade parlamentar, após o estado de exceção de Mussolini) e incontornável autor marxista e revolucionário comunista, mostrou que não há “Estado” de um lado e “sociedade” do outro (dualismo vulgar), de modo que só se pode pensar neste título (“Estado e sociedade em Gramsci”) a partir de uma relação dialética e de ações e processos interdependentes, tanto para fins de estratégia teórico-prática comunista, marxista, quanto para a análise de ciência política. Veremos que a separação vulgar só interessa à ideologia burguesa. O Estado burguês, enquanto consumidor de mais-valia através de impostos e enquanto coerção e legislação, é obrigatório para o desenvolvimento e perpetuação do capitalismo, que sem ele simplesmente não existe.
Como se sabe, G. não publicou nenhum livro em sua vida atribulada e acabada prematuramente: escrevia ensaios em jornais socialistas e comunistas, e depois, em condições degradantes no cárcere, escreverá 33 cadernos-brochura que ficarão conhecidos como Cadernos do Cárcere (obtém a permissão para escrever em 1929 e morre em 1937 por complicações agudas de saúde, aos 46 anos de idade). Somente dez anos após a sua morte, derrubado o fascismo, é que seus ensaios pré-cárcere, escritos do cárcere, cartas e apontamentos são reunidos e começam a ser publicados em livros no mundo todo. Conforme afirma Carlos Nelson Coutinho em O Leitor de Gramsci (2011), Gramsci é o pensador italiano mais lido e traduzido em todo o mundo, com uma influência destacada no Brasil.
O que ensinam Marx e Engels sobre a relação do Estado com a sociedade civil
Já no célebre, genesial e fundamental A Ideologia Alemã (de 1845-1846, ou seja, em fase juvenil, obra saída da obscuridade aos poucos em 1921 e só publicada totalmente em 1932, portanto Gramsci, muito menos Rosa Luxemburgo, Lênin e outros paladinos primeiros do marxismo não chegaram a conhecer este livro cujos autores revolucionários e autoproclamados comunistas Karl Marx e Friedrich Engels fizeram questão de não publicar, porque em cartas revelam que seus rascunhos já significavam para eles próprios uma superação de sua pesquisa), há uma explanação formativa distendida em algumas páginas justamente intitulada Origem do Estado e relação do Estado com a sociedade civil, cuja conclusão final é a seguinte:
“A sociedade civil abarca o conjunto do intercâmbio material dos indivíduos no interior de um estágio determinado das forças produtivas. Ela abarca o conjunto da vida comercial e industrial de um estágio e, nessa medida, ultrapassa o Estado e a nação, apesar de, por outro lado, ela ter de se afirmar ante o exterior como nacionalidade e se articular no interior como Estado. A palavra sociedade civil [bürgerliche Gesellschaft] surgiu no século XVIII, quando as relações de propriedade já haviam se libertado da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil, como tal, desenvolve-se somente com a burguesia; com este mesmo nome, no entanto, foi continuamente designada a organização social que se desenvolve diretamente a partir da produção e do intercâmbio e que constitui em todos os tempos a base do Estado e da restante superestrutura idealista.” (Obra citada, São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 74)
Estado ampliado e sociedade civil em Gramsci, definições básicas
Partindo da teoria marxiana (estrutura – superestrutura, cf. cartas de Engels a Joseph Bloch em 21-22 de setembro de 1890 e a Walther Borgius em 25 de janeiro de 1894, que Gramsci cita nos Cadernos do Cárcere – Q 13, 18; CC, 3, 48-55 -, e que, portanto, tinha conhecimento), G. afirma que o Estado é “expressão da situação econômica” (Q 10 II, 41.VI, 1.310 [CC, 1, 379]), e não o oposto (a situação econômica como expressão do Estado), ainda que o Estado possa ser um “agente econômico, uma vez que, de fato, o Estado é sinônimo de tal situação” (idem). Porém, conforme veremos, e como nessa última frase já se entrevê, G. amplia a teoria do Estado e dá uma contribuição muito original (ou várias contribuições originais) à teoria do Estado à tradição marxista. Nosso autor criará o termo “Estado integral” (mais comumente referido como “Estado ampliado“, com base em Christine Buci-Glucksmann, Gramsci e o estado: por uma teoria materialista da filosofia, editora Paz e Terra, 1980).
“Todo Estado é uma ditadura”, escrevia o Gramsci pré-cárcere no texto “Lênin, líder revolucionário” (L’Unitá, 6/11/1924; EP 2, 235-240) para o jornal comunista que fundou como periódico oficial do PCI, e em que admite que, enquanto houver governantes e governados e a necessidade da construção de um Estado socialista, trata-se de diferenciar a relação puramente hierárquica, de cima para baixo e do tipo militar (um Mussolini) da relação histórica e orgânica entre liderança/vanguarda marxista e classe trabalhadora. Este entendimento retoma implicitamente a dicotomia entre ditadura burguesa do capital e a ditadura do proletariado em Karl Marx (na Crítica do Programa de Gotha e em outros textos, ou seja, ditadura do proletariado tão somente enquanto a divisão de classes não foi ainda abolida, contraposição revolucionária à ditadura burguesa, que ainda hoje comumente chama-se de democracia), e os apontamentos formativos da teoria em Friedrich Engels (cf. Anti-Dühring, de 1877) do Estado enquanto “organização da respectiva classe espoliadora”: “na Antiguidade, o Estado dos cidadãos escravistas; na Idade Média, o Estado da nobreza feudal; em nosso tempo, o Estado da burguesia”, escreveu Engels, que também enumera historicamente as “condições de opressão dadas pelo modo de produção vigente”, a saber “escravidão, servidão ou vassalagem, trabalho assalariado”. (O Anti-Dühring, que formou a primeira geração de marxistas e pretende ser uma síntese da ideologia comunista de Marx e Engels para desfazer mal-entendidos, deturpações e entrar no debate intelectual da época – a parte de Economia recebeu redação e revisão do próprio Marx, que estava ocupado com a continuação de O Capital – é obra que Gramsci conhecia e cita várias vezes nos Cadernos, ora como fonte e inclusive criticamente, sobretudo com relação à sua sistematicidade formal que não há em Marx e à sua dialética dualista de homem-natureza, rebatida principalmente a nível exemplar por Georg Lukács em História e Consciência de Classe de 1923, que Gramsci também teve conhecimento, porque o cita em Q 11, 34; CC, 1, 166-167, mas não se sabe se teve acesso integral ao livro no cárcere. Cf. o verbete “Engels, Friedrich” no Dicionário Gramsciano.)
O Estado, escreve G. já nos Cadernos do Cárcere,
“é todo o conjunto de atividades práticas e teóricas com que a classe dirigente não somente justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados” (Q 15, 10, 1.765 [CC, 3, 330])
Merece atenção a palavra “consenso”, tão cara a Gramsci, e que não há nem em Marx nem em Engels nem em marxistas posteriores, pois é com ela (e seu antônimo coerção) que ocorre um enriquecimento a respeito da teoria do Estado no marxismo. G. rechaça visões unilaterais simplistas, e, com a palavra “consenso ativo”, expõe toda a problemática real de perpetuação do Estado capitalista e mesmo da construção duma transição revolucionária socialista.
Mas o “Estado” não é só isso, e Gramsci o problematiza ao fornecer teoria mais complexa (e precisa) de Estado. É no Q 12, 1, 1.518 [CC, 2, 20] que lemos Gramsci fixando que
“[O Estado é um dos] dois grandes ‘planos’ superestruturais”[, sendo o outro a] “sociedade civil”[, entendida como o] “conjunto de organismos vulgarmente denominado ‘privados’”[, prepostos] “à função de ‘hegemonia’”.
É nesta esfera que estão as escolas, organizações, jornais, mídia, etc. Porém, o autor dos Cadernos opera o tempo todo com a dialética – talvez mais do que qualquer outro marxista de sua época e de agora – e evita ou rechaça dualismos vulgares. Aquele que não dispõe dum mínimo conhecimento de dialética perde o fio da meada e embarca em noções superficiais e no dualismo… Portanto, nas sociedades ocidentais, G. vê esses dois planos dialeticamente unidos no conceito de “Estado integral” ou “Estado ampliado“. (Entende-se, assim, o novo protagonismo e articulações do Estado registrados a partir do século XX no campo econômico, na organização da sociedade e na criação do consenso. Em Marx, a sociedade civil era vista como a sociedade privatista burguesa, não raro negativamente encarada como atomizada e despolitizada. Gramsci amplia o termo.)
Mas em que consiste essa amplidão ou integralidade do Estado em Gramsci? No Q 6, 87, 763 [CC, 3, 243], ele refere o “Estado em sentido orgânico e mais amplo (Estado propriamente dito e sociedade civil)”. Há uma relação de unidade-distinção captada entre Estado e sociedade civil, que é o Estado “em sentido integral” (Q 6, 155, 810-1 [CC, 3, 257]) ou “um Estado (integral, e não […] um governo tecnicamente entendido” (Q 17, 51, 1.947 [CC, 3, 354]).
Vale assinalar que, nessa operação, a exímia postura dialética de Gramsci “divide” em duas a superestrutura das teorias marxiana e engelsiana: em sociedade política (governo, legislação, força militar, polícia, etc.) e sociedade civil (sistema educacional, mídia, cultura, filosofia, religião, etc.), mas, nas palavras do próprio autor (grifo meu),
“[a] distinção entre sociedade política e sociedade civil […] é puramente metódica, não orgânica, e, na vida histórica concreta, sociedade política e sociedade civil são uma mesma coisa” (Q 4, 38, 460)
Ou seja, trata-se de um laboratório terminológico que enriquece o léxico marxista. No entanto, essa separação “ontológica” dos vários níveis (economia, cultura, política) da realidade histórico-social não caracteriza uma total falta de distinção, ou não seriam necessários termos diferentes (“sociedade política”, “sociedade civil”): se, em Gramsci, a sociedade civil e a sociedade política “são uma mesma coisa”, se “se identificam” (Q 13, 18, 1.590 [CC, 3, 46]), se “a sociedade civil […] é também ‘Estado’, aliás, é o próprio Estado” (Q 26, 6, 2.302), trata-se aqui do significado integral do Estado, ou seja, sociedade política e sociedade civil somam e constituem o Estado ampliado ou integral.
Um dado concreto da realidade mostrado no livro primeiro de O Capital (1867) de Marx nos ajuda a entender a coerência dessa unidade, embora o exemplo não tenha sido usado por G., mas serve para unir Marx e Gramsci: para obter a regulamentação exploratória do horário de trabalho na fábrica (“sociedade civil”), é necessário recorrer à intervenção do Estado, de modo a evitar que a “livre concorrência” e as “leis imanentes da produção capitalista” provoquem a ruína irreparável da “saúde e da duração da vida do operário” (MEW, XXIII, 285-6 e nota 114), sem a qual não haveria mais-valor (o Estado, aliás, para garantir o “desenvolvimento” capitalista, consome mais-valia por meio de impostos). Engels, no Anti-Dühring, dedica uma seção apenas para recapitular historicamente como e por que o direito burguês foi construído pela nova classe ascendente (a burguesia) para garantir a “livre” (na realidade, seletiva e hierarquizada, urdida da acumulação primitiva) circulação de mercadorias, e isto servirá mais tarde para o revolucionário soviético Evgeni Pachukanis, na luta contra a burocracia, escrever o seu percuciente A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, que também dispõe da forma mercadoria exposta por Marx.
Como se sabe, Gramsci também dialoga, toma emprestado e supera outros autores não marxistas. Neste tema da relação do Estado e sociedade, a figura de Benedetto Croce (1866-1952) é particularmente importante, porque, para este filósofo (ligado a raízes direitistas radicais derivadas do liberalismo), conforme Gramsci registra (Q 6, 10, 691 [CC, 1, 433-4]), a história é “ético-política” e haveria uma distinção entre sociedade civil e sociedade política (em Ética e Política, de 1931, Croce defenderá o liberismo, uma espécie de “libertarianismo” – Gramsci o refutará, mostrando as inconsistências de sua pseudoteoria, conforme veremos mais adiante neste texto). Croce havia escrito Materialismo histórico e economia marxistísca (1900), entre outros, portanto era familiarizado com o marxismo e, enquanto apoiava Mussolini no começo, passa a criticá-lo depois, assim como qualquer forma de “autoritarismo”, reivindicando a noção abstrata de “indivíduo”. Também nos importa, en passant, Giovanni Gentile (1875-1944), outra figura de destaque do fascismo italiano, influenciado por Croce, para quem hegemonia e ditadura seriam indistinguíveis, existindo apenas o Estado, sendo a força puramente consenso (ibidem). Ora, Gramsci toma posição divergente de ambas as noções neoidealistas, que são coniventes com o status quo capitalista (sim, a noção do senso comum de separação entre Estado e sociedade só condiz com a ideologia burguesa); nosso autor dialético valoriza o momento ético-político em Croce (a hegemonia), ou seja, enquanto momento da sociedade civil, mas o transforma em parte do Estado integral. Portanto, para Gramsci, como bem fez questão de lembrar o gramscista brasileiro Carlos Nelson Coutinho em entrevista, a sociedade civil é um momento do Estado ampliado e uma arena das lutas de classes.
Vamos mais a fundo em seu pensamento. Em carta à sua cunhada Tatiana Schucht, Gramsci expõe, problematiza e critica o conceito habitual de Estado,
“entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo, para moldar a massa popular segundo o tipo de produção e a economia de um dado momento), e não como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional, exercida através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas etc.) e é especialmente na sociedade civil que operam os intelectuais” (Cartas, II, 84) – grifo meu
Como podemos ver, na carta, a sociedade civil é um conjunto de “organizações assim chamadas privadas”: “assim chamadas”, portanto “não propriamente privadas”, conforme alerta Guido Liguori no Dicionário Gramsciano (verbete “Estado”).
Gramsci ensina que a unilateralidade do “conceito comum de Estado” só pode levar a “erros colossais” (Q, 801), tais como a identificação do local do domínio, da violência e do abuso de poder sempre e apenas no Estado propriamente dito, e a celebração unívoca da sociedade civil como o lugar da “liberdade”. Esta falsa noção só interessa a um direitismo que economicamente pretende um mercado tirano sob um “Estado mínimo” (Estado que, na realidade, é pura força e coerção), ou a frações esquerdistas e anarquistas que abdicam da luta pela hegemonia em nome da afirmação da subalternidade. Na realidade, a concepção unilateral é antidialética e não percebe o despotismo da fábrica/empresa capitalista, sem contar que ignora o fato da Polícia Militar ou mesmo das Forças Armadas enquanto evocações da legislação estatal burguesa para proteger o status quo da sociedade de classes e a propriedade privada dos meios de produção.
