Marxismo e feminismo e “marxismo feminista” – recomendações de livros, autoras e autores

Notas Prévias

– Trata-se de uma “antologia” em construção. Veremos, através da própria vida-obra de diversas autoras proeminentes do marxismo, que, nem do ponto de vista teórico, muito menos do ponto de vista prático e histórico factual, no fundo, quando o assunto é Crítica e Emancipação, o marxismo não é oposto ao feminismo (há feminismos, e aqui, é claro, entende-se o método e o conteúdo do feminismo enquanto crítica classista da exploração da mulher e pela transformação socioeconômica estrutural da sociedade, menos quando o feminismo se reduz a um movimento sóciopolítico arrivista de classe média, o que o faz adequar-se à retaguarda do liberalismo), embora tal intersecção entre feminismo e marxismo, tanto no método quanto no conteúdo, seja mais complexa e problemática do que pareça (ou, talvez, falsa, não havendo, para algumas autoras, separação entre as lutas e teorias). Hoje, já existe um feminismo marxista; também existem marxistas mulheres que não fazem questão de usar o termo feminismo ou que o tornam indissociável do marxismo, sem contar as feministas ecléticas que se utilizam, vez ou outra ou sempre, do método marxista para determinados fins teóricos e práticos. Não faltam ainda hoje e não faltaram marxistas e comunistas mulheres que exerceram críticas ferrenhas ao ecletismo e ao feminismo liberal pequeno-burguês das próprias mulheres… É consenso, entre elas, que esse feminismo não é alternativa superior ao marxismo nem pode lhes oferecer plena emancipação e crítica.

– A conclusão que podemos estabelecer através das autoras logo citadas (que escreveram e pensaram a partir de uma prática pela transformação da realidade e do status quo) é que, sem o marxismo, o feminismo, assim como todas as outras fileiras e campos ideopolíticas novas e antigas, torna-se meramente representativo e desejo de ascenção e inclusão efêmeras, manco, ingênuo, até politiqueiro, superficial e arrivista, incapaz de compreender as raízes dos seus problemas e resoluções, cooptável pela própria estrutura que pensa combater e não a supera; sem as contribuições teóricas e de luta específicas das mulheres, o marxismo, por sua vez, que desde o início esteve conjuminado a elas, seria distante, possui lacunas teóricas e problemas básicos de práxis diante dos desafios do nosso tempo. Vale lembrar que, mesmo estatisticamente, as mulheres estão em peso na massa e na classe trabalhadora, no arcabouço fundador e mantenedor de nossas sociedades e cada vez mais a ocupar espaços intelectuais, tornando-se impossível não vislumbrá-las no topo das lutas e dos debates, assim também com negros e miscigenados.

– Antes de qualquer coisa, “marxismo” refere-se, é claro, ao gênio Karl Marx (1818-1883), um revolucionário cuja obra, basilar, seminal, a grosso modo – simplificando muito para não sairmos do objetivo específico desta pequena antologia – expõe e estuda, através da concepção materialista da história (expressão frequente de Friedrich Engels, seu parceiro intelectual e de militância) e de um novo método dialético, a sociedade de classes burguesa e a estrutura capitalista exploratória, defendendo para a sua superação a construção do comunismo pela classe trabalhadora, tal como os capitalistas modernos tomaram o poder político e econômico da aristocracia no curso do desenvolvimento da história humana. Traçamos o marxismo em três partes que se intercalam num tripé, tal como propõe o Anti-Dühring: a teoria do valor (a partir da crítica da Economia Política), que identifica a exploração do capital; a filosofia dialética e a concepção materialista da história, cujo “elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real“; o socialismo enquanto lutas de classes e teoria do poder, da revolução e do Estado. É impossível, aqui, nos aprofundarmos nestas três partes, coisa que faço sempre que posso em outras oportunidades. O importante, por enquanto, é sabermos que não há marxismo (ou há um pseudomarxismo) quando se esquece ou se negligencia uma das partes supracitadas.

– Na obra de Marx, não há identidade sexo/gênero, nem mesmo em cartas ou notas (a menos que descubra-se algo inédito para o MEGA) de maneira aprofundada, apenas algumas colocações muito pertinentes e por si só fundamentais, conforme veremos. O Manifesto (1848) da Liga Comunista (que contava com a participação de mulheres) já trazia a necessidade da “comunidade de mulheres” independente contra a dominação burguesa, antecipando de maneira impressionante as lutas feministas e propondo uma via revolucionária. Somente podemos acusar Engels de homofóbico (em um ou outro episódio, como no caso do pioneiro gay e socialista  Karl H. Ulrich, ou para tratar da pederastia grega antiga), mas de uma maneira tão pueril e sarcástica que, naquela sociedade vitoriana hipócrita, fundamentalista e puritana de então, que aprisionava, condenava e cerceava os destoantes, é algo que torna-se quase batido e nada criminoso. É certo que o miolo da obra de Marx é eurocêntrico (vale lembrar que, saindo do atraso político e econômico da Alemanha de então, por forças maiores ele se exila na Inglaterra, onde o capitalismo industrial estava muito mais desenvolvido, com todas as agruras sociais provenientes desse desenvolvimento – a elite inglesa foi catapultada a partir do ouro brasileiro, vale dizer), mas em cartas e em trechos de várias obras Marx não deixou de mostrar interesse, até o fim da vida, e sobretudo nos anos finais, em muitos outros países e nas regiões periféricas do capital.

– Como se sabe, não são poucos os conceitos nem pobres as teorias implicadas a partir de tal simplificação do que é o marxismo, mas há um termo marxiano que nos importa, por enquanto: Marx nos fala no “ser social” – até então, não se aprofunda em gênero, raça, sexo, identidade ou outro componente deste “ser social” e jamais tomaria qualquer uma dessas categorias como central do ser social, porque o que funda este ser é o trabalho, esta, sim, uma categoria (ou até mesmo ação) fundante. O caráter fundador do trabalho no ser social unifica toda a raça humana, mas, sem as particularidades (inclusive de classes sociais!) do ser social, essa afirmação seria puramente idealista, abstrata e fora da realidade concreta. Dito isto, é importante também afirmar que, uma vez dispostos os termos “marxiano”, “teoria marxiana”, “obra marxiana” e afins (para identificar as próprias obras de Karl Marx), todos sabem que o termo “marxismo”, por si só, e já ampliado a partir do homem que lhe deu o nome, apesar de calcado em fundamentos contrários a ecletismos, dogmatismos, deturpações e deformações, nunca foi inteiramente monolítico nem em táticas e estratégicas nem no método e na teoria (“Tudo o que eu sei é que não sou marxista”, teria dito ironicamente o próprio Marx, mas a respeito de pseudomarxistas franceses já do seu tempo, conforme registra Engels numa carta).

– No marxismo (ou na própria obra marxiana), a relação sujeito – objeto não é prejudicada por um suposto predomínio do sujeito econômico (da sujeita econômica) em detrimento do sujeito histórico (da sujeita histórica); nem há objeto sem sujeit@ ou sujeit@ sem objeto. Marx frisa, nas Teorias da Mais-Valia (Theorien über den Mehrwert), que há uma conexão entre a produção intelectual e a produção material e que esta última não deve ser considerada “[…] como categoria geral, mas em forma histórica determinada. […] Se não se concebe a própria produção material em sua forma histórica específica, é, então, impossível compreender o que é determinado em sua produção espiritual correspondente e a ação recíproca entre ambas”. E, embora Marx nada tenha escrito especificadamente sobre subjetividade, pululam em sua obra passagens que fornecem bases para uma construção teórica da subjetividade (Eduardo F. Chagas, “O pensamento de Marx sobre a subjetividade”, Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 2, p. 63-84, Maio/Ago., 2013, p. 66), que jamais é autônoma ou pura muito menos simplesmente natural e imediatamente dada, mas construída socialmente, estando em movimento, produzida numa dada formação social e em determinado tempo histórico. Em consequência, tal subjetividade se constitui na relação com a sociedade (hoje, capitalista – e que estágio e tipo de capitalismo?!) que a forja e a mantém.

– É consenso contemporâneo no marxismo, sobretudo em suas fileiras mais radicais, que o direito ao voto às mulheres e a proibição da discriminação de gênero ou raça, além de outros direitos individuais conquistados no curso do século 19 e 20, não significaram, por si só (e isto é explícito no século 21), “a plena igualdade social da mulher ou do negro, mas sim, instrumentos melhores para a reprodução do patriarcalismo e do racismo em condições mais estáveis e menos conflituosas” (Alysson Mascaro, “Direitos humanos: uma crítica marxista”, Lua Nova, São Paulo, págs. 109-137, 2017, p. 132; cf. também I. M. Wallerstein, “The ideological tensions of capitalism: universalism versus racism and sexism”, 1991, In: BALIBAR, E.; WALLERSTEIN, I. M. Race, nation, class: ambiguous identities, London: Verso, pp. 29-36., p. 34). Talvez possamos discutir se tudo não passa de uma questão de tempo: a curto e médio prazo, a elevação social dos status de amplas camadas sociais; a longo, a construção revolucionária, mas por que entrar pela janela, quando há a porta, não raro invadida pelo genócidio negro (fruto da colonização/escravização/capitalismo) ou pela violência contra a mulher (fruto da propriedade privada nas mãos do homem)? E é possível chegar a um objetivo histórico transformador tomando outro rumo sem a perspectiva desse objetivo? Em que medida as lutas fracionárias “identitárias” se acomodam a um arrivismo de mentalidade pequeno-burguesa e fazem com que a esquerda se distancie dos estratos da base da pirâmidade, cooptados então por formas direitistas e até fundamentalistas? Etc.

