Lula e a utopia da conciliação de classes

“Você está lembrado qual foi a atitude que eu tomei quando eu ganhei as eleições? Você está lembrado que eu coloquei todo ministério em um avião e levei todos os ministros para os quatro lugares mais pobres do Brasil? O que que eu queria com aquilo? Eu queria que um Meirelles, que era banqueiro, eu queria que um Palocci, que era médico, eu queria que um Furlan, que era empresário, conhecesse uma palafita, que vissem o homem e a mulher [que] no mesmo lugar que eles defecavam eles comiam, eu queria que eles vissem a quantidade de meninas com dois ou três filhos com pai desaparecido, eu queria que eles vissem o vale do Jequitinhonha, queria que eles conhecessem o mundo tal como ele é, não o mundo de Brasília. Então a esquerda tem que assumir compromisso”. – Luís Inácio Lula da Silva, entrevista a Glenn Greenwald no cárcere, 21 de maio de 2019 (vídeo completo; transcrição em texto)

“Twitte” oficial de Luís Inácio Lula da Silva a partir de entrevista sua em fevereiro de 2021.

Jamais me esquecerei – e quero ainda pôr isto em cena teatral tragicômica – de Lula, a maior liderança popular e orgânica de centro-esquerda do mundo contemporâneo, o único a encher de gente tanto o Nordeste quanto a Avenida Paulista, partícipe das maiores greves do país, ex-metalúrgico de base, co-fundador de um Partido dos Trabalhadores, Presidente do Brasil duas vezes em eleições históricas e de massas, na cadeia, em entrevista a Glenn Greenwald (em que, inclusive, lembra enfático que nunca declarou que faria um governo socialista), ORGULHOSO em contar que seu ato primeiro de governo foi reunir seus ministros, o banqueiro Meirelles, o empresário Furlan, o médico Palocci e levá-los para ver como vivem os brasileiros nas palafitas (ele mesmo viveu em uma, sabe na pele como é!), metro cúbico em que onde se come é também onde se faz as necessidades fisiológicas. Se eu fosse pintor, já teria pintado a cena memorada em estilo portinaresco.

Este episódio factual é o suprassumo da utopia da conciliação de classes, que se tornará visivelmente insustável com a Presidenta Dilma Roussef! Utopia na acepção negativa da palavra. É o cúmulo da ingenuidade! Ou talvez não seja ingenuidade: “Vim mais à FIESP do que à CUT“, declarou o Presidente Lula em 2010, já deixando o segundo governo, a empresários de São Paulo, e não em tom de arrependimento, e sim para mostrar ao empresariado capitalista que eles “nunca ganharam tanto dinheiro” quanto no seu governo, que esteve mais ao lado deles do que da Central Única dos Trabalhadores… De qualquer forma, trata-se de um dos piores e melhores momentos da História do Brasil! Quem quer entender o que vivemos hoje precisa mergulha na reflexão daquele acontecimento. É exemplo do que a esquerda não deve fazer, é exemplo tácito de que devemos lutar para fazer o oposto! Um ex-metalúrgico (profissão extinta, aliás), com a máquina do Estado brasileiro nas mãos, servindo de mediador político entre subproletariado e apáticas burguesia e pequena-burguesia, que odiarão a mínima ascensão social promovida, no momento mesmo em que o capital hegemônico estrangeiro, especialmente da reação dita imperialista dos EUA, tampouco admitirá o protagonismo brasileiro! As lutas de classes são um dado científico, e as primeiras linhas do Manifesto Comunista de 1848, o qual o ex-deputado federal petista José Genoíno (partícipe na Guerrilha do Araguaia e de reputação destruída após o famigerado “mensalão”) cita no final de entrevista de 4 dias atrás como norte da fileira pela qual ele luta, mostrou que “opressores e oprimidos sempre estiveram em oposição, travando luta ininterrupta, ora velada, ora aberta, uma luta que sempre terminou ou com a reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou com o ocaso conjunto das classes em luta”. (Resta saber, tendo como base de discussão a argumentação lançada pelo grande filósofo Álvaro Vieira Pinto em Consciência e Realidade Nacional, o momento em que as lutas de classes nacionais, internas, seriam menos importantes e mais secundárias do que as lutas de classes entre o país subdesenvolvido e as forças externas hegemônicas, mas Vieira Pinto defende essa tese antes do golpe de 64, pensando em ampla integração desenvolvimentista nacional e com boas reformas estruturais em torno de João  Goulart… A revolução pode ser incerta, mas a contrarrevolução, neste continente que luta há séculos por sua emancipação, é sempre certa, daí a necessidade da construção revolucionária e da luta pela hegemonia antes da conquista do poder governamental, tal como propõe Antonio Gramsci.)