O “aparelho hegemônico” (Q 6, 136, 800 [CC, 3, 253]) agrega-se ao “aparelho coercitivo”, típico do Estado “em sentido estrito”, ao qual Marx e Lênin, cada um a seu modo, dirigiram as suas atenções de acordo com o contexto em que atuaram.
Na verdade, um estudo de Estado e sociedade civil em Gramsci não seria completo nem coeso se não considerarmos, ainda que rapidamente, a influência de Hegel. Há, nos Cadernos, uma nota intitulada Hegel e o associacionismo (Q 1, 47 [CC, 3, 119]), em que pela primeira vez surge em Gramsci uma concepção madura do Estado compreendendo também os “organismos” da sociedade civil:
“A doutrina de Hegel sobre os partidos e as associações como trama ‘privada’ do Estado […]. Governo com o consenso dos governados, mas com o consenso organizado, não genérico e vago tal como se afirma no momento das eleições: o Estado tem e pede o consenso, mas também ‘educa’ esse consenso através das associações políticas e sindicais, que, porém, são organismos privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente” (Q 1, 47, 56 [CC, 3, 119])
Ou seja, o consenso é construído por meio dos momentos de partidos e associações, e o Estado, ainda que aja por canais explicitamente públicos ou formalmente privados, é sujeito da iniciativa político-cultural. O fato exposto por Gramsci de que o Estado necessita do consenso na sociedade civil mais uma vez comprova a sua tese dialética, pois a característica típica da sociedade política (comumente identificada apenas com o “Estado” estrito senso) é agir não com o consentimento, mas principalmente a partir da coerção. O Estado ampliado (ou Estado integral) precisa de ambas para existir e se perpetuar.
Algumas das principais e mais famosas definições de Estado integral ou ampliado encontram-se no Caderno (Q) 6, datado de 1930-32 e composto em grande parte de Textos B:
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“na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)” ” (Q 6, 88, 763-4 [CC, 3, 244) – grifo meu
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“por Estado deve-se entender, além do aparelho de governo, também o aparelho ‘privado’ de hegemonia ou sociedade civil” (nota Q 6, 137, 801 [CC, 3, 257-8] intitulada Conceito de Estado)
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“Na política, o erro acontece por uma inexata compreensão do que é o Estado (no significado integral: ditadura + hegemonia)” (Q 6, 155, 810-1 [CC, 3, 257])
Estado ampliado, sociedade civil, hegemonia e poder
Na seção Noções enciclopédicas. A sociedade civil, encontramos outros sentidos para sociedade civil, como, por exemplo,
“no sentido de hegemonia política e cultural de um grupo social [de uma classe social] sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado” (Q 6, 24, 703 [CC, 3, 225])
G. contrasta esta definição com a noção católica limitada de sociedade civil como “sociedade política ou o Estado, em oposição à sociedade familiar e à Igreja” (ibidem). Nos primeiros meses de 1930, nos Cadernos, a pesquisa gramsciana acerca da sociedade civil está diretamente associada à hegemonia e à questão dos intelectuais (cf. Q 1, 43 e Q 1, 44), que devem tanto se integrar “sentimentalmente” (Q, 1505) ao povo-nação (ao invés de estarem distanciados destes) em “inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador, ‘persuasor permanentemente’” (Q 12, 3, 1.551 [CC, 2, 53]). O novo intelectual é parte determinante da luta pela hegemonia, tanto quanto os famosos “intelectuais orgânicos”, aqueles que representam a sua própria classe (pedreiros, trabalhador fabril, operários – cf. CPC, 145 e CPC, 60), ao invés de serem representados por intelectuais da “classe média”, muito menos da burguesia.
Nessa esteira, G. fornece as duas funções características do Estado integral ou ampliado (o complexo constituído pela “sociedade civil” e pela “sociedade política”):
“Uma classe é dominante de duas maneiras, sendo ‘dirigente’ e ‘dominante’. É dirigente das classes aliadas, é dominante das classes adversárias. Por isso, uma classe, já antes da ida ao poder, pode ser ‘dirigente’ (e deve sê-lo); quando está no poder, torna-se dominante, mas continua a ser também dirigente […]. Pode e deve haver uma ‘hegemonia política’ também antes de ir ao governo, e não precisa contar apenas com o poder e com a força material que este lhe dá para exercer a direção ou hegemonia política” (Q 1, 41)
Trata-se de um dos pensamentos teórico-práticos mais originais em Gramsci: o da conquista da hegemonia antes da conquista do poder. Tal ensinamento é retomado no Q 19 com variações, inclusive lexicais, num parágrafo intitulado Supremacia, direção e domínio:
“[…] O critério metodológico sobre o qual se deve basear a análise é o seguinte: a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e moral’. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a ‘liquidar’ ou a submeter inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental […] depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também ‘dirigente’ […] pode e deve haver uma atividade hegemônica mesmo antes da ida ao poder” (Q 19, 24, 2.010-1 [CC, 5, 62- 3])
Como se vê, tais elaborações fazem de Gramsci tanto um grande cientista político quanto um estrategista revolucionário inovador.
Estado e partido(s)
G. declara que, no problema dos intelectuais,
“[o partido é] o mecanismo que cumpre, na sociedade civil, a mesma função que o Estado cumpre, em medida maior, na sociedade política” (Q 4, 477-8),
isto é, determina a estreiteza, o vínculo, a soldagem entre intelectuais orgânicos (dos próprios trabalhadores) e intelectuais tradicionais. Obviamente, trata-se sobretudo do Partido Comunista, um partido de inspiração marxista que se proponha revolucionário.
Noutro momento, em um parágrafo mais geral, justamente intitulado “Estado e partidos”, G. mapeia o seguinte:
“Estado e partidos. A função hegemônica ou de direção política dos partidos pode ser avaliada pelo desenvolvimento da vida interna dos próprios partidos. Se o Estado representa a força coercitiva e punitiva de regulamentação jurídica de um país, os partidos, representando a adesão espontânea de uma elite a tal regulamentação, considerada como tipo de convivência coletiva para a qual toda a massa deve ser educada, devem mostrar em sua vida particular e interna terem assimilado, como princípios de conduta moral, aquelas regras que no Estado são obrigações legais. Nos partidos, a necessidade já se tornou liberdade, e daí nasce o enorme valor político (isto é, de direção política) da disciplina interna de um partido e, portanto, o valor do critério que tem tal disciplina para avaliar a força de expansão dos diversos partidos. Deste ponto de vista, os partidos podem ser considerados como escolas da vida estatal. Elementos de vida dos partidos: caráter (resistência aos impulsos das culturas ultrapassadas), honra (vontade intrépida ao sustentar o novo tipo de cultura e de vida), dignidade (consciência de operar por um fim superior), etc.” (Q 7, 90; CC, 3, 267)
No âmbito do Partido Comunista, deve este – por meio de um centralismo democrático e orgânico, jamais burocrático – concretizar e garantir
“uma inserção contínua dos elementos que desabrocham do mais profundo das massas no quadro sólido do aparato da direção que assegura a continuidade e a acumulação regular das experiências” (Antonio Gramsci, Obras escolhidas, São Paulo: Martins Fontes, 1978, p. 173-5)
O Partido Comunista precisa ser o lugar da formação dos intelectuais orgânicos da classe operária (Q, 1522). Certamente isso se deu em muitos momentos da história, mas G. não viveu a experiência histórica da queda do “socialismo real” nem a emergência de uma classe capitalista, podre e corrupta, de uma camada de burocratas que cresceram (antes e depois) justamente nos seios dos partidos que pretendiam ser a expressão da classe trabalhadora. Ainda assim, ele já prenunciava e via em seu tempo que deveria se evitar as relações do intelectual com o povo-nação reduzirem-se a “relações de ordem puramente burocrática, formal; os intelectuais se tornam uma casta ou um sacerdócio” (Q, 1505). Seja como for, o autor dos Cadernos pensa que a conquista do poder político pelo partido da classe operária coloca os trabalhadores definitivamente em segurança contra a decapitação ideológica por parte do adversário (ainda que as expressões usadas apontem para uma linha de tendência, mais do que de uma garantia definitiva):
“Depois da criação do Estado, o problema cultural [da autonomia ideológica e política das classes populares] tende a uma solução coerente” (Q, 1863)
O Estado e o Parlamento
Gramsci pergunta-se se os Parlamentos fazem parte da estrutura dos Estados, mesmo nos países onde parece que os Parlamentos têm o máximo de eficiência, ou que função real eles desempenham, desembocando numa crítica do regime representativo, mas também do sistema burocrático:
“Se a resposta for positiva, de que modo eles fazem parte do Estado e como exercem sua função particular? Mas: a existência dos Parlamentos, mesmo se organicamente não fazem parte do Estado, será destituída de significado estatal? […] O ponto é se o regime representativo e dos partidos, em vez de ser um mecanismo adequado para escolher funcionários eleitos que completem e contrabalancem os burocratas nomeados, para impedir sua petrificação, transformou-se num estorvo e num mecanismo contraproducente, e por qual razão. De resto, até uma resposta afirmativa a estas perguntas não esgota a questão: porque, mesmo admitindo (o que se deve admitir) que o parlamentarismo se tornou ineficiente e inclusive prejudicial, não se pode concluir que o regime burocrático deve ser reabilitado e exaltado.” (Q 14, 49; CC, 3, 309-310)
G. esboça uma solução:
“É preciso ver se parlamentarismo e regime representativo se identificam e se não é possível uma solução diferente tanto do parlamentarismo quanto do regime burocrático, com um novo tipo de regime representativo.” (idem)
É significativo, por fim, retomar a unidade entre sociedade política e sociedade civil em Gramsci no tema do Congresso Federal, que, em todos os países, comprova uma vez mais a sua teoria em uma série de situações: defesa de contrarreformas antipopulares primeiro na mídia, jornais, TVs, mesmo Internet, preparando o terreno para as votações parlamentares e a elaboração no Executivo ou no próprio Congresso, o poder de pressão do lobby, do empresariado, FIESP, Wall Street, ou seja, interesses de classes e implementação ideológica para implementação legal, econômica, política etc.
Burocracia, partido, Estado e sociedade
Nos Cadernos, o termo “burocracia” tem uso dúplice: de forma adjetivada, é sinônimo de “fossilização” (Q 1, 133, 122 [CC, 3, 122]), “pedantismo” (Q 4, 31, 450) e “mecanicidade” (Q 11, 66, 1.500 [CC, 1, 210]); também identifica o conjunto dos funcionários civis e militares de um Estado ou de uma organização partidária. Esta segunda acepção, porém, liga-se à primeira, se os partidos políticos distanciam-se das massas. G. refletirá sobre tal debilidade num contexto histórico-social e político muito específico no Q 3, 119 [CC, 3, 2021], o Risorgimento italiano:
“o governo […] operou como um ‘partido’, colocou-se acima dos partidos não para harmonizar seus interesses e atividades no quadro permanente da vida e dos interesses estatais nacionais, mas para desagregá-los, para separá-los das grandes massas e ter ‘uma força de sem-partido ligada ao governo com vínculos paternalistas do tipo bonapartista-cesarista’” (Q 3, 119, 386-7 [CC, 3, 201])
Nesse caso, a referência ao governo deve ser lida como referência à burocracia, conforme G. esclarece logo a seguir:
“A burocracia, assim, se alienava do país e, através das posições administrativas, tornava-se um verdadeiro partido político, o pior de todos, porque a hierarquia burocrática substituía a hierarquia intelectual e política: a burocracia se tornava justamente o partido estatal-bonapartista” (ibidem, 388 [CC, 3, 202])
A burocracia é um elemento degenerado: usando o exemplo histórico do Risorgimento, G. expõe nos trechos acima a competência técnica e administrativa que não está a serviço do povo, mas sim a serviço de um partido de governo com seus próprios interesses reduzidos a uma “casta” (Q 5, 38, 571 [CC, 6, 167]). Mais tarde, o tema é retomado e a conclusão é mais dura: “A burocracia italiana pode ser comparada à burocracia papal, ou melhor ainda, à burocracia chinesa dos mandarins” (Q 14, 47, 1.705 [CC, 5, 314]. Falta, na burocracia, a organicidade e a falta de vínculo com o “povo-nação”.
G. não deixou de identificar, inclusive com algum conhecimento pioneiro de psicologia, a composição social da burocracia em seu caráter mecânico e brutal. Para certos estratos sociais, “a carreira militar e burocrática” é “um elemento muito importante de vida econômica e de afirmação política” (Q 4, 66, 509). Não raro, trata-se de uma “média e pequena burguesia rural” habitada a “comandar ‘politicamente'”, “não ‘economicamente'”, já que não possui funções econômicas.
Ao distinguir no interior dos partidos políticos “o grupo social” e “a massa do partido”, G. enfatiza como a “força consuetudinária mais perigosa” é “a burocracia ou o estado-maior do partido” (Q 7, 77, 910), ou seja, o problema da burocracia estatal também é transferido para os que são os “‘experimentadores’ históricos” (Q 11, 12, 1.387 [CC, 1, 93]) de novas concepções de mundo. O componente burocrático, quando se “organiza como corpo em si, solitária e independente”, faz o partido entrar em crise, “o partido termina por se anacronizar” (Q 7, 77, 910). Eis o motivo da “força consuetudinária mais perigosa” ser a burocracia.
