O melhor texto sobre o centenário da Semana de 22…

Estamos em fevereiro, mas já dá para supor que o melhor texto a ser escrito este ano em jornal sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 de São Paulo será o do músico intelectual Zé Miguel Wisnick, no caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo de hoje. Incontornável. Pedagógico.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/02/semana-de-22-ainda-diz-muito-sobre-a-grandeza-e-a-barbarie-do-brasil-de-hoje.shtml

13 de fevereiro de 2022

Dois filmes que assisti durante o Lobofest no CCBB marcaram-me profundamente…

Dois filmes que assisti durante o LoboFest no CCBB São Paulo – Centro Cultural Banco do Brasil, Retoque (do Irã), em que o microcosmo dum acidente cotidiano em família heteronormativa descortina todo um campo de desejo/justiça sem maniqueísmos frente à sociedade patriarcal, e Chá (do Uzbequistão!), em que a poética e tanta história abundam sem precisarem de diálogos e clichês, marcaram-me profundamente (estética e tecnicamente), quando estive semana passada hospedado num hotel no centro de Sampa, bem em frente ao Sesc 24 de maio (desde a pandemia, voltei pra Santos, agora sem lugar fixo em São Paulo, metrópole onde retorno aos poucos, amodeio e sinto-me adulto). O segundo, inclusive, confesso, inspira-me para parte importante de um romance meu… Não deixei de comentar com uma das curadoras que o primeiro critério para um curta-metragem valer a pena, em termos artísticos, é o de ter a capacidade de não nos fazer sentir que algo na obra falta (querendo ser longa) ou sobra; a sua completude. O que é muito difícil de se conseguir num formato de menor ou pequena duração… Ambos os filmes referidos cumprem tal critério e são memoráveis, sobretudo por espelharem acontecimentos humanos e a vida.

12 de fevereiro de 2022

Ruy Castro não compreendeu a renovação modernista da Semana de 22 de São Paulo

Ruy Castro confunde modernismo com modernidade, e associa o primeiro a quem teve prédio alto e eletricidade antes… É a superficialidade carioca. Acrescida à superficialidade do jornalismo. Acostumado a questões culturais de costumes, falta-lhe conhecimento avançado em estética e em estrutura interna da obra de arte. Assim, demonstra nada saber sobre a renovação estrutural nas artes e no pensamento brasileiros promovida pela seminal Semana de Arte Moderna de 1922 de São Paulo, que neste 2022 completa 100 anos. A Semana foi “alguma coisa de inesquecível, que sacudiu os meios artísticos de todo o país”, nas palavras de Anita Malfatti décadas depois, “porque era impossível tolerar-se o academismo, a inércia, o mau gosto da época”. Ou seja, antes do inovador modernismo paulista(no), toda a arte brasileira era incontestavelmente pré-moderna, inclusive a feita no Rio de Janeiro (com exceção de Lima Barreto ou mesmo dos pioneirismos da “segunda fase” de Machado de Assis, dois grandiosos casos solitários e mal compreendidos em seus próprios meios), cidade com resquícios políticos (República militar, quando em SP surgiu a mais moderna República civil), socioeconômicos e mentalidade de corte decadente. Romances, contos e poemas eram pré-modernos; poemas não tinham ainda superado totalmente a forma fixa do soneto, da métrica e da rima com a força que precisavam, quando Oswald (ele e seus poemas-minutos, de reinvenção da nossa história, cujo teatro também foi duma extraordinária e ainda hoje espantosa inovação ímpar, décadas e décadas antes de Nelson Rodrigues) e Mário (grande poeta e contista, grande pesquisador cultural) trouxeram inovações na prosa e versos mais do que livres e dum coloquialismo absoluto e sem precedentes, para ficarmos apenas em um exemplo concreto, determinante, literário (pois seria necessário também citar que a moderna pintura brasileira nasce com duas mulheres paulistas, Anita e Tarsila). Graças à Semana, o Brasil é dos poucos países no mundo que pode se gabar de ter tido um modernismo… A Semana de ’22, ocorrendo um século depois de outro momento histórico importante, foi, no plano cultural das artes, a segunda independência do Brasil, porém de vanguarda e anti-elitista, em contraposição a modelos enclausurados classicistas e de comportamento burguês (cf. a “Ode ao Burguês”)… Tanto que Antonio Candido, em texto e em simpósios, fazia questão de lembrar que o modernismo carioca (geração de Cecília Meirelles et al), atrasado, e que só veio muito depois ao de São Paulo, foi muito mais contido e conservador em comparação ao despojamento, à ousadia e às liberações da Semana de 22… Não é à toa que uma renovação modernista daquele impacto só pudesse surgir numa cidade que, de casebres e ruelas de chão batido no século 19, logo se industrializaria aceleradamente mais do que qualquer outra do país no 20, tornando-se metrópole por excelência, ponto de convergência do Brasil, “Paulicéia” unicamente moderna e modernista em meio aos provincianismos e paradigmas imperialistas do resto do país e de grande parte do mundo.