Mas não poderia ser mais tragicômico o episódio referido: Henrique Meirelles (24° Presidente do Banco Central do Brasil sob o governo Lula) depois foi ser ministro da Fazenda do governo ilegítimo de Michel Temer pós-golpeachment, depois Secretário da Fazenda e Planejamento do governo estadual austero do tucano João Doria, ou seja, nem quis saber da prisão de Lula, retirado propositalmente da eleição, e de seu impacto ao país, enfim, tem cabeça de banqueiro (salvo engano, a sua candidatura à presidência em 2018 foi a mais cara de todas, talvez mais cara do que a do tosco Amoedo do Partido “Novo”: Meirelles, o gorduroso indolente, se deu ao luxo de tirar milhões do bolso, mesmo sabendo que perderia!), assim como Luiz Fernando Furlan (ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo Lula) tem cabeça de empresário, e ambos devem embarcar nos últimos anos – ou desde já aquela época da coalização entre PMDB e PT – na monomania midiática desprezível e renitente de contrarreformas neoliberais (defendidas agora por Lira e Pacheco no DESgoverno Bolsonaro, que já em campanha em 2017 e antes da posse, em 2018, primou pelo ódio racista às classes subalternas e defesa vocal do patronato), contrarreformas que nos atiram no atraso e atacam a classe trabalhadora, que dirá os brasileiros quase sem classe que vivem em palafitas, já que, de lá para cá, também aumentou o número de seres sociais e até famílias nas ruas, pivetes nos sinais – doenças que tinham acabado, assim como o Brasil retorna ao Mapa da Fome do qual tinha se livrado pelo projeto petista (Fome Zero e outros); Antonio Palocci (ex-ministro da Fazenda no governo Lula, tendo renunciado) talvez seja caso ainda pior, pois, como todos sabem, voltou-se direta e pessoalmente contra Lula (que o rebateu e o justificou chamando-o de “médico, frio” diante do juizeco-asset Sérgio Moro), acusando Lula em processo de corrupção para se safar em delação premiada (a Polícia Federal acabou concluindo que a delação de Palocci não se sustenta).

Eis a índole bandida da burguesia e da pequena-burguesia, e toda política conciliatória pragmatista significa nos colocar nas mãos dessa gente cujo rosto sem máscaras é Bolsonaro, porta-voz de todos os vícios, esculhambações, incompetências, crueldades e pensamentos mais secretos e sinceros da educada e bem asseada burguesia, tal como o fenômeno que ocorre no romance O Retrato de Dorian Gray, do socialista Oscar Wilde, e tal como Hitler em 1932 em discurso num clube de industriais alemães, afirmando que para a classe dominante perpetuar seus privilégios, seria preciso sacrificar as outras classes, porque a crise havia mostrado que “não há o suficiente para todos” (como se vê, o nazifascismo, surgido do capitalismo, é o extremo-oposto do generoso e justo comunismo, cuja fórmula Marx inscreve na Crítica do Programa de Gotha: “de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade“)…

O próprio sociologóide weberiano FHC, muitas vezes visto como o contraposto de Lula (adversários clássicos e representantes políticos de classes em conflito entre si), denominado “príncipe dos tucanos”, incólume pela justiça elitista, que surge sempre na mídia grande como se tivesse sido exemplo de presidente (na verdade, seu governo fraco e pró-FMI testemunhou significativas greves, fome, desleixo social), disse, anos atrás (cerca de 2008) em entrevista ao Canal Livre, que Lula, apesar de ter sido metalúrgico, surgido das Grandes Greves do ABC Paulista, nunca viu o mundo sob o prisma das lutas de classes, e sim da conciliação, de uma democracia cristã ou algo do tipo. Quão certo ele está! Sentando-se com o empresariado da FIESP de um lado e sindicatos e organizações de trabalhadores do outro, esse intruso (para as elites) vindo num pau-de-arara do sertão pernambucano, mas ingênuo “antileninista”, não duvido que com a melhor das intenções e em busca do bem comum (o qual será sempre superficial na sociedade de classes, a menos que vire bem comunista, isto é, tomada, expropriação, distribuição e socialização da propriedade privada dos meios de produção), julgava encontrar para ambas as partes luz no fim do túnel. A luz era um trem.