Ninguém melhor do que G. entendeu quando é que ocorre tal degeneração – quando há uma “cisão de classe”, ou seja, quando os dirigentes não gozam mais da confiança dos dirigidos e deles se separam:
“Isso aconteceu nos sindicatos e nos partidos social-democratas: se não há diferença de classe, a questão se torna puramente técnica – a orquestra não acredita que o maestro seja um patrão oligárquico – de divisão do trabalho e de educação” (Q 2, 75, 236 [CC, 3, 160])
O oposto de tal cenário é o de uma
“[…] estreita ligação entre grande massa, partido, grupo dirigente; e todo o conjunto, bem articulado, pode se movimentar como um ‘homem-coletivo’” (Q 11, 25, 1.430 [CC, 1, 148])
É necessário, portanto, estar atento à burocratização do partido: o partido deve “reagir contra o espírito consuetudinário, contra as tendências a se mumificar e tornar anacrônico” (Q 13, 23, 1.604 [CC, 3, 61]). Numa nota sobre o fetichismo dos organismos coletivos, a bela metáfora da orquestra voltará com uma força expressiva ainda maior:
“Uma consciência coletiva, ou seja, um organismo vivo só se forma depois que a multiplicidade se unifica através do atrito dos indivíduos: e não se pode dizer que o ‘silêncio’ não seja multiplicidade. Uma orquestra que ensaia cada instrumento por sua conta dá a impressão da mais horrível cacofonia; porém, estes ensaios são a condição para que a orquestra viva como um só ‘instrumento’” (Q 15, 13, 1.771 [CC, 3, 333])
Em dois outros célebres momentos em Gramsci, “dirigentes” e “dirigidos”, “governantes” e “governados”, que são ligados a um vínculo “pedagógico” (Q 10 II, 44, 1.331 [CC, 1, 398]) e “de ‘hegemonia'” (idem), tornam-se quase indissociáveis, certamente uma condição-base para a construção do comunismo:
1. Na questão da educação e da escola,
“[…] a tendência democrática, intrinsicamente, não pode significar apenas que um trabalhador manual se torne um operário qualificado, mas que cada ‘cidadão’ possa se tornar ‘governante’ e que a sociedade o coloque, mesmo que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder tornar-se tal: a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de governo com o consentimento dos governados), assegurando a cada governado a aprendizagem gratuita das capacidades e da preparação técnica geral necessárias ao fim de governar” (Q 4, 55, 501)
2) Conforme já vimos, o partido se configura como “o mecanismo que cumpre, na sociedade civil, a mesma função que o Estado cumpre, em medida maior, na sociedade política”, ou seja, se configura como o mecanismo que consegue determinar a “soldagem” entre intelectuais orgânicos e intelectuais tradicionais, e tal soldagem liga-se à função mais geral do partido político, que consiste para G. na elevação dos
“membros ‘econômicos’ de um grupo social à qualidade de ‘intelectuais políticos’, isto é, de organizadores de todas as funções inerentes ao orgânico desenvolvimento de uma sociedade integral, civil e política” (Q 4, 477-8)
Enfim, ao criticar as degenerações burocráticas tanto do parlamentarismo quanto do regime representativo em geral no Q 6, 81, 751-2 [CC, 3, 235], G. admite (tal como Weber, em sua frágil sociologia, também viu) que a política de massa do mundo moderno marca uma progressiva burocratização da atividade política, fruto amargo da tecnicidade e da especialização. Com isto, Gramsci torna-se o primeiro autor a colocar o problema, pelo menos no campo marxista, da “espinhosa questão” (a expressão é de Michele Filippini no Dicionário Gramsciano) da complexa relação entre democracia e burocracia, e um dos mais inovadores em apresentar a sua solução.
Contra a noção unilateral de “Estado”, Gramsci ultrapassa Marx e Engels, ou sobretudo este último
Ninguém melhor do que Gramsci ensina que a unilateralidade do “conceito comum de Estado” só pode levar a “erros colossais” (Q, 801), tais como a identificação do local do domínio, da violência e do abuso de poder sempre e apenas no Estado propriamente dito, e a celebração unívoca da sociedade civil como o lugar da “liberdade” enquanto tal. Nada mais falso, entretanto nada mais comum, mesmo na esquerda, porém nada mais conivente com dogmas do mercado tirano e ideologias direitistas radicais que responsabilizam o espaço público pela crise, pelos problemas e fazem da sociedade civil, com suas instâncias privadas (tão ou mais burocráticas, sobretudo se notarmos a burocracia seletiva do dinheiro), uma espécie de liberdade e paraíso ilusórios para fins antipopulares ou “neoliberais”. No caso particular das esquerdas, vimos em Gramsci, ao discutir o “sindicalismo teórico”, que essa falsa noção não passa de ingênuo anarquismo, abstencionismo ou perpetuação da subalternidade que recusa a luta pela hegemonia.
Ao contrário, vimos que os Cadernos do Cárcere sublinham todo o tempo que também a sociedade civil é de algum modo Estado, no sentido de que, se o Estado é o aparato de espoliação da classe dominante contra a classe subalterna, também no interior da sociedade civil podem ser exercidas formas terríveis de domínio e de opressão (o despotismo da fábrica capitalista e até a escravidão, sem contar a Polícia Militar ou mesmo as Forças Armadas, que são evocadas pela legislação burguesa para proteger a propriedade privada), com relação aos quais podem representar um contrapeso, ou um instrumento de luta, as próprias instituições políticas. Para defender esta visão coerente, Gramsci polemiza com um autor não isento de simpatias a Georges Sorel:
Para Helévy, Estado é o aparato representativo, e ele descobre que os fatos mais importantes da história francesa de ’70 até hoje não se deveram à iniciativa dos organismos políticos derivados do sufrágio universal, mas ou de organismos privados (sociedade capitalista, estado-maior, etc.), ou de grandes funcionários desconhecidos no país etc. Mas o que significa isso senão que, por Estado, deve entender-se, além do aparato governativo, também o aparato ‘privado’ de hegemonia e sociedade civil?” (idem)
Esta análise crítica em Gramsci obriga a uma releitura de Marx e Engels, e sobretudo do segundo. Já vimos que em A Ideologia Alemã (sobretudo na parte denominada “Origem do Estado e relação do Estado com a sociedade civil”) estão substratos significativos que G., provavelmente mesmo sem conhecer esta reunião de textos, não se desvia, porém precisamos abarcar mais alguns pontos. Num ensaio de 1850 para o Nova Gazeta Renana. Revista Político-Econômica de Marx (que serviria como continuação do jornal Nova Gazeta Renana), em trecho citado no mesmo ano no texto “Sobre o Slogan da Abolição do Estado e os ‘Amigos da Anarquia’ alemães”, em que polemiza com os anarquistas (jamais esquecer do ensinamento do velho Engels posterior no Anti-Dühring de 1877: “o Estado [no processo revolucionário e no comunismo] não é abolido [como querem os anarquistas], mas definha e morre – itálicos meus -, torna-se supérfluo após a tomada de poder pela classe trabalhadora e a consecutiva socialização dos meios de produção), Engels indica os EUA (ou a “América do Norte” daquele século 19) como país onde teria se realizado a abolição do Estado em sentido burguês, pois, ali, as “contradições de classe estão incompletamente desenvolvidas”, enquanto que nos “países feudais a abolição do Estado significa a abolição do feudalismo e a criação de um Estado burguês ordinário” (MEW, VII, 288). Nesse mesmo texto prematuro, ressalta-se ainda que “a emigração da superpopulação proletária para o oeste [dos EUA] camufla” (mas não cancela) o conflito de classe (que funda a necessidade do Estado), então, escreve Engels, a “intervenção do poder do Estado, reduzida ao mínimo no leste, não existe no oeste” (idem). Na realidade, Engels não soube que a emigração pressupôs a expropriação e a deportação dos indígenas e, portanto, uma feroz ditadura exercida contra eles.
Tal tese reaparece também na Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884), indicando os EUA – vale lembrar que esta nação não tinha ainda despontado como capital hegemônico mundial nem tomado o lugar da Europa na reação imperialista, evento que ocorrerá sobretudo a partir da Segunda Guerra no século 20 – como o país em que, naquela segunda metade do século 19, em determinados períodos e territórios distantes (provavelmente os mais desérticos), onde não se desenvolveram os antagonismos de classes, o aparato político e militar, separado da sociedade, tenderia a reduzir-se a zero, e que se “fortalece na medida em que exacerbam os antagonismos de classe dentro do Estado e na medida em que os Estados contíguos crescem e aumentam de população” (“IX – BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO”). Não é que Engels esteja redondamente incorreto em suas afirmações teóricas, está correto, mas prescindiu somente da política internacional, e não pôde, por motivos informacionais, saber de certos detalhes vitais para a teoria, que só se tornaram prementes décadas depois.
Por exemplo, que, desde 1812 e 1815, os EUA, empenhados na guerra com a Inglaterra, subtraem ao México imenso território, além das expedições militares contra os indígenas, ou seja, o aparato estatal não deixava de estar bem desenvolvido em certos setores da república norte-americana estadounidens! Na verdade, em 1884 (ano do livro de Engels), nos EUA, os negros, por sua vez, eram privados dos direitos políticos conquistados após a Guerra de Secessão e eram obrigados a um regime de apartheid que os submetia a diversas formas terríveis de violência, como o linchamento. O Sul dos EUA tinha possivelmente um Estado débil, mas era justamente ali que uma expressão assassina da sociedade civil como a Ku Klux Klan racista reinava forte. Em Gramsci, conforme vimos, a sociedade civil pode ser – e frequentemente o é – ela mesma o espaço do exercício do poder, de consenso ou de um poder também brutal. Nem mesmo o instituto da escravidão é considerado por Engels – é certo que os patrões e senhores de escravizados brancos mobilizavam milícias, ao invés de Guarda Nacional (como na França e em outros países europeus), porém havia já ali obrigações estatais e públicas que serviam para a manutenção do sistema exploratório. Um ano antes da publicação do livro de Engels, a Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucional uma lei federal que proibia a segregação dos negros nos locais de trabalho, ferrovias e serviços geridos por companhias privadas, subtraídos a qualquer interferência estatal. Ou seja, passou desapercebido por Engels as diversas formas de negligência e dominação pela classe dominante nos EUA – um dos países marcados pela colonização europeia – de negros, indígenas e latino-americanos, isto é, de classes subalternas no mundo dos brancos e já à margem do capital que se desenvolvia, o que se tornará inquestionável e explícito como consequência do hegemonismo desse país (e de seu complexo industrial-militar) décadas depois e sobretudo no século seguinte.
Marx e Engels, porém, estavam absolutamente bem informados sobre a situação “racial” ou étnica nos EUA, portanto os detalhes acima servem principalmente a considerações a respeito da teoria do Estado. Assim, é importante notar que, após o assassinato do presidente Abraham Lincoln em 1865 (vale lembrar da famosa mensagem redigida por Marx em nome do Associação Internacional dos Trabalhadores no ano anterior, saudando a vitória da reeleição de Lincoln, “filho honesto da classe operária”, após a Guerra Civil), Marx e Engels criticaram o presidente substituto Andrew Johnson (1808-1875), cujas políticas refletiam os interesses da grande burguesia do Norte de se aliar aos derrotados plantadores dos estados do Sul, e continuar o sistema de discriminação racional contra os negros ‘libertados’, etc. (Cf. Karl Marx – Frederick Engels, Collected Works, Volume 42, 1865-1868, prefácio, p. XXXVI.) Em 15 de julho de 1865, Engels escreve uma carta a Marx afirmando que o ódio aos negros havia se renovado nos EUA “cada vez mais violentamente” e que Johnson “está renunciando todo o seu poder vis-à-vis os antigos senhores do Sul… Sem sufrágio de cor nada pode ser feito, e Johnson está deixando para os derrotados, os ex-proprietários de escravos, decidirem sobre isso. É absurdo.” (Idem, p. 157, tradução minha.) Não à toa, quando Johnson perde posteriormente nas eleições de 1866, Marx, em uma carta a François Lafargue, deu razão principal ao fato em uma única frase: “Os trabalhadores do Norte ao menos compreenderam totalmente que o trabalho branco nunca será emancipado por tanto tempo enquanto o trabalho negro for estigmatizado.” (Idem, p. 334, tradução minha.)
Vale assinalar, só a título de registro, que os EUA se tornarão, no início do século 20, o país líder da jurisdição racista, o que inspirará os nazifascistas anos depois em sua pilhagem militar continental, com objetivo mundial, e mesmo para os campos de extermínio e concentração (além da Guerra dos Bôeres da classe dominante britânica colonizatória, a primeira guerra a instituir um campo de concentração semelhante aos que os nazistas implementarão décadas depois). Ou seja, as duas inspirações para o nazismo, além do imaginário do Império Romano antigo, foram justamente aquelas urdidas no mundo anglo-saxão liberal dito democrático.
Agir na “sociedade civil”, em detrimento do “Estado”, em nome de Gramsci?! Um equívoco crasso, mas comum. Anarquismo e liberalismo.
Há certamente muitas leituras (e falta leitura) de Gramsci. Por exemplo, há uma leitura liberal que foi empreendida principalmente por Norberto Bobbio, devidamente refutado e desmascarado por Linguori (Roteiros para Gramsci), Álvaro Bianchi (O Laboratório de Gramsci: filosofia, história e política) e outros (Carlos Nelson Coutinho, Marcos del Roio), porque coloca um falso Gramsci “teórico das superestruturas”. Haveria um Gramsci “culturalista”, ou seja, que exageraria a superestrutura em detrimento da estrutura, o que não se comprova textualmente (a dialética entre estrutura e superestrutura se realiza em G. na conceituação do bloco histórico, que veremos mais adiante), haveria um Gramsci pintado em “cor-de-rosa”, no sentido de menos ameaçador do que qualquer reformista conivente, ou até um Gramsci cujos postulados serviriam para algum tipo de atuação na “sociedade civil” e não no “Estado”. Nada mais falso, que uma simples leitura imanente dos textos gramscianos reprova.
Com tudo o já foi exposto acima e ainda o será neste texto a respeito do Estado ampliado, a última preposição supracitada no parágrafo anteriorcai no dualismo enganoso entre “sociedade civil” e “sociedade política” e é, portanto, um erro teórico e uma prática catastrófica que perpetua a subalternidade. Nem se pode justificar isto evocando a “guerra de posição”, pois esta – arte militar aplicada à ciência política – é preparada minuciosamente, geralmente em tempo de paz, pelos Estados e pelas classes sociais (Q 10 I, 9, 1.228 [CC, 1, 298]). Ora, seria um Gramsci que não é Gramsci, falso, deturpado ou que existe apenas em ideia imaginativa e leiga de quem ainda não estudou os textos…
Não raro, também é um Gramsci sem biografia, ou seja, uma noção idealista do autor sem a correta aplicação da concepção materialista da história – apaga-se ou ignora-se que, depois de experiência significativa no Partido Socialista, foi co-fundador e dirigente do maior e melhor Partido Comunista do ocidente (o PCI), militante às voltas com a Internacional Comunista, líder da classe operária italiana (definição de Togliatti), deputado de Vêneto, etc., e nem mesmo pergunta-se o que é que tinha de tão ameaçador para ser preso pelos fascistas. O livro Os Prismas de Gramsci, de Marcos del Roio, é fundamental para a corporificação histórico-social do nosso autor no período pré-cárcere.
Avancemos rapidamente ao erro teórico criticado por Gramsci que há na suposta separação entre economia e política (Q 4, 38, 460 e Q 13, 1.589-90 [CC, 3, 47]). Não é justamente o que vemos em alguns coletivos ou até no desejo da criação de certos movimentos sociais? Mas não há, na história do Brasil e da esquerda mundial, nenhum movimento social relevante que, por exemplo, tenha logrado conquistas sem partido! Pode-se criticar a forma interna de um partido ou dos partidos existentes, mas desde que haja um plano de renovação profunda (não há, até hoje, nada mais significativo nesse sentido do que a teoria do partido gramsciano), pode-se criticar o pragmatismo deles, a “pequena política” (termo gramsciano em contraposição à “grande política”) confinada ao baixo nível de corredores parlamentares, a burocratização institucional dos três poderes da própria democracia liberal burguesa, e Gramsci nunca deixou de exercer tal crítica.
