Anotação sobre o momento atual do mundo… (ação militar russa na Ucrânia)

Interesses de classes não comportam maniqueísmos… E a sobrevivência é o único valor em situações-limite, sobretudo as causadas pela indústria bélica capitalista a levar sofrimento e mortes aos povos…

A Europa Ocidental — incluindo seus partidos de esquerda — anunciam sanções, bloqueios e até expropriações de oligarcas russos frente à agressão russa à Ucrânia; por que não fazem o mesmo com magnatas dos EUA quando este país invade e agride tantos outros em busca de petróleo e desestabilização geral? É a hipocrisia. Porque europeus — que gladiam entre si há milênios –, sejam de esquerda ou de direita, temem ser pegos no conflito, que se avizinha, enquanto que os outros casos, tão terríveis e mais, ocorrem longe de suas zonas hegemônicas de conforto, no Oriente Médio e alhures, então pouco lhes importa… No caso dos EUA, nem é preciso pensar muito acerca do que mantém sua sociedade sob o complexo industrial-militar.

(Ps.: Um dia após eu escrever isto, vejo pelas redes este vídeo de compilação chocante que confirmou minha afirmação: não faltaram “jornalistas” europeus e dos EUA a dizer pelas TVs, com racismo escancarado, que essa guerra lhes impactava por não se tratar de Síria ou Afganistão, mas de país “europeu”, “civilizado”, com civis fugindo em carros iguais aos deles e de “olhos azuis” morrendo, etc.)

Alemanha (ali bem perto), França, Holanda resolverem ajudar militarmente a fraca Ucrânia, que tenta ingressar na União Europeia, cristaliza esse quadro. Conforme os jornais noticiam, o governo da Ucrânia, num ato de insanidade, empurra civis contra o Exército daqueles cujos antepassados um dia já derrotaram Napoleão e Hitler, armando e incentivando a preparem coquetéis molotov (!), proibindo a saída de homens entre 18 e 60 anos, e seu presidente, um ex-comediante antipolítico que fez vídeo nada engraçado antes das eleições fuzilando parlamentares, falhada, até agora, a concessão à OTAN, mente pelas redes em tentativa de encorajar incautos, quando é óbvio que ou está de malas feitas ou próximo a ceder aos russos…

Mas a problemática se acentua para nós.

Entendo nossa específica posição latino-americana de torcida frente a qualquer inimigo do hegemonismo dominador de EUA e Europa (e à OTAN, organização de métodos militares terroristas), que tanto nos tolheram (para dizer o mínimo) historicamente, um adversário que seja capaz de quebrar com eles, golpeá-los pra valer e, assim, oxigênio, permitir que façamos surgir sangue novo no jogo de xadrez geopolítico multipolar.

O fato, pena, é que uma simples pesquisa comprova que o partido de Putin é o Rússia Unida, uma aglomeração de oligarcas, “raposas” grandes e também do tipo “pega-tudo”, junto a outras coalizões de direita e até de extrema-direita. Partidos socialistas e comunistas da Rússia atual, majoritariamente compostos pela juventude, porém pequenos e fragmentados desde o fim da União Soviética (cujo escalão final era composto por idosos em descompasso com movimentos sociais), tentam protestar contra o que eles próprios chamam de ditadura (palavra neutra e complexa no marxismo, aliás), e as declarações públicas desses grupos de esquerda atestam em que lado estão: na oposição a Putin. (Paralelamente aos liberais pró-Ocidente, assinala-se, estando estes em maior número e com mais dinheiro…)

Não é à toa que, em longo discurso sobre a problemática situação atual, Putin, sempre de cara excessivamente sóbria e anestesiada, responsabilizou veementemente Lênin e outros comunistas soviéticos do passado por terem defendido criar uma Ucrânia separada, assim como outras regiões historicamente russas. (É certo que aquilo acontecia quando não havia ainda a OTAN, que está tentando cercar e dominar tudo, sendo esta a única justificativa plausível para sua decisão bélica… Lênin, por exemplo, não viveu para testemunhar o período do pós-segunda guerra mundial em que os EUA assumem de vez o que ele mostrara em sua teoria do imperialismo; até então, era a burguesia da Europa que desempenhava tal papel de maneira dominante.)

De qualquer forma, por mais defensivo que esteja frente a tal hegemonismo, todos sabemos que o “putinismo” é nacionalista, não internacionalista (princípio comunista básico), que é preconceituoso e ortodoxo nos costumes e quanto a outras conquistas caras às nós, ocidentais, que impede livres organizações da classe trabalhadora, que seu suporte à Venezuela ou a Cuba é mais estratégico do que qualquer outra coisa (assim como o era durante a União Soviética, quando esta já pouco ou nada tinha de revolucionária, mas de burocrática, quando pouco fez para barrar a interferência dos EUA em nosso continente); enfim, que está mais próximo ideologicamente do czarismo.

O hegemonismo dos EUA e da Europa não fará falta nenhuma e deve ser mitigado, varrido do mapa, e este é o momento, por conta da falta de grandiosos líderes ocidentais, mas tenho os pés no chão e o estado atual não me faz ver um mundo melhor com estes dois gigantes em momento pós-revolucionário ou até contrarrevolucionário de sua história, que um dia experimentaram fase mais popular e gloriosa do que agora: uma Rússia já nada socialista e uma China tão capitalista, este país, inclusive, cuja arma poderosa não é o míssil, mas o mercado, desde que o descobriu e por esse monstro insaciável foi picada — basta ver o que é o 99, aplicativo brasileiro comprado por um bilionário chinês e que explora informalmente nossos desempregados tal qual a Uber dos EUA, basta ver como empreendimentos chineses no Nordeste brasileiro ameaçam população e natureza tal qual qualquer essência capitalista apocalíptica –, daí a lástima de não termos ainda, não neste momento de DESgoverno federal de provincianos, incompetentes, ridículos, muito, muito pequenos, um Brasil forte e decisivo no jogo geopolítico, dando a sua imensa contribuição…

(E tal lamentação final dá assunto para outro aspecto, nosso, a ser resolvido a partir deste ano eleitoral e eleitoreiro de alguma mudança: temos, a rigor, três possibilidades internacionais e diplomáticas do miscigenado e diverso Brasil por vir – uma direitalha dependente e entreguista, uma esquerda potente mas limitada e uma extrema-esquerda, minha vertente favorita, mas imensamente precária de pensamento e meios materiais, praticamente inexistente na práxis, adolescente, deslumbrada, apologista, sem marxismo, ou, quando com marxismo, ainda em fase teórica.)

27/02/2022

Lula readquire os direitos políticos e está elegível para 2022: vamos pensar?

Não existe “polarização” (farsa da ideologia liberal): existem lutas de classes, ora veladas, ora abertas, como já afirmava o Manifesto Comunista, e com seus respectivos representantes ou lideranças…

Escrevi, há poucas semanas, um texto crítico com relação a Lula, intitulado “Lula e a utopia da conciliação de classes“, mas nunca deixei de considerar o fato inconteste de ser ele a maior liderança orgânica do país e uma das maiores do mundo – em determinados momentos, um protagonista do movimento progressista.

Agora, a reabilitação dos direitos políticos de Lula com a anulação dos processos dos lesa-pátria lavajateiros de Curitiba – por um Edson Fachin que, com toda certeza, quis com sua manobra livrar Sérgio Moro, agradar a gregs e troianos – e, já no dia seguinte, o início do julgamento da suspeição de Moro pelo Supremo Tribunal Federal (que Faschin quis interromper, revelando sua intenção) certamente restauraram a cidadania e provocaram uma onda de alegria, entusiasmo, fôlego e alívio em milhões de brasileiros num momento terrível e cinzento de DESgoverno, falta de liderança, desmobilização, isolamento geopolítico, distanciamento sanitário, crise capitalista, sufoco, descrédito, nenhuma perspectiva, ataques direitistas e pandemia mortífera. Tento não me deixar levar e ter os pés calcados na crítica.

O momento talvez lembre, guardadas as enormes diferenças contextuais e até de estatura das figuras, a ditadura de Vargas I e a promessa de um Prestes Cavaleiro da Esperança redentor, que não se cumpriu. Aliás, ambos – na verdade, Vargas II – subiram juntos em palanque anos depois…

Agora, pensem bem. Se a grande mídia hegemônica – Globo, Folha, Estadão – está fula com Lula  (chamando-o de “monstrengo”, mais uma vez investindo no terrorismo da época da Guerra Fria ao dizer que ele joga o Brasil “num turbilhão de incertezas”, sendo que governou também para eles e para o empresariado por 8 anos, estupidamente nivelando-o com Bolsonaro, já que o plano seria emplacar um direitista que continuasse com as contrarreformas antipopulares, o que eles não têm, etc.), Lula, um utópico da conciliação de classes, imaginem o que os capitalistas e seus capangas fariam contra um comunista, um marxista realmente calcado na teoria e na práxis que fosse intelectual/líder orgânico e tivesse enorme organização popular consigo!

Isto é para vocês verem o quão ignóbil e desprezível é a nossa elite econômica, o quão a centro-esquerda apenas ocupa posições que deveriam ser de uma direita minimamente sensata, o quão irracional é a direitalha, que só ganha com marionetes toscas não-orgânicas, bizarras e exóticas sem projeto sério – Jânio, Collor, Bolsonaro, etc. Diante dessa miséria ideopolítica, resta à doutrina marxista ser ainda minoritária na esquerda – mas sua força é explosiva!

Os destinos de Marighella, Che Guevara, Allende (um médico equilibrado, que disputou eleição nos conformes da regra eleitoral da farsa burguesa, porém autoproclamado comunista e suicidado por Pinochet e EUA!), personagens da Intentona Comunista e muitos outros nomes deste continente e alhures (praticamente todo marxista e comunista) que o digam, a própria História mostra o que acabo de afirmar sobre o elitismo anticomunista…

Para terminar, cabe uma palavra filosófica. Obviamente, não se trata apenas da situação de que uma transformação radical exige uma reação radical, de que um processo revolucionário justificaria a contrarrevolução (fórmula nazifascista em favor dos capitalistas e proprietários fundiários), mas o inverso, a transformação é radical justamente pelas próprias condições dadas no jogo de tabuleiro após a acumulação primitiva e a concentração da posse, porque os oponentes de tal transformação já estão fortemente armados contra a melhoria da humanidade e da socioeconomia para perpetuar seus sórdidos interesses e privilégios de classe dominante, que queremos abolir e socializar a todos e todas.

Ver também

Lula e a utopia da conciliação de classes

“Você está lembrado qual foi a atitude que eu tomei quando eu ganhei as eleições? Você está lembrado que eu coloquei todo ministério em um avião e levei todos os ministros para os quatro lugares mais pobres do Brasil? O que que eu queria com aquilo? Eu queria que um Meirelles, que era banqueiro, eu queria que um Palocci, que era médico, eu queria que um Furlan, que era empresário, conhecesse uma palafita, que vissem o homem e a mulher [que] no mesmo lugar que eles defecavam eles comiam, eu queria que eles vissem a quantidade de meninas com dois ou três filhos com pai desaparecido, eu queria que eles vissem o vale do Jequitinhonha, queria que eles conhecessem o mundo tal como ele é, não o mundo de Brasília. Então a esquerda tem que assumir compromisso”. – Luís Inácio Lula da Silva, entrevista a Glenn Greenwald no cárcere, 21 de maio de 2019 (vídeo completo; transcrição em texto)

“Twitte” oficial de Luís Inácio Lula da Silva a partir de entrevista sua em fevereiro de 2021.

Jamais me esquecerei – e quero ainda pôr isto em cena teatral tragicômica – de Lula, a maior liderança popular e orgânica de centro-esquerda do mundo contemporâneo, o único a encher de gente tanto o Nordeste quanto a Avenida Paulista, partícipe das maiores greves do país, ex-metalúrgico de base, co-fundador de um Partido dos Trabalhadores, Presidente do Brasil duas vezes em eleições históricas e de massas, na cadeia, em entrevista a Glenn Greenwald (em que, inclusive, lembra enfático que nunca declarou que faria um governo socialista), ORGULHOSO em contar que seu ato primeiro de governo foi reunir seus ministros, o banqueiro Meirelles, o empresário Furlan, o médico Palocci e levá-los para ver como vivem os brasileiros nas palafitas (ele mesmo viveu em uma, sabe na pele como é!), metro cúbico em que onde se come é também onde se faz as necessidades fisiológicas. Se eu fosse pintor, já teria pintado a cena memorada em estilo portinaresco.

Este episódio factual é o suprassumo da utopia da conciliação de classes, que se tornará visivelmente insustável com a Presidenta Dilma Roussef! Utopia na acepção negativa da palavra. É o cúmulo da ingenuidade! Ou talvez não seja ingenuidade: “Vim mais à FIESP do que à CUT“, declarou o Presidente Lula em 2010, já deixando o segundo governo, a empresários de São Paulo, e não em tom de arrependimento, e sim para mostrar ao empresariado capitalista que eles “nunca ganharam tanto dinheiro” quanto no seu governo, que esteve mais ao lado deles do que da Central Única dos Trabalhadores… De qualquer forma, trata-se de um dos piores e melhores momentos da História do Brasil! Quem quer entender o que vivemos hoje precisa mergulha na reflexão daquele acontecimento. É exemplo do que a esquerda não deve fazer, é exemplo tácito de que devemos lutar para fazer o oposto! Um ex-metalúrgico (profissão extinta, aliás), com a máquina do Estado brasileiro nas mãos, servindo de mediador político entre subproletariado e apáticas burguesia e pequena-burguesia, que odiarão a mínima ascensão social promovida, no momento mesmo em que o capital hegemônico estrangeiro, especialmente da reação dita imperialista dos EUA, tampouco admitirá o protagonismo brasileiro! As lutas de classes são um dado científico, e as primeiras linhas do Manifesto Comunista de 1848, o qual o ex-deputado federal petista José Genoíno (partícipe na Guerrilha do Araguaia e de reputação destruída após o famigerado “mensalão”) cita no final de entrevista de 4 dias atrás como norte da fileira pela qual ele luta, mostrou que “opressores e oprimidos sempre estiveram em oposição, travando luta ininterrupta, ora velada, ora aberta, uma luta que sempre terminou ou com a reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou com o ocaso conjunto das classes em luta”. (Resta saber, tendo como base de discussão a argumentação lançada pelo grande filósofo Álvaro Vieira Pinto em Consciência e Realidade Nacional, o momento em que as lutas de classes nacionais, internas, seriam menos importantes e mais secundárias do que as lutas de classes entre o país subdesenvolvido e as forças externas hegemônicas, mas Vieira Pinto defende essa tese antes do golpe de 64, pensando em ampla integração desenvolvimentista nacional e com boas reformas estruturais em torno de João  Goulart… A revolução pode ser incerta, mas a contrarrevolução, neste continente que luta há séculos por sua emancipação, é sempre certa, daí a necessidade da construção revolucionária e da luta pela hegemonia antes da conquista do poder governamental, tal como propõe Antonio Gramsci.)