– Também há um consenso no marxismo, neste nosso tempo contemporâneo, de que não são a ecologia “pura”, o pós-modernismo, o individualismo metodológico, o desconstrucionismo e afins as alternativas superiores ao marxismo para perceber a realidade e propor radicalidade emancipadora (Michael Lowy, A Teoria da Revolução no Jovem Marx, São Paulo, Boitempo, 2012 [1997], p. 21-22), mas que eventuais lacunas e até insuficiências no marxismo podem ser corrigidas por um procedimento aberto do marxismo não apenas aos movimentos sociais “clássicos” dos operários e camponeses, mas também “dos novos como a ecologia, o feminismo, os movimentos em defesa dos direitos humanos ou pela libertação dos povos oprimidos, o apoio aos índios da América Latina, a Teologia da Libertação” (Ibidem, p. 22), desde que (acrescento eu) isso não se torne um ecletismo vago, difuso, como, no geral, ocorre, desde que possamos trazê-los, em suas específicas seções, para as lutas de classes reais, verdadeiro terreno da construção revolucionária totalizadora.

– Algumas questões frequentemente levantadas quando se encara o feminismo marxista, conforme veremos em várias autoras e militantes: as questões que tangem a relação entre desigualdade (ou diferença) dita “natural” (etnia/gênero) e desigualdade social, questões da dupla jornada na mulher, trabalho produtivo e improdutivo, donas de casa e proletárias, o valor na especificidade feminina, etc.

– Sobre a categoria gênero, veremos que trata-se de termo incontornável para toda marxista feminista, mas cabe aqui um preâmbulo: havendo desconsideração intencional ou inconsciente dos fenômenos estruturais como dialeticamente determinantes da superestrutura (teoria social básica no marxismo e da concepção materialista), a tendência da abordagem de gênero torna-se o chamado “identitarismo”, desvinculação da luta antissistema, cooptação, arrivismo, mero desejo de adequação, inclusão e ascensão, epifenomenologia, etc. Arrisco a dizer que todo “identitarismo” é fruto de uma defasagem teórica.

– Notamos que o capital, nas últimas décadas, tem incorporado LGBTTIQA+s e o movimento negro como backlash de maneira mais ou menos análoga ao que se iniciou na segunda onda do feminismo. O cenário torna-se ainda mais difícil quando há uma extrema-direitalha regressiva abertamente racista, homofóbica e misógina, em sua defesa ultrapassada, moribunda e decadente de família tradicional, porque, diante desse confronto, a crítica marxista radical não ganha capilaridade para agregar as fileiras “identitárias”, ávidas por serem aceitas e incluídas no sistema representativo, simbólico, econômico, ingressar no trabalho assalariado exploratório, a lutar contra o capital. Mas, ao menos do ponto de vista ideopolítico, não é difícil elaborar essa construção, se for mostrada a raiz do preconceito, tal como as marxistas feministas de peso já o fizeram e ainda o fazem, conforme veremos.

– Estendendo a reflexão à ética marxista lukacsiana, não há ética no modo de produção capitalista; no limite, resta uma moral bem estreita vinculada à reprodução de mercadorias e mão de obra pauperizada, enfim, não há possibilidade de “liberdade” ou plena emancipação no capitalismo, na ordem capitalista… Aqui, cai por terra mesmo todo reformismo, embora tenha sido a grande revolucionária Rosa Luxemburgo quem escreveu, com boa dose de realismo, que reformas (obviamente, reformas estruturais e não de arranjamento ou manutenção do capital) só fazem sentido no interior de uma estratégia que tem por norte uma revolução anticapitalista, comunista.

– Progressismo não é a mesma coisa que revolução. “Forças progressistas” não são necessariamente “forças revolucionárias”… Marx, no informe “Salário, Preço e Lucro”, diante de uma epidemia de greves por melhores salários e melhores jornadas de trabalho, caracteriza tais reivindicações como “divisas conservadoras” e defende a bandeira da abolição do trabalho assalariado (pela tomada do Estado e dos meios de produção a serem socializados a todos)…

– Na ampla construção do socialismo, vamos precisar de todo mundo; somente um reacionário vislumbraria um socialismo só de homens cis-heteronormativos ou só de brancos ou só de estadounidenses ou só de europeus etc. etc. etc… (Não faria sentido, já que o capital engloba e domina tudo e todos – o capital é totalizante, e assim deve ser o socialismo, inclusive em suas táticas e estratégias revolucionárias.) Por outro lado, abdicar das lutas de classes e centralizar uma especificidade é brigar entre si, pulverizar a luta e fazer o jogo do sistema vigente de classes. O objetivo principal do marxismo é destruir com o antagonismo de classes e a exploração de uma classe pela outra. Quando o assunto é “identitarismo” e luta da mulher, negros, LGBTTIQA+, etc., costumo lembrar que Marx e Engels mostraram, em A Ideologia Alemã e em outros textos, que a classe dominante, ao deter os meios de produção da sociedade (e, por conseguinte, diremos também os meios de comunicação), domina por tabela a ideologia dominante que se encontra na superestrutra dessa sociedade. Em nosso tempo histórico moderno, tal classe dominante é constituída pelos capitalistas (detentores dos meios de produção – fábricas, empresas, terras, matérias-primas, ferramentas, commodities, etc.) e proprietários fundiários (que detêm os terrenos onde estão os meios de produção). Eis o que chamamos de burguesia (cf. nota de Engels à edição do Manifesto Comunista de 1888). Ora, pode-se identificar uma burguesa mulher (vide Luiza Trajano, bilionária dona da rede de lojas Magazine Luiza), mas é exceção que confirma a regra: a (i)lógica é patriarcal, a burguesia é o homem, macho, heternormativo, branco, eurocêntrico ou estadounidense das cidades e, por deter os meios de produção e a ideologia dominante, acaba essa classe reproduzindo na sociedade todas as formas de violência, exploração e preconceitos aos que fogem do modelo majoritário, sexismo, LGBTfobia, racismo, etc. Esta explicação, ainda que ligeira (seria preciso incrementar apontamentos dialéticos, impossível agora), é fundamental para a solidariedade de classes dos despossuídos com todas suas diversidades em torno de uma emancipação estrutural anticapitalista, processos revolucionários, construção revolucionária.

Feminismo e Marxismo: autoras, autores e livros

Loreta Valadares (1943-2004), professora, militante na luta armada contra a ditadura, comunista, marxista cultivada, escreveu aquele que é, de longe, o texto mais combativo e inteligentes sobre feminismo e marxismo dos últimos tempos.

– A primeira referência a respeito de feminismo e marxismo que eu recomendo é o fervoroso texto de 10 páginas de Loreta Valadares (1943-2004), militante nos anos 1960 do Movimento Estudantil da Ação Popular (AP), quando o PCdoB não era PelegodoB (e tinha quadros realmente comunistas e revolucionários, ao invés de uma Manuela d’Ávila), bravamente participante da luta contra a ditadura militar, presa e torturada, o que lhe afetou a saúde para o resto da vida, posteriormente destacada professora de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, “A ‘controvérsia’ feminismo x marxismo” (Revista Princípios, N. 18, jun/jul/ago, 1990, páginas 44- 49), texto arguto, mas não sem uma boa dose de ferocidade militante. É muito bonito constatar a postura implacável de uma militante veterana, que não “virou a casaca” como tantas outras e outros, intrépida em sua luta, apesar dos pesares. Primeiramente, Valarades é taxativa: “É falsa a polêmica feminismo X marxismo”. Alguns apontamentos a se fazer a partir desse texto: (1) Ao contrário de muitas autoras feministas, Valadares entende que o materialismo histórico não se opõe ao feminismo enquanto concepção sobre a específica opressão da mulher na sociedade. Valadares denuncia os feminismos que pretendem que o marxismo negue a si mesmo, denuncia o ecletismo no socialismo, que sai do terreno da realidade e deixa de ser ciência. Escreve ela, combativa: “São as correntes feministas que se têm colocado em oposição ao materialismo histórico e à sua visão científica e metodológica das questões mais gerais da ciência social, sem cujo esclarecimento se torna impossível a explicação do desenvolvimento da vida social em seu conjunto. Consequentemente, fica-lhes difícil – se não impossível, dentro de sua visão estreita do problema específico – admitir o ponto de vista do materialismo histórica sobre a opressão da mulher e os caminhos de luta para sua emancipação; isto porque buscam a explicação sobre as origens e as formas de opressão da mulher fora das leis objetivas do desenvolvimento social e independente das causas últimas que originam as relações de dominação das sociedades antagônicas” (página 6). (2) Conhecedora da estrutura e da superestrutura, critica – citando as obras, e não de forma leviana – autoras feministas como Simone de Beauvoir, Juliet Michell e Schulamith Firestone, que viam no marxismo (mesmo em Marx e Engels) uma “redução” de tudo ao econômico e ao “homo aeconomicus”, e as ataca exemplarmente. Ela usa a obrigatória carta de Friedrich Engels a Joseph Bloch para afirmar que tais correntes feministas (na verdade, trata-se de um equívoco não só de certas feministas, mas geral) não compreenderam o marxismo, tomando-o como um economicismo vulgar. Acrescento que não falta apenas conhecimento da concepção materialista, mas da própria Dialética. (3) Não é errado concluir que, para Loreta Valadares, assim como para as mais brilhantes marxistas que veremos no decorrer desta antologia (limitada, mas incontornável), é através da própria luta anticapitalista, estrutural, classista e marxista que ocorrerá consequentemente a emancipação feminina, sem que se desconsidere os elementos específicos e próprios de tal emancipação.