No entanto, Gramsci também sempre contestou a ideia de uma política que existisse unicamente fora dos organismos, que, melancólica e insatisfeita (termos que ele não usa) diante da burocratização das instituições, se mantivesse totalmente alheia, achando que a via e o caminho únicos estão fora da verdadeira luta política, conforme veremos na próxima seção deste texto a respeito de sua crítica do sindicalismo teórico (segundo o qual a política revolucionária deveria ser conduzida unicamente fora dos organismos e das instituições estatais), tanto em textos do pré-cárcere quanto depois nos Cadernos, porque tal noção separa (sem respaldo na realidade histórico-social) a política da economia, reflete um puro abstracionismo e, ao recusar a política organizada, cai no espontaneísmo (prática sem mediação da teoria), não raro com resquícios liberais e anarquistas, preservando a subalternidade de classe, ao invés de lutar pela hegemonia. Gramsci não titubeia em sua crítica radical da mera fenomenologia do poder no liberalismo e no anarquismo, enxergando desde cedo até mesmo ligações entre ambos (ON, 117).
De fato, um Bakunin, que rompe com Marx, começa a ter fama justamente com a reação liberal pós-revoluções de ’48 (data do Manifesto Comunista). Marx o refuta ponto ao ponto ao encontrar em Bakunin tão somente a retórica e nada de economia; o “pai do anarquismo” atacava o “estatismo”, porém muito superficialmente, porque termina por poupar e respeitar o “Estado propriamente capitalista”, “a ponta de lança da sociedade burguesa na Europa” (MEW, XVIII, 610), ou seja, a Inglaterra liberal que domina a Irlanda sob a lei marcial, o país que se distinguiu, segundo Marx, por sua “legislação sanguinária contra os expropriados” (MEW, XXIII, 761-5), o país que detinha o maior império colonial, que, aliás, se industrializou em cima do ouro roubado do Brasil (pela aristocracia portuguesa – que, através da megalomania em comprar materiais estrangeiros, passou pelas mãos de praticamente todos os países europeus, tal como José Saramago mostra em Memorial do Convento de 1982), mas que é visto em Estatismo e Anarquia como prefiguração da extinção do Estado ou pelo menos prenúncio de sua diminuição “ao mínimo”, além dos direitos liberais-burgueses serem louvados, quando, no plano da realidade histórico-social, sabemos que ele camuflam e servem a uma nova exploração do povo.
Gramsci não nega o legado do iluminismo, que, propiciando um movimento coletivo por toda a Europa, antecipou culturalmente e preparou revoluções e revoltas, mitigou o clero, o obscurantismo, o despotismo, sendo esse caráter cultural coletivo determinante hoje para o socialismo (cf. seu texto pré-cárcere “Socialismo e Cultura”, assinado Alfa Gamma, Il grido del popolo, 29/1/1916; EP, 56-61). Vale lembrar que o liberalismo era a vanguarda no século 18 e que, por defender o capital, passa à retaguarda no 19, quando surge o comunismo mais bem estruturado, portanto uma série de problemas nos são colocados no 20 e no 21. Gramsci reconhecerá o legado da Revolução Francesa contra o elitismo aristocrático; para ele, os liberais antigos “criavam um novo mundo econômico e moral, rompendo os limites de toda a escravidão anterior”, enquanto que os liberais de seu tempo (na verdade, até da contemporaneidade, embora ele se referisse diretamente aos desprezíveis e oportunistas expoentes do liberalismo que louvavam a marcha rumo ao fascismo) nada têm a ver com os liberais do passado, pois que “Chamar de liberais os burgueses de hoje, que do valor moral da liberdade perderam a consciência, é […] muito pior do que extravagância” (SF, 162-4).
Ainda no Partido Socialista, isto é, antes de co-fundar o Partido Comunista em 1921, Gramsci assume que “a tarefa dos liberais foi assumida pelos socialistas” (NM, 285-6), isto é, a tarefa de transformar a realidade econômica, política e social, mas nos Cadernos há um amadurecimento e uma conformação com relação à verdadeira natureza do liberalismo na sociedade de classes: ao tomar posicionamento a favor da emancipação dos povos coloniais, Gramsci denuncia a burguesia liberal (Q, 567) e o eurocentrismo, para o qual a “humanidade” seria apenas a “Europa”, que sugou a energia e a riqueza dos povos coloniais feito um “vampiro”: “Por alguns anos nós europeus vivemos da morte dos negros: vampiros inconscientes, nos nutrimos de seu sangue inocente. Como no romance de Balzac, o prato de arroz que fumegava diante de nossa boca privilegiada trazia em seus números herméticos a condenação à morte de um distante irmão em humanidade” (ON, 69-70). Trata-se de um dos trechos mais sensíveis, belos e emocionados de toda a escritura gramsciana. Como se vê, para G., o comunismo é um “humanismo integral” e sem fronteiras.
O substrato liberal da burguesia revolucionária da época de Adam Smith e David Ricardo – capitalismo manufatureiro tornando-se industrial – não era de todo “positivo” a não ser diante do Velho Regime, de modo que G. mune-se das categorias da universalidade e da particularidade para desnudar a história: “A burguesia, quando fez a revolução, não tinha um programa universal; ela servia a interesses particulares, interesses da sua classe, e a servia com a mentalidade fechada e mesquinha de todos aqueles que tendem a fins particulares” (CF, 139).
O anarquismo, por sua vez, por si só, como meio de luta, pode levar, como leva, mesmo na melhor das suas intenções, à decapitação ideológica e política das classes subalternas. Gramsci viu que “as frases de ‘rebeldismo’, de ‘subversivismo’, de ‘antiestatismo’ primitivo e elementar” são expressões de “apoliticismo”, e portanto de renúncia, de aceitação ou interiorização de uma situação de subalternidade. Como vimos no início deste texto, “escassa compreensão do Estado significa escassa consciência de classe”, e, de fato, a corrente do anarquismo não possibilita uma correta articulação e percepção da economia e das lutas de classes. Na melhor das hipóteses, vaticina G., aquelas palavras de ordem podem estimular um “‘subversivismo’ popular” incapaz de produzir um novo ordenamento político-social revolucionário; às vezes, podem até aplainar a estrada para o “‘subversivismo’ do alto”, das classes dominantes (Q, 2108-9 e 326-7).
Enfim, apenas uma fenomenologia ingênua do poder pode celebrar, no subversivismo e no antiestatismo vulgar enquanto tal, um momento de emancipação. Estas fileiras precisam se conscientizar da luta classista pela hegemonia.
Estado, sociedade civil e mundo econômico: homo oeconomicus, liberismo, sindicalismo teórico
Chegamos aos elementos decisivos da concepção gramsciana de Estado a partir das relações entre Estado e mundo econômico, o que se dá sobretudo no nível do Caderno 1:
“Para as classes produtivas (burguesia capitalista e proletariado moderno), o Estado só é concebível como forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado sistema de produção […] quando o impulso para o progresso não é estreitamente ligado a um desenvolvimento econômico local […] então a classe portadora das novas ideias é a classe dos intelectuais e a concepção do Estado muda de aspecto. O Estado é concebido como uma coisa em si, como um absoluto racional” (Q 1, 150, 132-3 [CC, 6, 350])
Gramsci nota que o “Estado intervencionista” possui “origem econômica”, seja ligado “às correntes protecionistas ou de nacionalismo
econômico”, ou à política “de Bismarck e Disraeli” em favor das classes
trabalhadoras, por outro lado (Q 26, 6, 2.302 [CC, 4, 85], Texto C do Q 5, 69). Acrescenta, ainda, que há também aqueles que se professam “liberais no campo econômico e intervencionistas no cultural” (Q 26, 6, 2.303 [CC, 4, 85]).
Nesta definição do Estado em sua relação com o mundo
econômico, introduz-se a segunda acepção do conceito de sociedade civil, em que aparece o conceito de “homo oeconomicus”, isto é, os diferentes aspectos da vida econômica. Lê-se no Q 10 II, 15 [CC, 1, 323], intitulado Notas de economia:
“O homo oeconomicus é a abstração da atividade econômica de uma determinada forma de sociedade, isto é, de uma determinada estrutura econômica. Toda forma social tem seu homo oeconomicus, isto é, uma atividade econômica própria […]. Entre a estrutura econômica e o Estado com sua legislação e sua coerção, está a sociedade civil, e esta deve ser radical e concretamente transformada não apenas na letra da lei e nos livros dos cientistas; o Estado é o instrumento para adequar a sociedade civil à estrutura econômica […]. Esperar que, através da propaganda e da persuasão, a sociedade civil se adapte à nova estrutura, que o velho homo oeconomicus desapareça sem ser sepultado com todas as honras que merece, é uma nova forma de retórica econômica, uma nova forma de moralismo econômico vazio e inconsequente” (ibidem, 1.253-4 [CC, 1, 323-4])
Jacques Texier (no Dicionário Gramsciano) chama esta nova definição gramsciana de sociedade civil de “sociedade civil-homo oeconomicus”.
Para Gramsci, o homem é “mecanizado” (Q 1, 158, 138), transformado para se adaptar às novas condições de trabalho e de produção do industrialismo. Isso certamente colocaria para trás o velho humanismo e criaria um novo humanismo. (Em seus influentes escritos a respeito do taylorismo-fordismo, como também em seu posicionamento na querela Stálin x Trotsky, novamente aflora a sua preocupação de que trata-se principalmente de saber se a ação se dará pela via da coerção, criticável, ou do consentimento e autonomia da classe trabalhadora.) Aqui, já no Caderno 1, temos uma forma embrionária do conceito para a sociedade civil cujo conteúdo é a vida econômica.
Este segundo significado para sociedade civil parece, porém, distante do considerado anteriormente. A transformação do homem – assim como a atividade de conquista da hegemonia -, obtida pelo consenso das classes aliadas, se dá no nível econômico, não mais na realidade política e cultural. A função hegemônica não exerceria papel fundamental, ao menos aparentemente, já que o instrumento de transformação é a coerção estatal da legislação e do direito, ainda que entrem em ação instrumentos mais “positivos”, como as escolas e outras instituições culturais, que possuem papel decisivo na organização revolucionária e na educação crítica.
Gramsci explicita de maneira ainda mais concreta a ligação dialética entre sociedade política e sociedade civil ao tratar da diferença entre sindicalismo teórico (segundo o qual a política revolucionária deveria ser conduzida fora dos organismos e das instituições estatais; ler verbete homônimo no Dicionário Gramsciano) e liberismo (doutrina econômica do capitalismo laissez-faire talvez usado pela primeira vez por Croce, que hoje pode ser associada ao “libertarianismo”, ainda que este seja uma forma intelectualmente ainda mais rebaixada e para aborrecentes). No Texto C do Caderno 13, lemos:
“A formulação do movimento do livre-câmbio baseia-se num erro teórico cuja origem prática não é difícil identificar, ou seja, baseia-se na distinção entre sociedade política e sociedade civil, que de distinção metodológica é transformada e apresentada como distinção orgânica. Assim, afirma-se que a atividade econômica é própria da sociedade civil e que o Estado não deve intervir em sua regulamentação. Mas, dado que sociedade civil e Estado se identificam na realidade dos fatos, deve-se estabelecer que também o liberismo é uma regulamentação de caráter estatal, introduzida e mantida por via legislativa e coercitiva: é um fato de vontade consciente dos próprios fins, e não expressão espontânea, automática, do fato econômico. Portanto, o liberismo é um programa político, destinado a modificar, quando triunfa […] a distribuição da renda nacional. Diverso é o caso do sindicalismo teórico, na medida em que se refere a um grupo subalterno, o qual, por meio desta teoria, é impedido de se tornar dominante, de se desenvolver para além da fase econômico-corporativa a fim de alcançar a fase de hegemonia ético-política na sociedade civil e de tornar-se dominante no Estado” (Q 13, 1.589-90 [CC, 3, 47]).
Ou seja, para Gramsci, é clara a fragilidade teórico-prática de noções liberalóides, anarquizantes e afins, porque não são capazes de fazer uma classe subalterna tornar-se dominante num processo revolucionário. No trecho acima, Gramsci é claro como a água: a distinção vulgar entre sociedade política e sociedade civil é um erro teórico. No Texto A do Caderno 4, o texto acima é retomado e troca-se o termo “Estado” por “sociedade política”:
“No primeiro caso [livre-cambismo], especula-se inconscientemente (devido a um erro teórico do qual não é difícil identificar o sofisma) sobre a distinção entre sociedade política e sociedade civil, e se afirma que a atividade econômica é própria da sociedade civil e que a sociedade política não deve intervir na sua regulamentação. Mas, na realidade, essa distinção é puramente metódica, não orgânica, e, na vida histórica concreta, sociedade política e sociedade civil são uma mesma coisa. Ademais, o liberismo também deve ser introduzido pela lei, isto é, pela intervenção do poder político […]. Diferente é o caso do sindicalismo teórico, porque este se refere a um agrupamento subalterno ao qual, com essa teoria, se impede de se tornar dominante, de sair da fase econômico-corporativa para se erguer à fase de hegemonia político-intelectual na sociedade civil e se tornar dominante na sociedade política” (Q 4, 38, 460, grifo meu)
Gramsci, nas linhas acima, denuncia o erro teórico contido na distinção “entre sociedade política e sociedade civil”, que “de distinção metodológica, é transformada e apresentada como distinção orgânica” (Q 13, 18, 1.590 [CC, 3, 47]). O sindicalismo teórico – suposta luta alheia dos organismos e instituições, que recusa a política organizada, não raro com resquícios liberais e anarquistas – é, para G., uma forma de catastrofismo (Q 1, 53, 67), porque reflete a prostração política das massas operárias (Q 1, 131, 119). Não deixa de ser a outra face do liberalismo econômico e político, pois compartilha com este da noção dualista entre economia e política, mas com função oposta na política, pois, propondo ser ideologia de um grupo subalterno, acaba, na realidade, perpetuando a sua subalternidade (Q 4, 38, 460). Vemos muitos movimentos sociais de esquerda que ainda hoje adentram nesse catrastrofismo inócuo. De fato, pode-se dizer que trata-se de “um aspecto do liberalismo econômico justificado com algumas afirmações do materialismo histórico” (ibidem, 461). No sindicalismo teórico, enfim, há a incapacidade de se colocar a questão fundamental da hegemonia.