Mas não poderia ser mais tragicômico o episódio referido: Henrique Meirelles (24° Presidente do Banco Central do Brasil sob o governo Lula) depois foi ser ministro da Fazenda do governo ilegítimo de Michel Temer pós-golpeachment, depois Secretário da Fazenda e Planejamento do governo estadual austero do tucano João Doria, ou seja, nem quis saber da prisão de Lula, retirado propositalmente da eleição, e de seu impacto ao país, enfim, tem cabeça de banqueiro (salvo engano, a sua candidatura à presidência em 2018 foi a mais cara de todas, talvez mais cara do que a do tosco Amoedo do Partido “Novo”: Meirelles, o gorduroso indolente, se deu ao luxo de tirar milhões do bolso, mesmo sabendo que perderia!), assim como Luiz Fernando Furlan (ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo Lula) tem cabeça de empresário, e ambos devem embarcar nos últimos anos – ou desde já aquela época da coalização entre PMDB e PT – na monomania midiática desprezível e renitente de contrarreformas neoliberais (defendidas agora por Lira e Pacheco no DESgoverno Bolsonaro, que já em campanha em 2017 e antes da posse, em 2018, primou pelo ódio racista às classes subalternas e defesa vocal do patronato), contrarreformas que nos atiram no atraso e atacam a classe trabalhadora, que dirá os brasileiros quase sem classe que vivem em palafitas, já que, de lá para cá, também aumentou o número de seres sociais e até famílias nas ruas, pivetes nos sinais – doenças que tinham acabado, assim como o Brasil retorna ao Mapa da Fome do qual tinha se livrado pelo projeto petista (Fome Zero e outros); Antonio Palocci (ex-ministro da Fazenda no governo Lula, tendo renunciado) talvez seja caso ainda pior, pois, como todos sabem, voltou-se direta e pessoalmente contra Lula (que o rebateu e o justificou chamando-o de “médico, frio” diante do juizeco-asset Sérgio Moro), acusando Lula em processo de corrupção para se safar em delação premiada (a Polícia Federal acabou concluindo que a delação de Palocci não se sustenta).

Eis a índole bandida da burguesia e da pequena-burguesia, e toda política conciliatória pragmatista significa nos colocar nas mãos dessa gente cujo rosto sem máscaras é Bolsonaro, porta-voz de todos os vícios, esculhambações, incompetências, crueldades e pensamentos mais secretos e sinceros da educada e bem asseada burguesia, tal como o fenômeno que ocorre no romance O Retrato de Dorian Gray, do socialista Oscar Wilde, e tal como Hitler em 1932 em discurso num clube de industriais alemães, afirmando que para a classe dominante perpetuar seus privilégios, seria preciso sacrificar as outras classes, porque a crise havia mostrado que “não há o suficiente para todos” (como se vê, o nazifascismo, surgido do capitalismo, é o extremo-oposto do generoso e justo comunismo, cuja fórmula Marx inscreve na Crítica do Programa de Gotha: “de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade“)…

O próprio sociologóide weberiano FHC, muitas vezes visto como o contraposto de Lula (adversários clássicos e representantes políticos de classes em conflito entre si), denominado “príncipe dos tucanos”, incólume pela justiça elitista, que surge sempre na mídia grande como se tivesse sido exemplo de presidente (na verdade, seu governo fraco e pró-FMI testemunhou significativas greves, fome, desleixo social), disse, anos atrás (cerca de 2008) em entrevista ao Canal Livre, que Lula, apesar de ter sido metalúrgico, surgido das Grandes Greves do ABC Paulista, nunca viu o mundo sob o prisma das lutas de classes, e sim da conciliação, de uma democracia cristã ou algo do tipo. Quão certo ele está! Sentando-se com o empresariado da FIESP de um lado e sindicatos e organizações de trabalhadores do outro, esse intruso (para as elites) vindo num pau-de-arara do sertão pernambucano, mas ingênuo “antileninista”, não duvido que com a melhor das intenções e em busca do bem comum (o qual será sempre superficial na sociedade de classes, a menos que vire bem comunista, isto é, tomada, expropriação, distribuição e socialização da propriedade privada dos meios de produção), julgava encontrar para ambas as partes luz no fim do túnel. A luz era um trem.

Na verdade, foi pior do que isto, foi pior do que ingenuidade. “Vim mais à FIESP do que à CUT“, declarou Lula em 2010 a empresários em São Paulo, no ano em que deixava seu segundo governo. E tal frase não era em tom de arrependimento, e sim para mostrar ao empresariado capitalista que eles “nunca ganharam tanto dinheiro” quanto no seu governo, que esteve mais ao lado desses do que da Central Única dos Trabalhadores.

O “cavalheiro da esperança” vã, Prestes, nos anos 1980, já tinha um pé atrás e insistia em entrevistas que Lula deveria ler teoria, ser marxista, uma vez que era quadro orgânico advindo da classe trabalhadora e da base da pirâmide social. Não basta sentir na pele, se não se assimila no cérebro. Aqui, há toda a problemática da Crítica (da teoria) e da prática a ser resolvida dialeticamente em unidade (muito bem formulada por Gramsci), jamais com dualismo. Mas o PT possui ojeriza da teoria e nem mesmo a sua Fundação Perseu Abramo estimula a práxis a partir de uma teoria minimamente marxista. As escolas do MST, que possuem como guia Paulo Freire, vão até onde? Quem poderia suprir essa defasagem em Lula, a “cabeça” de Lula para finalmente chegar à vitória federal após quatro derrotas (ainda que tenha chegado sempre no segundo turno) foi José Dirceu, que era comunista na juventude, mas não mais na maturidade sob o marqueteiro eleitoreiro Duda Mendonça e a Carta ao Povo Brasileiro para acalmar o mercado com a vitória em 2002. Hoje, sim, com a reputação destruída, Dirceu retorna ao discurso socialista (basta assistir o final de sua entrevista com o liberal social Fernando Haddad), assim como José Genoíno, ambos tentando recuperar o tempo perdido… Este último assumiu, na entrevista já referida de 4 dias atrás, que o “PT teve ilusões com o compromisso democrático da burguesia”. Estranho que tenha sido preciso um trauma tão grande, que fez até mesmo camadas populares, não só a pequena-burguesia, ter ressalvas a um partido que se chama dos trabalhadores após a intensa campanha midiática de demonização com táticas da Guerra Fria, financiada pelos capitalistas com o dinheiro da classe trabalhadora, para surgir a consciência do óbvio.

De fato, mesmo nos estertores recentes, quando as instituições burguesas mostram-se falidas, quando a Constituição de 1988 demonstra suas fragilidades sociais e políticas e uma franja pilantra e alucinada chamada extrema-direita irrompe com discurso radical, não cabe à esquerda ser conservadora e defender as intuições que só prejudicam a classe trabalhadora, e sim ser ainda mais radical e mostrar a farsa do outro lado. Não cabe falar em “democracia em vertigem”, pois esta democracia é a ditadura do capital, e há uma outra democracia possível, popular, direta, de conselhos a ser defendida, não a “democracia” das instituições conservadoras na economia. (Aliás, o documentário de Petra Costa é crítico, ao contrário do que muitos dizem, porque não só registra o fato do partido ter se distanciado das bases em nome do pragmatismo, como também mostra o Lula que confrontava os bancos nas campanhas em que perdeu, até investir na ampla agregação nacional, quando ganhou.)

O máximo que Lula conseguiu chegar foi em histórico vídeo do tradicional dia 7 de setembro de 2020 (Dia da Independência do Brasil), ainda que com trilha de fundo forçada, já liberto, em que destoa muito acima do discursesco deplorável e esquecível do medíocre, limitado, tacanho, tartamudo Jair Bolsonaro e critica o capital (fez quase lembrar o célebre discurso de Lincoln, que distinguia o capital do trabalho, assim como Marx, que lhe escreveu efusiva carta na Associação Internacional dos Trabalhadores) e mostra-se um verdadeiro líder protagonista e calejado, mas isto não passa de retórica, pois as pautas petistas são as mesmas, agora sem boom dos commodities, e há mesmo socialistas, comunistas, marxistas já se perguntando se o discurso anticapitalista do PT não serve para conquistar eleitoralmente as esquerdas sem entregar realmente pautas compatíveis com a fala… Só haverá transformação real nesse partido (e sua renovação para transformar o Brasil, já que é o maior do chamado “campo progressista”) quando a Juventude Socialista do PT deixar de ser agremiação de militontos, virar realmente socialista e expulsar, junto à classe trabalhadora, a cúpula jurídico-pelega, ou então é melhor disputar a teoria revolucionária num partido dito comunista ou apostar as fichas e a energia na criação dum novo partido…

O fato é que a centro-esquerda petista, cada vez mais burocrática (ou pelega, se quiserem, mas sem surpresas, pois o PT nasce não do marxismo e sim do sindicalismo que já acabou enquanto espaço amplamente agregador das lutas e que se limitava a melhores condições de trabalho e a melhores salários, sem nada falar de mais-valia ou mais-valor), surfando com extrema competência administrativa e sensibilidade social no boom dos commodities, desconsiderando até mesmo reformas em troca de programas sociais, entre o pragmatismo, o assistencialismo, o consumismo, o eleitorismo e outros ismos, fortalecendo a carteira assinada, mas sem consciência revolucionária (foi fácil a direitalha surgir e destruir tudo, pois não havia estofo construído por baixo), pintou de lindos esmaltes as unhas da elite capitalista, até o esmalte se desgastar e revelar as garras dos monstros…

7 de fevereiro de 2021

Marxismo e feminismo e “marxismo feminista” – recomendações de livros, autoras e autores

Notas Prévias

– Trata-se de uma “antologia” em construção. Veremos, através da própria vida-obra de diversas autoras proeminentes do marxismo, que, nem do ponto de vista teórico, muito menos do ponto de vista prático e histórico factual, no fundo, quando o assunto é Crítica e Emancipação, o marxismo não é oposto ao feminismo (há feminismos, e aqui, é claro, entende-se o método e o conteúdo do feminismo enquanto crítica classista da exploração da mulher e pela transformação socioeconômica estrutural da sociedade, menos quando o feminismo se reduz a um movimento sóciopolítico arrivista de classe média, o que o faz adequar-se à retaguarda do liberalismo), embora tal intersecção entre feminismo e marxismo, tanto no método quanto no conteúdo, seja mais complexa e problemática do que pareça (ou, talvez, falsa, não havendo, para algumas autoras, separação entre as lutas e teorias). Hoje, já existe um feminismo marxista; também existem marxistas mulheres que não fazem questão de usar o termo feminismo ou que o tornam indissociável do marxismo, sem contar as feministas ecléticas que se utilizam, vez ou outra ou sempre, do método marxista para determinados fins teóricos e práticos. Não faltam ainda hoje e não faltaram marxistas e comunistas mulheres que exerceram críticas ferrenhas ao ecletismo e ao feminismo liberal pequeno-burguês das próprias mulheres… É consenso, entre elas, que esse feminismo não é alternativa superior ao marxismo nem pode lhes oferecer plena emancipação e crítica.

– A conclusão que podemos estabelecer através das autoras logo citadas (que escreveram e pensaram a partir de uma prática pela transformação da realidade e do status quo) é que, sem o marxismo, o feminismo, assim como todas as outras fileiras e campos ideopolíticas novas e antigas, torna-se meramente representativo e desejo de ascenção e inclusão efêmeras, manco, ingênuo, até politiqueiro, superficial e arrivista, incapaz de compreender as raízes dos seus problemas e resoluções, cooptável pela própria estrutura que pensa combater e não a supera; sem as contribuições teóricas e de luta específicas das mulheres, o marxismo, por sua vez, que desde o início esteve conjuminado a elas, seria distante, possui lacunas teóricas e problemas básicos de práxis diante dos desafios do nosso tempo. Vale lembrar que, mesmo estatisticamente, as mulheres estão em peso na massa e na classe trabalhadora, no arcabouço fundador e mantenedor de nossas sociedades e cada vez mais a ocupar espaços intelectuais, tornando-se impossível não vislumbrá-las no topo das lutas e dos debates, assim também com negros e miscigenados.

