Carpaccio versus Rafael, a partir de Tarkóvski: arte, panfletagem, tendência – marxismo e Renascença

“[…] Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não fique à mostra como as molas que saltam de um sofá. […]”

– Andrei Tarkóvski, Esculpir o Tempo, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 56.

Obs. por Fernando Graça: …Marx? Ou terá sido Engels, que, em suas correspondências a escritores (veremos trechos mais abaixo), as quais me valho vez ou outra como referência para marxismo e estética, tratou da tendência na arte?

Em cerca de 2016-2017, utilizando o extinto endereço eletrônico www.fernandograca.xyz, escrevi texto que não consigo encontrar em meus arquivos. Porém, o recordo quase inteiro.

Hoje mais amadurecido, volto ao seu pensamento aqui.

Tratava acerca de um valioso ensinamento artístico em Esculpir o Tempo (1985), livro do cineasta russo/soviético Andrei Tarkóvski (1932-1986), uma de minhas obsessões naquela fase adolescente e pós-adolescente. Nesse livro, que depois descobri estar disponível para alugar na Biblioteca Pública Municipal Sérgio Milliet do Centro Cultural São Paulo, Tarkóvski critica fortemente o famoso quadro Madona Sistina (1512), de Rafael Sanzio (1483-1520), embora não deixe de chamá-lo de “o gênio de Urbino”, e, em contraposição, apresentava-me um pintor extraordinário, o veneziano Vittore Carpaccio (1465-1525/1526), contemporâneo de Rafael, e que eu não conhecia (que, de fato, é pouco conhecido). Suponho, inclusive, que o cineasta provavelmente soube dele em seu triste período de exílio (por motivos sórdidos de sicofantas politiqueiros, entre os quais o de ser preterido por cineastas menores) da União Soviética na Itália. O meu texto referido aludia jocosamente ao fato de que de carpaccio eu conhecia apenas o prato culinário italiano…

Silhueta de Fernando Graça durante exposição sobre Rafael no Museu de Arte Brasileira da FAAP. Foto: Henrique Lima, 13 de novembro de 2021.

Este ensaio que ora escrevo se deve ao fato de, recentemente, eu ter espiado exposição multimídia no Museu de Arte Brasileira da FAAP, intitulada Magister Raffaello – “Uma viagem maravilhosa para o Renascimento italiano”. (Fui especialmente para ver outra exposição, brasileira, “Um Celereiro de Artistas“, em especial um quadro de tamanho grande que fotografei, Camisa Verde, do meu conterrâneo, o grandioso artista e comunista Mário Gruber, e não me arrependi de observar minuciosamente o seu talento em fazer lantejoulas tão realistas, mas isto e outras coisas mais são assunto para outro ensaio…)

A Madona Sistina, de Rafael: arte-síntese dos novos tempos da Renascença, mas panfletária, insípido cartaz? Os anjos do canto inferior estão cansados do velho e renitente tema em séculos e séculos de medievo. Clique na imagem para ampliar. Melhor visualização em computador/notebook.

A crítica de Tarkóvski, de adjetivos ásperos, é convincente, mesmo que só até certo ponto:

“[…] Quem ainda não escreveu sobre Rafael e a sua Madona Sistina? A idéia do homem, que finalmente conquistou sua própria personalidade, em carne e osso, que descobriu o mundo e Deus em si mesmo e ao seu redor depois de séculos de adoração do Deus medieval, cuja contemplação o privara da sua força moral — diz-se que tudo isso encontrou concretização perfeita, coerente e definitiva nessa tela do gênio de Urbino. De certo modo, é possível que assim tenha sido. Pois, a Virgem Maria, na configuração do artista é, de fato, uma cidadã comum, cujo estado psicológico, tal como o vemos refletido na tela, tem sua base na vida real: ela está temerosa pelo destino do filho, oferecido em sacrifício aos homens. Embora tudo se dê em nome da salvação destes últimos, ele próprio está capitulando na luta contra a tentação de defender-se deles.

“Tudo isso está, de fato, vivamente “escrito” no quadro — em minha opinião, com uma clareza excessiva, pois as idéias do artista oferecem-se ali à leitura: tudo por demais inequívoco e definido. Irrita-nos a tendenciosidade doentiamente alegórica do pintor, que paira sobre a forma e ofusca todas as qualidades puramente pictóricas do quadro. O artista concentrou sua vontade na clareza das idéias e na conceituação intelectual da obra; para isso, porém, pagou seu preço, pois a pintura é débil e insípida. […]” (ibidem, p. 54)

(Escrevi “até certo ponto”, porque é preciso considerar que todo movimento seminal possui a tendência inicial de estabelecer seus manifestos e intenções pela necessidade de anunciar-se e marcar presença… Neste aspecto, a Madona Sistina de Rafael, cuja protagonista, pobre, despojada e simples, que parece saltar dum filme de Pasolini, tem, sim, importante destaque histórico! Não se pode também esquecer que o próprio Tarkóvski, dentro da sua tentativa de transplantar o espírito observacional, gestáltico dos haicais para o cinema, tampouco escapou de forçar, em certas cenas, intenções explícitas, sobretudo as excessivamente religiosas-ortodoxas ou até misticistas, que representam enorme retrocesso com relação à história de seu país e o fazem hoje ser deturpado por conservalóides do cristianismo, outras intenções até pretenciosas demais e pseudointelectuais, quando bota frases supostamente filosóficas em certas personagens, que não convencem, contudo toda essa problemática seria tema para outro ensaio…)

Detalhe da Madona Sistina de Rafael: a mãe, uma cidadã comum, está temerosa pelo destino do bebê, oferecido aos homens em sacrifício – trata-se de um ponto de virada renascentista, se considerarmos toda a arte produzida no medievo. Segundo Tarkóvski, porém, tais elementos humanistas são apresentados nesse quadro de maneira “débil e insípida”, por estarem explícitos demais, quase escritos de maneira panfletária.