– Aliás, o catatau de mais de 570 páginas Mulheres Na Luta Armada – Protagonismo Feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional), de Maria Cláudia Badan Ribeiro, recentemente lançado, pode jogar outras luzes à intersecção marxismo – feminismo, mesmo que, a priori, tenha um significado mais associado ao comunismo militante do que ao marxismo, e mais histórico do que teórico. Ora, qualquer lacuna nesses dois eixos podem ser resolvidos hoje a partir dos fatos expostos no livro. De qualquer forma, documenta sobre as próprias mulheres à extrema-esquerda inseridas numa orientação revolucionária. A ler.

– Jamais esquecer do caráter vanguardista, inovador e pioneiro do próprio Manifesto Comunista (1848) da Liga Comunista (que contava com a participação de mulheres militantes) e seu longo trecho a respeito da condição das mulheres, encaradas pela burguesia como meras reprodutoras da classe a ser perpetuada, enfim, mera propriedade do burguês. Havia, naquele momento, conforme o próprio Manifesto expõe, todo um planejamento comunista em torno da construção da “comunidade de mulheres” independentes para resolver a necessidade de eliminação da posição da mulher enquanto instrumento de produção, sendo essa uma das pautas na luta contra a sociedade burguesa.

Jenny, Lara e Eleanor com o pai Karl Marx; o parceiro Friedrich Engels logo atrás. Não é menor lembrar que as três filhas de Marx tiveram finais trágicos. O desejo de emancipação feminina chocou-se à realidade do status quo patriarcal.

–  Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, explicam que a opressão específica tem íntima relação como processo de surgimento de propriedade privada, transformando a própria mulher em propriedade do homem.

– É Engels, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1883), que coloca a gênese da opressão específica da mulher e seu processo de formação com o aparecimento da sociedade de classes, “com elas se entrelaçando e refletindo seu antagonismo e sua luta ao longo da história, nas diversas etapas e em diferentes formações econômico-sociais” (conforme explica Loreta Valadares em seu texto supracitado). É preciso notar, porém, que a análise engelsiana sobre a origem do patriarcado é muito criticada aqui e ali, não só por feministas. Mesmo entre marxistas é entendível que Engels, tendo se debruçado no que havia de mais novo à época naqueles finais do século 19 em matéria de antropologia e naquele que hoje é considerado um dos fundadores da antropologia moderna, isto é, Lewis Henry Morgan (que, em seu Ancient Society, divide a história humana em três estágios fundamentais de desenvolvimento social: selvageria, barbárie e civilização, cada um destes caracterizado por formas materiais distintas), muito citado em todo o livro de Engels, pode ter caído em alguns equívocos e limitações de Morgan, de acordo com a antropologia mais avançada.

– Não é menor lembrar que as três filhas de Marx tiveram finais trágicos. O desejo de emancipação feminina chocou-se à realidade do status quo patriarcal. Os primeiros homens marxistas, por sua vez, viram a derrota da revolução comunista e o recrudescimento de um novo tipo de capital. No fundo, na raiz, a luta era/é a mesma!

A Mulher e o Socialismo (1879), de August Babel, representa “a primeira produção teórica de particular importância para um enfoque marxista da questão feminina, justamente por sua grande difusão e abordagem específica do problema”.

– Permitam-me citar só mais um homem (muito citado pelas próprias mulheres, aliás), à guisa de contextualizar o tema feminista no marxismo. Embora encontremos trechos sobre a opressão das mulheres em Marx e Engels, é o livro A Mulher e o Socialismo (1879), de August Bebel, que representa “a primeira produção teórica de particular importância para um enfoque marxista da questão feminina, justamente por sua grande difusão e abordagem específica do problema” (tal como escreve, ipsis litteris, Joana El-Jaick Andrade em  artigo acadêmico sobre esse livro). Loreta Valadares, no texto primeiramente citado, afirma: “(…) A opressão específica da mulher caminha e se desenvolve “pari passu” com a opressão social, de classes, caracterizando, assim, a mulher como oprimida enquanto ser sexual e ser social (Bebel, in A Mulher e o Socialismo), com seus correspondentes reflexos e formas na superestrutura (…)”. Bebel via a necessidade de atrair as mulheres para o movimento e de difundir os princípios do socialismo para as amplas massas trabalhadoras. A obra é dividida em três partes: a situação das mulheres no passado (antes e depois do cristianismo), as condições das mulheres no presente e a projeção das transformações operadas dentro de uma futura sociedade socialista. O livro discute a construção da nova sociedade socialista e o livre exercício da sexualidade, o Programa Socialista e a igualdade entre os sexos, etc. Conforme Joana El-Jaick Andrade escreve (página 11): “A saída apontada por Bebel para a questão feminina, com vistas à “redenção e emancipação” de todas as mulheres, residiria na compreensão de seu verdadeiro lugar no movimento socialista e sua participação na(s) luta(s) de classes”.

Eleanor Marx.

Eleanor Marx (1855-1898), filha de Karl Marx e Jenny von Westphalen, militante, autora, tradutora, pioneira do feminismo socialista. Escreveu, com seu parceiro Edward Aveling, o tratado “A questão da mulher: de um ponto de vista socialista” (1886). Trata-se, segundo Luiz Bernardo Pericás (Professor do Departamento de História da USP), de um texto “que deveria figurar em importância ao lado de Reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels e de Um teto todo seu, de Virginia Woolf”. De acordo com Pericás, “Seu “feminismo” era bastante distinto daquele defendido pelo pensamento mainstream da segunda metade do século XIX. Ainda que muitas de suas amigas fossem sufragistas, a campanha pelo voto, na visão de Eleanor, mesmo que importante, seria um objetivo limitado. A reforma eleitoral para as senhoras de classe média dentro da sociedade capitalista não dava conta de resolver o debate social mais amplo, já que, segundo ela, “a dita questão do ‘direito das mulheres’… é uma ideia burguesa. Eu propus lidar com a Questão Sexual do ponto de vista da classe trabalhadora e do conflito de classe”. Ou seja, os direitos das mulheres e do proletariado eram parte da mesma luta.”

Nadezhda Krupskaya na juventude e com Vladimir Lênin. Ambos canalizaram o papel feminino decisivo na Revolução Soviética.

Nadejda Krupskaia (1859-1939) não foi apenas “esposa de Lênin”, porque desempenhou um papel destacado e próprio como pedagoga revolucionária; escreveu sobre  a construção de uma nova pedagogia socialista que nos interessa até hoje (a prova é que o livro encontra-se esgotado), tendo sido vice-ministra da Educação da União Soviética por mais de dez anos, responsável pela criação de um novo sistema educacional e pela construção de inúmeras bibliotecas no período soviético nos primeiros anos da Revolução. Mas não para aí. Tudo indica que foi Nadezhda quem escreveu o primeiro texto feminista significativo sobre a situação das mulheres na Rússia: o panfleto “A Mulher Trabalhadora” (para ler em inglês, clique aqui – no original em russo, aqui, inclusive com uma nota da própria autora relatando as circunstâncias clandestinas em que o texto foi escrito e divulgado em 1899 sob o pseudônimo Sablina e publicado dois anos depois através da imprensa clandestina Iskri, “Faísca” em russo). O texto foi banido, devido a sanguinária repressão czarista durante a Revolução de 1905. O próprio Lênin nunca ignorou uma das reivindicações mais importantes da Revolução Soviética, a das camponesas e mulheres trabalhadoras em busca de pão, paz e terra, tendo escrito em vários momentos a respeito, como se pode conferir neste texto explicativo aqui. A própria Nadejda escreveria, em 1933, o texto “A Emancipação da Mulher segundo Lênin“, dez anos após a morte do companheiro. Vale lembrar, por fim, de um volume brasileiro de 1956 intitulado O Socialismo e a Emancipação da Mulher com 14 textos significativos de Lênin sobre o trabalho na mulher da fábrica e na agricultura no regime capitalista, sobre o aborto, a classe operária e o neomalthusianismo, a luta contra a prostituição, o direito ao divórcio, discurso no Primeiro Congresso Pan-Russo das Operárias, a contribuição da mulher na construção do socialismo, as tarefas do movimento operário feminino na República dos Sovietes, a situação da mulher no poder soviético, divórcio diante da família, dois textos (em 1920 e em 1921) sobre o Dia Internacional da Mulher, além de um texto de 1920 por Clara Zetknin, “Lênin e o movimento feminino” (“o movimento feminino era para ele parte integrante e, em certas ocasiões, parte decisiva do movimento de massas. É desnecessário dizer que ele considerava a plena igualdade social da mulher como um princípio indiscutível do comunismo”).