– Antes de qualquer coisa, “marxismo” refere-se, é claro, ao gênio Karl Marx (1818-1883), um revolucionário cuja obra, basilar, seminal, a grosso modo – simplificando muito para não sairmos do objetivo específico desta pequena antologia – expõe e estuda, através da concepção materialista da história (expressão frequente de Friedrich Engels, seu parceiro intelectual e de militância) e de um novo método dialético, a sociedade de classes burguesa e a estrutura capitalista exploratória, defendendo para a sua superação a construção do comunismo pela classe trabalhadora, tal como os capitalistas modernos tomaram o poder político e econômico da aristocracia no curso do desenvolvimento da história humana. Traçamos o marxismo em três partes que se intercalam num tripé, tal como propõe o Anti-Dühring: a teoria do valor (a partir da crítica da Economia Política), que identifica a exploração do capital; a filosofia dialética e a concepção materialista da história, cujo “elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real“; o socialismo enquanto lutas de classes e teoria do poder, da revolução e do Estado. É impossível, aqui, nos aprofundarmos nestas três partes, coisa que faço sempre que posso em outras oportunidades. O importante, por enquanto, é sabermos que não há marxismo (ou há um pseudomarxismo) quando se esquece ou se negligencia uma das partes supracitadas.

– Na obra de Marx, não há identidade sexo/gênero, nem mesmo em cartas ou notas (a menos que descubra-se algo inédito para o MEGA) de maneira aprofundada, apenas algumas colocações muito pertinentes e por si só fundamentais, conforme veremos. O Manifesto (1848) da Liga Comunista (que contava com a participação de mulheres) já trazia a necessidade da “comunidade de mulheres” independente contra a dominação burguesa, antecipando de maneira impressionante as lutas feministas e propondo uma via revolucionária. Somente podemos acusar Engels de homofóbico (em um ou outro episódio, como no caso do pioneiro gay e socialista  Karl H. Ulrich, ou para tratar da pederastia grega antiga), mas de uma maneira tão pueril e sarcástica que, naquela sociedade vitoriana hipócrita, fundamentalista e puritana de então, que aprisionava, condenava e cerceava os destoantes, é algo que torna-se quase batido e nada criminoso. É certo que o miolo da obra de Marx é eurocêntrico (vale lembrar que, saindo do atraso político e econômico da Alemanha de então, por forças maiores ele se exila na Inglaterra, onde o capitalismo industrial estava muito mais desenvolvido, com todas as agruras sociais provenientes desse desenvolvimento – a elite inglesa foi catapultada a partir do ouro brasileiro, vale dizer), mas em cartas e em trechos de várias obras Marx não deixou de mostrar interesse, até o fim da vida, e sobretudo nos anos finais, em muitos outros países e nas regiões periféricas do capital.

– Como se sabe, não são poucos os conceitos nem pobres as teorias implicadas a partir de tal simplificação do que é o marxismo, mas há um termo marxiano que nos importa, por enquanto: Marx nos fala no “ser social” – até então, não se aprofunda em gênero, raça, sexo, identidade ou outro componente deste “ser social” e jamais tomaria qualquer uma dessas categorias como central do ser social, porque o que funda este ser é o trabalho, esta, sim, uma categoria (ou até mesmo ação) fundante. O caráter fundador do trabalho no ser social unifica toda a raça humana, mas, sem as particularidades (inclusive de classes sociais!) do ser social, essa afirmação seria puramente idealista, abstrata e fora da realidade concreta. Dito isto, é importante também afirmar que, uma vez dispostos os termos “marxiano”, “teoria marxiana”, “obra marxiana” e afins (para identificar as próprias obras de Karl Marx), todos sabem que o termo “marxismo”, por si só, e já ampliado a partir do homem que lhe deu o nome, apesar de calcado em fundamentos contrários a ecletismos, dogmatismos, deturpações e deformações, nunca foi inteiramente monolítico nem em táticas e estratégicas nem no método e na teoria (“Tudo o que eu sei é que não sou marxista”, teria dito ironicamente o próprio Marx, mas a respeito de pseudomarxistas franceses já do seu tempo, conforme registra Engels numa carta).

– No marxismo (ou na própria obra marxiana), a relação sujeito – objeto não é prejudicada por um suposto predomínio do sujeito econômico (da sujeita econômica) em detrimento do sujeito histórico (da sujeita histórica); nem há objeto sem sujeit@ ou sujeit@ sem objeto. Marx frisa, nas Teorias da Mais-Valia (Theorien über den Mehrwert), que há uma conexão entre a produção intelectual e a produção material e que esta última não deve ser considerada “[…] como categoria geral, mas em forma histórica determinada. […] Se não se concebe a própria produção material em sua forma histórica específica, é, então, impossível compreender o que é determinado em sua produção espiritual correspondente e a ação recíproca entre ambas”. E, embora Marx nada tenha escrito especificadamente sobre subjetividade, pululam em sua obra passagens que fornecem bases para uma construção teórica da subjetividade (Eduardo F. Chagas, “O pensamento de Marx sobre a subjetividade”, Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 2, p. 63-84, Maio/Ago., 2013, p. 66), que jamais é autônoma ou pura muito menos simplesmente natural e imediatamente dada, mas construída socialmente, estando em movimento, produzida numa dada formação social e em determinado tempo histórico. Em consequência, tal subjetividade se constitui na relação com a sociedade (hoje, capitalista – e que estágio e tipo de capitalismo?!) que a forja e a mantém.

– É consenso contemporâneo no marxismo, sobretudo em suas fileiras mais radicais, que o direito ao voto às mulheres e a proibição da discriminação de gênero ou raça, além de outros direitos individuais conquistados no curso do século 19 e 20, não significaram, por si só (e isto é explícito no século 21), “a plena igualdade social da mulher ou do negro, mas sim, instrumentos melhores para a reprodução do patriarcalismo e do racismo em condições mais estáveis e menos conflituosas” (Alysson Mascaro, “Direitos humanos: uma crítica marxista”, Lua Nova, São Paulo, págs. 109-137, 2017, p. 132; cf. também I. M. Wallerstein, “The ideological tensions of capitalism: universalism versus racism and sexism”, 1991, In: BALIBAR, E.; WALLERSTEIN, I. M. Race, nation, class: ambiguous identities, London: Verso, pp. 29-36., p. 34). Talvez possamos discutir se tudo não passa de uma questão de tempo: a curto e médio prazo, a elevação social dos status de amplas camadas sociais; a longo, a construção revolucionária, mas por que entrar pela janela, quando há a porta, não raro invadida pelo genócidio negro (fruto da colonização/escravização/capitalismo) ou pela violência contra a mulher (fruto da propriedade privada nas mãos do homem)? E é possível chegar a um objetivo histórico transformador tomando outro rumo sem a perspectiva desse objetivo? Em que medida as lutas fracionárias “identitárias” se acomodam a um arrivismo de mentalidade pequeno-burguesa e fazem com que a esquerda se distancie dos estratos da base da pirâmidade, cooptados então por formas direitistas e até fundamentalistas? Etc.

– Também há um consenso no marxismo, neste nosso tempo contemporâneo, de que não são a ecologia “pura”, o pós-modernismo, o individualismo metodológico, o desconstrucionismo e afins as alternativas superiores ao marxismo para perceber a realidade e propor radicalidade emancipadora (Michael Lowy, A Teoria da Revolução no Jovem Marx, São Paulo, Boitempo, 2012 [1997], p. 21-22), mas que eventuais lacunas e até insuficiências no marxismo podem ser corrigidas por um procedimento aberto do marxismo não apenas aos movimentos sociais “clássicos” dos operários e camponeses, mas também “dos novos como a ecologia, o feminismo, os movimentos em defesa dos direitos humanos ou pela libertação dos povos oprimidos, o apoio aos índios da América Latina, a Teologia da Libertação” (Ibidem, p. 22), desde que (acrescento eu) isso não se torne um ecletismo vago, difuso, como, no geral, ocorre, desde que possamos trazê-los, em suas específicas seções, para as lutas de classes reais, verdadeiro terreno da construção revolucionária totalizadora.

– Algumas questões frequentemente levantadas quando se encara o feminismo marxista, conforme veremos em várias autoras e militantes: as questões que tangem a relação entre desigualdade (ou diferença) dita “natural” (etnia/gênero) e desigualdade social, questões da dupla jornada na mulher, trabalho produtivo e improdutivo, donas de casa e proletárias, o valor na especificidade feminina, etc.

– Sobre a categoria gênero, veremos que trata-se de termo incontornável para toda marxista feminista, mas cabe aqui um preâmbulo: havendo desconsideração intencional ou inconsciente dos fenômenos estruturais como dialeticamente determinantes da superestrutura (teoria social básica no marxismo e da concepção materialista), a tendência da abordagem de gênero torna-se o chamado “identitarismo”, desvinculação da luta antissistema, cooptação, arrivismo, mero desejo de adequação, inclusão e ascensão, epifenomenologia, etc. Arrisco a dizer que todo “identitarismo” é fruto de uma defasagem teórica.

– Notamos que o capital, nas últimas décadas, tem incorporado LGBTTIQA+s e o movimento negro como backlash de maneira mais ou menos análoga ao que se iniciou na segunda onda do feminismo. O cenário torna-se ainda mais difícil quando há uma extrema-direitalha regressiva abertamente racista, homofóbica e misógina, em sua defesa ultrapassada, moribunda e decadente de família tradicional, porque, diante desse confronto, a crítica marxista radical não ganha capilaridade para agregar as fileiras “identitárias”, ávidas por serem aceitas e incluídas no sistema representativo, simbólico, econômico, ingressar no trabalho assalariado exploratório, a lutar contra o capital. Mas, ao menos do ponto de vista ideopolítico, não é difícil elaborar essa construção, se for mostrada a raiz do preconceito, tal como as marxistas feministas de peso já o fizeram e ainda o fazem, conforme veremos.

– Estendendo a reflexão à ética marxista lukacsiana, não há ética no modo de produção capitalista; no limite, resta uma moral bem estreita vinculada à reprodução de mercadorias e mão de obra pauperizada, enfim, não há possibilidade de “liberdade” ou plena emancipação no capitalismo, na ordem capitalista… Aqui, cai por terra mesmo todo reformismo, embora tenha sido a grande revolucionária Rosa Luxemburgo quem escreveu, com boa dose de realismo, que reformas (obviamente, reformas estruturais e não de arranjamento ou manutenção do capital) só fazem sentido no interior de uma estratégia que tem por norte uma revolução anticapitalista, comunista.

– Progressismo não é a mesma coisa que revolução. “Forças progressistas” não são necessariamente “forças revolucionárias”… Marx, no informe “Salário, Preço e Lucro”, diante de uma epidemia de greves por melhores salários e melhores jornadas de trabalho, caracteriza tais reivindicações como “divisas conservadoras” e defende a bandeira da abolição do trabalho assalariado (pela tomada do Estado e dos meios de produção a serem socializados a todos)…

– Na ampla construção do socialismo, vamos precisar de todo mundo; somente um reacionário vislumbraria um socialismo só de homens cis-heteronormativos ou só de brancos ou só de estadounidenses ou só de europeus etc. etc. etc… (Não faria sentido, já que o capital engloba e domina tudo e todos – o capital é totalizante, e assim deve ser o socialismo, inclusive em suas táticas e estratégias revolucionárias.) Por outro lado, abdicar das lutas de classes e centralizar uma especificidade é brigar entre si, pulverizar a luta e fazer o jogo do sistema vigente de classes. O objetivo principal do marxismo é destruir com o antagonismo de classes e a exploração de uma classe pela outra. Quando o assunto é “identitarismo” e luta da mulher, negros, LGBTTIQA+, etc., costumo lembrar que Marx e Engels mostraram, em A Ideologia Alemã e em outros textos, que a classe dominante, ao deter os meios de produção da sociedade (e, por conseguinte, diremos também os meios de comunicação), domina por tabela a ideologia dominante que se encontra na superestrutra dessa sociedade. Em nosso tempo histórico moderno, tal classe dominante é constituída pelos capitalistas (detentores dos meios de produção – fábricas, empresas, terras, matérias-primas, ferramentas, commodities, etc.) e proprietários fundiários (que detêm os terrenos onde estão os meios de produção). Eis o que chamamos de burguesia (cf. nota de Engels à edição do Manifesto Comunista de 1888). Ora, pode-se identificar uma burguesa mulher (vide Luiza Trajano, bilionária dona da rede de lojas Magazine Luiza), mas é exceção que confirma a regra: a (i)lógica é patriarcal, a burguesia é o homem, macho, heternormativo, branco, eurocêntrico ou estadounidense das cidades e, por deter os meios de produção e a ideologia dominante, acaba essa classe reproduzindo na sociedade todas as formas de violência, exploração e preconceitos aos que fogem do modelo majoritário, sexismo, LGBTfobia, racismo, etc. Esta explicação, ainda que ligeira (seria preciso incrementar apontamentos dialéticos, impossível agora), é fundamental para a solidariedade de classes dos despossuídos com todas suas diversidades em torno de uma emancipação estrutural anticapitalista, processos revolucionários, construção revolucionária.

Feminismo e Marxismo: autoras, autores e livros

Loreta Valadares (1943-2004), professora, militante na luta armada contra a ditadura, comunista, marxista cultivada, escreveu aquele que é, de longe, o texto mais combativo e inteligentes sobre feminismo e marxismo dos últimos tempos.