Quanto à tese ingênua do liberismo, é bem conhecida para os vacinados, portanto a segunda parte do período não apresenta grandes problemas, mas a primeira parte remete à segunda acepção de sociedade civil. A pseudoteoria liberalista, que supõe a existência autônoma da economia (ou mesmo do mercado), pode ser facilmente desmascarada, já que o liberismo “também deve ser introduzido pela lei, isto é, pela intervenção do poder político”, portanto a suposta “radicalidade” liberalista serve apenas para Gramsci mostrar a unidade dialética entre os níveis estrutura e superestrutura.
Da mesma forma, é impossível separar a vida econômica e suas estruturas da coerção jurídica do Estado e das relações de força que caracterizam o que Gramsci chamará de “mercado determinado” (as concretas determinações historicamente dadas que a estrutura da sociedade exerce sobre a forma do mercado). Quando escreve sobre o “mercado determinado”, G. aproveita para criticar o abstracionismo usual daqueles que Marx intitulou de economistas vulgares. Assim:
“Na vida histórica concreta, sociedade política e sociedade civil são uma mesma coisa”,
ou
“se identificam”,
como diz a segunda versão do texto. (Neste particular, cabem duas outras referências: as seções sobre o direito burguês do Anti-Dühring de Engels e a importante obra Teoria Geral do Direito e o Marxismo de Pachukanis, que hauri da forma mercadoria em Marx e do registro histórico engelsiano do Direito construído pela burguesia para garantir a troca de mercadorias e, depois, a coerção para proteger a propriedade privada dos meios de produção.)
Por fim, na sua consideração do sindicalismo teórico (segundo o qual a política revolucionária deve ser conduzida fora dos organismos e das instituições estatais), que Gramsci criticava já no período os conselhos de fábrica de Turim pré-cárcere (“A organização econômica e o socialismo”, 1918), ainda no Partido Socialista, antes do Partido Comunista, e que criticará de maneira mais elaborada anos depois nos Cadernos, porque tal noção separa artificialmente a política da economia, não passando dum espontaneísmo abstrato (“A organização econômica e o socialismo”, 9 de fevereiro de 1918, EP, 1, 138) e ideologicamente anarquista (“Mensagem aos anarquistas”, 3-10 de abril de 1920, EP, 1, 338), o intento é claramente de fazer ver que, nesta postura de mera fenomenologia do poder, a classe subalterna permanece subalterna; o obstáculo da classe subalterna não é outro senão impedi-la “de sair da fase econômico-corporativa para se erguer à fase de hegemonia político-intelectual na sociedade civil”.
Esta tarefa histórico-social encontra-se no seio do marxismo e de um partido comunista coerente.
Distinção Oriente-Ocidente
Funda-se no novo conceito de Estado por Gramsci a distinção Oriente-Ocidente, encontrada em trecho famoso no Q 7, 6, 866:
“no Oriente o Estado era tudo, a sociedade civil era primordial e gelatinosa; no Ocidente, havia entre Estado e sociedade civil uma relação justa e, nas oscilações do Estado, logo se discernia uma robusta estrutura da sociedade civil” (ibidem)
Este entendimento teórico será determinante para as estratégicas e táticas gramscianas a respeito da revolução no Ocidente, que necessariamente se diferem das revoluções no Oriente, tal como o próprio Lênin já admitia em Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo. (Acontece que Lênin não problematiza, mas não fornece as bases para uma práxis, daí a sua inconsistência teórico-prática diante de Gramsci, que define que no Oriente o ataque frontal e diretamente ao Estado era mais premente, pois conquistando-o, conquista-se tudo, enquanto que no Ocidente a sociedade civil costuma estar mais ou menos em pé de igualdade com o Estado estrito senso, demandando uma conquista de posições e até mesmo a conquista da hegemonia antes da conquista do governo, tal como vimos no Q 19, 24, 2.010-1 [CC, 5, 62- 3].)
O renascentista Francesco Guicciardini, de acordo com Gramsci (Q 6, 87, 763 [CC, 3, 243] ), afirmava que, “para a vida de um Estado, duas coisas são absolutamente necessárias: as armas e a religião”; ora, isto entra de acordo com a díade gramsciana de “força e consenso, coerção e persuasão, Estado e Igreja, sociedade política e sociedade civil”, acrescentando que, na época do Renascimento, “a Igreja era a sociedade civil, o aparelho de hegemonia do grupo dirigente”. Não há dúvidas de que uma revolução socialista e comunista busca a sua hegemonia.
Estado, sociedade civil e opinião pública
“O Estado, quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria preventivamente a opinião pública adequada, ou seja, organiza e centraliza certos elementos da sociedade civil” (Q 7, 83, 914 [CC, 3, 265])
Nós vemos isto atualmente no Brasil sob a direitalha com a monomania do papel renitente da mídia hegemônica – porta-voz do empresariado, de bancos, FIESP e afins – a respeito das contrarreformas neoliberais no Congresso, como se elas fossem nos salvar e resolver os problemas do país, quando, na realidade, elas têm sido suicidas, são uma política de desindustrialização e de arrasar com a classe trabalhadora e o povo, favorecendo a classe dominante capitalista e seus representantes administrativos ou burocratas. Prepara-se, porém, todo um cenário a respeito, ainda que a narrativa (que não passa de um interesse de classe) não se sustente para cabeças críticas, mas é algo exposto diariamente no jornal impresso e televisivo, sempre com especialistas pequeno-burgueses, serviçais da burguesia, etc. sem direito ao contraditório, sem múltiplas vozes dissonantes e críticas. Ou seja, Gramsci vê também o Estado que “educa para o consenso” a propósito da criação de uma “opinião pública”.
Estado e lutas de classes
Vimos, no início deste texto, que o Estado “é todo o conjunto de atividades
práticas e teóricas com que a classe dirigente não somente justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados” (Q 15, 10, 1.765 [CC, 3, 330]), observação gramsciana que acrescenta um detalhe fundamental a mais em Marx e Engels (a questão do consenso), mas os processos não são unívocos, porquanto o Estado também não deixa de ser terreno do conflito de classe – é instrumento de uma classe e também o lugar de luta hegemônica, assim como também processo de unificação das classes dominantes.
Noutras palavras, o Estado integral ou ampliado é atravessado pela luta da hegemonia. A classe subalterna luta para manter sua própria autonomia ou, num momento específico e especial, para construir uma própria hegemonia alternativa à dominante. Neste segundo caso, de enorme importância histórico-social, a classe subalterna disputa com a classe no poder as “trincheiras” e “casamatas” pelas quais se propagam ideologia e senso comum.
Um novo Estado, uma nova hegemonia de classe
O Caderno 3 possui alguns destaques fundamentais acerca do plano do Estado em relação à afirmação e à manutenção duma nova hegemonia de classe:
“a partir do momento que existe um novo tipo de Estado, nasce [concretamente] o problema de uma nova civilização” (Q 3, 31, 309)
“limitada compreensão do Estado significa limitada consciência de classe” (Q 3, 46, 326 [CC, 3, 189])
“A unificação histórica das classes dirigentes reside no Estado e a história dessas classes é, essencialmente, a história dos Estados e dos grupos de Estados” (Q 3, 90, 372 [CC, 6, 352])
Para G., uma classe é madura para se propor como hegemônica quando sabe “se unificar ao Estado” (ibidem, 373).
Breve esboço da história do Estado: do medievo ao capitalismo e fascismo
O interesse gramsciano pelo Estado se manifesta sob diversas formas, conforme podemos ver. Ainda no Q 3, encontra-se um breve esboço da história do Estado, que não é devidamente continuado nem aprofundado. Distingue-se, primeiramente, o Estado antigo-medieval e o moderno:
“O Estado moderno aboliu muitas autonomias das classes subalternas […] mas certas formas de vida interna das classes subalternas renascem como partido, sindicato, associações de cultura” (Q 3, 18, 303)
E ainda:
“a ditadura moderna [fascismo, mas também capitalismo, ditadura do capital] aboliu também essas formas de autonomia de classe e se esforça para incorporá-las na atividade estatal: isto é, a centralização de toda a vida nacional nas mãos da classe dominante se torna frenética e absorvente” (idem)
No Texto C (Q 25, 4, 2.287 [CC, 5, 136]), lemos:
“a centralização legal de toda a vida nacional nas mãos do grupo dominante se torna ‘totalitária’”.
Segundo Liguori (no Dicionário Gramsciano), a referência acima “é ao fascismo, e, talvez, à União Soviética [sob Stálin], lembrando que, nos Q, ‘totalitário’ parece ter um valor neutro, em consonância, de resto, com o uso da época”.
Estado, sociedade civil, cidadão, funcionário estatal
Voltemos às acepções sobre sociedade civil. Segundo Gramsci,
“‘Todo indivíduo é funcionário’ […] na medida em que, ‘agindo espontaneamente’, sua ação se identifica com os fins do Estado (ou seja, do grupo social determinado ou sociedade civil)” (Q 8, 142, 1.028 [CC, 3, 282]).
Merece atenção o trecho acima, na medida em que o “grupo social fundamental” é sinônimo de sociedade civil. Logo depois, G. faz referência a uma ação “interessada no sentido mais elevado, do interesse estatal ou do grupo que constitui a sociedade civil” (ibidem, 1.029 [CC, 3, 283]).
Lê-se no Q 3, 61, 340 [CC, 3, 200]:
“todo elemento social homogêneo é ‘Estado’, representa o Estado na medida em que adere ao seu programa; de outro modo, confunde-se o Estado com a burocracia estatal. Todo cidadão é ‘funcionário’ se é ativo na vida social conforme a direção traçada pelo Estado-governo, e tanto mais é ‘funcionário’ quanto mais adere ao programa estatal e o elabora inteligentemente” (Q 3, 61, 340 [CC, 3, 200])
A partir de tal entendimento, ramificam-se dois conceitos fundamentais:
- O conceito de práxis – transformação da estrutura por meio das superestruturas (“inversão da práxis”);
- O conceito de bloco histórico, que é a unidade dialética da superestrutura e estrutura e âmbito no qual agem todos os conceitos, teorias, estratégias e táticas em Gramsci, já que busca-se criar um novo bloco histórico, portando a revolução.
Os conceitos de “hegemonia”, “guerra de posição” e “revolução passiva” são
conceitos subordinados.
Polícia e superação do Estado
Podemos aproximar aquela expansão do conceito de funcionário estatal, exposta acima, à última nota do Caderno 2 acrescentada em 1933-1934:
“O que é a polícia? Por certo, ela não é apenas uma determinada organização oficial, juridicamente reconhecida e habilitada para a função de segurança pública, tal como ordinariamente se entende. Este organismo é o núcleo central e formalmente responsável da ‘polícia’, que é uma organização muito mais ampla, da qual direta ou indiretamente, com laços mais ou menos precisos e determinados, permanentes ou ocasionais etc., participa uma grande parte da população de um Estado. A análise dessas relações serve bem mais para compreender o que é o ‘Estado’ do que muitas dissertações filosófico-jurídicas” (Q 2, 150, 278-9 [CC, 3, 181-2])
O Estado burguês, em determinado momento da história, voltou atrás (ou seja, regrediu) com a instituição da polícia após iniciar uma perspectiva de arejamento democrático (Q 8, 2, 937 [CC, 2, 271]). Numa época de elementos ditatoriais mais fechados e explícitos (nazifascismo), G. investiga como “se verifica uma paralisação e se volta à concepção do Estado como pura força etc.”: a classe burguesa, já “saturada”, não somente “não só não assimila novos elementos, mas desassimila uma parte de si mesma”.
Contra isso, deve-se apostar todas as fichas numa classe diferente, “que se ponha a si mesma como passível de assimilar toda a sociedade” (idem) e, conforme Liguori completa (no Dicionário Gramsciano), “tornando utopicamente supérfluo o Estado como algo separado”.
Portanto, para Gramsci (Q 6, 88, 764 [CC, 3, 244], o enriquecedor da elaboração que sempre fez parte da teoria do poder e do Estado na tradição marxista – conforme já citado, Engels, no Anti-Dühring, afirma que o Estado não é abolido, mas definha e morre na tomada de poder pela classe trabalhadora -, o Estado enquanto coerção esgota-se tanto quanto mais elementos do comunismo (da “sociedade regulada ou Estado ético ou sociedade civil”) se afirmam.
Estado guarda-noturno
Gramsci atribui (cautelosamente) a expressão “Estado ‘guarda-noturno’ (veilleur de nuit)” a Lassale. Seus equivalentes: “Estado carabiniere”, “gendarme”, “Estado policial”, etc. Ainda que o termo encontre-se em pouquíssimas notas dos Cadernos, possui papel muito exato no raciocínio de G. sobre o Estado. Essas expressões indicam
“o Estado cujas funções são limitadas à segurança pública e ao respeito das leis, enquanto o desenvolvimento civil é deixado às forças privadas, da sociedade civil” (Q 5, 69, 603)
É o “Estado mínimo” liberal, que torna-se máximo na coerção… Trata-se, acima, praticamente de uma antecipação do neoliberalismo (nome jornalístico dos anos 1970 e 1980 para autorregulação do mercado) e, de fato, será um autor como Karl Polaniy (em A Grande Transformação, dos estertores da Segunda Guerra) que identificará no nazifascismo o fenômeno de captar a energia popular (historicamente da esquerda) que, sob a crise capitalista, exerce um movimento brusco para se defender da autorregulação do mercado e da falta de proteção social e até mesmo estatal.
“Naturalmente, os liberais defendem o Estado veilleur de nuit
em maior ou menor medida” (ibidem, 604)
Do lado oposto situa-se “o ‘Estado ético’ ou o ‘Estado intervencionista’ em geral” (ibidem, 603), precursor ou metáfora do gramsciano Estado integral ou ampliado.
G. aponta, no relativo Texto C, que tal “Estado mínimo” ou “autorregulação do mercado” não é fenômeno de uma sociedade civil meramente autônoma:
“Não se insiste no fato de que nesta forma de regime (que, afinal, jamais existiu a não ser no papel, como hipótese-limite) a direção do desenvolvimento histórico pertence às forças privadas, à sociedade civil, que é também ‘Estado’, aliás, é o próprio Estado” (Q 26, 6, 2.302 [CC, 4, 85])
O Estado enquanto defensor do respeito à lei é uma “hipótese-limite”, enquanto que a fórmula já supracitada do Estado integral enquanto “sociedade política + sociedade civil” é justamente definida numa nota intitulada “Estado gendarme-guarda noturno etc.” no Q 6, 88, 763 [CC, 3, 244] e sempre existiu enquanto Estado moderno.