11 de fevereiro de 2022

Carpaccio versus Rafael, a partir de Tarkóvski: arte, panfletagem, tendência – marxismo e Renascença

“[…] Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não fique à mostra como as molas que saltam de um sofá. […]”

– Andrei Tarkóvski, Esculpir o Tempo, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 56.

Obs. por Fernando Graça: …Marx? Ou terá sido Engels, que, em suas correspondências a escritores (veremos trechos mais abaixo), as quais me valho vez ou outra como referência para marxismo e estética, tratou da tendência na arte?

Em cerca de 2016-2017, utilizando o extinto endereço eletrônico www.fernandograca.xyz, escrevi texto que não consigo encontrar em meus arquivos. Porém, o recordo quase inteiro.

Hoje mais amadurecido, volto ao seu pensamento aqui.

Tratava acerca de um valioso ensinamento artístico em Esculpir o Tempo (1985), livro do cineasta russo/soviético Andrei Tarkóvski (1932-1986), uma de minhas obsessões naquela fase adolescente e pós-adolescente. Nesse livro, que depois descobri estar disponível para alugar na Biblioteca Pública Municipal Sérgio Milliet do Centro Cultural São Paulo, Tarkóvski critica fortemente o famoso quadro Madona Sistina (1512), de Rafael Sanzio (1483-1520), embora não deixe de chamá-lo de “o gênio de Urbino”, e, em contraposição, apresentava-me um pintor extraordinário, o veneziano Vittore Carpaccio (1465-1525/1526), contemporâneo de Rafael, e que eu não conhecia (que, de fato, é pouco conhecido). Suponho, inclusive, que o cineasta provavelmente soube dele em seu triste período de exílio (por motivos sórdidos de sicofantas politiqueiros, entre os quais o de ser preterido por cineastas menores) da União Soviética na Itália. O meu texto referido aludia jocosamente ao fato de que de carpaccio eu conhecia apenas o prato culinário italiano…

Silhueta de Fernando Graça durante exposição sobre Rafael no Museu de Arte Brasileira da FAAP. Foto: Henrique Lima, 13 de novembro de 2021.

Este ensaio que ora escrevo se deve ao fato de, recentemente, eu ter espiado exposição multimídia no Museu de Arte Brasileira da FAAP, intitulada Magister Raffaello – “Uma viagem maravilhosa para o Renascimento italiano”. (Fui especialmente para ver outra exposição, brasileira, “Um Celereiro de Artistas“, em especial um quadro de tamanho grande que fotografei, Camisa Verde, do meu conterrâneo, o grandioso artista e comunista Mário Gruber, e não me arrependi de observar minuciosamente o seu talento em fazer lantejoulas tão realistas, mas isto e outras coisas mais são assunto para outro ensaio…)

A Madona Sistina, de Rafael: arte-síntese dos novos tempos da Renascença, mas panfletária, insípido cartaz? Os anjos do canto inferior estão cansados do velho e renitente tema em séculos e séculos de medievo. Clique na imagem para ampliar. Melhor visualização em computador/notebook.

A crítica de Tarkóvski, de adjetivos ásperos, é convincente, mesmo que só até certo ponto:

“[…] Quem ainda não escreveu sobre Rafael e a sua Madona Sistina? A idéia do homem, que finalmente conquistou sua própria personalidade, em carne e osso, que descobriu o mundo e Deus em si mesmo e ao seu redor depois de séculos de adoração do Deus medieval, cuja contemplação o privara da sua força moral — diz-se que tudo isso encontrou concretização perfeita, coerente e definitiva nessa tela do gênio de Urbino. De certo modo, é possível que assim tenha sido. Pois, a Virgem Maria, na configuração do artista é, de fato, uma cidadã comum, cujo estado psicológico, tal como o vemos refletido na tela, tem sua base na vida real: ela está temerosa pelo destino do filho, oferecido em sacrifício aos homens. Embora tudo se dê em nome da salvação destes últimos, ele próprio está capitulando na luta contra a tentação de defender-se deles.

“Tudo isso está, de fato, vivamente “escrito” no quadro — em minha opinião, com uma clareza excessiva, pois as idéias do artista oferecem-se ali à leitura: tudo por demais inequívoco e definido. Irrita-nos a tendenciosidade doentiamente alegórica do pintor, que paira sobre a forma e ofusca todas as qualidades puramente pictóricas do quadro. O artista concentrou sua vontade na clareza das idéias e na conceituação intelectual da obra; para isso, porém, pagou seu preço, pois a pintura é débil e insípida. […]” (ibidem, p. 54)