O zeitgeist do Renascimento, conforme Tarkóvski supracitado descreveu em linhas gerais, anunciou a imanência material no lugar da transcendência. Engels, em Dialética da Natureza (1883; cf. São Paulo: Boitempo, 2020, Introdução), um livro deixado por terminar e muito hesitante pelas polêmicas suscitadas entre sociedade e ciências naturais, mostrou que a Renascença — “a época que precisou de gigantes e produziu gigantes“, segundo ele — possibilitou polímatas admiráveis (como Leonardo da Vinci), porque, malgrado o feudalismo caduco de então (isto sou eu quem faço questão de frisar), o artista-cientista-erudito não havia ainda sido escravizado pela divisão capitalista do trabalho, uma vez que o capitalismo engatinhava e começava a ascender (recordo a frase de Marx no capítulo IV do primeiro livro de O Capital, que está aqui próximo de mim entre meus livros: “O comércio e o mercado mundiais inauguram no século XVI a moderna história do capital“); ou seja, com a hegemonia e a implementação em larga escala da divisão do trabalho, que serviram para otimizar a produção industrial e acelerar a moderna acumulação, os sucessores dos polímatas — incluindo nós — foram submetidos a um sistema limitante e unilateral. Essa importante tese estrutural de Engels será retomada por Lukács na década de 1930 para a seção “Tragédia e tragicomédia do artista no capitalismo” do ensaio “Tribuno do povo ou burocrata?” (presente nas edições brasileiras Marx e Engels como historiadores da literatura e também em Marxismo e teoria da literatura). Igualmente merece nota que, já em A Ideologia Alemã (cf. São Paulo: Boitempo, 2007, págs. 378-382, “Organização do trabalho”), série de escritos inovadores de 1845-1846, publicados só em 1932, Marx e Engels, em brainstorming mútuo, desmascaram os resquícios burgueses/individualistas da mentalidade de Stirner sobre a propriedade e o gênio (o “Único”, para se referir justamente a um Rafael), não só fazendo ver que tais indivíduos (da Vinci, Rafael, Mozart, que teve seu Réquiem terminado postumamente por outro músico, etc.) não criavam apenas solitariamente e distanciados da sociedade, dependiam, inclusive para os materiais concretos necessários às suas atividades práticas, da organização socioeconômica de sua época, do intercâmbio disponível e de muitos outros homens interligados à rede social produtiva, como também sugerem que, superada a divisão capitalista do trabalho, “Numa sociedade comunista não há nenhum pintor, mas no máximo, homens que, entre outras atividades, também pintam” (ibidem).

Voltemos ao nosso tema principal… Para reivindicar a “vontade e energia” duma “lei de intensidade que me parece constituir uma condição fundamental da pintura” (Esculpir o Tempo, ibidem, p. 54), Tarkóvski nos apresenta Carpaccio em contraposição a Rafael:

“Em sua pintura, [Carpaccio] resolve os problemas morais que assediavam o homem do Renascimento, fascinado por uma realidade repleta de objetos, pessoas e matéria. Ele os resolve através de meios verdadeiramente pictóricos, muito diversos daquele tratamento quase literário que confere à Madona Sistina seu tom de alegoria, de sermão. A nova relação entre o indivíduo e a realidade exterior é por ele expressa com coragem e nobreza — sem nunca cair no excesso de sentimentalismo, sabendo como ocultar as suas inclinações, a sua vibrante alegria frente à emancipação. […]” (ibidem, págs. 54-55)

Tarkóvski tem razão aqui. Em matéria de conjunto da obra (muito além da Madona Sistina, porém), Carpaccio espelha (para usar termo da estética lukácsiana) os novos tempos da Renascença de maneira mais fidedigna do que Rafael por pulverizar pelas telas os elementos modernos (ou proto-modernos) de seu tempo, quando a cidade ia sendo mais habitada do que o campo. São quadros (conferir as imagens que coloquei ao final deste texto com frases de Tarkóvski que pincei deliberadamente) de acontecimentos histórico-sociais (que dissipam o sagrado da religiosidade dos temas cristãos), viagens materiais (não à toa, época das grandes navegações), retomada integral e adaptação ao seu tempo de mitos pré-cristãos, pagãos, e inúmeras ações e relações humanas cotidianas em dezenas e centenas de tipos e classes sociais estratificadas em ampla composição. A sociedade em movimento e fluxo. Vontade e energia da tal “lei de intensidade” desejada! Ao sopesar as obras de ambos, não seria incorreto afirmar que Carpaccio é muito mais “materialista” e coletivista: está interessado e mergulhado nos assuntos terrenos, enquanto que em Rafael, em que pesem a Madona Sistina ou mesmo A Escola de Atenas, notamos os pés flutuando acima do chão, os resquícios transcendentais da religião, mesmo que sob novas formas e olhares mundanos. Além do mais, arrisco a dizer que Rafael, que tanto influenciou o século 18, é o clássico/classicista por excelência, a buscar o ideal harmônico da serenidade e da beleza, enquanto que em Carpaccio o moderno se antecipa diante de nossos olhos.

Guardadas as devidas diferenças, faz lembrar a crítica do amoroso modernista Mário de Andrade ao grande Machado de Assis, na ocasião do centenário de seu nascimento, comemorado em 1939 (v. Mário de Andrade, “Machado de Assis” In: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins, 1974, p. 103). O autor de Macunaíma e pesquisador popular reconhece a  inquestionável grandeza de Machado em diversos níveis e sentidos (só faltaria aos modernistas de 1922, que nos levaram a uma “segunda independência”, estudo cavado do surpreendente pioneirismo experimental da prosa machadiana, conforme Décio Pignatari, Haroldo de Campos e outros fizeram décadas depois noutro grande momento cultural do Brasil…), e que escrevera “apaixonante obra e do mais alto valor artístico, prazer estético de magnífica intensidade que me apaixona e que cultuo sem cessar”, “deixou, em qualquer dos gêneros em que escreveu, obras-primas perfeitíssimas de forma e fundo”, porém argui que era escritor encastelado, que Lima Barreto, João do Rio, França Júnior conseguiram muito mais reter o burburinho da vida do Rio de Janeiro, tendo também falhado em captar a “alma brasileira” como o fizeram Gonçalves Dias, Castro Alves, Aleijadinho, Almeida Júnior, Farias Brito e outros. Isto tudo é fato,  ainda que Machado de Assis tenha sido cronista profícuo, e foram justamente o universal e a influência eurocentrista agentes de sua consagração estrangeira; por outro lado, ainda bem que nos deixou em literatura, sobretudo nos contos e romances, o retrato das nossas classes médias e dominantes indolentes, servindo para entendermos melhor (reforçados pelos estudos sociais machadianos de Alfredo Bosi, Roberto Schwarz, Antonio Candido, Helen Caldwell, John Gledson et al) as causas dos problemas do Brasil sob este ângulo alto e direto, mas jamais conivente, sempre crítico e mordaz, que nenhum outro autor do século 19 nos deixou.

Carpaccio captou o burburinho e a “alma” de seu tempo renascentista bem mais do que grande parte de seus contemporâneos. Embora Tarkóvski não cite qualquer exemplo de quadro do elogiado que possa nos fazer vislumbrar suas palavras, rápida pesquisa havia me levado, à época, a uma galeria de quadros citadinos com turbas, eventos e movimentações, construções, etc., que de fato fascinam qualquer cineasta autêntico diante de grandes cenários e elencos. De repente, um quadro em específico chamou minha atenção, e, desde então, logo converteu-se numa das minhas pinturas preferidas (impossível não citar, nesta lista em construção, também Ovídio entre os citas, de Delacroix, e vários outros, obviamente muitos brasileiros):

Preparação da Tumba de Cristo (c. 1505), de Vitore Carpaccio, têmpera sobre tela. Clique na imagem para ampliar. Melhor visualização em computador/notebook.