Alexandra Kollontai (1872-1952) foi um dos principais nomes da participação feminina no bolchevismo. É, ainda hoje, considerada figura central do “feminismo marxista” (cf. Jinee Lokaneeta, “Alexandra Kollontai and Marxist Feminism”, de 2001, e Andrea Nye, Feminist Theory and the Philosophies of Man, capítulo 3, “A Community of Men: Marxism and Women”, seção “Marxist feminists: Zetkin, Kollontai, Goldman”). Militante ativa nos principais episódios do pré-revolução e mesmo nos anos subsequentes, estando no topo da vanguarda e do novo governo junto a Lênin e outros, tendo sido uma das lideranças do Genotdel (“Seção da Mulher”), o Departamento de Mulheres Trabalhadoras e Mulheres Camponeses criado em 1919 com o objetivo de melhorar as condições das mulheres e as atrair para a causa socialista. Sempre se opôs ao feminismo liberal burguês, que buscava objetivos políticos de sufrágio, mas não a elevação revolucionária da classe trabalhadora. É brilhante a sua posição a respeito do universal e do particular no feminismo em A Base Social da Questão da Mulher (1909), em que ela defende o seguinte: “O instinto de classe – o que quer que as feministas digam – sempre se mostra mais poderoso do que os nobres entusiasmos da política ‘acima da classe’. Enquanto as mulheres burguesas e suas ‘irmãs mais novas’ [proletárias] forem iguais em sua desigualdade, as primeiras podem, com total sinceridade, fazer grandes esforços para defender os interesses gerais das mulheres. Mas uma vez que a barreira é derrubada e as mulheres burguesas têm acesso à atividade política, as recentes defensoras dos ‘direitos de todas as mulheres’ tornam-se defensoras entusiastas dos privilégios de sua classe, satisfeitas em deixar as irmãs mais novas sem nenhum direito. Assim, quando as feministas falam com as mulheres trabalhadoras sobre a necessidade de uma luta comum para realizar alguns princípios das ‘mulheres em geral’, as mulheres da classe trabalhadora ficam naturalmente desconfiadas.” Argumentava que, mesmo adentrando no trabalho assalariado, as mulheres ainda se mantinham na função reprodutora da família. Defendeu, portanto, a socialização do trabalho reprodutivo para acabar com a exploração do trabalho doméstico e a exploração dos homens neste papel. Assim, teve papel de liderança nos debates que criticavam o modelo estabelecido de família. É conhecida por sua defesa arrojada – mantida por toda a vida – do amor livre e do amor camaradagem, expressão última da solidariedade de classe (ler a edição pela editora Expressão Popular, A Nova Mulher e a Moral Sexual). Quando o regime fechou, quase foi expulsa do partido, mas acabou indo exercer funções diplomáticas no exterior. Escreveu “Base social da questão feminina” (1908), “Sociedade e maternidade” (?), “A nova mulher” (1918), “A moral sexual” (1921), Amor Livre (1932), Comunismo e Família (1970), A Autobiografia de uma Comunista Mulher Emancipada Sexualmente (1971), Relações Sexuais e Lutas de Classes: Amor e a Nova Moralidade (1972), A luta das mulheres trabalhadoras por seus direitos (1973), entre outros.

Alexandra Kollontai no Conselho de Comissários do Povo no Palácio Smolny – Governo da Rússia liderado por Lênin, 1918. Da esquerda para a direita: Isaac Steinberg, Ivan Stepanov, Boris Kamkov, Vladimir Bonch-Bruyevich, Trutovsky, Alexandre Shiliapnikov, Prosh Percevish Proshyan, Lênin, Joseph Stálin, Alexandra Kollontai, Pavel Dybenko, Koksharova, Nikolai Podvoiski, Nikolei Gorbunov, V. I. Nevski,Aleksander Shotman, Gergoy Chicherin.

 

Clara Zetkin, Alexandra Kollontai e outras no III Congresso da Internacional Comunista, 1921.
VIII Congresso da Internacional Socialista, Copenhagen, 1910. Ao centro, Alexandra Kollontai e Clara Zetkin. Atrás delas, Rosa Luxemburgo.
Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo, duas importantes revolucionárias, a caminho do Congresso do SPD. Magdeburg, 1910.

Clara Zetkin (1857-1933) foi uma das primeiras agitadoras e propagandistas do feminismo socialista, tendo levado o feminismo ao topo da agenda política no primeiro congresso da Segunda Internacional, e demonstrou que o fundamento do feminismo sendo a emancipação das mulheres encontra um limite estrutural: o capitalismo (quem valida tal afirmação histórica é a professora Mirla Cisne em “Feminismo e marxismo: apontamentos teórico-políticos para o enfrentamento das desigualdades sociais“, Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 211-230, maio/ago. 2018, página 220). Em 1889, Clara Zetkin profere a conferência “Pela libertação das mulheres”, considerada a primeira declaração política da classe trabalhadora europeia sobre a questão da mulher (Ana Isabel Álvarez González, As origens e a comemoração do Dia Internacional das Mulheres, São Paulo: SOF/Expressão Popular, 2010, página 61), em que declarou: “As mulheres operárias estão totalmente convencidas de que a questão da emancipação das mulheres não é uma questão isolada. Sabem claramente que esta questão na sociedade atual não pode ser resolvida sem uma transformação básica da sociedade […]. A emancipação das mulheres, assim como de toda a humanidade, só ocorrerá no marco da emancipação do trabalho do capital. Só em uma sociedade socialista as mulheres, assim como os trabalhadores, alcançarão os seus plenos direitos” (ibidem).

– A grande revolucionária Rosa Luxemburgo (1871-1919), ao que se sabe, nunca se definiu como “feminista” e, isto é certo, já que tinha relações próximas com Clara Zetkin e outras da luta comunista, nunca endossou o feminismo liberal de sua época, mas escreveu sobre a condição feminina na sociedade de classes e sobre (e para) a mulher trabalhadora. Presa pelas forças reacionárias, assassinada pela extrema-direita que depois se associaria ao nazismo, são de Rosa Luxemburgo alguns dos postulados mais influentes e algumas das frases mais potentes, memoráveis e contundentes de todo o marxismo, como podemos constatar em Reforma ou Revolução?, “O que quer a Liga Espartaquista?” e no lema de seu grupo revolucionário, “Socialismo ou barbárie!”; para o nosso tema, é sua uma das frases mais fortes dessa intersecção, já em 1902, em “Uma questão tática”: “A emancipação política das mulheres teria que fazer soprar um forte vento fresco inclusive na vida política e espiritual [da social-democracia], que eliminasse o fedor da hipócrita vida familiar atual que, de modo inequívoco, permeia também os membros de nosso partido, tanto trabalhadores como dirigentes”. Dois são os textos de destaques de Luxemburgo sobre a emancipação das mulheres no bojo da revolução comunista e do marxismo: o ainda pertinente “O sufrágio das mulheres e as lutas de classes”, de 1912, e o belíssimo “A Proletária“, de 1914. Neste segundo, em ocasião do Dia Internacional da Mulher (ou melhor, “Dia da Proletária”, segundo Rosa), a “proletária assalariada moderna” é alçada como protagonista da classe trabalhadora. É um toque simbólico e concreto feminino à imagética do proletariado tantas vezes masculinizado (mas não sem razão, inclusive estatística). Rosa contrapõe a defesa burguesa por direitos políticos pelas mulheres (pauta única do chamado “feminismo liberal” e das sufragetes) com o poder efetivo a ser conquistado pela mulher proletária e, se a vida parlamentar nega a participação feminina, o partido revolucionário abre as portas para as mulheres e trabalhadores, onde encontram ali “um campo incalculável de trabalho político e poder político”, etc. Termina esse texto com fortes palavras de ordem: “Proletária, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. (…) Corra para o front, para a trincheira!” Não há dúvidas de que, para Rosa, já no Partido Social-Democrata Alemão, com todas suas querelas internas até o revisionismo crasso, venal, “vira casaca”, como depois na sua Liga Espartaquista (com Karl Liebknecht, Clara Zetkin, Franz Mehring e outros) e no Partido Comunista, o ponto central era a revolução pela classe trabalhadora, mas, ao saber das especificidades da mulher dentro de tal classe, ela defendia, nos títulos citados e também em cartas para Clara Zetkin e Sonia Liebknecht, seções de mulheres em áreas intelectuais, jornalísticas, partidárias, enfim, na luta prática. Rosa Luxemburgo, diga-se de passagem, sempre foi calcada na teoria marxiana e criticava desvios e revisionismos! A prova disso foi a grande querela com o oportunista Eduard Bernstein… Comprometida com a teoria marxiana, em “O sufrágio das mulheres e as lutas de classes”, escreve pontos econômico-teóricos relevantes para os debates correntes entre as feministas de hoje: “Apenas é produtivo aquele trabalho que produz mais-valia e rende lucro capitalista – enquanto o domínio do sistema de capital e de salário se mantiver. Deste ponto de vista, uma dançarina num café, que produz lucro para o seu patrão com as suas pernas, é uma mulher trabalhadora produtiva, enquanto que todas as tarefas das mulheres e mães do proletariado dentro das quatro paredes de casa é considerado trabalho improdutivo. Isto soa cru e louco, mas é a expressão precisa da crueza e da loucura da ordem econômica capitalista de hoje.” Veremos adiante como a brasileira Heleieth Saffioti amplifica a crítica da exploração da mulher para abranger a dupla jornada (trabalho doméstico e produtivo), o que a faz desconsiderar a mais-valia; mas certamente Rosa, mulher de costumes pioneiros, vanguardistas e destoantes para sua época, jamais diria que o trabalho doméstico não é exploratório, apenas diferencia ambos a partir da observação da estrutura… Nancy Holmstrom, professora de Filosofia, editora do The Socialist Feminist Project (Monthly Review Press, antiga revista socialista de Nova Iorque) e co-autora de Capitalism For and Against: A Feminist Debate (Cambridge University Press), entre vários outros artigos e livros, explica o trecho rosaluxemburguiano em “Rosa Luxemburgo: um legado para as feministas?“: “Usei esta citação mais do que uma vez para clarificar o sentido do trabalho (im)produtivo no capitalismo e para distinguir opressão de exploração capitalista. Algumas feministas ficam muito ofendidas pela posição marxista de que o trabalho doméstico é trabalho improdutivo e algumas defendem “salários para o trabalho doméstico”. Mas tal como a citação de Luxemburgo torna claro, designar o trabalho doméstico como improdutivo dificilmente é um insulto, nem é sexista. Um carpinteiro que trabalhe para o governo é igualmente improdutivo no sentido capitalista, apesar de ambos, obviamente – e muito importantemente – serem produtivos num sentido geral. É fundamental entender o que “produtivo” significa em termos capitalistas, especificamente, a produção de mais-valia, porque isto é o que faz o sistema capitalista funcionar.” Rosa discute, naquele texto, o trabalho produtivo e improdutivo, o trabalho operário e doméstico, e denuncia a exploração capitalista do trabalho de homens e mulheres – “milhões de mulheres proletárias […] produzem lucro capitalista tal como os homens – em fábricas, oficinas, agricultura, indústrias domésticas, escritórios e lojas”, escreveu ela. “Proletária, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. (…) Corra para o front, para a trincheira!” 