(Escrevi “até certo ponto”, porque é preciso considerar que todo movimento seminal possui a tendência inicial de estabelecer seus manifestos e intenções pela necessidade de anunciar-se e marcar presença… Neste aspecto, a Madona Sistina de Rafael, cuja protagonista, pobre, despojada e simples, que parece saltar dum filme de Pasolini, tem, sim, importante destaque histórico! Não se pode também esquecer que o próprio Tarkóvski, dentro da sua tentativa de transplantar o espírito observacional, gestáltico dos haicais para o cinema, tampouco escapou de forçar, em certas cenas, intenções explícitas, sobretudo as excessivamente religiosas-ortodoxas ou até misticistas, que representam enorme retrocesso com relação à história de seu país e o fazem hoje ser deturpado por conservalóides do cristianismo, outras intenções até pretenciosas demais e pseudointelectuais, quando bota frases supostamente filosóficas em certas personagens, que não convencem, contudo toda essa problemática seria tema para outro ensaio…)

Detalhe da Madona Sistina de Rafael: a mãe, uma cidadã comum, está temerosa pelo destino do bebê, oferecido aos homens em sacrifício – trata-se de um ponto de virada renascentista, se considerarmos toda a arte produzida no medievo. Segundo Tarkóvski, porém, tais elementos humanistas são apresentados nesse quadro de maneira “débil e insípida”, por estarem explícitos demais, quase escritos de maneira panfletária.

O zeitgeist do Renascimento, conforme Tarkóvski supracitado descreveu em linhas gerais, anunciou a imanência material no lugar da transcendência. Engels, em Dialética da Natureza (1883; cf. São Paulo: Boitempo, 2020, Introdução), um livro deixado por terminar e muito hesitante pelas polêmicas suscitadas entre sociedade e ciências naturais, mostrou que a Renascença — “a época que precisou de gigantes e produziu gigantes“, segundo ele — possibilitou polímatas admiráveis (como Leonardo da Vinci), porque, malgrado o feudalismo caduco de então (isto sou eu quem faço questão de frisar), o artista-cientista-erudito não havia ainda sido escravizado pela divisão capitalista do trabalho, uma vez que o capitalismo engatinhava e começava a ascender (recordo a frase de Marx no capítulo IV do primeiro livro de O Capital, que está aqui próximo de mim entre meus livros: “O comércio e o mercado mundiais inauguram no século XVI a moderna história do capital“); ou seja, com a hegemonia e a implementação em larga escala da divisão do trabalho, que serviram para otimizar a produção industrial e acelerar a moderna acumulação, os sucessores dos polímatas — incluindo nós — foram submetidos a um sistema limitante e unilateral. Essa importante tese estrutural de Engels será retomada por Lukács na década de 1930 para a seção “Tragédia e tragicomédia do artista no capitalismo” do ensaio “Tribuno do povo ou burocrata?” (presente nas edições brasileiras Marx e Engels como historiadores da literatura e também em Marxismo e teoria da literatura). Igualmente merece nota que, já em A Ideologia Alemã (cf. São Paulo: Boitempo, 2007, págs. 378-382, “Organização do trabalho”), série de escritos inovadores de 1845-1846, publicados só em 1932, Marx e Engels, em brainstorming mútuo, desmascaram os resquícios burgueses/individualistas da mentalidade de Stirner sobre a propriedade e o gênio (o “Único”, para se referir justamente a um Rafael), não só fazendo ver que tais indivíduos (da Vinci, Rafael, Mozart, que teve seu Réquiem terminado postumamente por outro músico, etc.) não criavam apenas solitariamente e distanciados da sociedade, dependiam, inclusive para os materiais concretos necessários às suas atividades práticas, da organização socioeconômica de sua época, do intercâmbio disponível e de muitos outros homens interligados à rede social produtiva, como também sugerem que, superada a divisão capitalista do trabalho, “Numa sociedade comunista não há nenhum pintor, mas no máximo, homens que, entre outras atividades, também pintam” (ibidem).

Voltemos ao nosso tema principal… Para reivindicar a “vontade e energia” duma “lei de intensidade que me parece constituir uma condição fundamental da pintura” (Esculpir o Tempo, ibidem, p. 54), Tarkóvski nos apresenta Carpaccio em contraposição a Rafael:

“Em sua pintura, [Carpaccio] resolve os problemas morais que assediavam o homem do Renascimento, fascinado por uma realidade repleta de objetos, pessoas e matéria. Ele os resolve através de meios verdadeiramente pictóricos, muito diversos daquele tratamento quase literário que confere à Madona Sistina seu tom de alegoria, de sermão. A nova relação entre o indivíduo e a realidade exterior é por ele expressa com coragem e nobreza — sem nunca cair no excesso de sentimentalismo, sabendo como ocultar as suas inclinações, a sua vibrante alegria frente à emancipação. […]” (ibidem, págs. 54-55)