– A primeira referência a respeito de feminismo e marxismo que eu recomendo é o fervoroso texto de 10 páginas de Loreta Valadares (1943-2004), militante nos anos 1960 do Movimento Estudantil da Ação Popular (AP), quando o PCdoB não era PelegodoB (e tinha quadros realmente comunistas e revolucionários, ao invés de uma Manuela d’Ávila), bravamente participante da luta contra a ditadura militar, presa e torturada, o que lhe afetou a saúde para o resto da vida, posteriormente destacada professora de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, “A ‘controvérsia’ feminismo x marxismo” (Revista Princípios, N. 18, jun/jul/ago, 1990, páginas 44- 49), texto arguto, mas não sem uma boa dose de ferocidade militante. É muito bonito constatar a postura implacável de uma militante veterana, que não “virou a casaca” como tantas outras e outros, intrépida em sua luta, apesar dos pesares. Primeiramente, Valarades é taxativa: “É falsa a polêmica feminismo X marxismo”. Alguns apontamentos a se fazer a partir desse texto: (1) Ao contrário de muitas autoras feministas, Valadares entende que o materialismo histórico não se opõe ao feminismo enquanto concepção sobre a específica opressão da mulher na sociedade. Valadares denuncia os feminismos que pretendem que o marxismo negue a si mesmo, denuncia o ecletismo no socialismo, que sai do terreno da realidade e deixa de ser ciência. Escreve ela, combativa: “São as correntes feministas que se têm colocado em oposição ao materialismo histórico e à sua visão científica e metodológica das questões mais gerais da ciência social, sem cujo esclarecimento se torna impossível a explicação do desenvolvimento da vida social em seu conjunto. Consequentemente, fica-lhes difícil – se não impossível, dentro de sua visão estreita do problema específico – admitir o ponto de vista do materialismo histórica sobre a opressão da mulher e os caminhos de luta para sua emancipação; isto porque buscam a explicação sobre as origens e as formas de opressão da mulher fora das leis objetivas do desenvolvimento social e independente das causas últimas que originam as relações de dominação das sociedades antagônicas” (página 6). (2) Conhecedora da estrutura e da superestrutura, critica – citando as obras, e não de forma leviana – autoras feministas como Simone de Beauvoir, Juliet Michell e Schulamith Firestone, que viam no marxismo (mesmo em Marx e Engels) uma “redução” de tudo ao econômico e ao “homo aeconomicus”, e as ataca exemplarmente. Ela usa a obrigatória carta de Friedrich Engels a Joseph Bloch para afirmar que tais correntes feministas (na verdade, trata-se de um equívoco não só de certas feministas, mas geral) não compreenderam o marxismo, tomando-o como um economicismo vulgar. Acrescento que não falta apenas conhecimento da concepção materialista, mas da própria Dialética. (3) Não é errado concluir que, para Loreta Valadares, assim como para as mais brilhantes marxistas que veremos no decorrer desta antologia (limitada, mas incontornável), é através da própria luta anticapitalista, estrutural, classista e marxista que ocorrerá consequentemente a emancipação feminina, sem que se desconsidere os elementos específicos e próprios de tal emancipação.

– Aliás, o catatau de mais de 570 páginas Mulheres Na Luta Armada – Protagonismo Feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional), de Maria Cláudia Badan Ribeiro, recentemente lançado, pode jogar outras luzes à intersecção marxismo – feminismo, mesmo que, a priori, tenha um significado mais associado ao comunismo militante do que ao marxismo, e mais histórico do que teórico. Ora, qualquer lacuna nesses dois eixos podem ser resolvidos hoje a partir dos fatos expostos no livro. De qualquer forma, documenta sobre as próprias mulheres à extrema-esquerda inseridas numa orientação revolucionária. A ler.

– Jamais esquecer do caráter vanguardista, inovador e pioneiro do próprio Manifesto Comunista (1848) da Liga Comunista (que contava com a participação de mulheres militantes) e seu longo trecho a respeito da condição das mulheres, encaradas pela burguesia como meras reprodutoras da classe a ser perpetuada, enfim, mera propriedade do burguês. Havia, naquele momento, conforme o próprio Manifesto expõe, todo um planejamento comunista em torno da construção da “comunidade de mulheres” independentes para resolver a necessidade de eliminação da posição da mulher enquanto instrumento de produção, sendo essa uma das pautas na luta contra a sociedade burguesa.

Jenny, Lara e Eleanor com o pai Karl Marx; o parceiro Friedrich Engels logo atrás. Não é menor lembrar que as três filhas de Marx tiveram finais trágicos. O desejo de emancipação feminina chocou-se à realidade do status quo patriarcal.

–  Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, explicam que a opressão específica tem íntima relação como processo de surgimento de propriedade privada, transformando a própria mulher em propriedade do homem.

– É Engels, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1883), que coloca a gênese da opressão específica da mulher e seu processo de formação com o aparecimento da sociedade de classes, “com elas se entrelaçando e refletindo seu antagonismo e sua luta ao longo da história, nas diversas etapas e em diferentes formações econômico-sociais” (conforme explica Loreta Valadares em seu texto supracitado). É preciso notar, porém, que a análise engelsiana sobre a origem do patriarcado é muito criticada aqui e ali, não só por feministas. Mesmo entre marxistas é entendível que Engels, tendo se debruçado no que havia de mais novo à época naqueles finais do século 19 em matéria de antropologia e naquele que hoje é considerado um dos fundadores da antropologia moderna, isto é, Lewis Henry Morgan (que, em seu Ancient Society, divide a história humana em três estágios fundamentais de desenvolvimento social: selvageria, barbárie e civilização, cada um destes caracterizado por formas materiais distintas), muito citado em todo o livro de Engels, pode ter caído em alguns equívocos e limitações de Morgan, de acordo com a antropologia mais avançada.

– Não é menor lembrar que as três filhas de Marx tiveram finais trágicos. O desejo de emancipação feminina chocou-se à realidade do status quo patriarcal. Os primeiros homens marxistas, por sua vez, viram a derrota da revolução comunista e o recrudescimento de um novo tipo de capital. No fundo, na raiz, a luta era/é a mesma!

A Mulher e o Socialismo (1879), de August Babel, representa “a primeira produção teórica de particular importância para um enfoque marxista da questão feminina, justamente por sua grande difusão e abordagem específica do problema”.

– Permitam-me citar só mais um homem (muito citado pelas próprias mulheres, aliás), à guisa de contextualizar o tema feminista no marxismo. Embora encontremos trechos sobre a opressão das mulheres em Marx e Engels, é o livro A Mulher e o Socialismo (1879), de August Bebel, que representa “a primeira produção teórica de particular importância para um enfoque marxista da questão feminina, justamente por sua grande difusão e abordagem específica do problema” (tal como escreve, ipsis litteris, Joana El-Jaick Andrade em  artigo acadêmico sobre esse livro). Loreta Valadares, no texto primeiramente citado, afirma: “(…) A opressão específica da mulher caminha e se desenvolve “pari passu” com a opressão social, de classes, caracterizando, assim, a mulher como oprimida enquanto ser sexual e ser social (Bebel, in A Mulher e o Socialismo), com seus correspondentes reflexos e formas na superestrutura (…)”. Bebel via a necessidade de atrair as mulheres para o movimento e de difundir os princípios do socialismo para as amplas massas trabalhadoras. A obra é dividida em três partes: a situação das mulheres no passado (antes e depois do cristianismo), as condições das mulheres no presente e a projeção das transformações operadas dentro de uma futura sociedade socialista. O livro discute a construção da nova sociedade socialista e o livre exercício da sexualidade, o Programa Socialista e a igualdade entre os sexos, etc. Conforme Joana El-Jaick Andrade escreve (página 11): “A saída apontada por Bebel para a questão feminina, com vistas à “redenção e emancipação” de todas as mulheres, residiria na compreensão de seu verdadeiro lugar no movimento socialista e sua participação na(s) luta(s) de classes”.

Eleanor Marx.

Eleanor Marx (1855-1898), filha de Karl Marx e Jenny von Westphalen, militante, autora, tradutora, pioneira do feminismo socialista. Escreveu, com seu parceiro Edward Aveling, o tratado “A questão da mulher: de um ponto de vista socialista” (1886). Trata-se, segundo Luiz Bernardo Pericás (Professor do Departamento de História da USP), de um texto “que deveria figurar em importância ao lado de Reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels e de Um teto todo seu, de Virginia Woolf”. De acordo com Pericás, “Seu “feminismo” era bastante distinto daquele defendido pelo pensamento mainstream da segunda metade do século XIX. Ainda que muitas de suas amigas fossem sufragistas, a campanha pelo voto, na visão de Eleanor, mesmo que importante, seria um objetivo limitado. A reforma eleitoral para as senhoras de classe média dentro da sociedade capitalista não dava conta de resolver o debate social mais amplo, já que, segundo ela, “a dita questão do ‘direito das mulheres’… é uma ideia burguesa. Eu propus lidar com a Questão Sexual do ponto de vista da classe trabalhadora e do conflito de classe”. Ou seja, os direitos das mulheres e do proletariado eram parte da mesma luta.”

Nadezhda Krupskaya na juventude e com Vladimir Lênin. Ambos canalizaram o papel feminino decisivo na Revolução Soviética.

Nadejda Krupskaia (1859-1939) não foi apenas “esposa de Lênin”, porque desempenhou um papel destacado e próprio como pedagoga revolucionária; escreveu sobre  a construção de uma nova pedagogia socialista que nos interessa até hoje (a prova é que o livro encontra-se esgotado), tendo sido vice-ministra da Educação da União Soviética por mais de dez anos, responsável pela criação de um novo sistema educacional e pela construção de inúmeras bibliotecas no período soviético nos primeiros anos da Revolução. Mas não para aí. Tudo indica que foi Nadezhda quem escreveu o primeiro texto feminista significativo sobre a situação das mulheres na Rússia: o panfleto “A Mulher Trabalhadora” (para ler em inglês, clique aqui – no original em russo, aqui, inclusive com uma nota da própria autora relatando as circunstâncias clandestinas em que o texto foi escrito e divulgado em 1899 sob o pseudônimo Sablina e publicado dois anos depois através da imprensa clandestina Iskri, “Faísca” em russo). O texto foi banido, devido a sanguinária repressão czarista durante a Revolução de 1905. O próprio Lênin nunca ignorou uma das reivindicações mais importantes da Revolução Soviética, a das camponesas e mulheres trabalhadoras em busca de pão, paz e terra, tendo escrito em vários momentos a respeito, como se pode conferir neste texto explicativo aqui. A própria Nadejda escreveria, em 1933, o texto “A Emancipação da Mulher segundo Lênin“, dez anos após a morte do companheiro. Vale lembrar, por fim, de um volume brasileiro de 1956 intitulado O Socialismo e a Emancipação da Mulher com 14 textos significativos de Lênin sobre o trabalho na mulher da fábrica e na agricultura no regime capitalista, sobre o aborto, a classe operária e o neomalthusianismo, a luta contra a prostituição, o direito ao divórcio, discurso no Primeiro Congresso Pan-Russo das Operárias, a contribuição da mulher na construção do socialismo, as tarefas do movimento operário feminino na República dos Sovietes, a situação da mulher no poder soviético, divórcio diante da família, dois textos (em 1920 e em 1921) sobre o Dia Internacional da Mulher, além de um texto de 1920 por Clara Zetknin, “Lênin e o movimento feminino” (“o movimento feminino era para ele parte integrante e, em certas ocasiões, parte decisiva do movimento de massas. É desnecessário dizer que ele considerava a plena igualdade social da mulher como um princípio indiscutível do comunismo”).

Alexandra Kollontai (1872-1952) foi um dos principais nomes da participação feminina no bolchevismo. É, ainda hoje, considerada figura central do “feminismo marxista” (cf. Jinee Lokaneeta, “Alexandra Kollontai and Marxist Feminism”, de 2001, e Andrea Nye, Feminist Theory and the Philosophies of Man, capítulo 3, “A Community of Men: Marxism and Women”, seção “Marxist feminists: Zetkin, Kollontai, Goldman”). Militante ativa nos principais episódios do pré-revolução e mesmo nos anos subsequentes, estando no topo da vanguarda e do novo governo junto a Lênin e outros, tendo sido uma das lideranças do Genotdel (“Seção da Mulher”), o Departamento de Mulheres Trabalhadoras e Mulheres Camponeses criado em 1919 com o objetivo de melhorar as condições das mulheres e as atrair para a causa socialista. Sempre se opôs ao feminismo liberal burguês, que buscava objetivos políticos de sufrágio, mas não a elevação revolucionária da classe trabalhadora. É brilhante a sua posição a respeito do universal e do particular no feminismo em A Base Social da Questão da Mulher (1909), em que ela defende o seguinte: “O instinto de classe – o que quer que as feministas digam – sempre se mostra mais poderoso do que os nobres entusiasmos da política ‘acima da classe’. Enquanto as mulheres burguesas e suas ‘irmãs mais novas’ [proletárias] forem iguais em sua desigualdade, as primeiras podem, com total sinceridade, fazer grandes esforços para defender os interesses gerais das mulheres. Mas uma vez que a barreira é derrubada e as mulheres burguesas têm acesso à atividade política, as recentes defensoras dos ‘direitos de todas as mulheres’ tornam-se defensoras entusiastas dos privilégios de sua classe, satisfeitas em deixar as irmãs mais novas sem nenhum direito. Assim, quando as feministas falam com as mulheres trabalhadoras sobre a necessidade de uma luta comum para realizar alguns princípios das ‘mulheres em geral’, as mulheres da classe trabalhadora ficam naturalmente desconfiadas.” Argumentava que, mesmo adentrando no trabalho assalariado, as mulheres ainda se mantinham na função reprodutora da família. Defendeu, portanto, a socialização do trabalho reprodutivo para acabar com a exploração do trabalho doméstico e a exploração dos homens neste papel. Assim, teve papel de liderança nos debates que criticavam o modelo estabelecido de família. É conhecida por sua defesa arrojada – mantida por toda a vida – do amor livre e do amor camaradagem, expressão última da solidariedade de classe (ler a edição pela editora Expressão Popular, A Nova Mulher e a Moral Sexual). Quando o regime fechou, quase foi expulsa do partido, mas acabou indo exercer funções diplomáticas no exterior. Escreveu “Base social da questão feminina” (1908), “Sociedade e maternidade” (?), “A nova mulher” (1918), “A moral sexual” (1921), Amor Livre (1932), Comunismo e Família (1970), A Autobiografia de uma Comunista Mulher Emancipada Sexualmente (1971), Relações Sexuais e Lutas de Classes: Amor e a Nova Moralidade (1972), A luta das mulheres trabalhadoras por seus direitos (1973), entre outros.

