Povo e Centrão e (des)governo Bolsonaro

O quanto você, que se diz de esquerda, conhece realmente o Brasil e os brasileiros da base da pirâmide social?

São os descendentes periféricos da escravização in loco de 3 séculos e da Abolição feita nas coxas, da miscigenação mais explícita na cor de pele, filhos, depois, da migração-consequência-do-desajuste-geográfico-da-industrialização-nacional, de nível técnico e crítico baixo ou ingênuo ou nenhum, são os estigmatizados, os “burros”, “ignorantes”, mais do que pobres, semi-analfabetos e analfabetos, Macabéas, mas que, paradoxalmente, neste momento de crise, são os que seguram o país no dia a dia, dada a quantidade e espessura dessa camada na sociedade, através de bicos e na informalidade. Parece que Chico Buarque lhes retratou bem na canção “Brejo da Cruz” – salvo engano, canção dos anos 1980, depois de anos de uma ditadura que impediu reformas estruturais e atirou o país na marginalização… São, mentalmente, quase crianças – para usar a poética, não fosse trágica, denominação de um camarada comunista meu, funcionário público do setor de obras, que possui contato direto com pedreiros, motoristas, etc. Só os “evangélicos” — tanto pastores bandidos, ricos e fundamentalistas quanto “pastores/intelectuais orgânicos”, i.e., mais próximos da comunidade e de sua própria cor de pele miscigenada e classe social — é que penetraram para valer nessa camada nesses últimos 30 anos, prometendo-lhes subir e crescer, ter carro, negócio, dinheiro, o que a Igreja Católica, já em declínio e secularização, sempre demonizou (o catolicismo sempre quis perpetrar a condição do lúmpen miserável, nunca tirá-lo dessa situação). Donas de casas, faxineiras, guardas noturnos em maior dignidade do que os farrapos, mas essas classes da base da pirâmide muitas vezes se misturam e se confundem, sobretudo num país continental e complexo…

A esquerda (no mundo) comeu poeira, deixou de falar em revolução desde a Queda do Muro e o desmanche da burocracia da União Soviética, distanciou-se (um dos grandes erros do PT) dos seus princípios mais radicais, é hoje identificada por camadas sociais — caso dos Coletes Amarelos, na França, que expulsam partidos de esquerda dos protestos — com o próprio sistema econômico e estatal (direitista). A boa notícia — a médio e longo prazo — é que esse cenário tem solução. É incontornável, para uma solução, a construção da organização revolucionária que saiba que é possível conquistar a hegemonia antes de conquistar o poder. Que, formando intelectuais orgânicos e soldando intelectuais revolucionários com o povo-nação e sobretudo com uma classe trabalhadora sólida e consciente (classe essa que se encontra “acima” da “massa” na pirâmide), acabe com a desigualdade socioeconômica (fruto da maior parte do desespero espiritual contemporâneo) através da tomada, distribuição e socialização da propriedade privada dos meios de produção e que, concomitante e até antes disso, supere num processo gradual o senso comum com um novo senso crítico filosófico.

Tenho um cunhado que é gerente da Caixa Econômica Federal (outro funcionário público). Me contou do perfil geral dessa massa sem perspectiva nas enormes filas das agências pelo auxílio emergencial, que acaba este mês e cujo fim mudará todo o cenário diante do DESgoverno, da pauperização causada pelas contrarreformas neoliberais desde o golpeachment e Temer, da pandemia e do capitalismo contemporâneo, que já não gera mais emprego e nem vai gerar. Não sem incômodo por conta de seu ar de superioridade e por suas expressões pejorativas, ouvi ele me contar dos “vergonhosos”, “patéticos” e até insólitos erros linguísticos que têm escutado quase que diariamente e a falta de informação e de conhecimento (das coisas mais simples e bestas) que têm de enfrentar com esse “povo”. Houve até aqueles que, mesmo sem direito ao auxílio, quiseram ir saber o que diabos o governo estava dando para o povo. Suponho que não possuem acesso decente à Internet ou arrisco a dizer, com base no depoimento do meu cunhado, que possuem acesso, mas não sabem mexer (sem contar que, nos primeiros meses, a incompetência do desgoverno criou instabilidade no aplicativo do auxílio). Também, não basta “saber mexer” – é preciso transferir o auxílio da “conta virtual” do aplicativo para a conta bancária da Caixa ou esperar a data para transferir, sendo que para sacar é mais rápido, enfim, uma série de situações burocráticas que dificultam o acesso a todos. Caso contrário, não haveria fila pelas agências, com todos os riscos da aglomeração em plena pandemia de COVID-19.