Tarkóvski tem razão aqui. Em matéria de conjunto da obra (muito além da Madona Sistina, porém), Carpaccio espelha (para usar termo da estética lukácsiana) os novos tempos da Renascença de maneira mais fidedigna do que Rafael por pulverizar pelas telas os elementos modernos (ou proto-modernos) de seu tempo, quando a cidade ia sendo mais habitada do que o campo. São quadros (conferir as imagens que coloquei ao final deste texto com frases de Tarkóvski que pincei deliberadamente) de acontecimentos histórico-sociais (que dissipam o sagrado da religiosidade dos temas cristãos), viagens materiais (não à toa, época das grandes navegações), retomada integral e adaptação ao seu tempo de mitos pré-cristãos, pagãos, e inúmeras ações e relações humanas cotidianas em dezenas e centenas de tipos e classes sociais estratificadas em ampla composição. A sociedade em movimento e fluxo. Vontade e energia da tal “lei de intensidade” desejada! Ao sopesar as obras de ambos, não seria incorreto afirmar que Carpaccio é muito mais “materialista” e coletivista: está interessado e mergulhado nos assuntos terrenos, enquanto que em Rafael, em que pesem a Madona Sistina ou mesmo A Escola de Atenas, notamos os pés flutuando acima do chão, os resquícios transcendentais da religião, mesmo que sob novas formas e olhares mundanos. Além do mais, arrisco a dizer que Rafael, que tanto influenciou o século 18, é o clássico/classicista por excelência, a buscar o ideal harmônico da serenidade e da beleza, enquanto que em Carpaccio o moderno se antecipa diante de nossos olhos.

Guardadas as devidas diferenças, faz lembrar a crítica do amoroso modernista Mário de Andrade ao grande Machado de Assis, na ocasião do centenário de seu nascimento, comemorado em 1939 (v. Mário de Andrade, “Machado de Assis” In: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins, 1974, p. 103). O autor de Macunaíma e pesquisador popular reconhece a  inquestionável grandeza de Machado em diversos níveis e sentidos (só faltaria aos modernistas de 1922, que nos levaram a uma “segunda independência”, estudo cavado do surpreendente pioneirismo experimental da prosa machadiana, conforme Décio Pignatari, Haroldo de Campos e outros fizeram décadas depois noutro grande momento cultural do Brasil…), e que escrevera “apaixonante obra e do mais alto valor artístico, prazer estético de magnífica intensidade que me apaixona e que cultuo sem cessar”, “deixou, em qualquer dos gêneros em que escreveu, obras-primas perfeitíssimas de forma e fundo”, porém argui que era escritor encastelado, que Lima Barreto, João do Rio, França Júnior conseguiram muito mais reter o burburinho da vida do Rio de Janeiro, tendo também falhado em captar a “alma brasileira” como o fizeram Gonçalves Dias, Castro Alves, Aleijadinho, Almeida Júnior, Farias Brito e outros. Isto tudo é fato,  ainda que Machado de Assis tenha sido cronista profícuo, e foram justamente o universal e a influência eurocentrista agentes de sua consagração estrangeira; por outro lado, ainda bem que nos deixou em literatura, sobretudo nos contos e romances, o retrato das nossas classes médias e dominantes indolentes, servindo para entendermos melhor (reforçados pelos estudos sociais machadianos de Alfredo Bosi, Roberto Schwarz, Antonio Candido, Helen Caldwell, John Gledson et al) as causas dos problemas do Brasil sob este ângulo alto e direto, mas jamais conivente, sempre crítico e mordaz, que nenhum outro autor do século 19 nos deixou.

Carpaccio captou o burburinho e a “alma” de seu tempo renascentista bem mais do que grande parte de seus contemporâneos. Embora Tarkóvski não cite qualquer exemplo de quadro do elogiado que possa nos fazer vislumbrar suas palavras, rápida pesquisa havia me levado, à época, a uma galeria de quadros citadinos com turbas, eventos e movimentações, construções, etc., que de fato fascinam qualquer cineasta autêntico diante de grandes cenários e elencos. De repente, um quadro em específico chamou minha atenção, e, desde então, logo converteu-se numa das minhas pinturas preferidas (impossível não citar, nesta lista em construção, também Ovídio entre os citas, de Delacroix, e vários outros, obviamente muitos brasileiros):

Preparação da Tumba de Cristo (c. 1505), de Vitore Carpaccio, têmpera sobre tela. Clique na imagem para ampliar. Melhor visualização em computador/notebook.