Rosa Luxemburgo discursa para uma multidão na 2ª Internacional, em 1907, na cidade de Sttugart, Alemanha. Foto: ullstein bild Dtl. / ullstein bild via Getty Images.
Comício comunista em Santos para reivindicações e em homenagem aos operários Sacco e Vanzetti, executados na cadeira elétrica nos EUA quatro anos antes. A repressão dos cães da burguesia assassinou o manifestante Herculano de Sousa e prendeu as comunistas Guiomar Gonçalves (à esquerda – gostaria de mais informações sobre ela!) e Patrícia Galvão (à direita na imagem, mas não na vida). Diário de S. Paulo, edição de 25 de agosto de 1931: sério conflito.
Patrícia Galvão, a Pagu, em apresentação mais digna do que no jornal: crítica ferrenha do feminismo liberal e pequeno-burguês, aliada das mulheres trabalhadoras.

Até onde e até quando pode e deve um(a) artist@ e intelectual, mesmo sem desenvolver teoria, lutar e envolver-se na prática da transformação da sociedade? Patrícia Galvão (1910-1962), mais conhecida como Pagu, foi uma força da natureza; escritora que estreou aos 18 anos na Revista Antropófaga, militante comunista do PCB (das primeiras presas políticas do Brasil, presa duas dezenas de vezes, torturada durante a ditadura Vargas após uma greve dos estivadores na minha Santos, onde, aliás, ela irá morar no fim da vida e onde foi encarcerada na Cadeia Velha De Santos, que hoje se chama Oficina Cultural Pagu), incansável tentadora da revolução brasileira, rompida com o Partido Comunista (que a abandonou e a obrigou a assinar uma retratação em que se apresentava como “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”) em 1940 após exílio e acerto de contas com todo o seu passado, poeta, crítica dos costumes, intimamente próxima dos modernistas de 22 (“nem Anita nem Tarsila eram escritoras, nenhuma assumiu até o fim ideias tão radicais e renovadoras, nenhuma correu os riscos e sofreu o que sofreu por elas, nenhuma defendeu com tanto ardor a arte de vanguarda, nenhuma se pode comparar, em termos de atuação ética e estética, com ela”, conta Augusto de Campos), agitadora cultural, jornalista, desenhista, tradutora, etc. Em 1931, com o companheiro Oswaldo de Andrade (1890-1954), funda o pasquim O Homem do Povo, “um jornal com características agressivas e despudoradas, com fortes nuances ideológicos da esquerda marxista” ( Anselmo Peres Alós, Parque Industrial: influxos feministas no romance proletário de Patrícia Galvão”, Caligrama: Revista de Estudos Românicos, v. 15, n. 1, 2010, p. 188). As provocações de Oswald contra o atraso geral e o temperamento revolucionário de Pagu produziam uma alquimia sem precedentes na política e na cultura brasileiras, e deve-se sublinhar que ela era absolutamente independente e original. Desenhava charges satíricas e possuía uma coluna fixa intitulada “A Mulher do Povo”, em que criticava o feminismo pequeno-burguês e os valores elitistas das mulheres paulistas (que reproduziam, não sem o provincianismo da época e de capitalismo periférico, o movimento de mulheres sufragistas da Inglaterra do início do século XX). Alguns desses textos estão preservados ainda hoje. Em 1933, Pagu lança o importante Parque Industrial, primeiro romance proletário do país, sob o pseudônimo (exigência do Partido) Mara Lobo, obra de nítida inspiração marxista com influxos feministas que retrata a condição das mulheres proletárias numa São Paulo a se industrializar freneticamente. Ou seja, no panorama literário regionalista de 30 (lembremos de O Quinze, de Raquel de Queiroz, que retrata a seca, ou Menino de Engenho, de José Lins do Rego), Pagu apresenta um Brasil urbano, isto é, mais desenvolvido material e ideologicamente, portanto mais condizente com o anticapitalismo do marxismo; eis outro fato que destaca esse romance. Mas não para aí: a obra conjuga o problema da opressão ao proletariado às reivindicações das mulheres, superando o feminismo da época. Também neste romance já há críticas ao feminismo pequeno-burguês, complacente à estrutura social do capital. No entanto, é interessante que Pagu não dirige sua crítica ao movimento sufragista em si, mas principalmente à despreocupação de tal movimento a questões estruturais e mais amplas, como a condição da mulher proletária e até das mulheres negras (Ibidem). No primeiro caso, a obra encontra associação com o pensamento teórico-prático das comunistas de todo o mundo, inclusive as supracitadas. No segundo aspecto, o enfoque antecipa uma luta ainda hoje continuada e candente – antecipou, focando sua narrativa na realidade das mulheres proletárias, pertencimentos identitários superpostos que feministas particularmente lésbicas e negras levantaram nos EUA a partir das décadas de 1970 e 1980. O convívio de Pagu com operários, a partir de 1931, quando se filiou ao PCB, lhe fez concretizar, no romance, um projeto modernista por excelência: pululam em sua escritura elementos da linguagem coloquial, cotidiana, até mesmo considerada “grosseira”; o texto apenas é prejudicado (anacrônico) por jargão e estereótipos da época (Ibidem, p. 193). “(…) saem para o almoço das onze e meia. Desembrulham depressa os embrulhos. Pão com carne e banana. Algumas esfarelam na boca um ovo duro.” É nos intervalos do tear, quando se consegue mais tempo para conversar, que Rosinha Lituana, operária de aguda consciência de classe, militante do Partido Comunista, dissemina as ideias entre os colegas. Rosinha e Otávia são comprometidas com a revolução e o movimento proletário; Corina é aprendiz de costureira, jovem e miscigenada que acaba engravidando e caindo na prostituição após falsa promessa de casamento, terminando na prisão. Alfredo é o único personagem masculino da narrativa a se comprometer com o ideário revolucionário. “Acorda com o alvoroço de mulheres entrando. São as emancipadas, as intelectuais e as feministas que a burguesia de São Paulo produz.” E segue um diálogo das feministas liberais sobre futilidades: cosméticos, coiffeur, tailleur, namorados, criada que é demitida por se atrasar e esfriar demais o banho da patroa, etc. “- O voto para as mulheres está consequido! É um triunfo!/- E as operárias?/- Essas são analfabetas. Excluídas por natureza.” A acidez faz com que a “denúncia” de Pagu do preconceito presente entre as próprias feministas não caia em panfletagem barata (no máximo, o livro é uma panfletagem arguta, mesmo se considerada “maniqueísta” – trata-se de um retrato cru das lutas de classes!) ou numa crítica simplista, mas, ao invés, continua contundente. Nota-se a influência que Rosa Luxemburgo (“uma militante proletária alemã, que a política matou porque ela atacava a burguesia”) exercia em Patrícia Galvão, já que um dos capítulos do romance é intitulado “Em que se fala de Rosa Luxemburgo”… “- (…) a burguesia é a mesma em toda parte. Em toda parte, manda a polícia matar os operários…/(…) – Matam os operários, mas o proletariado não morre!” Destaca-se, ainda, como a sexualidade dos personagens é retratada e, nesse particular, mesmo sendo obra comunista crítica a uma determinada matriz específica do feminismo, não deixa de tocar em pontos de especificidade feminina: passado no bairro operário do Brás – “Brás do Brasil, Brás de todo o mundo” – , o romance expõe erotismo e sexismo na sociedade capitalista, e denuncia a objetificação das mulheres operárias “reduzidas a objeto de desejo, de reprodução e mão de obra barata pela sociedade capitalista e patriarcal” (Ibidem, páginas 191 e 192). Hoje, entende-se que, “(…) criticando a sociedade burguesa, de um ângulo socialista, [Pagu] é levada a ferroar a aristocracia paulista, ferindo velhos círculos sociais frequentados pelos modernistas de 22. Concentrando-se nas mulheres operárias e lumpemproletáarias, satiriza o feminismo burguês, acompanha moças pobres seduzidas com promessas casamenteiras por conquistadores ricos, seguindo particularmente a trajetória de Corina rumo à prostituição” (Antônio Risério, “Pagu: vida-obra, obravida, vida”, em Augusto de Campos, Pagu: Vida-Obra, São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 21). Assinale-se mais uma vez o caráter vanguardista e pioneiro dessa situação (que encontra paralelo com Raquel de Queiroz, guardadas as enormes diferenças): um romance escrito por uma (jovem) mulher brasileira na década de 30; mais: o primeiro romance realmente engajado escrito por uma mulher na década de 30. Em 1945, de volta ao Brasil após um périplo pelo exterior (vale lembrar das viagens que fez com Tarsila do Amaral e outros vanguardistas décadas antes), ela publica outro romance, em parceria com seu novo companheiro, o jornalista Geraldo Ferraz: A Famosa Revista é importante narrativa ficcional antisstalinista de estilo livre em poesia e prosa que recusa a narrativa tradicional e atua num experimentalismo bastante distinto daquele empreendido dois anos antes pelo livro de estreia de Clarice Lispector – e sem o seu demasiado subjetivismo. É de se questionar por que Pagu acabou sendo relegada dentro dos estudos de literatura brasileira. Talvez tenha sido essa posição marginália que fez com que outro underrated da cena cultural brasileira, o exímio poeta e transtradutor Augusto de Campos, se aproximasse da figura/personagem de Pagu para lançar Pagu Vida-Obra na década de 1980, volume obrigatório, porque a aprofundou (até então, era evocada superficialmente como aquela que teria acabado com o casamento de Oswald e Tarsila), unindo antologia e perfil biográfico: “luminosa agente subversiva de nossa modernidade”, diz a abertura de uma nova edição depois de anos fora do catálogo. Em Santos, onde passou seus anos finais, um pouco mais tranquilos (tudo mudou após a burocracia da URSS, após a Segunda Guerra Mundial, após o período “democrático” do Brasil entre duas ditaduras), continuou sendo jornalista e foi tradutora e agitadora cultural, uma espécie de “mestra”, tendo estimulado e propiciado a carreira teatral do dramaturgo Plínio Marcos, o mais pungente retratista dramatúrgico das nossas mazelas sociais. (Por fim, só mais alguns adendos. O prontuário de Pagu nas dependências da extinta “Ordem Social” e no Deops é extenso, cobrindo duas décadas de atividade, de 1931 a 1950 – “mais de 200 páginas, cheias de interrogatórios, relatos, fotos e textos do próprio punho da escritora”. Ela era considerada comunista de “alta periculosidade”. Pois bem. Vale mencionar, para coroar a intensa participação de Pagu na construção revolucionária brasileira, que sua última prisão foi no auge dos 40 anos de idade, em setembro de 1950: presa em flagrante no centro de São Paulo, quando escrevia “no chão, com tinta branca, lavável, dizeres referentes à propaganda do Partido Socialista Brasileiro”. Ela escreveu: “Contra os imperialismos russo e americano”. Não precisou desenvolver teoria; ela era a própria teoria em carne e osso e em prática.)