Não seria, também este quadro, um panfleto ou cartaz?!… O cadáver dessacralizado de um eurocêntrico Jesus (e sem auréola!), entre ossos e esqueletos, “espera” que os coveiros preparem sua tumba. Um velho, apoiando uma das mãos no rosto, o olha com indiferença (faz lembrar os anjos-crianças da Madona Sistina, que também direcionam nosso olhar à figura principal), afinal, é mais um que morre dentre tantos outros. A dor e a desolação das duas mulheres no canto, cenicamente unidas, uma de cabeça para cima, a outra com a cabeça para baixo, parecem ser o único eixo a lembrar da gravidade do ocorrido. Isto ocorre nos primeiros planos. No fundo, com exceção do caminho à esquerda que nosso olhar percorre até chegar às tortuosas cruzes de madeira na parte superior, a vida continua com variadas ações de variados tipos sociais em meio à despojada paisagem: alguém toca um instrumento de sopro, há outras tumbas, cenas pastorais, transeuntes, etc. Por fim, cabe dizer que esse quadro guarda cordão umbilical com outro quadro ainda mais impressionante, O Corpo do Cristo Morto na Tumba (1520-22), de Hans Holbein, o jovem, que, séculos depois, no século 19 foi gatilho para Doistoiévski, ex-revolucionário e cristofrênico convertido, ter sério ataque de epilepsia quando diante dele esteve… (Para uma próxima contraposição: Tchernichévski versus Dostoiévski, só que mais aprofundada.)

Entanto, pelas descrições oferecidas por Tarkóvski, é certo que este pensava em gama de outras pinturas, as quais reuni de acordo com meu gosto e agora elenco abaixo, após reproduzir suas argutas palavras finais acerca da obra de Carpaccio. Observem a variedade de acontecimentos e ações e figuras no primeiro e segundo e demais planos das pinturas do mestre veneziano. Será injusto não fazer o mesmo com Rafael, porém de outro modo penso que expor mais obras suas não advogaria em seu favor nesta contraposição, e comparações tendem à superficialidade e ao desrespeito à singularidade de um artista.

“[…] As composições cheias de figuras de Carpaccio têm uma beleza surpreendente e misteriosa. Talvez seja até mesmo possível chamá-la ‘a Beleza da Idéia’. Diante delas, tem-se a perturbadora sensação de que o inexplicável está prestes a ser explicado. Momentaneamente, é impossível compreender o que cria campo psicológico em que nos encontramos, ou fugir ao fascínio que se apodera de nós diante da pintura e nos põe num estado muito próximo do medo.

“[…] Podem se passar horas antes que comecemos a perceber o princípio da harmonia que rege a pintura de Carpaccio. No entanto, assim que o apreendemos, permanecemos para sempre sob o encanto da sua beleza e do nosso arrebatamento inicial.

“Quando o analisamos, descobrimos que o princípio é extraordinariamente simples e expressa, no mais alto sentido, a base essencialmente humana da arte renascentista, em minha opinião, com muito mais intensidade do que Rafael. A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem “incidental”. O círculo se fecha, e ao olharmos para a tela de Carpaccio, nossa vontade acompanha, dócil e involuntariamente, o fluxo lógico de sentimentos pretendido pelo artista, voltando-se primeiro para uma figura aparentemente perdida na multidão, e depois para outra. […]” (Esculpir o Tempo, ibidem, págs. 55-56)

Tarkóvski, recordando Marx (fica a dúvida se a afirmação não seria de Engels), fecha a contraposição ressaltando a cautela de suas posições:

“[…] Não tenho a menor intenção de convencer os leitores da superioridade dos meus pontos de vista sobre dois grandes artistas, nem de estimular a admiração por Carpaccio em detrimento de Rafael. Tudo o que pretendo dizer é que, embora em última instância toda arte seja tendenciosa, que até mesmo o estilo seja comprometido, uma mesma tendência tanto pode ser absorvida pelas camadas insondáveis das imagens artísticas que lhe dão forma, quanto pode ser exageradamente afirmada, corno num cartaz, como é o caso da Madona Sulina de Rafael. Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não fique à mostra como as molas que saltam de um sofá. […]” (ibidem, p. 56)

Só mais um parágrafo final, que completa a questão da tendência na arte. Não se sabe até que ponto Tarkóvski era familiarizado com a obra marxiana, entretanto é possível que tenha havido um equívoco ao citar (sem rigor ou fonte) Marx, ao invés de Engels. Sabemos que a dupla não deixou um tratado estético, e sim escritos esparsos e laterais, formativos, mas, por exemplo, este último, em seus anos finais, já sem o companheiro de luta, ao estreitar correspondências com artistas, escritores socialistas e revolucionários, inclusive escritoras, cravou explicitamente: “Quanto mais permanecerem ocultas as opiniões do autor, melhor para a obra de arte. O realismo a que me refiro pode manifestar-se até mesmo a despeito das opiniões do autor” (trecho de carta a Margaret Harkness em abril de 1888, tradução minha). No seguinte trecho de outra carta, para Minna Kautsky, em 26 de novembro de 1885, colhida do Marx & Engels Collected Works Vol 47, Engels, comentando o romance Die Alten und die Neuen escrito pela destinatária, e que, a despeito de Balzac ser simpático à burguesia, confessando que o admirava como escritor pela criação realista de tipos sociais, explica melhor tal posicionamento: “[…] The source of this failing, however, may be discovered in the novel itself. In this book you obviously felt impelled to take sides openly, to testify to your convictions before the whole world. Now that you have done so, it is something you can put behind you and have no need to repeat again in the same form. I am not at all opposed to tendentious poetry as such. The father of tragedy, Aeschylus, and the father of comedy, Aristophanes, were both strongly tendentious poets, as were Dante and Cervantes, and the best thing about Schiller’s Kabale und Liebe is that it was the first politically tendentious drama in Germany. The Russians and Norwegians of today, who are producing first-rate novels, are all tendentious writers. But I believe that the tendency should spring from the situation and action as such, without its being expressly alluded to, nor is there any need for the writer to present the reader with the future historical solution to the social conflicts he describes. Furthermore, in present circumstances, the novel is mainly directed at readers in bourgeois — i.e. not our own immediate — circles and, such being the case, it is my belief that the novel of socialist tendency wholly fulfils its mission if, by providing a faithful account of actual conditions, it destroys the prevailing conventional illusions on the subject, shakes the optimism of the bourgeois world and inexorably calls in question the permanent validity of things as they are, even though it may not proffer a solution or, indeed, in certain circumstances, appear to take sides. Your detailed knowledge and your wonderfully true-to-life descriptions, both of the Austrian peasantry and of Viennese ‘society’, provide ample material for this, and you have already shown in Stefan that you are also capable of handling your protagonists with a nice irony which testifies to the command an author has over his creatures. But now I must desist, otherwise you’ll think me altogether too prolix. […]” Mas tal escolha artística delineada por Engels contra a tendência (que suscitará, no século posterior, outra contraposição, desta vez no interior do próprio marxismo: Brecht x Lukács), depende muito do público-alvo (da classe) a que o artista se dirige, conforme disse-me Mauricio Puls, certa vez, em longa troca de mensagens que tivemos: assim, neste complexo século 21, embora devamos abalar as certezas da axiomática capitalista sem necessariamente apresentarmos a solução inequívoca (ou até panfletária, portanto ingênua ou oportunista) dos conflitos histórico-sociais espelhados na arte, tomando lados tendenciosos que suplantam a força própria das situações, figuras e personagens, ainda que importantes aos escritos políticos de não-ficção, ainda que devamos frustrar o falso otimismo da ordem da manipulação e da alienação diárias, dos desvios de foco, e mostrar a decadência tardia da sociedade burguesa às classes dominantes e seus representantes, penso que um público consciente, despossuído da propriedade privada dos meios de produção, trabalhador e nada burguês demanda um Brecht, um Plínio Marcos (outro conterrâneo meu) e correlatos, sob pena da revolta transformadora vinda debaixo, do nosso caldo cultural à lá Gramsci, da agitação cultural, da ameaça ao status quo, da denúncia, da conscientização revolucionária e de outras categorias que nos são imprescindíveis à arte não serem potencializadas.