Não seria, também este quadro, um panfleto ou cartaz?!… O cadáver dessacralizado de um eurocêntrico Jesus (e sem auréola!), entre ossos e esqueletos, “espera” que os coveiros preparem sua tumba. Um velho, apoiando uma das mãos no rosto, o olha com indiferença (faz lembrar os anjos-crianças da Madona Sistina, que também direcionam nosso olhar à figura principal), afinal, é mais um que morre dentre tantos outros. A dor e a desolação das duas mulheres no canto, cenicamente unidas, uma de cabeça para cima, a outra com a cabeça para baixo, parecem ser o único eixo a lembrar da gravidade do ocorrido. Isto ocorre nos primeiros planos. No fundo, com exceção do caminho à esquerda que nosso olhar percorre até chegar às tortuosas cruzes de madeira na parte superior, a vida continua com variadas ações de variados tipos sociais em meio à despojada paisagem: alguém toca um instrumento de sopro, há outras tumbas, cenas pastorais, transeuntes, etc. Por fim, cabe dizer que esse quadro guarda cordão umbilical com outro quadro ainda mais impressionante, O Corpo do Cristo Morto na Tumba (1520-22), de Hans Holbein, o jovem, que, séculos depois, no século 19 foi gatilho para Doistoiévski, ex-revolucionário e cristofrênico convertido, ter sério ataque de epilepsia quando diante dele esteve… (Para uma próxima contraposição: Tchernichévski versus Dostoiévski, só que mais aprofundada.)

Entanto, pelas descrições oferecidas por Tarkóvski, é certo que este pensava em gama de outras pinturas, as quais reuni de acordo com meu gosto e agora elenco abaixo, após reproduzir suas argutas palavras finais acerca da obra de Carpaccio. Observem a variedade de acontecimentos e ações e figuras no primeiro e segundo e demais planos das pinturas do mestre veneziano. Será injusto não fazer o mesmo com Rafael, porém de outro modo penso que expor mais obras suas não advogaria em seu favor nesta contraposição, e comparações tendem à superficialidade e ao desrespeito à singularidade de um artista.

“[…] As composições cheias de figuras de Carpaccio têm uma beleza surpreendente e misteriosa. Talvez seja até mesmo possível chamá-la ‘a Beleza da Idéia’. Diante delas, tem-se a perturbadora sensação de que o inexplicável está prestes a ser explicado. Momentaneamente, é impossível compreender o que cria campo psicológico em que nos encontramos, ou fugir ao fascínio que se apodera de nós diante da pintura e nos põe num estado muito próximo do medo.

“[…] Podem se passar horas antes que comecemos a perceber o princípio da harmonia que rege a pintura de Carpaccio. No entanto, assim que o apreendemos, permanecemos para sempre sob o encanto da sua beleza e do nosso arrebatamento inicial.

“Quando o analisamos, descobrimos que o princípio é extraordinariamente simples e expressa, no mais alto sentido, a base essencialmente humana da arte renascentista, em minha opinião, com muito mais intensidade do que Rafael. A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem “incidental”. O círculo se fecha, e ao olharmos para a tela de Carpaccio, nossa vontade acompanha, dócil e involuntariamente, o fluxo lógico de sentimentos pretendido pelo artista, voltando-se primeiro para uma figura aparentemente perdida na multidão, e depois para outra. […]” (Esculpir o Tempo, ibidem, págs. 55-56)

Tarkóvski, recordando Marx (fica a dúvida se a afirmação não seria de Engels), fecha a contraposição ressaltando a cautela de suas posições:

“[…] Não tenho a menor intenção de convencer os leitores da superioridade dos meus pontos de vista sobre dois grandes artistas, nem de estimular a admiração por Carpaccio em detrimento de Rafael. Tudo o que pretendo dizer é que, embora em última instância toda arte seja tendenciosa, que até mesmo o estilo seja comprometido, uma mesma tendência tanto pode ser absorvida pelas camadas insondáveis das imagens artísticas que lhe dão forma, quanto pode ser exageradamente afirmada, corno num cartaz, como é o caso da Madona Sulina de Rafael. Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não fique à mostra como as molas que saltam de um sofá. […]” (ibidem, p. 56)