“Pagu indignada no palanque”.
A brasileira Heleieth Saffioti (1934-2010) lega uma enorme contribuição ao marxismo no Brasil e à situação específica das mulheres.

– A brasileira Heleieth Saffioti (1934-2010), pioneira da intersecção entre marxismo e feminismo no Brasil, tendo sido orientada em sociologia pelo grande Florestan Fernandes, marxista cultivado, escreveu textos importantes sobre a condição e opressão das mulheres no Brasil, isto é, no capitalismo periférico. É Saffioti quem irá escrever: “Rigorosamente, não existe um só feminismo, pois há diferenças de bandeiras levantadas, de ênfase posta numa ou noutra reinvindicação, de estratégias de luta. Tais distinções decorrem do enfoque político dado por cada grupo ou movimento feminista à questão feminina” (O Poder do Macho, São Paulo: Moderna, 1987, p. 93). Já em seu livro inaugural, A mulher na sociedade de classes: mito e realidade (escrito entre os anos de 1966-1967 e publicado pela primeira vez em 1969), Saffioti combina feminismo com marxismo (ou seja, parte da crítica da sociedade de classes para tratar especificadamente da mulher em tal sociedade a ser superada). Com este livro, em plena ditadura militar (mas antes do AI-5), ela não titubeia: o problema da mulher não é fato isolado da sociedade, portanto para superar a opressão contra as mulheres é preciso destruir o regime capitalista e implantar o socialismo. Ainda que o capital seja maleável e permita mudanças progressistas, não apresenta nem apresentará plena integração social feminina, porque, conforme Saffioti mostra na obra, as características ditas naturais (sexo e raça) são mecanismos em desvantagem no processo competitivo e tornam-se coniventes para a conservação da estrutura de classes (Editora Vozes, 1976, p. 30). O livro não deixa de tratar especificadamente sobre a condição da mulher em tal sociedade de classes. Nos parece também fundamental que, muitas décadas depois, ela tenha destoado da abordagem comum (quiçá dominante) no feminismo de tratar o gênero como central: em seu Gênero, Patriarcado, Violência (2004), a marxista faz forte crítica dos usos da categoria gênero. Saffioti reivindica a importância da categoria “patriarcado” em detrimento de “gênero” ou, ao menos, alerta contra a utilização exclusivista do último. Associa o patriarcado a uma articulação da industrialização do capitalismo. Argumenta que o “gênero”, enquanto categoria central, mesmo sendo útil, até mais rico e vasto, serviria justamente por isso para maquiar o patriarcado. Saffioti parece bastante crítica a certos autores e autores feministas contemporâneos, sobretudo dos EUA. O antropólogo cultural conhecido como ativista e teórico da política de sexo e gênero Gayle Rubin (1949-), segundo ela, teria se utilizado do “gênero” de maneira neutra, sendo que, para Saffioti, e isto certamente deve-se à sua influência marxiana e marxista, o “gênero” “carrega uma dose apreciável de ideologia”: a ideologia patriarcal, que cobre uma estrutura de poder desigual entre mulher e homens, inclusive – eis uma das argumentações mais polêmicas do livro – a partir do exclusivismo da categoria “gênero”, que não ataca o coração da engrenagem da exploração-dominação, mas ao contrário, a alimenta. É uma perspectiva convincente. Retoma Joan Scott (1941-), cujo trabalho é identificado com a história das mulheres a partir da perspectiva de gênero, para apresentar as relações de gênero imbricadas a relações de poder hierarquizantes ao longo da história, mas identifica que Scott não faz ressalvas à concepção foucaultiana de poder – uma noção pós-moderna de “poder” dissolvido na sociedade -, o que compromete um projeto de transformação social. Aqui, novamente temos uma explícita influência marxista. Saffioti, que teve formação marxista, sabia dos vícios pós-modernos e que os tais “micropoderes”, se é que existem, só sobrevivem a partir da estrutura que os reproduz. Dessa forma, não parece que ela se distancie de Rosa Luxemburgo ao abranger a exploração da mulher tanto no caso do trabalho doméstico quanto no caso do trabalho assalariado, ainda que, ao tomar tal postura, acabe por omitir a exploração material da expropriação de mais-valia em O Poder do Macho (ibidem, p. 51): “(…) Tanto a dona-de-casa, que deve trazer a residência segundo o gosto do marido, quanto a trabalhadora assalariada, que acumula duas jornadas de trabalho, são objeto da exploração do homem, no plano da família”. Detalhe para esse final, “no plano da família”, ou seja, num elemento superestrutural. Saffioti, no mesmo texto, apresenta um entendimento coerente do preconceito na sociedade de classes: “o conceito pressupõe a utilização de um instrumental teórico que permita o entendimento do fenômeno, o pré-conceito nasce do jogo de interesses presente na vida social da defesa de privilégios, da correlação de forças político-sociais” (Ibidem, p. 28). A respeito da relação entre natureza e concepção materialista da história, afirma Saffioti (Ibidem, p. 10): “A identidade social é, portanto, socialmente construída. Se, diferentemente das mulheres de certas tribos indígenas brasileiras, a mulher moderna tem seus filhos geralmente em hospitais, e observa determinadas proibições, é porque a sociedade brasileira de hoje construiu desta forma a maternidade. Assim, esta função natural sofreu uma elaboração social, como aliás, ocorre com todos os fenômenos naturais. Até mesmo o metabolismo das pessoas é socialmente condicionado”. Em Rearticulando Gênero e Classe Social (in: Uma Questão de Gênero, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 192 e 194), repõe no mesmo plano como sistema de dominação-exploração base e superestrutura. Para a autora (Ibidem, p. 186), “A formação da identidade de gênero é um exemplo de produção no reino do sistema sexual. E um sistema de sexo/gênero envolve mais do que ‘as relações de procriação, reprodução no sentido biológico”, ou, noutros termos, as identidades de gênero e as sexualidades são construções sociais, nas quais não se parte do nada, mas de condições materiais, uma vez que “o vetor direciona-se, ao contrário, do social para os indivíduos que nascem. Tais indivíduos são transformados, através das relações de gênero, em homens ou mulheres” (Ibidem, p. 187). Saffioti entende que a acumulação e centralização no modo de produção capitalista são base material para a realização das contradições e antagonismos nas quais operam o sistema sexual: “[…] a contradição entre as categorias de gênero nem é a única, nem opera autonomamente” (Ibidem, p. 199).

Sartre e Simone de Beauvoir em protesto: ela segura uma edição do Cause du Peuple (“Causa do Povo”), jornal da esquerda proletária criado durante o Maio de 68, ativo até 1972 e novamente ativo de 1973 a 1978. Note a foice e o martelo.
Simone de Beauvoir e Sartre socializaram com o Che e Fidel Castro. No âmbito do marxismo, precisam ser filtrados.