(Não houve informação suficiente a respeito do fato de Bolsonaro e do terraplanista econômico Paulo Guedes, um Bolsonaro com Phd, não quererem, desde o início, dar auxílio algum, e que este foi conquista da oposição de esquerda e de outros setores do Congresso. No início, R$600 reais, que logo foram cortados pelo (des)governo pela metade, R$300 reais, e que chegarão ao fim mesmo com a pandemia e sem vacina, enquanto o resto do globo já começa a adquirir suas doses.)

Portanto, a respeito do tema Bolsonaro, sustentação da aprovação (grande entre emprésarios semiescravagistas) e desaprovação (a maior rejeição entre os presidentes em primeiro mandato, com exceção de Collor), é a subjetividade e condição de LÚMPEN (termo usado por Karl Marx em 18 Brumário de Luís Bonaparte e outros textos) que nos importam enquanto esquerda empática, não os fascistóides minoritários. O lúmpenproletariado é, em tradução literal, o proletariado de farrapos, mas existe uma mentalidade de lúmpen em amplos setores. Antes de mais nada, essa classe do lúmpen brasileiro é formada pela chocante desigualdade deste rico país (quando se afirma que o Brasil é desigual, trata-se não de um país pobre, mas “de um lado este carnaval/do outro, a fome total” num mesmo país, cidade, estado, bairro, rua). Além dos lúmpens, há uma “nova” classe trabalhadora informal chamada de precariado. Os livros do prof. Ricardo Antunes mapeiam a condição subproletária, do precariado, dos trabalhadores intermitentes e afins no capitalismo atual, inclusive entre os jovens com a “uberização”, que trabalham sem hora fixa para enriquecer a Uber, o iFood, etc. O problema é que o auxílio emergencial, justamente por ser destinado a quem não tem salário, acaba agregando todos esses. Assim, importa-nos, em caráter de urgência, a chocante defasagem socioeconômica e educacional dos abandonados, metidos numa ignorância proposital e secular, Macabéas que embarcam em quem lhes der mais e lhes ajudar com migalhas, não importando se é centro-esquerda ou se é direita aporofóbica, tal a situação degradante em que estão! Esta é a subjetividade e condição material típicas do chamado “lúmpen-proletariado”: aderir a quem possa lhes resolver, mesmo que momentaneamente, a dificuldade material. O Estado brasileiro na forma da oligarquia sempre foi hábil em sustentar o lúmpen, tirando-lhe a consciência crítica e revolucionária em troca de leite, uniforme escolar, migalhas.

Enfim, do que eles precisam e do que precisamos? Precisam duma esquerda que deseje e concretize construção revolucionária pela conquista da hegemonia mesmo antes da conquista do poder; da “soldagem” gramsciana entre intelectuais e povo-nação; de Paulo Freire e Antonio Gramsci; que sejam parte dirigente de um partido revolucionário e de movimentos sociais, unidos à classe trabalhadora, já que o capitalismo contemporâneo dificilmente vai transformá-los em classe trabalhadora clássica; precisam surgir do mais profundo da massa e virar intelectuais orgânicos que não só saibam exercer seu simples trabalham, mas que também entendam de teoria do valor, economia, política, história, dialética e revolução; não precisam de mera política pública e assistencialismo barato para voto de cabresto que, desde pelo menos Getúlio Vargas (“Façamos a revolução antes que o povo a faça!“), não derruba os pilares do país.