Na verdade, foi pior do que isto, foi pior do que ingenuidade. “Vim mais à FIESP do que à CUT“, declarou Lula em 2010 a empresários em São Paulo, no ano em que deixava seu segundo governo. E tal frase não era em tom de arrependimento, e sim para mostrar ao empresariado capitalista que eles “nunca ganharam tanto dinheiro” quanto no seu governo, que esteve mais ao lado desses do que da Central Única dos Trabalhadores.

O “cavalheiro da esperança” vã, Prestes, nos anos 1980, já tinha um pé atrás e insistia em entrevistas que Lula deveria ler teoria, ser marxista, uma vez que era quadro orgânico advindo da classe trabalhadora e da base da pirâmide social. Não basta sentir na pele, se não se assimila no cérebro. Aqui, há toda a problemática da Crítica (da teoria) e da prática a ser resolvida dialeticamente em unidade (muito bem formulada por Gramsci), jamais com dualismo. Mas o PT possui ojeriza da teoria e nem mesmo a sua Fundação Perseu Abramo estimula a práxis a partir de uma teoria minimamente marxista. As escolas do MST, que possuem como guia Paulo Freire, vão até onde? Quem poderia suprir essa defasagem em Lula, a “cabeça” de Lula para finalmente chegar à vitória federal após quatro derrotas (ainda que tenha chegado sempre no segundo turno) foi José Dirceu, que era comunista na juventude, mas não mais na maturidade sob o marqueteiro eleitoreiro Duda Mendonça e a Carta ao Povo Brasileiro para acalmar o mercado com a vitória em 2002. Hoje, sim, com a reputação destruída, Dirceu retorna ao discurso socialista (basta assistir o final de sua entrevista com o liberal social Fernando Haddad), assim como José Genoíno, ambos tentando recuperar o tempo perdido… Este último assumiu, na entrevista já referida de 4 dias atrás, que o “PT teve ilusões com o compromisso democrático da burguesia”. Estranho que tenha sido preciso um trauma tão grande, que fez até mesmo camadas populares, não só a pequena-burguesia, ter ressalvas a um partido que se chama dos trabalhadores após a intensa campanha midiática de demonização com táticas da Guerra Fria, financiada pelos capitalistas com o dinheiro da classe trabalhadora, para surgir a consciência do óbvio.

De fato, mesmo nos estertores recentes, quando as instituições burguesas mostram-se falidas, quando a Constituição de 1988 demonstra suas fragilidades sociais e políticas e uma franja pilantra e alucinada chamada extrema-direita irrompe com discurso radical, não cabe à esquerda ser conservadora e defender as intuições que só prejudicam a classe trabalhadora, e sim ser ainda mais radical e mostrar a farsa do outro lado. Não cabe falar em “democracia em vertigem”, pois esta democracia é a ditadura do capital, e há uma outra democracia possível, popular, direta, de conselhos a ser defendida, não a “democracia” das instituições conservadoras na economia. (Aliás, o documentário de Petra Costa é crítico, ao contrário do que muitos dizem, porque não só registra o fato do partido ter se distanciado das bases em nome do pragmatismo, como também mostra o Lula que confrontava os bancos nas campanhas em que perdeu, até investir na ampla agregação nacional, quando ganhou.)