Só mais um parágrafo final, que completa a questão da tendência na arte. Não se sabe até que ponto Tarkóvski era familiarizado com a obra marxiana, entretanto é possível que tenha havido um equívoco ao citar (sem rigor ou fonte) Marx, ao invés de Engels. Sabemos que a dupla não deixou um tratado estético, e sim escritos esparsos e laterais, formativos, mas, por exemplo, este último, em seus anos finais, já sem o companheiro de luta, ao estreitar correspondências com artistas, escritores socialistas e revolucionários, inclusive escritoras, cravou explicitamente: “Quanto mais permanecerem ocultas as opiniões do autor, melhor para a obra de arte. O realismo a que me refiro pode manifestar-se até mesmo a despeito das opiniões do autor” (trecho de carta a Margaret Harkness em abril de 1888, tradução minha). No seguinte trecho de outra carta, para Minna Kautsky, em 26 de novembro de 1885, colhida do Marx & Engels Collected Works Vol 47, Engels, comentando o romance Die Alten und die Neuen escrito pela destinatária, e que, a despeito de Balzac ser simpático à burguesia, confessando que o admirava como escritor pela criação realista de tipos sociais, explica melhor tal posicionamento: “[…] The source of this failing, however, may be discovered in the novel itself. In this book you obviously felt impelled to take sides openly, to testify to your convictions before the whole world. Now that you have done so, it is something you can put behind you and have no need to repeat again in the same form. I am not at all opposed to tendentious poetry as such. The father of tragedy, Aeschylus, and the father of comedy, Aristophanes, were both strongly tendentious poets, as were Dante and Cervantes, and the best thing about Schiller’s Kabale und Liebe is that it was the first politically tendentious drama in Germany. The Russians and Norwegians of today, who are producing first-rate novels, are all tendentious writers. But I believe that the tendency should spring from the situation and action as such, without its being expressly alluded to, nor is there any need for the writer to present the reader with the future historical solution to the social conflicts he describes. Furthermore, in present circumstances, the novel is mainly directed at readers in bourgeois — i.e. not our own immediate — circles and, such being the case, it is my belief that the novel of socialist tendency wholly fulfils its mission if, by providing a faithful account of actual conditions, it destroys the prevailing conventional illusions on the subject, shakes the optimism of the bourgeois world and inexorably calls in question the permanent validity of things as they are, even though it may not proffer a solution or, indeed, in certain circumstances, appear to take sides. Your detailed knowledge and your wonderfully true-to-life descriptions, both of the Austrian peasantry and of Viennese ‘society’, provide ample material for this, and you have already shown in Stefan that you are also capable of handling your protagonists with a nice irony which testifies to the command an author has over his creatures. But now I must desist, otherwise you’ll think me altogether too prolix. […]” Mas tal escolha artística delineada por Engels contra a tendência (que suscitará, no século posterior, outra contraposição, desta vez no interior do próprio marxismo: Brecht x Lukács), depende muito do público-alvo (da classe) a que o artista se dirige, conforme disse-me Mauricio Puls, certa vez, em longa troca de mensagens que tivemos: assim, neste complexo século 21, embora devamos abalar as certezas da axiomática capitalista sem necessariamente apresentarmos a solução inequívoca (ou até panfletária, portanto ingênua ou oportunista) dos conflitos histórico-sociais espelhados na arte, tomando lados tendenciosos que suplantam a força própria das situações, figuras e personagens, ainda que importantes aos escritos políticos de não-ficção, ainda que devamos frustrar o falso otimismo da ordem da manipulação e da alienação diárias, dos desvios de foco, e mostrar a decadência tardia da sociedade burguesa às classes dominantes e seus representantes, penso que um público consciente, despossuído da propriedade privada dos meios de produção, trabalhador e nada burguês demanda um Brecht, um Plínio Marcos (outro conterrâneo meu) e correlatos, sob pena da revolta transformadora vinda debaixo, do nosso caldo cultural à lá Gramsci, da agitação cultural, da ameaça ao status quo, da denúncia, da conscientização revolucionária e de outras categorias que nos são imprescindíveis à arte não serem potencializadas.

Degustemos Carpaccio!