Alexandra Kollontai no Conselho de Comissários do Povo no Palácio Smolny – Governo da Rússia liderado por Lênin, 1918. Da esquerda para a direita: Isaac Steinberg, Ivan Stepanov, Boris Kamkov, Vladimir Bonch-Bruyevich, Trutovsky, Alexandre Shiliapnikov, Prosh Percevish Proshyan, Lênin, Joseph Stálin, Alexandra Kollontai, Pavel Dybenko, Koksharova, Nikolai Podvoiski, Nikolei Gorbunov, V. I. Nevski,Aleksander Shotman, Gergoy Chicherin.

 

Clara Zetkin, Alexandra Kollontai e outras no III Congresso da Internacional Comunista, 1921.
VIII Congresso da Internacional Socialista, Copenhagen, 1910. Ao centro, Alexandra Kollontai e Clara Zetkin. Atrás delas, Rosa Luxemburgo.
Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo, duas importantes revolucionárias, a caminho do Congresso do SPD. Magdeburg, 1910.

Clara Zetkin (1857-1933) foi uma das primeiras agitadoras e propagandistas do feminismo socialista, tendo levado o feminismo ao topo da agenda política no primeiro congresso da Segunda Internacional, e demonstrou que o fundamento do feminismo sendo a emancipação das mulheres encontra um limite estrutural: o capitalismo (quem valida tal afirmação histórica é a professora Mirla Cisne em “Feminismo e marxismo: apontamentos teórico-políticos para o enfrentamento das desigualdades sociais“, Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 211-230, maio/ago. 2018, página 220). Em 1889, Clara Zetkin profere a conferência “Pela libertação das mulheres”, considerada a primeira declaração política da classe trabalhadora europeia sobre a questão da mulher (Ana Isabel Álvarez González, As origens e a comemoração do Dia Internacional das Mulheres, São Paulo: SOF/Expressão Popular, 2010, página 61), em que declarou: “As mulheres operárias estão totalmente convencidas de que a questão da emancipação das mulheres não é uma questão isolada. Sabem claramente que esta questão na sociedade atual não pode ser resolvida sem uma transformação básica da sociedade […]. A emancipação das mulheres, assim como de toda a humanidade, só ocorrerá no marco da emancipação do trabalho do capital. Só em uma sociedade socialista as mulheres, assim como os trabalhadores, alcançarão os seus plenos direitos” (ibidem).

– A grande revolucionária Rosa Luxemburgo (1871-1919), ao que se sabe, nunca se definiu como “feminista” e, isto é certo, já que tinha relações próximas com Clara Zetkin e outras da luta comunista, nunca endossou o feminismo liberal de sua época, mas escreveu sobre a condição feminina na sociedade de classes e sobre (e para) a mulher trabalhadora. Presa pelas forças reacionárias, assassinada pela extrema-direita que depois se associaria ao nazismo, são de Rosa Luxemburgo alguns dos postulados mais influentes e algumas das frases mais potentes, memoráveis e contundentes de todo o marxismo, como podemos constatar em Reforma ou Revolução?, “O que quer a Liga Espartaquista?” e no lema de seu grupo revolucionário, “Socialismo ou barbárie!”; para o nosso tema, é sua uma das frases mais fortes dessa intersecção, já em 1902, em “Uma questão tática”: “A emancipação política das mulheres teria que fazer soprar um forte vento fresco inclusive na vida política e espiritual [da social-democracia], que eliminasse o fedor da hipócrita vida familiar atual que, de modo inequívoco, permeia também os membros de nosso partido, tanto trabalhadores como dirigentes”. Dois são os textos de destaques de Luxemburgo sobre a emancipação das mulheres no bojo da revolução comunista e do marxismo: o ainda pertinente “O sufrágio das mulheres e as lutas de classes”, de 1912, e o belíssimo “A Proletária“, de 1914. Neste segundo, em ocasião do Dia Internacional da Mulher (ou melhor, “Dia da Proletária”, segundo Rosa), a “proletária assalariada moderna” é alçada como protagonista da classe trabalhadora. É um toque simbólico e concreto feminino à imagética do proletariado tantas vezes masculinizado (mas não sem razão, inclusive estatística). Rosa contrapõe a defesa burguesa por direitos políticos pelas mulheres (pauta única do chamado “feminismo liberal” e das sufragetes) com o poder efetivo a ser conquistado pela mulher proletária e, se a vida parlamentar nega a participação feminina, o partido revolucionário abre as portas para as mulheres e trabalhadores, onde encontram ali “um campo incalculável de trabalho político e poder político”, etc. Termina esse texto com fortes palavras de ordem: “Proletária, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. (…) Corra para o front, para a trincheira!” Não há dúvidas de que, para Rosa, já no Partido Social-Democrata Alemão, com todas suas querelas internas até o revisionismo crasso, venal, “vira casaca”, como depois na sua Liga Espartaquista (com Karl Liebknecht, Clara Zetkin, Franz Mehring e outros) e no Partido Comunista, o ponto central era a revolução pela classe trabalhadora, mas, ao saber das especificidades da mulher dentro de tal classe, ela defendia, nos títulos citados e também em cartas para Clara Zetkin e Sonia Liebknecht, seções de mulheres em áreas intelectuais, jornalísticas, partidárias, enfim, na luta prática. Rosa Luxemburgo, diga-se de passagem, sempre foi calcada na teoria marxiana e criticava desvios e revisionismos! A prova disso foi a grande querela com o oportunista Eduard Bernstein… Comprometida com a teoria marxiana, em “O sufrágio das mulheres e as lutas de classes”, escreve pontos econômico-teóricos relevantes para os debates correntes entre as feministas de hoje: “Apenas é produtivo aquele trabalho que produz mais-valia e rende lucro capitalista – enquanto o domínio do sistema de capital e de salário se mantiver. Deste ponto de vista, uma dançarina num café, que produz lucro para o seu patrão com as suas pernas, é uma mulher trabalhadora produtiva, enquanto que todas as tarefas das mulheres e mães do proletariado dentro das quatro paredes de casa é considerado trabalho improdutivo. Isto soa cru e louco, mas é a expressão precisa da crueza e da loucura da ordem econômica capitalista de hoje.” Veremos adiante como a brasileira Heleieth Saffioti amplifica a crítica da exploração da mulher para abranger a dupla jornada (trabalho doméstico e produtivo), o que a faz desconsiderar a mais-valia; mas certamente Rosa, mulher de costumes pioneiros, vanguardistas e destoantes para sua época, jamais diria que o trabalho doméstico não é exploratório, apenas diferencia ambos a partir da observação da estrutura… Nancy Holmstrom, professora de Filosofia, editora do The Socialist Feminist Project (Monthly Review Press, antiga revista socialista de Nova Iorque) e co-autora de Capitalism For and Against: A Feminist Debate (Cambridge University Press), entre vários outros artigos e livros, explica o trecho rosaluxemburguiano em “Rosa Luxemburgo: um legado para as feministas?“: “Usei esta citação mais do que uma vez para clarificar o sentido do trabalho (im)produtivo no capitalismo e para distinguir opressão de exploração capitalista. Algumas feministas ficam muito ofendidas pela posição marxista de que o trabalho doméstico é trabalho improdutivo e algumas defendem “salários para o trabalho doméstico”. Mas tal como a citação de Luxemburgo torna claro, designar o trabalho doméstico como improdutivo dificilmente é um insulto, nem é sexista. Um carpinteiro que trabalhe para o governo é igualmente improdutivo no sentido capitalista, apesar de ambos, obviamente – e muito importantemente – serem produtivos num sentido geral. É fundamental entender o que “produtivo” significa em termos capitalistas, especificamente, a produção de mais-valia, porque isto é o que faz o sistema capitalista funcionar.” Rosa discute, naquele texto, o trabalho produtivo e improdutivo, o trabalho operário e doméstico, e denuncia a exploração capitalista do trabalho de homens e mulheres – “milhões de mulheres proletárias […] produzem lucro capitalista tal como os homens – em fábricas, oficinas, agricultura, indústrias domésticas, escritórios e lojas”, escreveu ela. “Proletária, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. (…) Corra para o front, para a trincheira!” 

Rosa Luxemburgo discursa para uma multidão na 2ª Internacional, em 1907, na cidade de Sttugart, Alemanha. Foto: ullstein bild Dtl. / ullstein bild via Getty Images.
Comício comunista em Santos para reivindicações e em homenagem aos operários Sacco e Vanzetti, executados na cadeira elétrica nos EUA quatro anos antes. A repressão dos cães da burguesia assassinou o manifestante Herculano de Sousa e prendeu as comunistas Guiomar Gonçalves (à esquerda – gostaria de mais informações sobre ela!) e Patrícia Galvão (à direita na imagem, mas não na vida). Diário de S. Paulo, edição de 25 de agosto de 1931: sério conflito.
Patrícia Galvão, a Pagu, em apresentação mais digna do que no jornal: crítica ferrenha do feminismo liberal e pequeno-burguês, aliada das mulheres trabalhadoras.

Até onde e até quando pode e deve um(a) artist@ e intelectual, mesmo sem desenvolver teoria, lutar e envolver-se na prática da transformação da sociedade? Patrícia Galvão (1910-1962), mais conhecida como Pagu, foi uma força da natureza; escritora que estreou aos 18 anos na Revista Antropófaga, militante comunista do PCB (das primeiras presas políticas do Brasil, presa duas dezenas de vezes, torturada durante a ditadura Vargas após uma greve dos estivadores na minha Santos, onde, aliás, ela irá morar no fim da vida e onde foi encarcerada na Cadeia Velha De Santos, que hoje se chama Oficina Cultural Pagu), incansável tentadora da revolução brasileira, rompida com o Partido Comunista (que a abandonou e a obrigou a assinar uma retratação em que se apresentava como “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”) em 1940 após exílio e acerto de contas com todo o seu passado, poeta, crítica dos costumes, intimamente próxima dos modernistas de 22 (“nem Anita nem Tarsila eram escritoras, nenhuma assumiu até o fim ideias tão radicais e renovadoras, nenhuma correu os riscos e sofreu o que sofreu por elas, nenhuma defendeu com tanto ardor a arte de vanguarda, nenhuma se pode comparar, em termos de atuação ética e estética, com ela”, conta Augusto de Campos), agitadora cultural, jornalista, desenhista, tradutora, etc. Em 1931, com o companheiro Oswaldo de Andrade (1890-1954), funda o pasquim O Homem do Povo, “um jornal com características agressivas e despudoradas, com fortes nuances ideológicos da esquerda marxista” ( Anselmo Peres Alós, Parque Industrial: influxos feministas no romance proletário de Patrícia Galvão”, Caligrama: Revista de Estudos Românicos, v. 15, n. 1, 2010, p. 188). As provocações de Oswald contra o atraso geral e o temperamento revolucionário de Pagu produziam uma alquimia sem precedentes na política e na cultura brasileiras, e deve-se sublinhar que ela era absolutamente independente e original. Desenhava charges satíricas e possuía uma coluna fixa intitulada “A Mulher do Povo”, em que criticava o feminismo pequeno-burguês e os valores elitistas das mulheres paulistas (que reproduziam, não sem o provincianismo da época e de capitalismo periférico, o movimento de mulheres sufragistas da Inglaterra do início do século XX). Alguns desses textos estão preservados ainda hoje. Em 1933, Pagu lança o importante Parque Industrial, primeiro romance proletário do país, sob o pseudônimo (exigência do Partido) Mara Lobo, obra de nítida inspiração marxista com influxos feministas que retrata a condição das mulheres proletárias numa São Paulo a se industrializar freneticamente. Ou seja, no panorama literário regionalista de 30 (lembremos de O Quinze, de Raquel de Queiroz, que retrata a seca, ou Menino de Engenho, de José Lins do Rego), Pagu apresenta um Brasil urbano, isto é, mais desenvolvido material e ideologicamente, portanto mais condizente com o anticapitalismo do marxismo; eis outro fato que destaca esse romance. Mas não para aí: a obra conjuga o problema da opressão ao proletariado às reivindicações das mulheres, superando o feminismo da época. Também neste romance já há críticas ao feminismo pequeno-burguês, complacente à estrutura social do capital. No entanto, é interessante que Pagu não dirige sua crítica ao movimento sufragista em si, mas principalmente à despreocupação de tal movimento a questões estruturais e mais amplas, como a condição da mulher proletária e até das mulheres negras (Ibidem). No primeiro caso, a obra encontra associação com o pensamento teórico-prático das comunistas de todo o mundo, inclusive as supracitadas. No segundo aspecto, o enfoque antecipa uma luta ainda hoje continuada e candente – antecipou, focando sua narrativa na realidade das mulheres proletárias, pertencimentos identitários superpostos que feministas particularmente lésbicas e negras levantaram nos EUA a partir das décadas de 1970 e 1980. O convívio de Pagu com operários, a partir de 1931, quando se filiou ao PCB, lhe fez concretizar, no romance, um projeto modernista por excelência: pululam em sua escritura elementos da linguagem coloquial, cotidiana, até mesmo considerada “grosseira”; o texto apenas é prejudicado (anacrônico) por jargão e estereótipos da época (Ibidem, p. 193). “(…) saem para o almoço das onze e meia. Desembrulham depressa os embrulhos. Pão com carne e banana. Algumas esfarelam na boca um ovo duro.” É nos intervalos do tear, quando se consegue mais tempo para conversar, que Rosinha Lituana, operária de aguda consciência de classe, militante do Partido Comunista, dissemina as ideias entre os colegas. Rosinha e Otávia são comprometidas com a revolução e o movimento proletário; Corina é aprendiz de costureira, jovem e miscigenada que acaba engravidando e caindo na prostituição após falsa promessa de casamento, terminando na prisão. Alfredo é o único personagem masculino da narrativa a se comprometer com o ideário revolucionário. “Acorda com o alvoroço de mulheres entrando. São as emancipadas, as intelectuais e as feministas que a burguesia de São Paulo produz.” E segue um diálogo das feministas liberais sobre futilidades: cosméticos, coiffeur, tailleur, namorados, criada que é demitida por se atrasar e esfriar demais o banho da patroa, etc. “- O voto para as mulheres está consequido! É um triunfo!/- E as operárias?/- Essas são analfabetas. Excluídas por natureza.” A acidez faz com que a “denúncia” de Pagu do preconceito presente entre as próprias feministas não caia em panfletagem barata (no máximo, o livro é uma panfletagem arguta, mesmo se considerada “maniqueísta” – trata-se de um retrato cru das lutas de classes!) ou numa crítica simplista, mas, ao invés, continua contundente. Nota-se a influência que Rosa Luxemburgo (“uma militante proletária alemã, que a política matou porque ela atacava a burguesia”) exercia em Patrícia Galvão, já que um dos capítulos do romance é intitulado “Em que se fala de Rosa Luxemburgo”… “- (…) a burguesia é a mesma em toda parte. Em toda parte, manda a polícia matar os operários…/(…) – Matam os operários, mas o proletariado não morre!” Destaca-se, ainda, como a sexualidade dos personagens é retratada e, nesse particular, mesmo sendo obra comunista crítica a uma determinada matriz específica do feminismo, não deixa de tocar em pontos de especificidade feminina: passado no bairro operário do Brás – “Brás do Brasil, Brás de todo o mundo” – , o romance expõe erotismo e sexismo na sociedade capitalista, e denuncia a objetificação das mulheres operárias “reduzidas a objeto de desejo, de reprodução e mão de obra barata pela sociedade capitalista e patriarcal” (Ibidem, páginas 191 e 192). Hoje, entende-se que, “(…) criticando a sociedade burguesa, de um ângulo socialista, [Pagu] é levada a ferroar a aristocracia paulista, ferindo velhos círculos sociais frequentados pelos modernistas de 22. Concentrando-se nas mulheres operárias e lumpemproletáarias, satiriza o feminismo burguês, acompanha moças pobres seduzidas com promessas casamenteiras por conquistadores ricos, seguindo particularmente a trajetória de Corina rumo à prostituição” (Antônio Risério, “Pagu: vida-obra, obravida, vida”, em Augusto de Campos, Pagu: Vida-Obra, São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 21). Assinale-se mais uma vez o caráter vanguardista e pioneiro dessa situação (que encontra paralelo com Raquel de Queiroz, guardadas as enormes diferenças): um romance escrito por uma (jovem) mulher brasileira na década de 30; mais: o primeiro romance realmente engajado escrito por uma mulher na década de 30. Em 1945, de volta ao Brasil após um périplo pelo exterior (vale lembrar das viagens que fez com Tarsila do Amaral e outros vanguardistas décadas antes), ela publica outro romance, em parceria com seu novo companheiro, o jornalista Geraldo Ferraz: A Famosa Revista é importante narrativa ficcional antisstalinista de estilo livre em poesia e prosa que recusa a narrativa tradicional e atua num experimentalismo bastante distinto daquele empreendido dois anos antes pelo livro de estreia de Clarice Lispector – e sem o seu demasiado subjetivismo. É de se questionar por que Pagu acabou sendo relegada dentro dos estudos de literatura brasileira. Talvez tenha sido essa posição marginália que fez com que outro underrated da cena cultural brasileira, o exímio poeta e transtradutor Augusto de Campos, se aproximasse da figura/personagem de Pagu para lançar Pagu Vida-Obra na década de 1980, volume obrigatório, porque a aprofundou (até então, era evocada superficialmente como aquela que teria acabado com o casamento de Oswald e Tarsila), unindo antologia e perfil biográfico: “luminosa agente subversiva de nossa modernidade”, diz a abertura de uma nova edição depois de anos fora do catálogo. Em Santos, onde passou seus anos finais, um pouco mais tranquilos (tudo mudou após a burocracia da URSS, após a Segunda Guerra Mundial, após o período “democrático” do Brasil entre duas ditaduras), continuou sendo jornalista e foi tradutora e agitadora cultural, uma espécie de “mestra”, tendo estimulado e propiciado a carreira teatral do dramaturgo Plínio Marcos, o mais pungente retratista dramatúrgico das nossas mazelas sociais. (Por fim, só mais alguns adendos. O prontuário de Pagu nas dependências da extinta “Ordem Social” e no Deops é extenso, cobrindo duas décadas de atividade, de 1931 a 1950 – “mais de 200 páginas, cheias de interrogatórios, relatos, fotos e textos do próprio punho da escritora”. Ela era considerada comunista de “alta periculosidade”. Pois bem. Vale mencionar, para coroar a intensa participação de Pagu na construção revolucionária brasileira, que sua última prisão foi no auge dos 40 anos de idade, em setembro de 1950: presa em flagrante no centro de São Paulo, quando escrevia “no chão, com tinta branca, lavável, dizeres referentes à propaganda do Partido Socialista Brasileiro”. Ela escreveu: “Contra os imperialismos russo e americano”. Não precisou desenvolver teoria; ela era a própria teoria em carne e osso e em prática.)