Degustemos Carpaccio!

Vittore Carpaccio – Recepção de um Legado, c. 1490, Museu Nacional de Belas Artes, Cuba. “Cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio, Milagre da Santa Cruz na Ponte Rialto, têmpera sobre tela, c. 1496, Gallerie dell’Accademia, Veneza. “Em sua pintura, [Carpaccio] resolve os problemas morais que assediavam o homem do Renascimento, fascinado por uma realidade repleta de objetos, pessoas e matéria.” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio, A Partida de Ceix, c. 1502-1507, Galeria Nacional de Londres. Carpaccio, assim como Shakespeare, cada um a seu modo, retomaram mitos da antiguidade pagã e pré-cristã para o seu tempo, baseando-se, por exemplo, nas Metamorfoses de Ovídio, como é o caso deste quadro.
Vittore Carpaccio – Visitação, entre 1504 e 1506, Galleria G. Franchetti alla Ca’ d’Oro. “O círculo se fecha, e ao olharmos para a tela de Carpaccio, nossa vontade acompanha, dócil e involuntariamente, o fluxo lógico de sentimentos pretendido pelo artista, voltando-se primeiro para uma figura aparentemente perdida na multidão, e depois para outra.” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio – Embaixadores retornam à corte inglesa, c. 1495-1500, Gallerie dell’Accademia. Época proto-moderna de viagens e navegações, que Carpaccio captou exemplarmente. “Quando o analisamos, descobrimos que o princípio é extraordinariamente simples e expressa, no mais alto sentido, a base essencialmente humana da arte renascentista, em minha opinião, com muito mais intensidade do que Rafael.” – Tarkóvski
Linhas de perspectiva do quadro Retorno dos embaixadores à corte inglesa, de Vittore Carpaccio.
Vittore Carpaccio – Crucificação e apoteose dos dez mil mártires do Monte Ararat, Accademia, Veneza. “Podem se passar horas antes que comecemos a perceber o princípio da harmonia que rege a pintura de Carpaccio. No entanto, assim que o apreendemos, permanecemos para sempre sob o encanto da sua beleza e do nosso arrebatamento inicial.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Ciclo de pinturas para a lenda de São Estêvão, cena: Consagração de São Estêvão, detalhe, óleo sobre tela, c. 1540. Gemäldegalerie, Berlim. “Diante [das composições cheias de figuras de Carpaccio], tem-se a perturbadora sensação de que o inexplicável está prestes a ser explicado” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Encontro e Partida dos Noivos, têmpera sobre tela, entre 1495 e 1500, Gallerie dell’Accademia em Veneza. “As composições cheias de figuras de Carpaccio têm uma beleza surpreendente e misteriosa.” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio – O apedrejamento de Santo Estêvão, c. 1520. Staatsgalerie Stuttgart, Alemanha. “Momentaneamente, é impossível compreender o que cria campo psicológico em que nos encontramos, ou fugir ao fascínio que se apodera de nós diante da pintura e nos põe num estado muito próximo do medo.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – São Jerônimo e o leão no convento, têmpera, 1502, exposto na Scuola di San Giorgio degli Schiavoni em Veneza. “A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem ‘incidental’.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – O Triunfo de São Jorge, 1502. Da coleção da Scuola di San Giorgio degli Schiavoni. “A nova relação entre o indivíduo e a realidade exterior é por ele expressa com coragem e nobreza — sem nunca cair no excesso de sentimentalismo, sabendo como ocultar as suas inclinações, a sua vibrante alegria frente à emancipação.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Chegada dos Embaixadores Ingleses, c. 1495-1500, Gallerie dell’Accademia. “A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem ‘incidental’.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Martírio dos Peregrinos e o Funeral de Santa Úrsula, 1493. Accademia em Veneza. “A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem ‘incidental’.” – Tarkóvski
Detalhe ampliado de Martírio dos Peregrinos e o Funeral de Santa Úrsula.
Vittore Carpaccio – São Estêvão é Consagrado Diácono, 1511, Gemäldegalerie, Berlim. “Tudo o que pretendo dizer é que, embora em última instância toda arte seja tendenciosa, que até mesmo o estilo seja comprometido, uma mesma tendência tanto pode ser absorvida pelas camadas insondáveis das imagens artísticas que lhe dão forma, quanto pode ser exageradamente afirmada, corno num cartaz, como é o caso da Madona Sulina de Rafael.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Teseu recebe a embaixada de Hipólita, rainha das Amazonas, c. 1495, tendo como provável fonte a Teseida de Boccaccio, livro I, Musée Jacquemart André, Parigi, França.

5 de dezembro de 2021

Estado e sociedade em Gramsci

No artigo disponível acima, em profundo contato com os Cadernos do Cárcere e outros textos gramscianos e marxistas fundamentais, praticamente a cada parágrafo, eu mostro que, para o líder dirigente do PCI, militante da Internacional, deputado preso pelos fascistas e grande intelectual marxista Antonio Gramsci, Estado e sociedade estão em relação dialética, não dualista.

A separação entre ambos só interessa à ideologia burguesa, que demoniza o público, torna o Estado pura coerção, reivindica a tirana autorregulação do mercado (neoliberalismo e afins) e camufla a dominação de classes na sociedade civil (tida como espaço da “livre iniciativa”), seja a dominação da fábrica capitalista ou do consenso em escolas, mídia, jornais etc. Há também uma esquerda de ingênua fenomenologia anarquista, pior ainda quando cita Gramsci (sem o estudar), que cai na armadilha liberal e, ao invés de lutar pela hegemonia da classe subalterna para esta tornar-se dominante (isto é Gramsci!), rejeita a luta política, reafirma a sua subalternidade.

Ao separar a superestrutura marxiana e engelsiana em dois níveis (“sociedade civil” e “sociedade política”), G. une os dois níveis em teoria inovadora e fatídica sobre o Estado. (Lembrem do poder do lobby no Congresso Federal, do vínculo podre entre empresariado e políticos, da legislação burguesa que molda as ações da sociedade sob a forma mercadoria ou do fato de que as forças militares do Estado servem à defesa da propriedade privada dos meios de produção da burguesia…)

Gramsci mostra que a sociedade civil é um momento do que ele chama de Estado integral ou ampliado e uma arena das lutas de classes. “Todo Estado é uma ditadura.” Esta teoria sustenta as estratégias gramscianas da revolução no Ocidente (“guerra de posição”, “guerra de movimento”, etc.) e a tese da “sociedade regulada” (comunismo), que é construída à medida que o Estado-coerção esgota-se e dissolve-se na sociedade civil para o fim da divisão de classes após a conquista proletária revolucionária do poder (tal como em Marx e Engels, com a diferença de que G. chega a defender a conquista da hegemonia antes da conquista do poder governamental).