G. acrescenta, nesse mesmo Q 6, 88 [idem], que, na sociedade regulada, isto é, na sociedade comunista, há “uma fase de Estado guarda noturno” (grifo meu para indicar a momentaneidade causada pelas lutas de classes), ou seja,
“uma organização coercitiva que tutelará o desenvolvimento dos elementos de sociedade regulada em contínuo incremento e que, portanto, reduzirá gradualmente suas intervenções autoritárias e coativas” (ibidem, 764 [CC, 3, 245])
Claramente, Gramsci parece tratar sinonimamente da ditadura do proletariado, termo que já havia sido usado até por Marx (cf. a Crítica do Programa de Gotha, por exemplo).
Estatolatria
São obscuras e alusivas as vezes em que Gramsci trata da estatolatria nos Cadernos; fica implícito que não pode ser mais claro por conta da censura do cárcere ou por qualquer outro motivo, talvez até partidário. O fato é que para muitos marxistas e gramscistas – cf. o verbete “estatolatria”, escrito por Liguori, no Dicionário Gramsciano – o termo parece ser usado por Gramsci sobretudo para refletir sobre a construção do socialismo na União Soviética, cuja revolução ocorreu no Oriente, onde a sociedade civil é “primordial e gelatinosa” e o Estado era/é “tudo” (Q 7, 16, 866 [CC, 3, 261]).
Na nota 130 “Noções enciclopédicas e argumentos de cultura. Estatolatria” do Q 8 – “datado de 1931-1932, ou seja, uma das fases mais agudas do dissenso de G. em relação à política da União Soviética”, tal como escreve Liguori -, temos uma precisa definição de estatolatria:
“Dá-se o nome de estatolatria a uma determinada atitude em relação ao ‘governo dos funcionários’ ou sociedade política” […] a análise não seria exata se não se levasse em conta as duas formas sob as quais o Estado se apresenta na linguagem e na cultura das épocas determinadas, isto é, como sociedade civil e como sociedade política” (Q 8, 130, 1.020 [CC, 3, 279])
Linhas à frente, G. justifica a estatolatria em determinado contexto:
“Para alguns grupos sociais, que, antes da ascensão à vida estatal autônoma, não tiveram um longo período de desenvolvimento cultural e moral próprio e independente […] um período de estatolatria é necessário e até mesmo oportuno: essa ‘estatolatria’ é apenas a forma normal de ‘vida estatal’, de iniciação, pelo menos, à vida estatal autônoma e à criação de uma ‘sociedade civil’ que não foi possível
historicamente criar antes da ascensão à vida estatal independente” (idem).
Porém,
“Todavia essa tal ‘estatolatria’ não deve ser abandonada a si mesma, não deve, especialmente, tornar-se fanatismo teórico e ser concebida como ‘perpétua’: deve ser criticada, exatamente para que se desenvolvam e produzam novas formas de vida estatal, em que a iniciativa dos indivíduos e dos grupos seja ‘estatal’, ainda que não se deva ao ‘governo dos funcionários’” (Q 8, 130, 1.020 [CC, 3, 279])
A interpretação de Liguori é a de que “G. percebe o perigo de degeneração da situação em que se encontra o regime soviético. A estatolatria, compreensível do ponto de vista histórico, isto é, nas condições em que a Revolução Russa aconteceu, não deve ser nem teorizada nem aceita; ao contrário, devem ser mobilizadas contraofensivas que permitam dispensá-la o quanto antes”. Mais do que isto, as elaborações gramscianas nos servem ainda hoje para a construção revolucionária socialista.
Estado laico
A proposta gramsciana é, antes de tudo, já em seus primeiros apontamentos nos Cadernos para uma introdução ao estudo da filosofia, da religião a ser criticada e superada pela filosofia da práxis (marxismo) num progresso intelectual da classe trabalhadora e do povo.
Gramsci, então, não hesita em criticar repetida e radicalmente as Concordatas (tratado celebrado entre a Santa Sé e um Estado) nos Cadernos. Para o nosso autor revolucionário, os regimes concordatários são como uma “capitulação”, uma vez que “na Concordata se realiza, de fato, uma interferência de soberania num único território estatal […], a Concordata corrói essencialmente o caráter autônomo da soberania do Estado moderno” (Q 4, 53, 493-4). Na Itália, inicialmente em 1918, a ajuda estatal para o clero e para o culto levaria à prática dessas Concordatas. O autor dos Cadernos considera tal ajuda um passo atrás, uma regressão na perspectiva da consciência laica do próprio Estado burguês (ibidem, 1866 [CC, 4, 43]), mas certamente funcional para a manipulação e a perpetuação do senso comum. Algo como uma “bancada evangélica” no Congresso Federal seria vista como uma abominação retrógrada para Gramsci (e para qualquer sujeito minimamente lúcido e de esquerda) a ser desmantelada, ainda que com o entendimento orgânico da base social e eleitoral que a mantém. (Por exemplo: há certamente pastores ricos e pilantras, bandidos da fé, mas o pastor da comunidade, miscigenado, não deixa de ser “orgânico”, imediatamente identificado e próximo com os fiéis e, por ser um mediador entre eles e a palavra da bíblia, assume até a posição de “intelectual orgânico”. Todas essas configurações são fundamentais se se quer fazer um trabalho de mitigação da religião pela via do senso crítico.)
Uma nota no Q 6 contém uma referência histórica que interessa a Gramsci: a “iniciativa jacobina” de constituir uma religião laica, o “culto do Ente Supremo”, uma religião de Estado, com o esforço voltado para “criar identidade entre Estado e sociedade civil”, mas também a “primeira raiz do moderno Estado laico, independente da Igreja, que procura e encontra em si mesmo, em sua vida complexa, todos os elementos da sua personalidade histórica” (Q 6, 87, 763 [CC, 3, 244]).
Para Gramsci, seja como for, o destino da Igreja, sobretudo a partir do momento em que os doutos de cima separam-se da base (e este seu estudo serve de alerta aos intelectuais marxistas!), é a degeneração, a autodestruição, o “suicídio do cristianismo” (“I cattolici italiani” [Os católicos italianos], 22 de dezembro de 1918, em NM, 456-60; “La settimana politica. I popolari” [A semana política. Os populares], 1º de novembro de 1919, em ON, 272-3), ou seja, a secularização, em que não resta outro caminho senão descer ao terreno do social, onde ela acabará. Um engajado Padre Júlio Lancelotti, que atrai tantos ateus com seu trabalho diário junto aos lúmpens de São Paulo, ou mesmo um aberto Papa Francisco, ou mesmo as igrejas pela Europa vazias e virando lanchonetes para atrair os jovens (o problema deles hoje é o islamismo imigrante), são exemplos tácitos da secularização da religião.
Bloco histórico
Reiteradamente empregado por Gramsci, este conceito pode ser atribuído a Georges Sorel (1847-1922), pensador francês socialista (mas não marxista), embora, ao criticar o que havia de idealista e conservar o que havia de coerente (prática dialética por excelência), G. o torna já um conceito original propriamente seu: bloco histórico enquanto a unidade na diversidade de estrutura e superestrutura. É num parágrafo importante do Q 4, intitulado “Croce e Marx”, que G. afirma que para entender e estudar adequadamente “o argumento do valor concreto das superestruturas em Marx” é necessário “recordar o conceito de Sorel de ‘bloco histórico'” (Q 4, 15, 437). No mesmo Q 4, G. afirma que
“Se a relação entre intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e dirigidos – entre governantes e governados -, é dada por uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, portanto saber (não mecanicamente, mas de forma viva), é somente então que a relação é de representação e que se produz o intercâmbio de elementos individuais entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes, isto é: que se realiza a vida conjunta que, só ela, é a vida social; cria-se um bloco histórico” (Q 4, 33, 452) – grifo meu
É no Q 7, entanto, que nos é dada a definição mais clara de bloco histórico:
“[…] as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre forma e conteúdo puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma, e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais” (Q 7, 21, 869 [CC, 1, 238])
Gramsci, assim, renova criticamente a assimilação corrente e até vulgar (dentro e fora do marxismo) da relação estrutura-superestrutura (em que a segunda seria mero “reflexo” da primeira) por meio deste conceito de bloco histórico em conexão com o de ideologia. A relação é dialética, ainda que o fim último seja a produção da vida material. Conforme já dito no início deste texto, o próprio G. era familiarizado com as cartas em que Engels tratou de desfazer tal equívoco já em seu tempo (Q 13, 18 [CC, 3, 48-55], em que cita as cartas engelsianas a Joseph Bloch em 21-22 de setembro de 1890 e a Heinz Starkenburg em 25 de janeiro de 1894).
O conceito gramsciano de bloco histórico também serve para criticar certos termos dogmáticos e idealistas como “homem em geral” e “natureza humana”: “O homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa” (Q 10 II, 48, 1.338 [CC, 1, 406]).
Por fim, G. logo emprega o conceito de bloco histórico num sentido de práxis, ou seja, a luta revolucionária pela hegemonia envolve a crítica do bloco histórico da sociedade de classes capitalista, a sua superação e a criação de um novo bloco histórico da classe subalterna (trabalhadores e povo) tornando-se dominante. Recomendo este brilhante discurso em comício popular por Chávez amalgamando conceitos fundamentais em Gramsci, inclusive o de bloco histórico.
Estado educador, ético ou de cultura
Seguindo nesta linha de pensamento acerca da ação do Estado, mas levada a um nível mais alto, isto é, menos episódico e imediatista, e sim a nível de consolidação e estabilidade, a médio e longo prazo, Gramsci argumenta que há um Estado “educador” e “ético” e “de cultura” na perpetuação do status quo, que deve ser compreendido pelos transformadores da sociedade:
“todo Estado é ético na medida em que uma de suas funções mais importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes dominantes” (Q 8, 179, 1.049 [CC, 3, 284])
Vimos, no início deste texto, que nem Marx nem Engels e outros marxistas tratam do “consenso ativo” dos governados, do povo e mesmo da classe trabalhadora bem constituída. (A Ideologia Alemã, porém, obra genesial que Gramsci provavelmente não chegou a conhecer, porque foi publicado postumamente só em 1932, fornece as bases para se pensar a respeito da ideologia dominante, imediatamente vinculada à classe dominante capitalista que detém os meios de produção.) Este fator de consenso visto por Gramsci é elementar para concluirmos por que o Estado capitalista se perpetua ao longo das décadas e séculos não somente com a coerção militar e física contra os revolucionários e comunistas. O “Estado ético”, assim, trata-se da atividade não repressiva desempenhada pelo Estado para assegurar as condições de produção. Pode ser também uma educação técnica, tecnicista, mas não só. As escolas e os tribunais, que, a priori, são um dos elementos da sociedade civil, desempenham esse papel:
“Neste sentido, a escola como função educativa positiva e os tribunais como função educativa repressiva e negativa são as atividades estatais mais importantes: mas, na realidade, no fim predomina uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes.” (idem)
Mas Gramsci, logo imediatamente, escreve que somente revolucionários comunistas e marxistas é que podem criar verdadeiramente um “Estado ético”:
“A concepção de Hegel é própria de um período em que o desenvolvimento extensivo da burguesia podia parecer ilimitado e, portanto, a eticidade ou universalidade desta classe podia ser afirmada: todo o gênero humano será burguês. Mas, na realidade, só o grupo social que propõe o fim do Estado e de si mesmo como objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados, etc., e a criar um organismo social unitário técnico-moral.” (idem, grifo meu)
A transformação intelectual e ética não pode acontecer sem a elevação da classe subalterna na promoção de uma escola que entrelace pensamento crítico e práticas do fazer, que, agindo sobre “sociedade civil” e “sociedade política”, favoreça o desenvolvimento de um “novo senso comum” (Q 11, 13, 1.396 [CC, 1, 114]). Gramsci, em mais de uma vez, reivindica e levanta a questão central da criação de uma nova cultura e de uma nova camada intelectual diversa e oposta às tradicionais ou vigentes (Q 16, 21, 1.892 [CC, 4, 65-9]). Liguori (verbete “Estado” do Dicionário Gramsciano) assinala, com base em G., que, na sociedade capitalista, “escolas, jornais, igrejas, partidos, sindicatos, toponímia, nada parece deixado ao acaso para difundir um senso comum que confirma a ordem social vigente”. Resta primeiro identificar isto para se poder mudar com o que G. chamará em diversos momentos dos Cadernos de “senso crítico” (cf. verbete “senso crítico” no Dicionário Gramsciano): historicizado, coerente, racional, com consciência de classe, etc.
O Estado que age para criar consenso não deixa à sociedade civil muita “espontaneidade”:
“Pelo fato de que se age essencialmente sobre as forças econômicas […] não se deve concluir que os acontecimentos da superestrutura sejam abandonados a si mesmos, ao seu desenvolvimento espontâneo, a uma germinação casual e esporádica. O Estado é ‘racionalização’ também nesse campo, é um instrumento de aceleração e taylorização, opera segundo um plano, pressiona, incita, solicita etc.” (Q 8, 62, 978)
Num belo Texto B do Q 6, retomando o trecho supracitado de que “só o grupo social [classe trabalhadora de partido-movimento marxista] que propõe o fim do Estado e de si mesmo como objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados, etc., e a criar um organismo social unitário técnico-moral“, Gramsci muda ou amplia a definição e equipara o Estado ético à “sociedade regulada” (comunista) e à “sociedade civil”, afirmando que se pode imaginar – certamente numa etapa madura do processo revolucionário –
“o elemento Estado-coerção em processo de esgotamento à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estado ético ou sociedade civil)” (Q 6, 88, 764 [CC, 3, 244]).
Nota-se novamente como G. trabalha com sinônimos. Isto é, Estado ético ou sociedade civil enquanto Estado-hegemonia, oposto ao Estado-coerção. Seus “elementos cada vez mais conspícuos” representam justamente a confirmação do fim ou extinção do Estado, ou, segundo o nosso próprio autor, o “Estado sem Estado” (idem), conforme estudaremos a seguir.
Extinção do Estado no marxismo e sociedade regulada (comunista) em Gramsci
“Sociedade regulada”, em Gramsci, é sinônimo de “sociedade comunista”. (Como se sabe, esse intelectual revolucionário mergulha num inovador e criativo laboratório terminológico que, por um lado, lhe é imposto por causa da censura do cárcere fascista, mas que, por outro, amplia e enriquece o léxico – vale lembrar que o jovem Gramsci, pobre, havia ganhado bolsa de estudos na melhor universidade da Itália para o curso de Letras, ainda que não o tenha concluído.)
A sociedade comunista – com base na antropologia que estuda o comunismo primitivo e de prospectos teórico-práticos a partir da sociedade burguesa – é a formação social que deve suceder a sociedade socialista de transição (em que primeiramente se toma o poder e distribui, expropria, socializa os meios de produção), marcada pela extinção do Estado, do capital (dinheiro investido para mais dinheiro e acumulação através da exploração do trabalho), da propriedade privada dos meios de produção e do antagonismo de classes. Gramsci jamais se desvia desse horizonte, mas veremos como o enriquece.