Vittore Carpaccio – Recepção de um Legado, c. 1490, Museu Nacional de Belas Artes, Cuba. “Cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio, Milagre da Santa Cruz na Ponte Rialto, têmpera sobre tela, c. 1496, Gallerie dell’Accademia, Veneza. “Em sua pintura, [Carpaccio] resolve os problemas morais que assediavam o homem do Renascimento, fascinado por uma realidade repleta de objetos, pessoas e matéria.” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio, A Partida de Ceix, c. 1502-1507, Galeria Nacional de Londres. Carpaccio, assim como Shakespeare, cada um a seu modo, retomaram mitos da antiguidade pagã e pré-cristã para o seu tempo, baseando-se, por exemplo, nas Metamorfoses de Ovídio, como é o caso deste quadro.
Vittore Carpaccio – Visitação, entre 1504 e 1506, Galleria G. Franchetti alla Ca’ d’Oro. “O círculo se fecha, e ao olharmos para a tela de Carpaccio, nossa vontade acompanha, dócil e involuntariamente, o fluxo lógico de sentimentos pretendido pelo artista, voltando-se primeiro para uma figura aparentemente perdida na multidão, e depois para outra.” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio – Embaixadores retornam à corte inglesa, c. 1495-1500, Gallerie dell’Accademia. Época proto-moderna de viagens e navegações, que Carpaccio captou exemplarmente. “Quando o analisamos, descobrimos que o princípio é extraordinariamente simples e expressa, no mais alto sentido, a base essencialmente humana da arte renascentista, em minha opinião, com muito mais intensidade do que Rafael.” – Tarkóvski
Linhas de perspectiva do quadro Retorno dos embaixadores à corte inglesa, de Vittore Carpaccio.
Vittore Carpaccio – Crucificação e apoteose dos dez mil mártires do Monte Ararat, Accademia, Veneza. “Podem se passar horas antes que comecemos a perceber o princípio da harmonia que rege a pintura de Carpaccio. No entanto, assim que o apreendemos, permanecemos para sempre sob o encanto da sua beleza e do nosso arrebatamento inicial.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Ciclo de pinturas para a lenda de São Estêvão, cena: Consagração de São Estêvão, detalhe, óleo sobre tela, c. 1540. Gemäldegalerie, Berlim. “Diante [das composições cheias de figuras de Carpaccio], tem-se a perturbadora sensação de que o inexplicável está prestes a ser explicado” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Encontro e Partida dos Noivos, têmpera sobre tela, entre 1495 e 1500, Gallerie dell’Accademia em Veneza. “As composições cheias de figuras de Carpaccio têm uma beleza surpreendente e misteriosa.” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio – O apedrejamento de Santo Estêvão, c. 1520. Staatsgalerie Stuttgart, Alemanha. “Momentaneamente, é impossível compreender o que cria campo psicológico em que nos encontramos, ou fugir ao fascínio que se apodera de nós diante da pintura e nos põe num estado muito próximo do medo.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – São Jerônimo e o leão no convento, têmpera, 1502, exposto na Scuola di San Giorgio degli Schiavoni em Veneza. “A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem ‘incidental’.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – O Triunfo de São Jorge, 1502. Da coleção da Scuola di San Giorgio degli Schiavoni. “A nova relação entre o indivíduo e a realidade exterior é por ele expressa com coragem e nobreza — sem nunca cair no excesso de sentimentalismo, sabendo como ocultar as suas inclinações, a sua vibrante alegria frente à emancipação.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Chegada dos Embaixadores Ingleses, c. 1495-1500, Gallerie dell’Accademia. “A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem ‘incidental’.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Martírio dos Peregrinos e o Funeral de Santa Úrsula, 1493. Accademia em Veneza. “A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem ‘incidental’.” – Tarkóvski
Detalhe ampliado de Martírio dos Peregrinos e o Funeral de Santa Úrsula.
Vittore Carpaccio – São Estêvão é Consagrado Diácono, 1511, Gemäldegalerie, Berlim. “Tudo o que pretendo dizer é que, embora em última instância toda arte seja tendenciosa, que até mesmo o estilo seja comprometido, uma mesma tendência tanto pode ser absorvida pelas camadas insondáveis das imagens artísticas que lhe dão forma, quanto pode ser exageradamente afirmada, corno num cartaz, como é o caso da Madona Sulina de Rafael.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Teseu recebe a embaixada de Hipólita, rainha das Amazonas, c. 1495, tendo como provável fonte a Teseida de Boccaccio, livro I, Musée Jacquemart André, Parigi, França.

5 de dezembro de 2021

Apontamentos estéticos para uma poesia/proesia do século 21 (esboço)

Texto em progresso…

 