Sobre o tripé marxiano ou marxista – a tese das “três fontes” em Engels, Kautsky, Lênin, Gramsci, Chasin, etc.

Texto em construção

Após muitas perguntas sobre esse termo que eu devo ter inventado, cumpre-me apresentá-lo, sobretudo neste momento de tantos desvios e deturpações com relação à teoria revolucionária. O termo é meu, mas não é nada de original ou de novo; trata-se da tese das “três fontes” e “três partes” do marxismo, ora criticada, ora reivindicada.

O marxismo não é monolítico; é, muitas vezes, oscilante, até contraditório e com divergências ferrenhas na própria luta ideopolítica. Porém, a teoria marxiana revolucionária é constituída por alguns princípios socioeconômicos, científicos, filosóficos e políticos básicos sem os quais não há marxismo de fato, porque tratam-se de descobertas seminais e próprias. (Por exemplo, sem a teoria do valor não se identifica a exploração do capitalismo; sem a concepção materialista da história, não se explica a estrutura e a superestrutura, etc.)

Engels

Exposição mais ou menos coerente do método dialético e da ideologia comunista defendida por Marx e por mim, numa série de domínios bastante vastos“, segundo escreve o próprio Friedrich Engels, a obra Anti-Dühring (1877 – recomendo a edição da Boitempo), que formou a primeira geração de “marxistas”, já visava se opor às deturpações do que seria o socialismo; livro “contemporâneo” a Marx, que, mesmo estando ocupado com O Capital, revisou e ajudou sobretudo a parte de Economia Política. A ideologia marxiana é dividida por Engels (ainda que interdependentes entre si) em Filosofia, Economia Política e Socialismo. Abaixo, o índice do livro (a parte da Filosofia será posteriormente criticada por Lukács, na medida em que a dialética engelsiana, com enfoque demasiado na natureza, desconsideraria o homem, o que compromete a práxis revolucionária):

Seção I – Filosofia

111. Subdivisão. Apriorismo
IV. Esquematismo do mundo
V. Filosofia da natureza: tempo e espaço
VI. Filosofia da natureza: cosmogonia, física, química
VII. Filosofia da natureza: mundo orgânico
VIII. Filosofia da natureza: mundo orgânico. Conclusão
IX. Moral e direito: verdades eternas
X. Moral e direito: igualdade
XI. Moral e direito: liberdade e necessidade
XII. Dialética: quantidade e qualidade
XIII. Dialética: negação da negação
XIV. Conclusão

Seção II – Economia política

111. Teoria do poder. Continuação
IV. Teoria do poder. Conclusão
V. Teoria do valor
VI. Trabalho simples e trabalho composto
VII. Capital e mais-valor
VIII. Capital e mais-valor. Conclusão
IX. Leis naturais da economia. Renda fundiária
X. Da História crítica

Seção III – Socialismo

Seção 111 – Socialismo
I. Aspectos históricos
11. Aspectos teóricos
111. Produção
IV. Distribuição
V. Estado, família, educação

Kautsky

As três fontes do marxismo (1908), livrinho de Karl Kautsky, teórico importante para o marxismo e que tivera contato com Marx e Engels no século 19, mas que logo no século 20 será chamado por Lênin de “o renegado Kautsky” por lamentavelmente ter apoiado a guerra imperialista de 1914, já expunha as três fontes a partir do que fora organizado por Engels em Anti-Dühring, porém de maneira mais acessível. Kautsky expõe as três explícitas influências: a economia política inglesa (Adam Smith e David Ricardo), a filosofia alemã (sobretudo Hegel e Feuerbach) e o socialismo francês (que Engels, em seu célebre ensaio Do socialismo utópico ao socialismo científico, opúsculo retirado do Anti-Dühring, chamará de “utópico”, isto é, o socialismo de Saint Simon, Charlie Fourier, Robert Owen, mas no qual Marx, antes de fundar o socialismo científico, entra em contato teórico-prático em sua experiência com a classe trabalhadora francesa revolucionária).

Lênin

As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo (março de 1913), de Lênin, além do “Karl Marx (Breve Esboço Biográfico Seguido de uma Exposição do Marxismo)” de novembro 1914 são dois textos que estão nos meus 3 tomos calhamaços das Obras Escolhidas de Lênin, que, ao menos em termos teóricos, foi fiel a Marx, embora de maneira apressada e, portanto, um tanto quanto reducionista, mas trata-se do beabá: Lênin divide seu breve texto em materialismo e dialética (a partir de Hegel e Feuerbach), economia (Smith e Ricardo, mas sobretudo a teoria da mais-valia de Marx) e o socialismo enquanto lutas de classes. Para Lênin, enfim, há a concepção materialista da história, a teoria da mais-valia e as lutas de classes. Lênin cita duas obras importantes de Engels, Anti-Dühring e Ludwig Feuerbach, afirmando que são livros de cabeceira de “todo operário consciente”. O seu esboço biográfico de Marx seguido de uma exposição do marxismo é um tanto mais explicativo, inclusive sobre o valor.

Gramsci

(Aqui, temos um dos pontos em que Gramsci supera Lênin; há outros, e pretendo enumerar todos ou os principais em outro ensaio.)

Antonio Gramsci, que, nos Cadernos do Cárcere, dispõe de um laboratório terminológico e criptográfico original, refere-se (em parte para escapar da censura fascista, em parte para dialogar com outros autores que usavam tal termo) ao marxismo como filosofia da práxis. Defensor de uma filosofia de base historicista, Gramsci refutou todo e qualquer vestígio de metafísica, mecanicismo, economicismo vulgar e idealismo no tratamento do pensamento de Marx.

No § 33 (“Questões gerais”) e no § 46 do Caderno 11, Gramsci se contrapõe ao ensaio supracitado de Lênin (com quem militou enquanto membro do comitê executivo da Internacional Comunista e a quem define, nos Cadernos, como o “maior teórico moderno da filosofia da práxis”). Ele não descaracteriza as formulações expostas ali por Lênin, mas em Gramsci o tratamento do marxismo surge de maneira bem mais crítica, problematizada e complexa, porque suas condições são outras, enquanto que as preposições leninianas reforçaram a vulgata russa (promovendo parte considerável da vulgata marxista ocidental). Para Gramsci:

“Um estudo acurado da cultura filosófica de Marx […] é certamente necessário, mas como premissa ao estudo bem mais importante de sua própria e ‘original’ filosofia que não pode ser esgotada em algumas ‘fontes’” (Q 11, 70, 1.508 [CC, 1, 223]).