Vimos, por meio de Gramsci, que “na realidade efetiva, sociedade civil e Estado se identificam” (Q, 1590), portanto, a sua visão não-dualista de “sociedade civil” torna-se positiva quando, pelas características econômicas mas também culturais, é a sociedade civil próxima da “sociedade regulada”, restando saber até que ponto a “reabsorção da sociedade política na sociedade civil” (tal como exatamente escreve G. a respeito da eliminação gradual da coerção da sociedade política) comporta o advento de uma sociedade realmente sem Estado – a “sociedade regulada”.
É de se perguntar, para começar, por que “regulada”, e não outro adjetivo, já que o nosso autor não explica o motivo pelo qual escolheu tal termo, afinal, poderia ter escolhido outro. Há pouco dessa investigação lexical-imanente nos autores gramscistas. Aqui, pouco ou nada há de “regulação” do mercado no sentido usual da ciência política, porque
“A confusão entre Estado-classe e sociedade regulada é própria das classes médias e dos pequenos intelectuais, que se sentiriam felizes com uma regulação qualquer que impedisse as lutas agudas e as catástrofes: é concepção tipicamente reacionária e retrógrada” (idem)
Definitivamente, está claro que “sociedade regulada” é uma sociedade em que a divisão antagônica e exploratória de classes arrefeceu ou foi completamente superada. A elaboração acima de Gramsci é taxativa em duas conclusões:
- que a confusão entre comunismo e Estado-classe, “tipicamente reacionária e retrógrada”, só interessa às “classes médias” e aos “pequenos intelectuais”;
- que uma regulação do Estado-classe na sociedade pode servir a reacionários e retrógrados para impedir as transformações (como no reformismo direitista ou mesmo social-democrata) que surgem com “as lutas agudas e as catástrofes” inerentes ao sistema capitalista e à sociedade de classes.
E basta ver que até mesmo um Estado burguês regula mais ou menos o mercado… Portanto, não é exatamente nesse sentido que Gramsci usa o termo substituto de sociedade comunista. Não há nem mesmo consenso ainda se o mercado continuará numa sociedade comunista – certamente não seria o que é hoje o mercado, consequência da construção social de pelo menos três séculos (desde o 16 ao 19 e agora no 21), isto é, seletividade e hierarquia no âmbito da troca e comercialização de mercadorias.
A expressão “sociedade regulada” é usada pela primeira vez na nota Q 6, 12, 693 [CC, 3, 223], intitulada “Estado e sociedade regulada”, em que se critica a corrente dos “gentilianos de esquerda” (intérpretes e seguidores do já citado Gentile) Ugo Spirito e Arnaldo Volpicelli:
“deve-se notar, como momento crítico inicial, a confusão entre o conceito de Estado-classe e o conceito de sociedade regulada” (idem)
, porque, precisa G:
“Enquanto existir o Estado-classe não pode existir a sociedade regulada, a não ser por metáfora, isto é, apenas no sentido de que também o Estado-classe é uma sociedade regulada. Os utopistas, na medida em que exprimiam uma crítica da sociedade existente em seu tempo, compreendiam muito bem que o Estado-classe não podia ser a sociedade regulada, tanto é verdade que nos tipos de sociedade pensados pelas diversas utopias introduz-se a igualdade econômica como base necessária da reforma projetada: nisto os utopistas não eram utopistas, mas cientistas concretos da política e críticos coerentes. O caráter utópico de alguns deles era dado pelo fato de que consideravam possível introduzir a igualdade econômica com leis arbitrárias, com um ato de vontade etc. Mas permanece exato o conceito […] de que não pode existir igualdade política completa e perfeita sem igualdade econômica” (idem)
Ainda a propósito da confusão entre Estado e sociedade regulada, G. volta a polemizar com as noções jurídicas, políticas, econômicas, etc. de Spirito e Volpicelli no Q 6, 82, 756 [CC, 3, 236]. É curioso que Spirito, que antes defendia o fascismo, se tornará comunista no pós-guerra. Será que ele leu as críticas de Gramsci?
G. utiliza-se da expressão “sociedade regulada” quase que somente no Q 6, em poucos Textos B. Seus escritos a respeito da extinção do Estado, porém, estão presentes em notas (p. ex., no Q 5, 127, 662 [CC, 3, 222-3] em que o termo não aparece. Enfim, penso que o comunismo trata-se de uma sociedade regulada, em Gramsci, por dois motivos principais:
- “Regulada”, porque não significa o advento da anarquia com o desaparecimento de todas as normas, ao contrário, significa o fundo coletivo (proposta de Marx na Crítica do Programa de Gotha) e o lema comunista marxiano do “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades” (forma perfeita de regulação da sociedade).
- “Regulada”, porque supera o “estado de natureza”, a anarquia e a violência próprias de uma sociedade fundada no domínio de classe.
Quanto a esse segundo pensamento, sem dúvidas há alguma influência hegeliana, pois, de acordo com o próprio Gramsci, a imagem comunista de “Estado sem Estado” ou “Estado ético” deve-se “aos maiores cientistas da política e do direito” (Q, 764), que com certeza são Marx e Engels, e também a Hegel (Q, 2302). Ora, o autor da Filosofia do Direito via um “resíduo do estado de natureza” (violência e abuso) na sociedade burguesa de seu tempo, caracterizada pela bruta polarização de riqueza e pobreza (G. W. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 200 A). O “estado de natureza”, isto é, de desordem, selvageria e omissão organizativa também já era identificado por Thomas Hobbes no século XVII como o período pré-Estado burguês. Para Hegel e muitos de seus contemporâneos da passagem do século 18 ao 19, diante da burguesia revolucionária ascendente contra a aristocracia autocrática decadente e o sistema feudal, o Estado burguês moderno seria a representação da ética, enquanto que a superação de tal condição, definida uma ou duas gerações depois por Marx (lembremos do seu Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, lembremos do posfácio à segunda edição de O Capital, em que revela como seu método dialético é oposto ao de Hegel, porque o coloca “de pé”, eliminando dele resquícios místicos) e Engels como pré-história da humanidade, é encontrada no comunismo, que representa o início da história da humanidade conciliada. Gramsci, em trecho já inserido na seção anterior deste presente texto, e que vale a pena ser repetido, porque assinala a extinção do Estado e da divisão de classes por aqueles (comunistas marxistas) que, justamente contra a burguesia (já antirrevolucionária), é que podem reivindicar a verdadeira Ética, contextualiza:
“A concepção de Hegel é própria de um período em que o desenvolvimento extensivo da burguesia podia parecer ilimitado e, portanto, a eticidade ou universalidade desta classe podia ser afirmada: todo o gênero humano será burguês. Mas, na realidade, só o grupo social que propõe o fim do Estado e de si mesmo como objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados, etc., e a criar um organismo social unitário técnico-moral.” (Q 8, 179, 1.049 [CC, 3, 284]) – grifo meu
A tese da extinção do Estado no marxismo é fruto primeiramente dos escritos formativos (praticamente científicos, ainda que muito contidos e reticentes) de Marx e sobretudo de Engels, dois autores revolucionários de vanguarda de lutas populares por emancipação e também espectadores e alvos de ditaduras com punho de ferro por toda a Europa. A tese desempenha papel importante na evolução de Ernst Bloch e Gyorg Lukács, e é retomada neste século por Alysson Mascaro (Estado e Forma Política), Ademar Bogo (Marx e a Superação do Estado) e muitos outros críticos do “socialismo real”. Gramsci recusa essa tese na juventude (quando ainda era membro do Partido Socialista), é fiel a certos pontos e, por fim, a redimensiona nos Cadernos. Sem dúvida, trata-se de uma tese que encontra muitas contradições e oscilações. No entanto, tais contradições e oscilações e até contenções reticentes só a enriquecem diante de seus adversários: liberais e burgueses denunciam como “estatista” o movimento operário socialista, marxista e comunista, mas a palavra de ordem de extinção do Estado sempre fez parte da nossa teoria (vimos, com Engels, que não se trata de aboli-lo, como sonham os anarquistas, e sim tomá-lo e fazê-lo definhar), mas, no plano concreto, o movimento operário de inspiração e doutrina marxista é obrigado a intervir do poder político na esfera econômica, contrastando com a “liberdade de contrato” e as reivindicações direitistas superficiais do “Estado mínimo” e de “iniciativa individual” ou mesmo das noções anarquistas (que, neste ponto, ao reivindicarem o “indivíduo”, tornam-se liberais). Como se vê, a posição marxista é a mais completa, porém embaraçosa, e só pode ser resolvida no plano teórico – para a prática – por meio de uma dialética muito profunda e precisa.
Vamos retomar, portanto, o que diz a tradição marxiana e engelsiana, para então voltarmos a Gramsci – o jovem socialista e o autor dos Cadernos. Segundo A Ideologia Alemã, o poder e o interesse da classe dominante exprimem-se através da “forma geral”, não de modo imediato, a eles conferida pela organização estatal (MEW, III, 62), e o Estado é a “forma de organização” pela qual os indivíduos da classe dominante realizam “a garantia recíproca da sua propriedade e de seus interesses” (MEW, III, 62). Porém, o jovem Engels não ignora – em A Situação da Classe Operária na Inglaterra – que “A livre concorrência não quer limitações, não quer controles estatais, todo o Estado é para ela um peso, ela atingiria o grau máximo de perfeição em uma ordem totalmente privada de Estado, onde cada um pudesse a seu bel-prazer explorar os outros, como, por exemplo, na ‘Associação’ do amigo Stirner” (MEW, II, 488). Estamos aqui na presença de um ataque a qualquer forma supostamente libertária que escamoteia um liberalismo antipopular de mercado. É mister, entanto, assinalar que o jovem Engels não faz a defesa do Estado burguês, mas de um Estado operário em processo de revolução. A Londres industrializada da época, mesmo na aparência de civilização e progresso, fornecia um cenário do tipo bárbaro de sociedade: “Como o amigo Stirner, os homens consideram os outros só como objetos utilizáveis; cada um explora o outro, e disso deriva que o mais forte pisoteia o mais fraco, e que os poucos fortes, isto é, os capitalistas, se apoderam de tudo, enquanto aos muito fracos, aos pobres, as duras penas resta a vida nua” (MEW, II, 257).
No texto de Engels de 1850 para o Nova Gazeta Renana. Revista político-econômica de Marx, em trecho transcrito no mesmo ano no texto “Sobre o slogan da abolição do Estado e os ‘Amigos da Anarquia’ alemães”, “a abolição do Estado tem sentido para os comunistas, apenas como a consequência necessária da abolição das classes, com a qual a necessidade do poder organizado de uma classe para dominar as outras desaparece automaticamente” (MEW, VII, 288). Esta tese perdurará por toda a sua vida. Já em Miséria da Filosofia, de Marx, pode-se ler que, com o desaparecimento do antagonismo de classes, “não haverá mais poder político propriamente dito” (MEW IV, 182). Mais tarde, Marx e Engels precisam que no comunismo desaparecem o poder e a violência de Estado e “as funções de governo se transformam em simples funções administrativas” (MEW, XVIII, 50); ou, para usar a célebre linguagem do Anti-Dühring de 1870, “no lugar do governo das pessoas aparece a administração das coisas e a direção dos processos produtivos” (MEW, XX, 262). Na Crítica do Programa de Gotha, a tese da extinção do Estado por um movimento de cooperativas de trabalhadores livremente associados, sem necessitar da ajuda do governo, aflora com especial radicalismo, seja para se distanciar das acusações de estatismo ou para tomar ainda mais a dianteira da vanguarda comunista na Internacional e no Partido com relação às noções anarquistas conflitantes. Segundo Marx, o erro de um limitado Bakunin tinha sido conceber “um conceito abstrato de Estado”, um Estado sem a estrutura econômica que o forma e o mantém, solto nas nuvens, ou seja, a incorreta visão dualista a qual Gramsci refutou.
“O proletariado se servirá de seu poder político para […] concentrar todos os elementos de produção nas mãos do Estado“, salienta o Manifesto do Partido Comunista de 1848 (MEW, IV, 481); “O proletariado se apodera do poder do Estado e transforma todos os meios de produção primeiramente em propriedade do Estado. Desse modo, ele próprio se extingue como proletariado, desse modo ele extingue todas as diferenças e antagonismos de classes e, desse modo, ele também extingue o Estado enquanto Estado“, rebate Engels no Anti-Dühring de 1877 (MEW, XX, 261). “A sociedade que tivemos até agora, que se move por meio de antagonismos de classes“, escreve Engels no mesmo célebre trecho, “necessitou do Estado – isto é, de uma organização da respectiva classe espoliadora – para sustentar suas condições exteriores de produção, ou seja, principalmente para reprimir pela força a classe espoliada nas condições de opressão dadas pelo modo de produção vigente (escravidão, servidão ou vassalagem, trabalho assalariado). O Estado foi o representante oficial de toda a sociedade, sua síntese numa corporação visível, mas ele só foi isso na medida em que constituiu o Estado da classe que, para sua época, representou toda a sociedade (na Antiguidade, o Estado dos cidadãos escravistas; na Idade Média, o Estado da nobreza feudal; em nosso tempo, o Estado da burguesia)“, mas “Tornando-se, por fim, de fato, o representante de toda a sociedade, ele próprio [o Estado] se torna supérfluo” (idem, grifo meu).