Outro dia, uma amiga me perguntou se a taxação de grandes fortunas não seria um passo decisivo para a transição socialista. Eu quase ri. Sem teoria, a esquerda parlamentar não faz outra coisa senão nivelar o debate. Uma pergunta lúcida a ser ensinada, pergunta de esquerda raiz: quem administrará o montante recolhido dos lucros e dividendos, das grandes heranças, dos iates e jatinhos? A classe trabalhadora? Os burocratas de Brasília? O Congresso, que nos espolia, pois a esquerda não tem ali uma hegemonia? Já na Crítica do Programa de Gotha Marx escreve que o imposto sobre renda (pauta de vários liberais da Manchester industrial) pressupõe as diferentes rendas das classes, logo pressupõe a sociedade de classes capitalista, não a construção de uma sociedade comunista. Transição socialista é, no mínimo, um governo popular e orgânico em forma de cooperativas, no setor da economia, e de conselhos populares na política, ao invés do Estado enquanto balcão administrativo da burguesia.

Voltemos ao caso do lúmpen. Guardadas as ENORMES diferenças, motivações, intuitos e proporções, trata-se da quase mesma postura que também o Centrão — direita sem ideologia, corrupta e fisiologista do sistema — desempenha na alta burocracia federal para apoiar governos federal, estaduais e municipais em troca de emendas parlamentares milionárias e cargos gordos na administração pública… Com o Centrão, um desgoverno fraco ganha mais musculatura, mesmo com todos os seus descalabros sociais. O Centrão que apoiou FHC, Lula, Dilma, Temer e agora Bolsonaro. Quem dá mais, lá vão eles. (O gângster psicopata Eduardo Cunha, antes de ser preso, ia além: era o “Centrão” que tinha pautas retrógradas em nome de Deus e Jesus, um pré-Bolsonaro bem mais calculista, centrado, perigoso…) Sem eles, não há voto no Congresso.  Até os milicos moralistas do DESgoverno já descobriram isso. Atualmente, neste ano de 2020, o Centrão é formado por parlamentares do PP (40 deputados), Republicanos (31), Solidariedade (14) e PTB (12). Este seria o “Centrão oficial”, mas, em certos momentos, dependendo da oferta, são somados o PSD (36 deputados), MDB (34), DEM (28), PROS (10), PSC (9), Avante (7) e Patriota (6).

Ora, como são eleitos, então? Uma mera reforma política que enxugasse o número de partidos mitigaria o poderio do Centrão? Um rápido estudo a respeito das origens do “Centrão” nos levará à constatação não só do lobby capitalista em Brasília, mas da renitente oligarquia brasileira e também do “coronelismo” regional em cidades por todo o país, da falta de uma democratização socialista de base, mas seria preciso maior aprofundamento a respeito.

Temos, assim, dois lados do país, de alto a baixo, a serem resolvidos.

Ps.: Os requisitos para o auxílio emergencial, segundo a própria página da Caixa Econômica Federal, ajudam a caracterizar melhor essa “sub-classe” (não inserida diretamente na contradição entre as forças produtivas da classe trabalhadora assalariada e os meios de produção detidos pelos capitalistas) da qual não estou, neste momento, muito distante: insta-me dizer que, como professor autônomo, também tive “direito automático” ao auxílio, sem nem mesmo fazer qualquer procedimento:

Pode solicitar o benefício o cidadão maior de 18 anos, ou mãe com menos de 18, que atenda a todos os seguintes requisitos:

Esteja desempregado ou exerça atividade na condição de:

– Microempreendedores individuais (MEI);  <- É preciso saber o quanto há resquício de ideologia neoliberal nesta denominação de “microempreendedor individual”.

– Contribuinte individual da Previdência Social; 

– Trabalhador Informal.

Pertença à família cuja renda mensal por pessoa não ultrapasse meio salário mínimo  (R$ 522,50), ou cuja renda familiar total seja de até 3 (três) salários mínimos (R$ 3.135,00).