Gramsci parece se referir diretamente ao opúsculo de Lênin:

“Uma concepção muito difundida é a de que a filosofia da práxis é uma
pura filosofia, a ciência da dialética, e as outras partes são a economia e a política; daí se afirmar que a doutrina é formada por três partes constitutivas, que são ao mesmo tempo o coroamento e a superação do mais elevado nível que, por volta de 1848 [data das revoluções de 1848 e do Manifesto Comunista], tinha atingido a ciência das nações mais desenvolvidas da Europa: a filosofia clássica alemã, a economia clássica inglesa e a atividade e a ciência política francesa. Essa concepção – que é mais uma investigação genérica das fontes históricas do que uma classificação nascida do interior da doutrina – não pode se contrapor, como esquema definitivo, a qualquer outra organização da doutrina que seja mais adequada à realidade” (Q 11, 33, 1.448)

Essa “outra organização” é exatamente a filosofia da práxis.

Voltando à “cultura filosófica de Marx” citada por Gramsci, (Caderno 11, § 25):

“A filosofia da práxis nasceu sob a forma de aforismos e de critérios práticos por um mero acaso, a saber, porque o seu fundador dedicou
sistematicamente as suas forças intelectuais a outros problemas, notadamente econômicos; nestes critérios práticos e nestes aforismos,
contudo, está implícita toda uma concepção do mundo, uma filosofia.”

Segundo a filosofia da práxis, política, filosofia e economia são reciprocamente traduzíveis (Q 4, 46, 472-3). Além disso, para Gramsci, não se pode deixar de tratar dos aspectos pertinentes à arte, economia, ética e até mesmo das teorias das ciências naturais, elementos que não aparecem nem de modo implícito no texto de Lênin.

No Caderno 11, Gramsci pergunta-se várias vezes sobre a tradutibilidade recíproca de várias linguagens filosóficas e científicas; a indagação tem como objetivo compreender a “integração” entre filosofia clássica alemã, literatura e prática política francesa e economia clássica inglesa na filosofia da práxis. Para Gramsci, a vulgata russa exposta por Lênin e que remontava a Plekhanov do materialismo marxismo promovia uma justaposição das três fontes, mas a justaposição dos três grandes movimentos culturais do século 19 foi fruto, na crítica de Gramsci e até em estudos de Labriola, da sociologia positivista (v. Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci  (1926-1937), tradução de Luiz Sérgio Henriques, Brasília: Fundação Astrojildo Pereira: Rio de Janeiro: Contraponto, 2012; cf. Paolo Nosella, A escola de Gramsci, São Paulo: Cortez Editora, 2018).

Para resolver a problemática da “integração” que preserve a originalidade da filosofia da práxis, Gramsci aposta no conceito de imanência (Caderno 10 § 9):

“O momento sintético unitário, creio, deve ser identificado no novo conceito de imanência, que da sua forma especulativa, tal como era apresentada pela filosofia clássica alemã, foi traduzido em forma historicista graças à ajuda da política francesa e da economia clássica inglesa”

Giancarlo Schirru, em “La categoria di hegemonia e il pensiero linguístico di Antonio Gramsci” (In: Egemonie, coordenador Angelo d’Orsi com a colaboração de Francesca Chiarotto, Ed. Libreria Dante & Descartes, Napoli. 2008, pp. 397-444, 2008), observa que as notas dos Cadernos detêm-se longamente, e não sem oscilações, sobre as modalidades de como descrever essa conexão [entre filosofia, política e economia], ou seja, de “como a filosofia da práxis chegou à síntese dessas três correntes vivas na nova concepção de imanência, depurada de qualquer vestígio de transcendência e de teologia” (p. 421). Vale dizer que para Gramsci a filosofia da práxis deve criticar e superar a religião – “ópio do povo” para o Marx  da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – para um progresso intelectual  da massa e da classe trabalhadora!

Gramsci, que havia entrado no curso de Letras da melhor universidade de seu país através de uma bolsa (era pobre), ainda que não o tenha concluído devido a vida política atribulada, sabia por meio da Ciência Linguística o reconhecimento da autonomia de cada linguagem. Segundo Paolo Nosella (A escola de Gramsci, 2018), quando esboça o conceito de “tradutibilidade”, Gramsci “rechaça as tentativas do bolchevismo de reduzir o marxismo a instrumento político contingencialmente útil que identificava, mecânica e interesseiramente, política, filosofia e economia, e, até mesmo poesia, música e arte em geral“.

A “unidade” pode ser entendida e até praticada dialeticamente se (Caderno 11, 22)

“[…] a filosofia da práxis for concebida como uma filosofia integral e
original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e, superando, integra em si os seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicional, expressões das velhas sociedades. Se a filosofia da práxis é pensada apenas como subordinada a uma outra filosofia, é impossível conceber a nova dialética, na qual, precisamente, aquela superação se efetua e se expressa.”

Portanto, Gramsci posiciona-se como contrário a reducionismos explicativos do “marxismo vulgar”. Atenta que o tratamento sistemático da filosofia da práxis não pode se dar de maneira reducionista para não se negligenciar nenhuma das partes constitutivas, caso contrário as explicações fáceis levam a noções mecânicas e até idealistas no interior do próprio marxismo, sobretudo quando este penetra no seio da classe trabalhadora.

Gramsci rascunha (Caderno 7, § 18; 1, 236-237):

“A unidade [do marxismo] é dada pelo desenvolvimento dialético das contradições entre o homem e a matéria (natureza – forças materiais de produção). Na economia, o centro unitário é o valor, ou seja, a relação entre o trabalhador e as forças industriais de produção (os que negam a teoria do valor caem no crasso materialismo vulgar, colocando as máquinas em si – como capital constante e técnico – como produtoras do valor, independentemente do homem que as manipula). Na filosofia, é a práxis, isto é, a relação entre a vontade humana (superestrutura) e a estrutura econômica. Na política, é a relação entre o Estado e a sociedade civil, isto é, intervenção do Estado (vontade centralizada) para educar o educador, o ambiente social em geral. (Deve ser aprofundado e posto em termos mais exatos.)”

Ainda sobre o materialismo vulgar, Gramsci atesta no § 16 do Caderno 11:

“[…] É notório, por outro lado, que o fundador da filosofia da práxis [Marx] jamais chamou sua concepção de ‘materialismo’ e que, falando do materialismo francês, criticou-o, afirmando que a crítica deveria ser mais exaustiva. Assim, jamais usou a fórmula ‘dialética materialista’, mas sim ‘racional’, em contraposição a ‘mística’, o que dá ao termo racional uma significação bastante precisa”

Gramsci, acima, me parece se referir ao posfácio à segunda edição de O Capital, em que Marx explica como seu método dialético é oposto ao de Hegel – pondo este “de pé”, mitiga seu invólucro místico e procura o que há ali de racional.

Para Gramsci, a influência de David Ricardo é particularmente significativa tanto na economia quanto na filosofia, porque a teoria do valor e a lei da tendência em Marx deriva dele (Q 7, 42 e Q 10 II, 31, 1.275), além da noção de homo oeconomicus, uma descoberta a que também se deve a Ricardo, implicando no marxismo “uma nova ‘imanência’, uma nova concepção da ‘necessidade’ e da liberdade etc.” (Q 10 II, 9, 1.247) que levou Marx e Engels à superação da filosofia hegeliana e à construção dum novo historicismo sem traços de lógica especulativa (Cartas, II, 205).