“Pagu indignada no palanque”.
A brasileira Heleieth Saffioti (1934-2010) lega uma enorme contribuição ao marxismo no Brasil e à situação específica das mulheres.

– A brasileira Heleieth Saffioti (1934-2010), pioneira da intersecção entre marxismo e feminismo no Brasil, tendo sido orientada em sociologia pelo grande Florestan Fernandes, marxista cultivado, escreveu textos importantes sobre a condição e opressão das mulheres no Brasil, isto é, no capitalismo periférico. É Saffioti quem irá escrever: “Rigorosamente, não existe um só feminismo, pois há diferenças de bandeiras levantadas, de ênfase posta numa ou noutra reinvindicação, de estratégias de luta. Tais distinções decorrem do enfoque político dado por cada grupo ou movimento feminista à questão feminina” (O Poder do Macho, São Paulo: Moderna, 1987, p. 93). Já em seu livro inaugural, A mulher na sociedade de classes: mito e realidade (escrito entre os anos de 1966-1967 e publicado pela primeira vez em 1969), Saffioti combina feminismo com marxismo (ou seja, parte da crítica da sociedade de classes para tratar especificadamente da mulher em tal sociedade a ser superada). Com este livro, em plena ditadura militar (mas antes do AI-5), ela não titubeia: o problema da mulher não é fato isolado da sociedade, portanto para superar a opressão contra as mulheres é preciso destruir o regime capitalista e implantar o socialismo. Ainda que o capital seja maleável e permita mudanças progressistas, não apresenta nem apresentará plena integração social feminina, porque, conforme Saffioti mostra na obra, as características ditas naturais (sexo e raça) são mecanismos em desvantagem no processo competitivo e tornam-se coniventes para a conservação da estrutura de classes (Editora Vozes, 1976, p. 30). O livro não deixa de tratar especificadamente sobre a condição da mulher em tal sociedade de classes. Nos parece também fundamental que, muitas décadas depois, ela tenha destoado da abordagem comum (quiçá dominante) no feminismo de tratar o gênero como central: em seu Gênero, Patriarcado, Violência (2004), a marxista faz forte crítica dos usos da categoria gênero. Saffioti reivindica a importância da categoria “patriarcado” em detrimento de “gênero” ou, ao menos, alerta contra a utilização exclusivista do último. Associa o patriarcado a uma articulação da industrialização do capitalismo. Argumenta que o “gênero”, enquanto categoria central, mesmo sendo útil, até mais rico e vasto, serviria justamente por isso para maquiar o patriarcado. Saffioti parece bastante crítica a certos autores e autores feministas contemporâneos, sobretudo dos EUA. O antropólogo cultural conhecido como ativista e teórico da política de sexo e gênero Gayle Rubin (1949-), segundo ela, teria se utilizado do “gênero” de maneira neutra, sendo que, para Saffioti, e isto certamente deve-se à sua influência marxiana e marxista, o “gênero” “carrega uma dose apreciável de ideologia”: a ideologia patriarcal, que cobre uma estrutura de poder desigual entre mulher e homens, inclusive – eis uma das argumentações mais polêmicas do livro – a partir do exclusivismo da categoria “gênero”, que não ataca o coração da engrenagem da exploração-dominação, mas ao contrário, a alimenta. É uma perspectiva convincente. Retoma Joan Scott (1941-), cujo trabalho é identificado com a história das mulheres a partir da perspectiva de gênero, para apresentar as relações de gênero imbricadas a relações de poder hierarquizantes ao longo da história, mas identifica que Scott não faz ressalvas à concepção foucaultiana de poder – uma noção pós-moderna de “poder” dissolvido na sociedade -, o que compromete um projeto de transformação social. Aqui, novamente temos uma explícita influência marxista. Saffioti, que teve formação marxista, sabia dos vícios pós-modernos e que os tais “micropoderes”, se é que existem, só sobrevivem a partir da estrutura que os reproduz. Dessa forma, não parece que ela se distancie de Rosa Luxemburgo ao abranger a exploração da mulher tanto no caso do trabalho doméstico quanto no caso do trabalho assalariado, ainda que, ao tomar tal postura, acabe por omitir a exploração material da expropriação de mais-valia em O Poder do Macho (ibidem, p. 51): “(…) Tanto a dona-de-casa, que deve trazer a residência segundo o gosto do marido, quanto a trabalhadora assalariada, que acumula duas jornadas de trabalho, são objeto da exploração do homem, no plano da família”. Detalhe para esse final, “no plano da família”, ou seja, num elemento superestrutural. Saffioti, no mesmo texto, apresenta um entendimento coerente do preconceito na sociedade de classes: “o conceito pressupõe a utilização de um instrumental teórico que permita o entendimento do fenômeno, o pré-conceito nasce do jogo de interesses presente na vida social da defesa de privilégios, da correlação de forças político-sociais” (Ibidem, p. 28). A respeito da relação entre natureza e concepção materialista da história, afirma Saffioti (Ibidem, p. 10): “A identidade social é, portanto, socialmente construída. Se, diferentemente das mulheres de certas tribos indígenas brasileiras, a mulher moderna tem seus filhos geralmente em hospitais, e observa determinadas proibições, é porque a sociedade brasileira de hoje construiu desta forma a maternidade. Assim, esta função natural sofreu uma elaboração social, como aliás, ocorre com todos os fenômenos naturais. Até mesmo o metabolismo das pessoas é socialmente condicionado”. Em Rearticulando Gênero e Classe Social (in: Uma Questão de Gênero, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 192 e 194), repõe no mesmo plano como sistema de dominação-exploração base e superestrutura. Para a autora (Ibidem, p. 186), “A formação da identidade de gênero é um exemplo de produção no reino do sistema sexual. E um sistema de sexo/gênero envolve mais do que ‘as relações de procriação, reprodução no sentido biológico”, ou, noutros termos, as identidades de gênero e as sexualidades são construções sociais, nas quais não se parte do nada, mas de condições materiais, uma vez que “o vetor direciona-se, ao contrário, do social para os indivíduos que nascem. Tais indivíduos são transformados, através das relações de gênero, em homens ou mulheres” (Ibidem, p. 187). Saffioti entende que a acumulação e centralização no modo de produção capitalista são base material para a realização das contradições e antagonismos nas quais operam o sistema sexual: “[…] a contradição entre as categorias de gênero nem é a única, nem opera autonomamente” (Ibidem, p. 199).

Sartre e Simone de Beauvoir em protesto: ela segura uma edição do Cause du Peuple (“Causa do Povo”), jornal da esquerda proletária criado durante o Maio de 68, ativo até 1972 e novamente ativo de 1973 a 1978. Note a foice e o martelo.
Simone de Beauvoir e Sartre socializaram com o Che e Fidel Castro. No âmbito do marxismo, precisam ser filtrados.