– Após a crítica demolidora de Loreta Valadares, já supracitada, resta-nos ainda falar em Simone de Beauvoir? Ela combatia o preconceito de que as mulheres não podiam se apresentar como filósofas, refletiu a condição histórica da mulher e a construção social do machismo. Ainda assim, em O Segundo Sexo, a autora demonstra uma incompreensão do materialismo e da estrutura e superestrutura, enfim, do marxismo, caindo no equívoco comum de tomar o marxismo como um economicismo vulgar que não serviria às discussões feministas, e que o “homo aeconomicus” marxista seria limitado ou até mesmo não serviria aos estudos feministas, algo já refutado por Valadares e muitas outras, e veremos, em outras autoras contemporâneas (embora uma Rosa Luxemburgo jamais tenha abdicado da questão da mais-valia, conforme vimos acima), que o próprio fator econômico na forma de valor encontra forte respaldo na crítica do marxismo feminina (Roswitha Scholz?). Ou seja, a própria obra O Segundo Sexo teria encontrado um grande filão se contribuísse para as questões do patriarcado (lembrar de Saffioti ou mesmo Eleanor Burke Leacock, que veremos adiante) enquanto produto da estrutura e produtor de mercadorias. É Roswitha Scholz, marxista feminista da qual veremos mais adiante, que escreve em seu “Simone de Beauvoir Hoje” (2011) que, enquanto a filosofia existencialista de Heidegger expressava “o sentimento básico da população de classe média nacional-socialista” (ou nazista), “De Beauvoir, pelo contrário, inclui também ideias marxistas na sua teoria. Isso, no entanto, não tanto em relação às causas sócioeconômicas da opressão das mulheres, mas sim, como é usual numa visão existencialista-fenomenológica, com uma intenção mais descritiva, a fim de determinar O Segundo Sexo com fundamento em primeiro lugar existencialista.” Bem, a base é o existencialismo urdido em parceria com Sartre – seu companheiro intelectual e com quem teve encontros memoráveis com o Che e com Fidel (lembrar que a Cuba revolucionária deu garantias do aborto às mulheres, por exemplo). Sartre foi figura mais ou menos cosmopolita, engajada e de renome mundial que afirmou em Crítica da Razão Dialética que o Marxismo “permanece como a filosofia insuperável do nosso tempo. Não conseguimos ir além dele.”, ainda que ele próprio  tenha incorrido em alguns equívocos esquemáticos e no dualismo (ao invés da dialética) sujeito-objetivo, mas isso é assunto para outro texto… Pois bem! Estamos, então, diante de autores que precisam de filtro aqui e ali. Nesse sentido, há um texto pouco referido de Beauvoir, intitulado “O Pensamento de Direita, Hoje” (ensaio de 1954, publicado em livro no Brasil em 1967 – período oportuno, diga-se de passagem – pela Editora Paz e Terra). Podemos dizer que, nesta obra, Simone de Beauvoir, em defesa da ciência, inscreve-se entre as críticas pioneiras do pós-modernismo – embora em seu tempo não se falasse nisso com a insistência de hoje. Tal crítica só pode ter derivado do marxismo, que é moderno por excelência. Antes do A Destruição da Razão de Lukács (embora no mesmo Zeitgeist de pós-nazismo) e de maneira corajosa para uma autora mulher, Simone de Beauvoir, ainda que não de maneira mais aprofundada e erudita, já identificava o irracionalismo de Oswald Spengler, Martin Heidegger, Arnold Toynbee, Karl Jaspers e outros… Mas os temas mais pertinentes giram em torno de um ataque à burguesia e ao pensamento da direita – que vão do anticomunismo crasso, ao subjetivismo, misticismo, individualismo, elitismo, rejeição da ciência, características vulgares que formam o pensamento reacionário. Em “O pensamento de direita, hoje”, ela criticou “os teórico burgueses que professam um subjetivismo psicofisiológico: as ideias refletem não o objeto pensado, mas a mentalidade do sujeito pensante”. Ora, essa elaboração crítica certamente é uma herança marxista. Ela ainda desmascara a “naturalização da História”: “A natureza é um dos grandes ídolos da direita. Ela surge como antítese da história e da práxis. Contra a história a natureza nos oferece uma imagem cíclica do tempo; vimos que o símbolo da roda elimina a ideia de progresso e favorece a sabedoria quietista. O retorno indefinido das estações, dos dias e das noites encarna concretamente a grande roda cósmica. A evidente repetição dos invernos e dos verões torna [para a direita] irrisória a ideia de revolução e manifesta o eterno.” Como podemos constatar, Simone de Beauvoir está ao lado da revolução socialista.

“Vote comunista”. Ângela Davis discursa no Partido Comunista dos EUA, nos anos 1960; marxista e comunista convicta, teve ojeriza do feminismo até perceber que o problema estava no feminismo pequeno-burguês e liberal, meramente arrivista, ou seja, que deseja se integrar ao sistema capitalista, e não revolucionário.
“Sim, eu sou comunista e considero isso uma das maiores honras, porque estamos lutando pela libertação total da raça humana.” – Ângela Davis em Uma Autobiografia.

Ângela Davis (1944-) contou recentemente que, após a publicação de seu famoso livro Mulheres, Raça e Classe (1981), todos passaram a chamá-la de feminista, ao que ela respondia: “Eu não sou feminista, eu sou uma revolucionária negra”, até se dar conta que sua ojeriza referia-se a um certo tipo específico de feminismo, “o feminismo infelizmente mais representativo”, de acordo com ela: o feminismo “branco”, burguês ou pequeno-burguês, o feminismo liberal, etc. Assim, é autora que nos importa, porque, diante de pautas ditas “identitárias” que segregam a luta ou buscam ascensão arrivista no sistema capitalista exploratório, Davis, por ser autoproclamada comunista, sabe que não se privilegia raça e gênero em detrimento da classe, mas que é nas interseções entre as três categorias que podemos encontrar o potencial revolucionário. (Noutras palavras, permitam-me um exemplo relevante ao nosso panorama atual, ainda que tosco: há parcelas “identitárias” da esquerda brasileira que, por falta de teoria revolucionária de certos partidos ou por desejo arrivista, batem palmas para uma Maju Coutinho, jornalista negra e mulher, pela primeira vez em posição de maior destaque na Rede Globo, sendo que esse “liberalismo” escamoteia não apenas a relação capitalista exploratória entre patrão e empregado, como também o fato de que tal representatividade efêmera – e reduzida – está nas mãos do capitalista, sempre macho, heteronormativo e branco, no caso, os Marinho e seus chefes executivos, propagadores dum “jornalismo” “neoliberal” e privatista financiado por banqueiros e grandes empresas, portanto racista – aliás, o diretor de jornalismo da emissora, Ali Kamel, é autor de um dos livros mais infames deste país, Não Somos Racistas. Uma Reação aos que Querem nos Transformar Numa Nação Bicolor.) Portanto, cabe tomar cuidado com o prefácio de Djamila Ribeiro na recente edição da Boitempo para Mulheres, Raça e Classe, que lastimavelmente desvia a centralidade da categoria trabalho para a questão racial (questão facilmente cooptável, quando solitária, conforme o exemplo já mencionado), sendo que Davis segue no miolo de sua obra o caminho contrário, muito mais revolucionário e coerente: percebe de que modo o capital instrumentaliza o racismo e o sexismo para nos colocar uns contra os outros e perder de vista a centralidade do trabalho e o nosso inimigo comum, a burguesia. Tomando o livro de Davis dessa forma, temos um primor da luta marxista contra o capitalismo, um apelo de unificação entre todos os grupos subalternizados que devem eles mesmos ultrapassarem o racismo e o sexismo para pôr foco na luta contra o capitalismo global, que forma, mantém e gera o racismo e o machismo. (Numa minúscula resenha mais ou menos “diplomática” intitulada “O Marxismo de Ângela Davis“, Silvio Almeida, destacado intelectual negro brasileiro contemporâneo, escreve: “a importância de Mulheres, raça e classe transcende as perspectivas teóricas ou práticas de grupos específicos e se mostra relevante para o marxismo enquanto “método” ou “ciência da história”. Davis nos lembra que o marxismo tem como prioridade o movimento do real da materialidade histórica, e por isso o conceito de classe deve ser “elevado” em direção ao concreto. Classes são formadas por indivíduos, cujas relações são determinadas pela lógica capitalista da produção e pelas formas históricas de classificação racial ou sexual. Atentar para a forma adquirida pelo racismo e pelo sexismo no interior do capitalismo permite ao marxismo não ser engolfado pelo idealismo ou por esquemas mecânicos que inviabilizam uma concepção verdadeiramente científica da sociedade. Trata-se, portanto, de ponto de partida para o desafio de responder à questão se a relação entre capitalismo, racismo e sexismo se explica por fatores históricos (nunca houve capitalismo sem racismo e sexismo) ou lógicos (não há capitalismo sem racismo e sexismo).” É importante, enfim, que a ontologia marxista do ser social (para lembrarmos Lukács) não se confunda com o cientificismo academicista e que não se opere nem se desvie a centralidade do trabalho para explicar a racionalidade do capital ou a substitua pela “centralidade da questão racial”, para que a problemática negação da “não hierarquização das opressões” se resvale, necessariamente, no relativismo, pois essa concepção é fruto de uma vertente “marxista” fácil de ser cooptada pelas próprias formas mercadológicas que Almeida identifica e denuncia, é uma vertente que teme a radicalidade do pensamento marxiano, sintetizado na revolução. Não será possível remontar, nos objetivos deste curto espaço, detalhes sobre a questão, mas basta dizer que o machismo se sustenta a partir do fato da propriedade privada ser detida pelo homem heternormativo na sociedade de classes (e que a fileira que pretende superar tal sociedade é o comunismo), assim como o racismo se estabelece a partir da acumulação primitiva e suas consequências na colonização e escravidão, posteriormente, no capital, e que em sua superação pela via do comunismo é que há a expressiva superação do sexismo e racismo.