Por fim, é impossível compreender totalmente Gramsci se não se compreender outras fontes e autores extrínsicos ao marxismo nos quais ele se debruçou, como Benedetto Croce, George Sorel (e seu neoidealismo e bergsonismo), Giovanni Gentile, depois, Maquiavel (para Gramsci, o “Príncipe moderno” é o Partido Comunista). Ou seja, assim como Marx teria procedido com Hegel, Smith, Ricardo, Gramsci empreende uma assimilação-superação, uma fusão de socialismo deglutindo outras correntes intelectuais para uma formulação revolucionária marxista original. É de Sorel, por exemplo, que Gramsci tomará emprestado o termo “bloco histórico”, mas sob outro ponto de vista, marxista, gramsciano, ou seja, “bloco histórico” enquanto a unidade dialética entre a superestrutura e a estrutura e, a partir de tal superação, o estímulo à criação revolucionária de um novo bloco histórico.

Contudo, se as fontes são discutíveis, constituem para G. três caracteres inseparáveis do marxismo: filosofia, economia e política“, escreve Giuseppe Prestipino no Dicionário Gramsciano.

Chasin

Investigando os textos marxianos, o Prof. brasileiro José Chasin concluiu que neles não haveria comprovação textual da ideia do “tríplice amálgama” ou da incorporação da herança hegeliana e que a própria colocação da questão em termos de três fontes seria enviesada, porque toma elementos alheios ao novo padrão reflexivo instituído por Marx. (Cf. Chasin, “Ad Hominem – Rota e prospectiva de um projeto marxista”, Revista Ensaios Ad Hominem, São Paulo, n. 1, t. I pp. 37-40.) É o caso de sopesar o quanto tal argumentação é pertinente em termos de práxis e de renovação do marxismo, o quanto é ou não academicista, como encarar as citações explícitas nos textos marxianos a partir de tal afirmação polêmica, etc.

Dois parágrafos sobre Aristóteles e Adam Smith em Marx

Aristóteles opunha economia (valores de uso indispensáveis à vida) à crematística (ligada à incessante produção e busca pela riqueza) e já condenava, em sua Política, o dinheiro que é usado para um fim em si mesmo, para a acumulação, ao invés de ser a justa medida na sociedade para que não haja carência de um lado nem excesso do outro. “A troca não pode existir sem a igualdade, nem a igualdade, sem a comensurabilidade”, escreveu Aristóteles citado por Marx em O Capital. O legado de Adam Smith em Marx é bastante “simples”: o autor de Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, mais conhecida simplesmente como A Riqueza das Nações (1776), trabalha a partir das ideias de Aristóteles em sua Política (que já distinguia duas dimensões da mercadoria: o valor de uso e o valor de troca) e na Ética a Nicômaco (que lega à época moderna a compreensão da teoria do valor-trabalho e do valor-utilidade), assim como Marx fará no século posterior (Aristóteles é citado várias vezes no primeiro livro de O Capital); desde a economia mercantil a que se referia Aristóteles, já que as mercadorias devem ser equiparadas ao serem trocadas umas pelas outras, devem conter algo igual quantitativa e qualitativamente, e este “algo igual” é o valor.

Em finais do capitalismo manufatureiro e nos primórdios do capitalismo industrial do século 18, Smith procura explicar o valor de troca pelo trabalho empregado na produção da mercadoria (Marx partirá deste ponto), não pela utilidade, argumentando que coisas vitais como água possuem valor baixo de troca, enquanto coisas menos úteis como jóias têm alto valor de troca. Mas o que é o valor? Há dois significados da palavra valor para Smith – valor enquanto utilidade de um determinado objeto e valor enquanto poder de compra que o referido objeto possui em relação a outras mercadorias. “O primeiro”, conclui Smith, “pode se chamar valor de uso e o segundo, valor de troca”. Eis precisamente o ponto de partida de Marx para O Capital, além de muitos outros autores e até mesmo Shakespeare.

25 de janeiro de 2021

O casal ignorante que ofendeu o fiscal no Rio de Janeiro é da classe “média” ou trabalhadora?

ENTENDAM DE UMA VEZ!

Sobre o casal de ignorantes que ofendeu o fiscal da Vigilância Sanitária em plena pandemia no Rio de Janeiro, li vários – jornais e usuários (a maioria de esquerda) – afirmando que o casal é de “classe média” (termo da sociologia do século 20) ou (o que talvez seja mais correto em termos ideológicos, mas não materiais) são “uma amostra da arrogância da classe média brasileira” (Folha de S. Paulo). Não parece que sejam de “classe média”, pois o tal “engenheiro civil, formado” (palavras de sua própria companheira) solicitou, segundo jornais apuraram, o auxílio emergencial destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e (diz ele) logo cancelou ao arranjar um novo emprego (já perdido pela repercussão negativa do vídeo); a esposa, que demonstra excesso de arrogância e empáfia, após o episódio televisionado também foi demitida da Taesa, onde era contratada em regime CLT – portanto, até que outras informações apareçam (por exemplo, parece também que ela será investigada por supostamente ter uma empresa em nome próprio atuando sem registro nos Conselhos Regionais de Química e de Engenharia, típico de “bolsominions”, e possivelmente típico da “classe média”), são, na verdade, ao que tudo indica até agora, trabalhadores sem consciência de classe. Sim, trabalhadores como os garçons e cozinheiros que, expostos a riscos de contaminação pelo coronavírus, servem os irresponsáveis e superficiais aglomerados em plena pandemia mortífera nos bares barulhentos onde ninguém ouve ninguém, eleitores da direitalha politiqueira que é mera serviçal de empresários que só querem se locupletar. O coitado do fiscal, funcionário público (com mestrado e doutorado, diga-se de passagem, conforme jornalistas apuraram depois de pedir seu relato), é que é, sem dúvidas, de “classe média”, não importando se ganha mais ou menos do que os abordados. Este caso, superdimensionado pela televisão e pelas redes sociais, nos ajuda a entender o bate boca das classes e a confusão do senso comum, a ser identificada e superada para a emancipação geral da divisão exploratória de classes.

Nota de Engels para a edição inglesa de 1888 do Manifesto Comunista. Mais claro, impossível: “Por ‘burguesia’, entende-se aqui a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção da sociedade e exploradores do trabalho assalariado. ‘Proletariado’ designa a classe dos trabalhadores assalariados modernos, os quais, despossuídos de meios de produção próprios, precisam vender sua força de trabalho para poder viver.” E a classe média?! Ora, a pequena-burguesia é uma classe intermediária entre essas duas, não detendo as forças produtivas nem os meios de produção.