O máximo que Lula conseguiu chegar foi em histórico vídeo do tradicional dia 7 de setembro de 2020 (Dia da Independência do Brasil), ainda que com trilha de fundo forçada, já liberto, em que destoa muito acima do discursesco deplorável e esquecível do medíocre, limitado, tacanho, tartamudo Jair Bolsonaro e critica o capital (fez quase lembrar o célebre discurso de Lincoln, que distinguia o capital do trabalho, assim como Marx, que lhe escreveu efusiva carta na Associação Internacional dos Trabalhadores) e mostra-se um verdadeiro líder protagonista e calejado, mas isto não passa de retórica, pois as pautas petistas são as mesmas, agora sem boom dos commodities, e há mesmo socialistas, comunistas, marxistas já se perguntando se o discurso anticapitalista do PT não serve para conquistar eleitoralmente as esquerdas sem entregar realmente pautas compatíveis com a fala… Só haverá transformação real nesse partido (e sua renovação para transformar o Brasil, já que é o maior do chamado “campo progressista”) quando a Juventude Socialista do PT deixar de ser agremiação de militontos, virar realmente socialista e expulsar, junto à classe trabalhadora, a cúpula jurídico-pelega, ou então é melhor disputar a teoria revolucionária num partido dito comunista ou apostar as fichas e a energia na criação dum novo partido…

O fato é que a centro-esquerda petista, cada vez mais burocrática (ou pelega, se quiserem, mas sem surpresas, pois o PT nasce não do marxismo e sim do sindicalismo que já acabou enquanto espaço amplamente agregador das lutas e que se limitava a melhores condições de trabalho e a melhores salários, sem nada falar de mais-valia ou mais-valor), surfando com extrema competência administrativa e sensibilidade social no boom dos commodities, desconsiderando até mesmo reformas em troca de programas sociais, entre o pragmatismo, o assistencialismo, o consumismo, o eleitorismo e outros ismos, fortalecendo a carteira assinada, mas sem consciência revolucionária (foi fácil a direitalha surgir e destruir tudo, pois não havia estofo construído por baixo), pintou de lindos esmaltes as unhas da elite capitalista, até o esmalte se desgastar e revelar as garras dos monstros…

7 de fevereiro de 2021

Filosofia brasileira, tradição e língua portuguesa (anotação)

Portugal, que nos legou uma tradição literária, nunca teve Filosofia, tradição filosófica. Quando surgiu alguma expressão filosófica portuguesa, no século 16, 17, a língua escrita oficial era o latim. Assim recorda José Arthur Giannotti em alguma entrevista… Portanto, não há ainda filosofia formativa em português. Reiteiro: há alguma filosofia, mas não formativa, de base, a ponto de constituir uma tradição! (Seria preciso, para isso, concomitantemente ou primeiro, uma superação economicamente estrutural e geopolítica do espaço marginalizado e periférico dos países que usam a língua portuguesa e da própria língua portuguesa em relação às outras?) Durante o século 20, houve a tentativa duma filosofia brasileira (bastante interrompida pela ditadura, que foi terrorista física e intelectualmente), dividida entre o legado francês ou germânico, certamente com importantes filósofos e professores brasileiros que puderam prosseguir a partir da redemocratização ou não. (O dialético Álvaro Vieira Pinto é um desses que eu quero retomar em textos e aulas, sobretudo o seu Consciência e Realidade Nacional). Neste século 21, há toda uma bibliografia interessante sendo produzida pela esquerda revolucionária (internacionalista, portanto) no bojo do complexo contexto histórico do nosso país, mas, novamente, partem de outras tradições (mais germanofilia do que francofilia?), ainda que adaptadas e coerentes. Esta empreitada da criação de uma língua filosófica brasileira continua, mas não está mais em sua fase apenas inicial e embrionária, por conta das traduções sistemáticas ao longo dos séculos e décadas de livros clássicos e formadores de filosofia para o português brasileiro. (Até que ponto, no entanto, e qual o impacto no fato de que muitos desses livros foram traduzidos por tradutores e não por filósofos?) Lembrar da diferenciação entre a criação de uma língua filosófica a partir do português (obviamente não a mesma dos nossos grandiosos romances, contos e poesia, e mesmo esta, artística, já é abundante, generosa, diversa) e a criação de uma tradição filosófica brasileira (é isto genuinamente possível? seu elã não seria outro senão o contato direto com os grandes temas nacionais e com a realidade do país até influir globalmente de dentro para fora – até que ponto isso ocorre com Paulo Freire na “filosofia da educação”?)… A escrita é das mais importantes ferramentas da filosofia, junto à oralidade. O diálogo, pelo qual a filosofia nasce, se dá em ambas, na escrita e na fala.

21 de maio de 2020