Lênin, o único comunista aqui citado que passou pela experiência do poder, ainda que em contexto desvantajoso (ele esperava a Revolução Alemã, que foi derrotada, fazendo com que a União Soviética se isolasse da Europa), merece ser rapidamente evocado. Lênin será fiel à teoria engelsiana da extinção do Estado em O Estado e a Revolução (1917, escrito na clandestinidade, às vésperas de Revolução de Outubro), citando tanto o Anti-Dühring quanto outras obras marxianas e engelsianas como referência, tese segundo a qual, escreve Lênin, o proletariado vitorioso “tem necessidade unicamente de um Estado em vias de extinção” (L, XXV, 380). Já no poder, mas em seus anos finais, ou seja, passado o comunismo de guerra e já na implementação da NEP, Lênin critica (cf. “Sobre o significado do materialismo militante” publicado em 12 de março de 1922 na Pod Známeniem Marksizma, i.e., “Sob a Bandeira do Marxismo”, revista filosófica e socioeconômica) os dois burocratismos (russo, antigo, advindo do czarismo, que os revolucionários bolcheviques não haviam conseguido mitigar, e o novo, soviético, pós-revolução), exortando a todos, portanto, que deveriam “eliminar qualquer traço daquilo que a Rússia czarista e seu aparato burocrático e capitalista deixaram em tão ampla medida como herança” (L, XXXIII, 458) e insistindo (na intervenção Melhor menos, mas melhor, publicada no Pravda, principal jornal da União Soviética, de 4 de março de 1923) que é melhor “empenharmo-nos seriamente na edificação do aparelho de Estado” (L, XXXIII, 450), “construir um aparelho realmente novo que mereça verdadeiramente o nome de socialista, de soviético”, porque “não temos tal aparelho, e mesmo o número de elementos dele que temos é ridiculamente reduzido” – uma tarefa de médio e longo prazo, que requer “muitos, muitos, muitos anos” (L, XXXIII, 446) e cujo aprendizado deve ser estimulado “a dois ou mais manuais sobre a organização do trabalho em geral, e do trabalho administrativo em particular” (I, XXX, III, 450), sendo importante não ficar atrás em termos de “material humano de qualidade realmente moderna” e aprender com os “melhores modelos da Europa Ocidental” (L, XXXIIII, 445), enviando “algumas pessoas preparadas e responsáveis” para a Alemanha ou Inglaterra, ou América ou Canadá “para recolher as publicações existentes e para estudar este problema” (L, XXXIII, 450). Mais realista diante de um difícil objetivo que não será cumprido, o Lênin pós-revolução (que, aliás, vê a necessidade de retomar a revolução em vários lugares e áreas em que as lutas de classes ainda não estavam mais apaziguadas) trocou a necessidade do ligeiro “Estado em vias de extinção” de O Estado e a Revolução pela “renovação do aparelho de Estado” (mas não burocrático, e sim “verdadeiramente socialista”) ao prazo de “muitos, muitos, muitos anos”. Para criar tal aparelho, afirma Lênin, os dois elementos principais que os soviéticos dispunham, ainda que seu número fosse “ridiculamente reduzido”, eram em “primeiro lugar os operários, entusiasmados pela luta pelo socialismo”, que “desejariam dar-nos um aparelho melhor”, mas que “não sabem como fazê-lo”, pois que “não alcançaram o desenvolvimento, a cultura que é necessária para isso”, “não são suficientemente educados”, uma vez que “é necessário precisamente ter cultura”, “nada se pode fazer de repente ou de assalto”, e, em segundo lugar, “os elementos de conhecimentos, de educação, instrução, que entre nós são ridiculamente reduzidos em comparação com todos os outros Estados” (idem). Porém, cada vez mais afastado das deliberações centrais para tratar de graves problemas de saúde, e cada vez menos ouvido pelo partido, que prenunciava uma ferrenha disputa de poder interna e perigosa cisão, Lênin morre em 1924.
A experiência político-pessoal de Marx e Engels (e de qualquer militante hoje em dia em qualquer parte dos 4 cantos do globo) testemunhou que até o Estado “mais democrático” comporta um aparato de repressão pronto para usar da violência mais cruel, mostrar suas armas mortíferas nos momentos de crise e tão logo a classe subalterna, ameaçadora para a classe dominante, irrompa em movimento revolucionário ou de simples reinvindicação. Pensando no comunismo primitivo, nas sociedades igualitárias e comunitárias, trata-se de fazer na modernidade com que a necessária administração da sociedade não seja minada na extinção do aparato repressivo. Este ponto será implicitamente importante para Gramsci: é questão de extinguir o Estado enquanto tal ou de extinguir o atual sentido político do Estado? A escritura gramsciana parece oscilar entre ambos.
Se o fim do Estado político é uma proposição-chave do marxismo, não há dúvidas de que, em G., o papel da hegemonia e da guerra de posição é central para se passar pelo Estado “guarda-noturno”, assegurando a transição à “sociedade regulada”. Também na Crítica do Programa de Gotha, há a célebre preposição de Marx: “Entre a sociedade capitalista e a comunista situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado“.
No entanto, o jovem Gramsci do L’Ordine Nuovo traz um redimensionamento da tese: o socialismo não aparece como o início do processo de extinção, mas como a construção do “Estado social do trabalho e da solidariedade” (ON, 51). Antecipando suas elaborações nos Cadernos sobre o “Estado integral”, na mesma revista (7 de junho de 1919) escreve que “não existe sociedade senão em um Estado, que é a nascente e o fim de todo direito e de todo dever que é garantia de permanência e de sucesso de toda atividade social” (ON, 57). Obviamente, esse “Estado” expõe uma ideia mais ampla do que a do senso comum: isto é, até mesmo na sociedade feudal, sem o Estado-nacional burguês moderno, havia algum “Estado”, principalmente se pensarmos que havia alguma repressão (ainda que fosse mais miliciana do que “estatal”) e os servos tinham taxas a pagar ao feudo e ao senhor, etc… É importante notar que esse Gramsci, na verdade, está rebatendo mais os anarquistas virulentos e praticamente antipolíticos de sua época do que os comunistas e marxistas. Após a primeira guerra, “O mito antissocialista do Estado-caserna se tornou uma terrível asfixiante realidade burguesa” (ON, 48), registra G., e “multiplicou” o número dos que aderem à “ideia libertária”. Nesse jovem Gramsci pré-cárcere, a instauração do Estado proletário não é vista como o início da extinção de toda forma estatal, e a polêmica é posta duramente: “Construiu-se um esquema preestabelecido segundo o qual o socialismo seria uma ‘passarela’ para a anarquia; e este é um preconceito tolo, uma arbitrária hipoteca do futuro” (ON, 116), pois, sob o socialismo, “todo Estado, toda instituição, todo indivíduo encontrará sua plenitude de vida e de liberdade” (ON, 116-6), escreve o jovem sonhador no verão de 1919. Distanciando-se dos postulados teóricos de Marx, Engels e Lênin, o Gramsci que se pretendia realista não dava crédito ao objetivo de uma sociedade sem Estado, mas a sua insistência e recusa mostram muito mais um ímpeto revolucionário de transição e pela transformação do Estado capitalista do que a defesa da permanência do Estado (muito menos do Estado-coerção).
Tudo se aprofunda melhor em outro período, anos depois, nos Cadernos do Cárcere (1926-1937). O problema sobre o qual se debruçaram Marx, Engels e Lênin é retomado em sua precisão teórico-prática pelo nosso autor: na luta pela hegemonia do povo e da classe trabalhadora, é preciso construir uma forma de organização da sociedade que, superando a divisão de classes, o antagonismo de classes, saiba eliminar o aparato de repressão, que só existe em vista da guerra de classe interna e do conflito armado com outras classes exploradoras concorrentes no nível internacional. Mas, conforme já vimos, tal forma de organização, a “sociedade regulada”, também é chamada de “ou Estado ético ou sociedade civil” (Q, 764).
O que fica do Gramsci jovem no Gramsci maduro, isto é, pré-cárcere e no cárcere, a respeito do “Estado”? Uma das questões mais importantes no marxismo, a questão premente do internacionalismo é encarada com cuidado dialético e realista nos Cadernos do Cárcere a respeito do Estado-nação: ressalta-se o fato de que, para conferir consistência a seu “internacionalismo”, um comunista deve saber ser “profundamente nacional” (Q, 1729 e 866). Uma revolução que não torna-se nacional-popular, que não faz com que o comunismo (mesmo o marxismo!) se erradique na brasilidade, na cubanização, na vietminização, etc., tende a não se sustentar, porque a tese da “revolução permanente” (daí a dura crítica a Trótski de “‘napoleonismo’ anacrônico e antinatural” em Q, 1730) pura e simplesmente é abstrata, mesmo que a classe trabalhadora (os operários de todo o mundo) tenham necessariamente de se solidarizar e se unir, mas eles se compõe de diferentes realidades, ainda que sob configurações mais ou menos semelhantes sob o capital. Salvo engano, foi Fidel Castro quem apontou que o marxismo não deve ser eurocêntrico e precisa se integrar à realidade material e cultural de um país. O que é um dos seus grandes desafios, já que a sua Economia Política advém de ingleses, a sua Filosofia advém de alemães e o seu Socialismo advém de franceses. Não obstante, ensina Gramsci que,
“antes de se formarem as condições de uma economia segundo um plano mundial, é necessário atravessar fases múltiplas em que as combinações regionais (de grupos de nações) podem ser variadas” (Q 14, 68; CC, 3, 314-315)
Portanto,
“o desenvolvimento é no sentido do internacionalismo, mas o ponto de partida é ‘nacional’, e é deste ponto de partida que se deve partir” (ibidem)
Gramsci, provavelmente escrevendo sobre a sociedade soviética, a única sociedade existente à época que havia irrompido para ser socialista, mas também possivelmente recapitulando e estudando a obra marxiana e engelsiana, afirma:
“Sobre esta realidade, que está em contínuo movimento, não se pode criar um direito constitucional do tipo tradicional, mas apenas um sistema de princípios que afirmam como fim do Estado seu próprio fim, seu próprio desaparecimento, isto é, a reabsorção da sociedade política na sociedade civil” (idem)
Aqui, G. distancia-se do seu período juvenil e está claramente de acordo com as tradições marxiana e engelsiana, conferindo a ela um caráter ainda mais prático.
A sociedade regulada enquanto superação do Estado retorna no Q 6, 65, 734 [CC, 2, 230] em elaboração que se refere à “sociedade de transição”:
“Nesta sociedade, o partido dominante não se confunde organicamente com o governo, mas é instrumento para a passagem da sociedade civil à ‘sociedade regulada’, na medida em que absorve ambas em si, para superá-las (e não para perpetuar sua contradição) etc.”
Também no Q 6, 88, 764 [CC, 3, 244-5], afirma-se que a concepção marxista do Estado se torna a
“doutrina do Estado que conceba este como tendencialmente capaz de esgotamento e de dissolução na sociedade regulada” – grifo meu
G. acrescenta:
“O elemento Estado-coerção em processo de esgotamento
à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estado ético, ou sociedade civil). As expressões Estado ético ou sociedade civil significariam que esta ‘imagem’ de Estado sem Estado estava presente nos maiores cientistas da política e do direito, ao se porem no terreno da pura ciência (= pura utopia, já que baseada no pressuposto de que todos os homens são realmente iguais e, portanto, igualmente razoáveis e morais)” (idem)
A sociedade regulada é, assim, Estado sem Estado: se – como diz a mesma nota – o Estado é “sociedade política + sociedade civil” (Estado “integral”), a sociedade regulada é aquela “sociedade civil-política” em que perece o Estado tradicionalmente entendido, o Estado como aparelho repressivo (concepção contra a qual G. tantas vezes polemiza, conforme vimos). Esta imagem comunista de “Estado sem Estado” ou “Estado ético” deve-se “aos maiores cientistas da política e do direito” (Q, 764), certamente uma referência a Marx e Engels, e também a Hegel (Q, 2302), mas não pode partir da utopia de que “todos os homens são realmente iguais e, portanto, igualmente razoáveis”.
O próprio G. escreve mais adiante:
“Na doutrina do Estado → sociedade regulada, de uma fase em que Estado será igual a Governo, e Estado se identificará com sociedade civil, dever-se-á passar a uma fase de Estado-guarda noturno, isto é, de uma organização coercitiva que protegerá o desenvolvimento dos elementos de sociedade regulada em contínuo incremento e que, portanto, reduzirá gradualmente suas intervenções autoritárias e coativas” (idem)
O estatismo diminui gradualmente à medida que se expandem os elementos de autogoverno no âmbito da sociedade socialista. O Estado funde-se com a sociedade civil, logo definha, e o que se tem é a sociedade regulada. Momentos repressivos e coercitivos tornam-se desnecessários. Gramsci fala da “ditadura do proletariado”, que aqui recebe o nome de “fase de Estado-guarda noturno”, necessário apenas porque “protegerá o desenvolvimento dos elementos de sociedade regulada [comunista] em contínuo incremento”, mas que “reduzirá gradualmente suas intervenções autoritárias e coativas”. Uma visão radical disto encontra-se no Q 7, em que Gramsci escreve:
“Marx inicia intelectualmente uma idade histórica que durará provavelmente alguns séculos, isto é, até o desaparecimento da sociedade política e o advento da sociedade regulada” (Q 7, 33, 882 [CC, 1, 242])
São necessárias colossais mudanças materiais para haver consistência na sociedade comunista (Q, 764). Mas tais elaborações teóricas só podem ser enriquecidas com a prática (no caso de Gramsci, interrompida por sua prisão pelos fascistas, daí o seu mergulho na teoria), numa retroalimentação entre crítica (ou teoria) e prática, isto é, práxis, já que o próprio Marx se defendia das acusações de tratar a Economia com a análise crítica do dado real, “em vez de prescrever receitas (comteanas?) para a cozinha do futuro” (O Capital, livro I, no célebre posfácio à segunda edição). De qualquer forma, o trecho gramsciano acima coaduna com a teleologia marxiana emancipatória, a sociedade sem classes, a sociedade comunista parece também ser imaginada por Gramsci como uma sociedade sem política ou com a política superada.
Estratégias e táticas
Toda essa pesquisa acerca da relação dialética entre Estado e sociedade não é puramente teórica, mas serve a fim de práxis revolucionária. Assim, Gramsci opera com duas dicotomias principais: consenso e coerção e guerra de movimento e guerra de posição.
Bibliografia e siglas
Cartas: Cartas do Cárcere, 2 Vols., RJ: Civilização Brasileira.
CC: Antonio Gramsci. Cadernos do Cárcere. 6 Volumes. Edição e Tradução de Carlos Nelson Coutinho; Co-edição de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1999.
CPC: Gramsci, La Construzione del Partido Comunista 1923-1926, Turim, Einaudi, 1971.
Dicionário Gramsciano, Orgs.: Guido Liguori e Pasquale Voza, São Paulo: Editora Boitempo, 2017.
EP: Antonio Gramsci, Escritos Políticos. 2 Volumes. Organização e tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2004.
L: V. I. Lênin, Opere complete, Roma, Editori Riuniti, 1955.
LC: Gramsci, Lettere dal Carcere. Org. Antonio A. Santucci. Palermo, Sellerio, 1996.
MEW: K. Marx-F. Engels, Werke, Berlim, Dietz, 1955 ss.
NM: Gramsci, Il nostro Marx 1918, organizado por S. Caprioglio, Turim, Einaudi, 1984.
ON: Gramsci, L’Ordine Nuovo 1919-1920, organizado por V. Gerratana e A. A. Santucci, Turim, Einaudi, 1987.
Q: Quaderni del carcere. Edição crítica do Instituto Gramsci. Org. Valentino Gerratana. Turim, Einaudi, 1975 (1977).
SF: Gramsci, Socialismo e fascismo. L’Ordine Nuovo 1921-1922, Turim, Einaudi, 1966.