– Após a crítica demolidora de Loreta Valadares, já supracitada, resta-nos ainda falar em Simone de Beauvoir? Ela combatia o preconceito de que as mulheres não podiam se apresentar como filósofas, refletiu a condição histórica da mulher e a construção social do machismo. Ainda assim, em O Segundo Sexo, a autora demonstra uma incompreensão do materialismo e da estrutura e superestrutura, enfim, do marxismo, caindo no equívoco comum de tomar o marxismo como um economicismo vulgar que não serviria às discussões feministas, e que o “homo aeconomicus” marxista seria limitado ou até mesmo não serviria aos estudos feministas, algo já refutado por Valadares e muitas outras, e veremos, em outras autoras contemporâneas (embora uma Rosa Luxemburgo jamais tenha abdicado da questão da mais-valia, conforme vimos acima), que o próprio fator econômico na forma de valor encontra forte respaldo na crítica do marxismo feminina (Roswitha Scholz?). Ou seja, a própria obra O Segundo Sexo teria encontrado um grande filão se contribuísse para as questões do patriarcado (lembrar de Saffioti ou mesmo Eleanor Burke Leacock, que veremos adiante) enquanto produto da estrutura e produtor de mercadorias. É Roswitha Scholz, marxista feminista da qual veremos mais adiante, que escreve em seu “Simone de Beauvoir Hoje” (2011) que, enquanto a filosofia existencialista de Heidegger expressava “o sentimento básico da população de classe média nacional-socialista” (ou nazista), “De Beauvoir, pelo contrário, inclui também ideias marxistas na sua teoria. Isso, no entanto, não tanto em relação às causas sócioeconômicas da opressão das mulheres, mas sim, como é usual numa visão existencialista-fenomenológica, com uma intenção mais descritiva, a fim de determinar O Segundo Sexo com fundamento em primeiro lugar existencialista.” Bem, a base é o existencialismo urdido em parceria com Sartre – seu companheiro intelectual e com quem teve encontros memoráveis com o Che e com Fidel (lembrar que a Cuba revolucionária deu garantias do aborto às mulheres, por exemplo). Sartre foi figura mais ou menos cosmopolita, engajada e de renome mundial que afirmou em Crítica da Razão Dialética que o Marxismo “permanece como a filosofia insuperável do nosso tempo. Não conseguimos ir além dele.”, ainda que ele próprio  tenha incorrido em alguns equívocos esquemáticos e no dualismo (ao invés da dialética) sujeito-objetivo, mas isso é assunto para outro texto… Pois bem! Estamos, então, diante de autores que precisam de filtro aqui e ali. Nesse sentido, há um texto pouco referido de Beauvoir, intitulado “O Pensamento de Direita, Hoje” (ensaio de 1954, publicado em livro no Brasil em 1967 – período oportuno, diga-se de passagem – pela Editora Paz e Terra). Podemos dizer que, nesta obra, Simone de Beauvoir, em defesa da ciência, inscreve-se entre as críticas pioneiras do pós-modernismo – embora em seu tempo não se falasse nisso com a insistência de hoje. Tal crítica só pode ter derivado do marxismo, que é moderno por excelência. Antes do A Destruição da Razão de Lukács (embora no mesmo Zeitgeist de pós-nazismo) e de maneira corajosa para uma autora mulher, Simone de Beauvoir, ainda que não de maneira mais aprofundada e erudita, já identificava o irracionalismo de Oswald Spengler, Martin Heidegger, Arnold Toynbee, Karl Jaspers e outros… Mas os temas mais pertinentes giram em torno de um ataque à burguesia e ao pensamento da direita – que vão do anticomunismo crasso, ao subjetivismo, misticismo, individualismo, elitismo, rejeição da ciência, características vulgares que formam o pensamento reacionário. Em “O pensamento de direita, hoje”, ela criticou “os teórico burgueses que professam um subjetivismo psicofisiológico: as ideias refletem não o objeto pensado, mas a mentalidade do sujeito pensante”. Ora, essa elaboração crítica certamente é uma herança marxista. Ela ainda desmascara a “naturalização da História”: “A natureza é um dos grandes ídolos da direita. Ela surge como antítese da história e da práxis. Contra a história a natureza nos oferece uma imagem cíclica do tempo; vimos que o símbolo da roda elimina a ideia de progresso e favorece a sabedoria quietista. O retorno indefinido das estações, dos dias e das noites encarna concretamente a grande roda cósmica. A evidente repetição dos invernos e dos verões torna [para a direita] irrisória a ideia de revolução e manifesta o eterno.” Como podemos constatar, Simone de Beauvoir está ao lado da revolução socialista.

“Vote comunista”. Ângela Davis discursa no Partido Comunista dos EUA, nos anos 1960; marxista e comunista convicta, teve ojeriza do feminismo até perceber que o problema estava no feminismo pequeno-burguês e liberal, meramente arrivista, ou seja, que deseja se integrar ao sistema capitalista, e não revolucionário.
“Sim, eu sou comunista e considero isso uma das maiores honras, porque estamos lutando pela libertação total da raça humana.” – Ângela Davis em Uma Autobiografia.

Ângela Davis (1944-) contou recentemente que, após a publicação de seu famoso livro Mulheres, Raça e Classe (1981), todos passaram a chamá-la de feminista, ao que ela respondia: “Eu não sou feminista, eu sou uma revolucionária negra”, até se dar conta que sua ojeriza referia-se a um certo tipo específico de feminismo, “o feminismo infelizmente mais representativo”, de acordo com ela: o feminismo “branco”, burguês ou pequeno-burguês, o feminismo liberal, etc. Assim, é autora que nos importa, porque, diante de pautas ditas “identitárias” que segregam a luta ou buscam ascensão arrivista no sistema capitalista exploratório, Davis, por ser autoproclamada comunista, sabe que não se privilegia raça e gênero em detrimento da classe, mas que é nas interseções entre as três categorias que podemos encontrar o potencial revolucionário. (Noutras palavras, permitam-me um exemplo relevante ao nosso panorama atual, ainda que tosco: há parcelas “identitárias” da esquerda brasileira que, por falta de teoria revolucionária de certos partidos ou por desejo arrivista, batem palmas para uma Maju Coutinho, jornalista negra e mulher, pela primeira vez em posição de maior destaque na Rede Globo, sendo que esse “liberalismo” escamoteia não apenas a relação capitalista exploratória entre patrão e empregado, como também o fato de que tal representatividade efêmera – e reduzida – está nas mãos do capitalista, sempre macho, heteronormativo e branco, no caso, os Marinho e seus chefes executivos, propagadores dum “jornalismo” “neoliberal” e privatista financiado por banqueiros e grandes empresas, portanto racista – aliás, o diretor de jornalismo da emissora, Ali Kamel, é autor de um dos livros mais infames deste país, Não Somos Racistas. Uma Reação aos que Querem nos Transformar Numa Nação Bicolor.) Portanto, cabe tomar cuidado com o prefácio de Djamila Ribeiro na recente edição da Boitempo para Mulheres, Raça e Classe, que lastimavelmente desvia a centralidade da categoria trabalho para a questão racial (questão facilmente cooptável, quando solitária, conforme o exemplo já mencionado), sendo que Davis segue no miolo de sua obra o caminho contrário, muito mais revolucionário e coerente: percebe de que modo o capital instrumentaliza o racismo e o sexismo para nos colocar uns contra os outros e perder de vista a centralidade do trabalho e o nosso inimigo comum, a burguesia. Tomando o livro de Davis dessa forma, temos um primor da luta marxista contra o capitalismo, um apelo de unificação entre todos os grupos subalternizados que devem eles mesmos ultrapassarem o racismo e o sexismo para pôr foco na luta contra o capitalismo global, que forma, mantém e gera o racismo e o machismo. (Numa minúscula resenha mais ou menos “diplomática” intitulada “O Marxismo de Ângela Davis“, Silvio Almeida, destacado intelectual negro brasileiro contemporâneo, escreve: “a importância de Mulheres, raça e classe transcende as perspectivas teóricas ou práticas de grupos específicos e se mostra relevante para o marxismo enquanto “método” ou “ciência da história”. Davis nos lembra que o marxismo tem como prioridade o movimento do real da materialidade histórica, e por isso o conceito de classe deve ser “elevado” em direção ao concreto. Classes são formadas por indivíduos, cujas relações são determinadas pela lógica capitalista da produção e pelas formas históricas de classificação racial ou sexual. Atentar para a forma adquirida pelo racismo e pelo sexismo no interior do capitalismo permite ao marxismo não ser engolfado pelo idealismo ou por esquemas mecânicos que inviabilizam uma concepção verdadeiramente científica da sociedade. Trata-se, portanto, de ponto de partida para o desafio de responder à questão se a relação entre capitalismo, racismo e sexismo se explica por fatores históricos (nunca houve capitalismo sem racismo e sexismo) ou lógicos (não há capitalismo sem racismo e sexismo).” É importante, enfim, que a ontologia marxista do ser social (para lembrarmos Lukács) não se confunda com o cientificismo academicista e que não se opere nem se desvie a centralidade do trabalho para explicar a racionalidade do capital ou a substitua pela “centralidade da questão racial”, para que a problemática negação da “não hierarquização das opressões” se resvale, necessariamente, no relativismo, pois essa concepção é fruto de uma vertente “marxista” fácil de ser cooptada pelas próprias formas mercadológicas que Almeida identifica e denuncia, é uma vertente que teme a radicalidade do pensamento marxiano, sintetizado na revolução. Não será possível remontar, nos objetivos deste curto espaço, detalhes sobre a questão, mas basta dizer que o machismo se sustenta a partir do fato da propriedade privada ser detida pelo homem heternormativo na sociedade de classes (e que a fileira que pretende superar tal sociedade é o comunismo), assim como o racismo se estabelece a partir da acumulação primitiva e suas consequências na colonização e escravidão, posteriormente, no capital, e que em sua superação pela via do comunismo é que há a expressiva superação do sexismo e racismo.

Eleanor Burke Leacock (1922-1987), antropóloga, feminista e marxista.

Eleanor Burke Leacock (1922-1987) foi a mais importante antropóloga marxista estadounidense,  que deu enormes contribuições ao estudo das sociedades igualitárias (primitivas ou modernas), à evolução do status das mulheres na sociedade, ao marxismo e ao movimento feminista. O seu volumoso e importante Mitos da Dominação Masculina: Uma Coletânea de Artigos sobre as Mulheres numa Perspectiva Transcultural (Instituto Lukács, 2019) é estudo altamente recomendado, tanto como discussão crítica do estado da arte quanto como um relato de história pessoal/política que informa o processo de investigação científica. A obra desmascara os diversos mitos por trás da ideia de superioridade masculina “natural”. (Lembrar da crítica de “O Pensamento de Direita, Hoje” a respeito da naturalização da História, muito comum nos autores burgueses e na direita.) Com base em uma extensa pesquisa histórica e intercultural, Leacock mostra que as reivindicações de superioridade masculina são baseadas em mitos cuidadosamente construídos sem base histórica factual. Ela também documenta vários exemplos históricos de relações igualitárias de gênero.  “Norteada pela busca incessante para desvelar o que constitui a essência do mito da dominação masculina, Eleanor Burke Leacock dedicou-se com afinco à pesquisa antropológica para corroborar a tese marxiana de que a humanidade constrói seu próprio mundo desta ou daquela forma sobre a base das condições objetivas historicamente postas (…)”, afirma um trecho da descrição do livro pelo Instituto (é possível baixar em .pdf, mas o preço de cerca de R$8 para um livro de mais de 400 páginas não pode ser desperdiçado). A ler.

Silvia Federici (1942-).

– Feministas italianas veteranas e contemporâneas como Silvia Federici (1942-), radicada nos Estados Unidos (em que o movimento feminista deste país influenciou sua luta e trabalho?), e que possui livros traduzidos no Brasil, onde é muito requisitada para eventos, sempre esgotados, e Maria Rosa Della Costa (1943), desafiam a teoria marxiana da acumulação primitiva, mostrando como a despossessão de corpos femininos também fez parte desse processo, repensando a relação entre capitalismo e patriarcado e o lugar do trabalho doméstico e não remunerado no esquema marxiano. Podem existir alguns equívocos regressivos aqui e ali em matéria de crítica da Economia Política (por exemplo, Federeci reivindicava, desde os anos 1970, o assalariamento para o trabalho doméstico das donas de casa, e é preciso sopesar como essa questão é vista por outras feministas, se isso uniria as mulheres domésticas às trabalhadoras externas, e mesmo a partir da crítica ontológica marxista do assalariamento), mas eis o que fica de basilar em seu pensamento e luta: em entrevista ao El País Brasil em 2019, Federici, diante da pergunta “Pode-se ser feminista e não estar contra o capitalismo?”, responde, pondo abaixo o arrivismo de certos grupos: “Não. Não pode. O feminismo não é uma escada para que a mulher melhore sua posição, que entre em Wall Street, não é um caminho para que encontre um lugar melhor dentro do capitalismo. Sou completamente contrária a esta ideia. O capitalismo cria continuamente hierarquias, formas diferentes de escravização e desigualdades. Então, não se pode pensar que sobre esta base se possa melhorar a vida da maioria das mulheres, nem dos homens. O feminismo não é somente melhorar a situação das mulheres, é criar um mundo sem desigualdade, sem a exploração do trabalho humano que, no caso das mulheres, se transforma numa dupla exploração.” Dois livros destacados de Federici com tradução no Brasil e corpo crítico já disseminado: Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2004) e Revolução ao ponto zero: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas (2013).

Roswitha Scholz (1959-), marxista feminista contemporânea, tem contribuído à vinculação da categoria gênero à teoria crítica do valor. Teórica do valor-clivagem.

Roswitha Scholz (1959-). Jornalista alemã. Contemporânea. Ainda não me aprofundei para delinear pontos divergentes, mas os pontos convergentes parecem muito enriquecedores. Conhecida pela crítica do valor (partindo, assim, da teoria marxiana) vinculado à clivagem de gênero, o que lhe permitiu desenvolver a teoria do “valor-clivagem”, “valor-dissociação” ou “dissociação-valor”, dependendo da tradução. Parece que a teórica do valor-clivagem encara o patriarcado como produtor de mercadorias (tomando como referencial o título de uma reunião virtual recente de mulheres brasileiras a discutir a autora), postura fundamental e central para o casamento do feminismo com o marxismo; esta parece ser uma visão coerente e fecunda. (Resta problematizar, como vimos com Heleieth Saffioti, a questão do patriarcado diante da categoria gênero?) Começar pelo artigo “O Valor é o Homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos” (de 1992, embora a própria Scholz, em Nota Prévia de 2017, veja deficiências nesse texto, recomendando, a título de compreendermos com maior profundidade a teoria da dissociação-valor, consultarmos o livro O Sexo do Capitalismo. Teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do patriarcado, além de ensaios seus e de outros e outras na revista teórica Exit! Crise e crítica da sociedade das mercadorias). Em “Simone de Beauvoir Hoje” (2011), Scholz revê o legado da autora francesa a partir do feminismo e do marxismo. É preciso se perguntar se essa autora, uma vez debruçada na crítica do valor e divulgadora da teoria do valor-clivagem, supera e resolve, de uma vez, e de que modo critica – como a brasileira Loreta Valadares o fez em seu texto supracitado – a velha querela de feministas como Simone de Beauvoir, Juliet Michell e Schulamith Firestone que viam no marxismo (mesmo em Marx e Engels) uma “redução” de tudo ao econômico e ao “homo aeconomicus”.

O percuciente livro Crítica ao Feminismo Liberal: Valor-Clivagem e Marxismo Feminista (2020), de Taylisi Leite.

– Da brasileira Taylisi de Souza Corrêa Leite (Doutora, Mestra e Especialista em Direito), o importante livro Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e feminismo marxista, lançado neste ano de 2020 pela Editora Contracorrente (salvo engano, a autora é orientanda de Alysson Mascaro, que sempre bebeu muito na fonte de um Pachukanis, cuja filosofia do direito dá as bases marxistas para uma crítica e superação do direito burguês): em seu percuciente livro, Taylisi parte do valor-clivagem de Roswitha Scholz para criticar, desmascarar e denunciar o feminismo de cooptação liberal. Tudo aponta que trata-se de livro obrigatório para formarmos e vacinarmos as camaradas mais novas e sacudirmos no combate contra as armadilhas capitalistas. A ler.