Eleanor Burke Leacock (1922-1987), antropóloga, feminista e marxista.

Eleanor Burke Leacock (1922-1987) foi a mais importante antropóloga marxista estadounidense,  que deu enormes contribuições ao estudo das sociedades igualitárias (primitivas ou modernas), à evolução do status das mulheres na sociedade, ao marxismo e ao movimento feminista. O seu volumoso e importante Mitos da Dominação Masculina: Uma Coletânea de Artigos sobre as Mulheres numa Perspectiva Transcultural (Instituto Lukács, 2019) é estudo altamente recomendado, tanto como discussão crítica do estado da arte quanto como um relato de história pessoal/política que informa o processo de investigação científica. A obra desmascara os diversos mitos por trás da ideia de superioridade masculina “natural”. (Lembrar da crítica de “O Pensamento de Direita, Hoje” a respeito da naturalização da História, muito comum nos autores burgueses e na direita.) Com base em uma extensa pesquisa histórica e intercultural, Leacock mostra que as reivindicações de superioridade masculina são baseadas em mitos cuidadosamente construídos sem base histórica factual. Ela também documenta vários exemplos históricos de relações igualitárias de gênero.  “Norteada pela busca incessante para desvelar o que constitui a essência do mito da dominação masculina, Eleanor Burke Leacock dedicou-se com afinco à pesquisa antropológica para corroborar a tese marxiana de que a humanidade constrói seu próprio mundo desta ou daquela forma sobre a base das condições objetivas historicamente postas (…)”, afirma um trecho da descrição do livro pelo Instituto (é possível baixar em .pdf, mas o preço de cerca de R$8 para um livro de mais de 400 páginas não pode ser desperdiçado). A ler.

Silvia Federici (1942-).

– Feministas italianas veteranas e contemporâneas como Silvia Federici (1942-), radicada nos Estados Unidos (em que o movimento feminista deste país influenciou sua luta e trabalho?), e que possui livros traduzidos no Brasil, onde é muito requisitada para eventos, sempre esgotados, e Maria Rosa Della Costa (1943), desafiam a teoria marxiana da acumulação primitiva, mostrando como a despossessão de corpos femininos também fez parte desse processo, repensando a relação entre capitalismo e patriarcado e o lugar do trabalho doméstico e não remunerado no esquema marxiano. Podem existir alguns equívocos regressivos aqui e ali em matéria de crítica da Economia Política (por exemplo, Federeci reivindicava, desde os anos 1970, o assalariamento para o trabalho doméstico das donas de casa, e é preciso sopesar como essa questão é vista por outras feministas, se isso uniria as mulheres domésticas às trabalhadoras externas, e mesmo a partir da crítica ontológica marxista do assalariamento), mas eis o que fica de basilar em seu pensamento e luta: em entrevista ao El País Brasil em 2019, Federici, diante da pergunta “Pode-se ser feminista e não estar contra o capitalismo?”, responde, pondo abaixo o arrivismo de certos grupos: “Não. Não pode. O feminismo não é uma escada para que a mulher melhore sua posição, que entre em Wall Street, não é um caminho para que encontre um lugar melhor dentro do capitalismo. Sou completamente contrária a esta ideia. O capitalismo cria continuamente hierarquias, formas diferentes de escravização e desigualdades. Então, não se pode pensar que sobre esta base se possa melhorar a vida da maioria das mulheres, nem dos homens. O feminismo não é somente melhorar a situação das mulheres, é criar um mundo sem desigualdade, sem a exploração do trabalho humano que, no caso das mulheres, se transforma numa dupla exploração.” Dois livros destacados de Federici com tradução no Brasil e corpo crítico já disseminado: Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2004) e Revolução ao ponto zero: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas (2013).

Roswitha Scholz (1959-), marxista feminista contemporânea, tem contribuído à vinculação da categoria gênero à teoria crítica do valor. Teórica do valor-clivagem.

Roswitha Scholz (1959-). Jornalista alemã. Contemporânea. Ainda não me aprofundei para delinear pontos divergentes, mas os pontos convergentes parecem muito enriquecedores. Conhecida pela crítica do valor (partindo, assim, da teoria marxiana) vinculado à clivagem de gênero, o que lhe permitiu desenvolver a teoria do “valor-clivagem”, “valor-dissociação” ou “dissociação-valor”, dependendo da tradução. Parece que a teórica do valor-clivagem encara o patriarcado como produtor de mercadorias (tomando como referencial o título de uma reunião virtual recente de mulheres brasileiras a discutir a autora), postura fundamental e central para o casamento do feminismo com o marxismo; esta parece ser uma visão coerente e fecunda. (Resta problematizar, como vimos com Heleieth Saffioti, a questão do patriarcado diante da categoria gênero?) Começar pelo artigo “O Valor é o Homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos” (de 1992, embora a própria Scholz, em Nota Prévia de 2017, veja deficiências nesse texto, recomendando, a título de compreendermos com maior profundidade a teoria da dissociação-valor, consultarmos o livro O Sexo do Capitalismo. Teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do patriarcado, além de ensaios seus e de outros e outras na revista teórica Exit! Crise e crítica da sociedade das mercadorias). Em “Simone de Beauvoir Hoje” (2011), Scholz revê o legado da autora francesa a partir do feminismo e do marxismo. É preciso se perguntar se essa autora, uma vez debruçada na crítica do valor e divulgadora da teoria do valor-clivagem, supera e resolve, de uma vez, e de que modo critica – como a brasileira Loreta Valadares o fez em seu texto supracitado – a velha querela de feministas como Simone de Beauvoir, Juliet Michell e Schulamith Firestone que viam no marxismo (mesmo em Marx e Engels) uma “redução” de tudo ao econômico e ao “homo aeconomicus”.

O percuciente livro Crítica ao Feminismo Liberal: Valor-Clivagem e Marxismo Feminista (2020), de Taylisi Leite.

– Da brasileira Taylisi de Souza Corrêa Leite (Doutora, Mestra e Especialista em Direito), o importante livro Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e feminismo marxista, lançado neste ano de 2020 pela Editora Contracorrente (salvo engano, a autora é orientanda de Alysson Mascaro, que sempre bebeu muito na fonte de um Pachukanis, cuja filosofia do direito dá as bases marxistas para uma crítica e superação do direito burguês): em seu percuciente livro, Taylisi parte do valor-clivagem de Roswitha Scholz para criticar, desmascarar e denunciar o feminismo de cooptação liberal. Tudo aponta que trata-se de livro obrigatório para formarmos e vacinarmos as camaradas mais novas e sacudirmos no combate contra as armadilhas capitalistas. A ler.

Mulher, Estado e Revolução: política da família soviética e da vida social entre 1917 e 1936 (1993), de Wendy Goldman (1956-), parece apontar os retrocessos históricos da época “stalinista” (basta compará-los com as conquistas factuais anteriores e até com os escritos de Lênin, Nadejda Krupskaia, Alexandra Kollontai, outros e outras na fase histórica anterior).  Não posso ainda dizer se essa autora tem ou não um aprofundamento no marxismo, mas é historiadora especializada em Rússia e União Soviética, sabendo retratar as grandes experiências e conquistas da libertação da mulher e do amor livre na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) depois de uma revolução comunista com uma vanguarda de intelectuais marxistas – e por que falharam, quando entrou em cena a burocracia stalinista. A ler, principalmente para o combate interno (ainda que anacrônico e extemporâneo, mas que se impõe alheio à nossa vontade) contra o “stalinismo”, que fisga até mesmo uma ou outra camarada menina mais incauta a embarcar nesse idealismo machofrênico, além de meninos aborrecentes (não sem a influência de marmanjos pseudomarxistas sem caráter e reacionários, praticamente direitistas). Esses dias mesmo, vi uma suposta feminista marxista (perfil “Solidariedade Feminina! no Instagram) omitindo (a troco de que?!) os danos, inclusive femininos, no período Stálin (cuja própria filha chamava-o de homem conservador, relatando que pessoas da própria família é que começaram a sumir antes dos demais). Goldman parece contribuir enormemente para a historiografia recente daquele período – espera-se que tenha problematizado as condições táticas particularmente difíceis da Rússia isolada do resto do mundo que não logrou a revolução, ao invés de um retrato simplório ou moralista, mas que exponha os danos do Grande Expurgo para a própria revolução, sem contar, depois, a dissolução da Internacional para agradar os Aliados liberais e anticomunistas, desmantelamento cujas consequências amargarmos até hoje. Enfim, é uma autora mais do que interessada em Stálin. Basta olhar os seus títulos subsequentes: Women at the gates : gender and industry in Stalin’s Russia (2002) – este trata de gênero e indústria, Terror and democracy in the age of Stalin : the social dynamics of repression (2007), Inventing the enemy : denunciation and terror in Stalin’s Russia (2011) e Hunger and war : food provisioning in the Soviet Union during World War II (2015). Infelizmente, estes outros livros parecem não contar ainda com uma tradução no Brasil.

Lise Vogel (1938-), Susan Ferguson (1962-), Tithi Bhattacharya (1971-) e Cinzia Arruzza (1976-), também contemporâneas, apesar das diferenças geracionais e apesar de atuarem (na prática e na teoria) em países e culturas bastante distintas entre si, com problemas e resoluções específicos, são todas feministas marxistas que apresentam uma teoria unitária para explicar como o movimento do capital, enquanto forma a partir da qual a sociedade capitalista se produz e se reproduz, concretiza-se articulando gênero, raça e classe, bem como trabalho produtivo e reprodutivo.