No Brasil, onde milhões de pretos e miscigenados se acham brancos apenas por terem a cor de pele mais clara ou não retinta, a ignorância de classe, a falta de consciência de classe também é tão grande e generalizada que se confunde tudo a respeito. Em parte porque, com a nossa histórica tradição autoritária, classe trabalhadora é identificada exclusivamente com miseráveis deserdados da terra, favelados e periféricos sem eletricidade e esgoto, pobres desnutridos, migrantes analfabetos, “incompetentes”, peões de obra e cais sujos de graxa, etc. Talvez em menor medida, tal é o nível do nosso subdesenvolvimento histórico, que o trabalhador também é associado com “descendentes degenerados e aventureiros da burguesia, vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, escroques, saltimbancos, delinquentes, batedores de carteira e pequenos ladrões, jogadores, alcaguetes, donos de bordéis, carregadores, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, afiadores, caldeireiros, mendigos”, isto é, a classe informe que Marx assim enumerou em O 18 Brumário de Luís Bonaparte e, desde A Ideologia Alemã, com Engels, cunhou de lúmpenproletariado (a classe de farrapos, daqueles que dificilmente aderem à revolução e buscam apenas benefícios imediatos, na “hora H” aderindo aos reacionários ou a quem lhes der mais, por causa da própria condição extrema em que se encontram). Com os programas sociais petistas e o passageiro boom dos commodities, a classe trabalhadora brasileira melhorou um pouquinho e de maneira nacionalmente homogênea, mas também ali não houve conscientização de classe, pois logo falou-se, pela imprensa e mesmo entre a esquerda governante, em “nova classe média”, “classe média baixa”, essas besteiras achadas por aqueles que identificam o trabalhador apenas como o metalúrgico ou a faxineira incansável e o pedreiro sem carro, diariamente abarrotados em transporte público. (Tais exemplos também podem ser classe trabalhadora, mas não é esse por si só o critério de definição de classes, ou é o critério farsante da ideologia dominante.) A sociologia vulgar e os institutos de pesquisa do mercado tampouco ajudam, ao contrário, confundem e nublam, propagaram a ideia de que as classes são caracterizadas apenas pela renda e pelo patrimônio, ou seja, há a primazia da aparência superficial, não pelo modo econômico que as forma, pelas relações sociais e econômicas entre elas e pela ação que as caracteriza, tal como o marxismo nos ensina.

Assim, há sujeitos da classe trabalhadora que, apenas por terem renda diferenciada e até varanda gourmet, roupa de marca e celular e carro do ano (comprados não sei quantas vezes no cartão de crédito), já se sentem “classe média” – podem até demonstrar, estando num recorte social mais digno, gostos, ideologia e aparência de “classe média”, mas não o são concretamente, porque trabalham para produzir e enriquecer o capital do patrão, assim como há “classe média” que se acha elite e, não sendo, preenche seu vazio ontológico e sua crise social deslocada com tentativas de prestígio social, diplomas, consumismo, arrogância e riqueza simbólica. Podemos notar esta última característica na “classe média” de TODOS os países. É o que constitui a ação social estreita da “classe média”, que nada de estrutural produz nem detém na sociabialidade burguesa. Nas potências hegemônicas, contudo, a classe trabalhadora como um todo, por mais digna que seja em suas condições, tem consciência de que é classe trabalhadora e não “classe média”, ou padece da mesma alienação mental que temos visto aqui? Boa pergunta que ainda preciso investigar com meus colegas estrangeiros…

Não falo apenas do “pobre de direita” e do “capitalista sem capital”… Trata-se de falta de estudo da teoria entre as próprias esquerdas!

Aprendam de uma vez por todas como definir as classes: a pequeno-burguesia (termo do século 19) é a classe intermediária que não detém as forças produtivas da classe trabalhadora (que vende sua força de trabalho em troca de um salário para sobreviver e produz algo que será roubado, comercializado e acumulado pelo capitalista espoliador) NEM detém a propriedade privada dos meios de produção da burguesia (classe moderna dos capitalistas), restando atualmente a ela as burocracias estatal e empresarial, os serviços públicos, e a pequena propriedade e o pequeno comércio NÃO-FILIADOS às redes de oligopólios transnacionais. No panorama da nossa sociedade mundial, é de “classe média” APENAS quem se situa nesses espaços citados.

(Meios de produção: máquinas, ferramentas, edifícios privados dos ambientes de trabalho, grandes empresas, fábricas, terras, fazendas, matérias-primas, etc.)

Todos os teóricos marxistas e mesmo autores anteriores que observavam, por exemplo, a Revolução Francesa, notam que, por estar deslocada na sociedade, por não deter as forças produtivas nem os meios de produção, a pequeno-burguesia sofre de profunda crise de identidade, vazio espiritual e será sempre um gatilho reacionário e fascistóide. Sabemos que, por sentir-se mais próxima ideologicamente e materialmente da burguesia (daí o nome “pequeno-burguesia”) do que da classe trabalhadora, servirá sempre como um obstáculo aos avanços sociais. A “classe média” é uma tentativa rebaixada de se aproximar ou de chegar a ser classe dominante, ao mesmo passo que estabelece uma distância intransponível para com a classe trabalhadora. No Brasil, esse cenário foi amplamente notado em 1964 ou – guardadas as devidas diferenças – em 2016: a classe dominante interna – com a ordem da externa – preparando ideologicamente a “classe média” para sua contrarrevolução permanente… As exceções confirmam a regra, e os membros esclarecidos da classe média – certos intelectuais, professores e estudantes politizados – se identificam e apoiam a luta da classe trabalhadora, ainda que de maneira limitada pela própria condição de classe deles.

Por fim, a filósofa Marilena Chauí, alertando para a farsa da “nova classe média” propagada pelos jornais durante a era petista, argui, em tese recente e incontornável, que serve para o mundo todo por conta da internacionalização do capitalismo, o seguinte: com a mutação neoliberal do capital, com o desmantelamento do modelo fordista, a “classe média” DIMINUIU enormemente, ao contrário do que o senso comum acha, enquanto que a classe trabalhadora aumentou enormemente. Ou seja, vários sujeitos que eram antes da “classe média”, por conta da forte monopolização do capital nos oligopólios transnacionais, passaram a fazer parte da classe trabalhadora (se preferir, de uma “nova classe trabalhadora mundial”). Observe que uma série de profissões, liberais ou não – médicos, dentistas, advogados, e outras que sempre se consideraram classe média – estão hoje em grande parte trabalhando em empresas privadas de “saúde”, “advocacia”, etc., são empregados e assalariados, subordinados ao dono burguês. Mesmo que, agitando bandeira do Brasil (nacionalismo de araque) e se dizendo anticomunistas na Avenida Paulista ou na Candelária, mesmo que não saibam ou não queiram, ainda assim são classe trabalhadora.

Marx bem afirmou que, com o desenvolvimento e a crise do capitalismo, a classe média tende a desaparecer no confronto inevitável que existe pela contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Noto que, justamente por ter diminuído e por estar desaparecendo aos trancos e barrancos, a pequeno-burguesia (e a “nova classe trabalhadora mundial”, que pensa ser elite) dos EUA, da Europa, da América Latina, mesmo da Ásia (quem aí ainda não assistiu Parasitas?!) tem se tornado intransigentemente violenta e de extrema-direita, desesperada com o fim de seus valores, privilégios e tradições familistas, com o seu próprio fim.

Ps.: Classe social não é apenas algo determinado economicamente – é também um sujeito social, político, cultural – não é algo, é uma ação – que se transforma por meio das lutas de classes.

10 de julho de 2020