  • Lukács (Conversando com Lukács, Instituto Lukács, São Paulo, 2014, p. 51), em seus anos finais, disse ser “apaixonante problema técnico de atelier investigar que coisa pode produzir um poeta de hoje com a linguagem de Gôngora”. Trocar por Sá de Miranda ou Camões.
  • Na propositiva acima, obviamente influem ressignificação e inovação, que se inserem numa tradição sem a ela obedecer integralmente ou fazer catequese: revolucionar.
  • …Descoberta que nas mãos de outro vira outra coisa, ambas originais em sua época, e de preferência “perenes”…
  • O “perene” na arte – lembrar dos apontamentos inconclusos de Marx (nos Grundrisse, escritos de gênio) sobre o fascínio “perene” da arte grega em nós e Shakespeare (até onde se sabe, infelizmente, ele não chegou a escrever essa parte ou se perdeu ou ainda não foi descoberta, apenas a anuncia, embora todo marxista saiba da sua paixão pela impactante peça Titus Andronicus e a cena sobre o poder do ouro/dinheiro, citada nos Manuscritos Econômico-Filosóficos e, décadas depois, no próprio livro primeiro de O Capital).
  • …Influi também o tema já superado entre forma e conteúdo (ou forma-conteúdo, ou ainda conteúdo-forma), que o próprio Lukács, admitindo que via o conteúdo como principal, em detrimento da técnica (quando seria mais correto encarar a dialética de ambos os termos), trata de tratar. Falsa dicotomia; relação dialética. Resgatar o que a semiótica (um dos capítulos de Semiótica e Literatura, de Décio Pignatari, exatamente acerca) pode contribuir para isso. E o pensamento certeiro de Maiakóvski a respeito.
  • O conflito entre Brecht e Lukács hoje, século 21, já que o segundo dos dois pensava numa continuação do realismo do século 19 para o 20, enquanto o primeiro enxergava defasagem no 19 e novas inserções no 20. A solução: diferentes públicos para diferentes apetites.
  • A contribuição dialética de Gramsci, a partir de Hegel (não sem Marx): dupla operação/estratégia: é preciso criar uma nova culturarte, seja como agitação ou antecipando a nova sociabilidade, e que só é plenamente possível a um status revolucionário se criticar a cultura vigente e extrair/conservar pontos positivos dela, por consequência, superando-a (= “síntese”).
  • Estética enquanto múltiplas determinações dos homens encarnados na arte…
  • Estética: menos legislação, mais observação/apresentação da estrutura interna duma obra artística…
  • Trata-se, antes, de decidir se é possível uma “estética” (ou Estética) hoje. E se o sinônimo de tal decisão/empreitada é legislar sobre arte. Não que não seja impossível, mas instigantes autores por vezes preferem outro termo — certamente mais aristotélico –, imediatamente ligado a uma ação ou relação bem mais concreta de fazer e práxis: ao invés de estética(s) — palavra de filósofos e não necessariamente de artistas –, poética(s)
  • Certa passagem de A Ideologia Alemã (Marx e Engels), refutando Max Stirner e seus equívocos acerca da propriedade privada, alerta sobre a mentalidade burguesa no tocante ao individualismo corriqueiro a respeito do artista criador (o exemplo dado é Rafael), costumeiramente tido como gênio solitário que leva todos os créditos, e lembra da enorme cadeia ou rede socioeconômica de pessoas — que antecede ou está presente no processo ou depois — de uma obra artística, sem a qual ela não existiria. Tal como a comida em nossa mesa, que não brotou do nada tampouco nela, muito menos no supermercado ou na feira. Outra passagem desse livro seminal, marxiano-engelsiano, trata, ainda que de maneira lateral, o fazer artístico por todos numa sociedade comunista em que a divisão/o antagonismo de classes foi devidamente abolida.
  • O ato de escrever e sua angústia, que não é de hoje, mas acrescenta-se à tal angústia-base a angústia da derrocada das ideologias (inclusive estéticas!) e a sensação (ao menos para aqueles que, como eu, seguem um percurso histórico) de que tudo já foi escrito (em forma-conteúdo): a insistência da inovação em face de um beco sem saída, e que tal inovação não vire solipsismo, mas, ao invés, arranque do branco do papel (ou de qualquer outra superfície) a exata palavra que possa nos “salvar” (?)…
  • A problemática do “romance” hoje, com ou sem proesia. Trata-se de decidir em minha obra se, neste caso, vale também a propositiva inicial do sangue novo introjetado num corpo (ou cadáver) antigo. (Sangue, ao invés de “roupagem nova”.)
  • Identificar, evitar, denunciar, extirpar, saber usar, pôr no lugar etc. os elementos fascistóides da linguagem. Ao contrário do que muito se pensa, o elemento fascistóide não é apenas militarismo, não são só palavras de ordem e comando, é, muitas vezes, bem mais sinuoso/ardiloso/corruptor do que isso. (E em que medida, na verdade, eram as simples palavras de ordem ou comando, bem antes disso, ancestrais?…) Diferenciação entre autoritarismo (que sabe onde pisa com o coturno) e fascismo (que, tal como disse Deleuze, é uma linha de morte de si e do outro).
  • Eu sou capaz de escrever linhas lindíssimas, de seivas que são entendidas antes de qualquer explicação junto ao pleno domínio da língua (eis o caráter significativo e enriquecedor duma proesia), porém os fantasmas vanguardistas me atordoam; súbito, no entanto, o treino em face de uma estética marxista exorciza de mim o abstracionismo (não é meio conservador?) ou a pura técnica (que não alcança o realismo), já datados também.
  • O realismo de cada tempo, inclusive deste, a partir do espelhamento do real através das obras de arte. Um pé atrás diante de tudo o que se afasta do real (irracionalismo).
  • Por que todo direitismo se afasta do real?!
  • Proesia não só em termos subjetivos, mas concretos – Galáxias, de Haroldo de Campos, teve “sacada” ainda hoje rara, já que escritores e poetas (não assim com os concretistas) geralmente nem preocupam com a materialidade da obra-livro: versos longos e edição com página obrigatoriamente pensada a partir do espaço de tais versos longos, de modo que quase pareçam, mesmo, linhas duma prosa (sem o ser).
  • A Poesia é resolvida com a inspiração, sobretudo quando se é poeta cultivado, e não qualquer escrivinhador; não assim com a prosa, que é como costurar (por isso devo muito à minha mãe costureira caseira meu ofício literário): na prosa, cose-se hoje e amanhã é preciso continuar de onde se parou, mesmo que não seja de onde se parou ontem.
  • Poetas são pest-sellers, enquanto há prosadores best-sellers, aliás, tais mais-vendidos são sempre em prosa. Entre outros motivos, porque a poesia corta o logos e não tem fim (quando se chega ao final, recomeça outra vez), enquanto a prosa, por sua própria estrutura interna, nos leva sempre a conclusões – assinale-se que a moldura ocidental não admite facilmente o que não tem explicação ou conclusão.
  • Proesia: poderosa indeterminação entre prosa e poesia, implosão de gêneros num jorro estilístico de signos carregados de significados ao máximo.
  • Proesia – que não seja mera masturbação, e sim sexo bom para as partes bissexuais homoeróticas.