Mulher, Estado e Revolução: política da família soviética e da vida social entre 1917 e 1936 (1993), de Wendy Goldman (1956-), parece apontar os retrocessos históricos da época “stalinista” (basta compará-los com as conquistas factuais anteriores e até com os escritos de Lênin, Nadejda Krupskaia, Alexandra Kollontai, outros e outras na fase histórica anterior).  Não posso ainda dizer se essa autora tem ou não um aprofundamento no marxismo, mas é historiadora especializada em Rússia e União Soviética, sabendo retratar as grandes experiências e conquistas da libertação da mulher e do amor livre na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) depois de uma revolução comunista com uma vanguarda de intelectuais marxistas – e por que falharam, quando entrou em cena a burocracia stalinista. A ler, principalmente para o combate interno (ainda que anacrônico e extemporâneo, mas que se impõe alheio à nossa vontade) contra o “stalinismo”, que fisga até mesmo uma ou outra camarada menina mais incauta a embarcar nesse idealismo machofrênico, além de meninos aborrecentes (não sem a influência de marmanjos pseudomarxistas sem caráter e reacionários, praticamente direitistas). Esses dias mesmo, vi uma suposta feminista marxista (perfil “Solidariedade Feminina! no Instagram) omitindo (a troco de que?!) os danos, inclusive femininos, no período Stálin (cuja própria filha chamava-o de homem conservador, relatando que pessoas da própria família é que começaram a sumir antes dos demais). Goldman parece contribuir enormemente para a historiografia recente daquele período – espera-se que tenha problematizado as condições táticas particularmente difíceis da Rússia isolada do resto do mundo que não logrou a revolução, ao invés de um retrato simplório ou moralista, mas que exponha os danos do Grande Expurgo para a própria revolução, sem contar, depois, a dissolução da Internacional para agradar os Aliados liberais e anticomunistas, desmantelamento cujas consequências amargarmos até hoje. Enfim, é uma autora mais do que interessada em Stálin. Basta olhar os seus títulos subsequentes: Women at the gates : gender and industry in Stalin’s Russia (2002) – este trata de gênero e indústria, Terror and democracy in the age of Stalin : the social dynamics of repression (2007), Inventing the enemy : denunciation and terror in Stalin’s Russia (2011) e Hunger and war : food provisioning in the Soviet Union during World War II (2015). Infelizmente, estes outros livros parecem não contar ainda com uma tradução no Brasil.

Lise Vogel (1938-), Susan Ferguson (1962-), Tithi Bhattacharya (1971-) e Cinzia Arruzza (1976-), também contemporâneas, apesar das diferenças geracionais e apesar de atuarem (na prática e na teoria) em países e culturas bastante distintas entre si, com problemas e resoluções específicos, são todas feministas marxistas que apresentam uma teoria unitária para explicar como o movimento do capital, enquanto forma a partir da qual a sociedade capitalista se produz e se reproduz, concretiza-se articulando gênero, raça e classe, bem como trabalho produtivo e reprodutivo.

Os verdadeiros marxistas e comunistas e seus quatro principais adversários internos

PELEGOS, (NEO)STALINISTAS E APOLOGÉTICOS ACRÍTICOS DE CHINA E COREIA DO NORTE, IDENTITÁRIOS LIBERAIS, CÚPULAS ENRIJECIDAS E ELEITOREIRAS

“Na luta contra eles, a crítica não é uma paixão do cérebro, mas o cérebro da paixão. Não é o bisturi anatômico, mas uma arma. Seu objeto é o adversário, que não procura refutar, mas destruir. O espírito daquelas situações já foi refutado. Não são dignas de serem lembradas; devem ser desprezadas como existências proscritas. Não há necessidade da crítica esclarecer este objeto frente a si mesma, pois dele já não se ocupa. Esta crítica não se conduz como um fim em si, mas, simplesmente, como um meio. Seu sentimento essencial é a indignação; sua tarefa essencial, a denúncia.” – Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.

“A dificuldade está agora no fato de que deve ser organizada uma nova
forma de resistência. Se tomamos, não o marxismo vulgar, mas o
verdadeiro marxismo, o marxismo de Marx, podemos encontrar lá
todos os elementos necessários para combater essas novas formas
de alienação.” – Georg Lukács, Conversando com Lukács, tradução de Giseh Vianna, Instituto Lukács, São Paulo, 2014, p. 68 (grifo meu).

É certo que o marxismo não é monolítico (e deve desmistificar e combater todo dogmatismo), muito menos em estratégias e táticas, nem mesmo o termo comunismo é monolítico; mas o marxismo em especial (e, sem ele, todo comunismo é frágil) possui algumas conquistas teórico-práticas bem assentadas e, até este momento, insuperáveis e irrefutáveis: a teoria do valor (a partir da qual se identifica a exploração do capitalismo), a dialética, a concepção materialista e a perspectiva revolucionária na compreensão das lutas de classes. (No Anti-Dühring, o “tripé” que abarca tais elementos é dividido em Economia Política, Filosofia e Socialismo.) É a partir deste legado, que se movimenta de acordo com as condições do presente e o acúmulo histórico, que se desenvolve a diversidade do marxismo e seus debates em torno de um objetivo muito claro, que é estudar e superar a sociedade capitalista e construir a sociedade comunista; mas não é sobre isto que trato aqui, e sim sobre pseudomarxismos e até pseudocomunismos na própria esquerda, que desprezam inconscientemente ou pisoteiam propositalmente ou até usurpam toda a teoria, degradando a prática.

Quem é marxista e comunista a vero, isto é, quem se senta para estudar a bibliografia revolucionária – a formativa e a contemporânea – e, com ela, sabe dos anseios históricos da população, mais profundos do que a limitada “política pública”, e que não quer ser militonto acrítico e/ou seguidor de falsários e carreiristas, enfrenta na luta política partidária interna terríveis obstáculos além dos nossos adversários diretos, a direitalha e os capitalistas. No momento, são estes os principais:

(1) Os pelegos. A velha peleguice de sempre. O “PelegodoB” (conforme dizem alguns camaradas), o sindicalismo do PT e outros. Mas, nos últimos meses, é talvez o PDT que tem representado mais explicitamente: Ciro Gomes (cujo livro novo rejeita o trabalhismo para enganar ou se deixar enganar por um charlatão feito o Mangabeira Unger, um mau reformista – como se vê, Harvard, de onde ele também pinçou a “Tábata Neoliberal” – alcunha de colegas, não minha -, formada pelo bilionário Instituto Lemann, que é sedento pela privatização da Educação e um think tank de cavalos de Tróia para a esquerda, parece ser o lugar preferido de Ciro Gomes), falastrão, fala sempre a favor dos trabalhadores e do “povo” (tentando emular o Brizola) diante das câmeras e do seu eleitorado de esquerda (vários deles, na verdade, playboys ou acadêmicos que pensam num desenvolvimentismo ultrapassado, diante da mutação toyotista do capital, que já mais nada desenvolve e cresce), enquanto, por trás, ele dá as mãos para o DEM e metade ou quase metade do partido vota com o terraplanista econômico, o ultraneoliberal Paulo Guedes, que já cada vez mais perde espaço no (des)governo Bolsonaro, um pilantra que, por sua vez, sacou como pode ser uma boa o voto de cabresto e as esmolas dos pelegos de esquerda… Pior é o PSB, que se diz “socialista” no nome, mas não o é na realidade, conforme podemos comprovar nas atitudes e votos do partido, sempre fechado com a direitalha em âmbitos estaduais e federal! O PT, que surgiu de importantes greves, vem do sindicalismo, não do marxismo, ou seja, da reivindicação por melhores condições de trabalho e salário. Portanto, tanto o informe de Marx que se desenvolverá em O Capital, “Salário, Preço e Lucro” (em que, em meio a greves por aumento de salários, ele propõe substituir o lema – segundo ele próprio – conservador “Um salário justo por uma jornada de trabalho justa!” pela divisa revolucionária “Abolição do sistema de trabalho assalariado!”), quanto o anti-sindicalismo de Lênin, são postos de escanteio. Com Marx morto, muitos “socialismos” falsários surgiram pelo mundo. (Lembrem-se do proto-nazista Spengler…). Já na velhice de Engels, que teve de escrever o AntiDühring, obra mestra que formou a primeira geração de marxistas, e em que ele elenca cronologicamente o trabalho assalariado junto a outras formas de opressão e exploração, como a vassalagem do sistema feudal, a escravidão, etc. O trabalho assalariado como forma moderna de exploração e de opressão não existe para a peleguice, portanto não há marxismo, esvaziaram a Economia Política e esvaziaram todo o marxismo; não se aprofundam numa superação do assalariamento para a elevação ontológica do ser social e dos trabalhadores (Lukács), nada fazem de concreto a respeito das lutas de classes. Pode parecer óbvio que seja assim em partidos de esquerda e de centro-esquerda, que primam por uma social-democracia cada vez mais vagabunda e impotente diante do capitalismo financeiro, que esmaga as forças produtivas, mas e quando trata-se de partido que leva comunista no nome e possui como símbolos a foice e o martelo (o governador Flávio Dino os queria retirar, mas os militantes do partido não deixaram)? É peleguice pura, pseudocomunismo, anti-marxismo; patifaria, canalhice, defasagem educacional, etc. Aliás, resta saber se a defasagem teórica é que gera a peleguice ou se é a peleguice interesseira e oportunista que gera a defasagem teórica, ou se ambas, dialeticamente… Ontem mesmo, um filiado do PelegodoB me disse que era “trabalhador de base”. Um bancário, um funcionário público se dizendo “trabalhador de base”! Defasagem educacional? O partido não ensina, e nem quer, porque precisa de sujeitos assim para se manter e manter o status quo. Um partido sério faria com que ele tivesse tempo para estudar o básico ou, se fosse um canalha, o expulsaria. Defende migalhas, esmolas. Um militonto do PCB outro dia também defendeu o simples assalariamento como “meta revolucionária” (para Marx, em seu informe, e para Engels, isto é conservadorismo), usando como exemplo a China! Entende-se por que não chegam na base – sem teoria, mal sabem o que é base. O trabalhador do setor de produção e os milhares de brasileiros da base da pirâmide social, levando este país nas costas diariamente na informalidade e no subemprego, somem diante de um bancário de classe média que se julga “trabalhador de base”, que diz que a Manuela d’Ávila (que nada sabe responder quando lhe perguntam sobre a ditadura do proletariado, que é apenas o oposto da ditadura da burguesia) é “linda e exemplo para as mulheres” (nada de Rosa Luxemburgo – não só com a crítica das armas, mas sobretudo, neste nosso momento, com a arma da crítica, pois os livros de Manuela são superficiais -, nada de Pagu Patrícia Galvão)…

(2) A nova geração do PCB, que começa nos idos de 2013 e 2015 (cuja representação mais óbvia é Jones Manoel, mas não só), com o esgotamento e o cansaço do importante núcleo duro do PCB anterior (por exemplo, na figura de um José Paulo Netto ou de Marcos del Roio, excelente intelectual gramcista), após décadas e décadas de decadência e crise ideológica, enfim, uma “nova linha” que hoje ilude filiados e mesmo não-filiados, nas redes antissociais (vários deles, dos dois grupos, chegam sempre até mim, por meus conteúdos, portanto tenho conhecimento de causa, além de ouvir fontes e ex-filiados): entre os superficiais, jovens carentes de líderes numa época sem lideranças, de capitalismo tardio e de vigilância, carreiristas, oportunistas, falsários, debilóides, pseudocomunistas e pseudomarxistas, uma verdadeira gangue de delinquentes “neostalinistas” revisionistas, ultra-idealistas em torno de um “mito” que nada nos diz respeito, extemporâneos, anacrônicos, e, no quesito do agora ou até como modelo a ser copiado (quem copia modelo é conservador, não revolucionário!), idólatras cegos, apologéticos das empresas da China (assim, como podemos ver, também eles, dizendo-se marxistas, pisoteiam o “Salário, Preço e Lucro” e a noção marxiana do trabalho assalariado enquanto exploração moderna) e do superaparato do Estado da Coréia do Norte. Notem que ataco menos esses dois países, e mais os apologéticos deles (um bom governo de esquerda precisaria se unir a eles contra o capital hegemônico, mas sem se arrastar às empresas da China ou aos mísseis e ao aparato militar da Coréia). Não pretendo, aqui, me aprofundar a respeito da Era Stálin, porque há ampla bibliografia a respeito a ser sopesada, dos dois lados, mas sem idolatria e fanatismo. Pretendo juntar, para seguidores e alunos, uma bibliografia marxista – o menos trotskista possível – contra Stálin. Criaram uma resposta automática a respeito do “neostalinismo”: que o termo não existe, etc., quando, na realidade, há bons textos sobre as suas origens. Ao olharem para trás, são “saudosistas” conservadores (lembrem-se do final do Manifesto Comunista, conclamando para olharmos para frente, isto é ser revolucionário), porque, tendo o tal “socialismo real” (para muitos, “capitalismo de Estado”) conquistado tantos valores concretos e, no geral, sido melhor do que o capitalismo, olha-se para frente, sob pena de comprometer o materialismo dialético; pior, idolatram um líder “muito cruel, muito rude” (palavras da própria filha e também de Lênin, 1 ano antes de morrer); defendem o Grande Expurgo (esses dias, expulsei um desses delinquentes de nosso grupo de estudos e de ação, porque disse que adoraria me “fuzilar”, “fuzilar um traidor” – ameaça que pode parecer infantil, mas grave, criminosa – imaginem se essa gangue conseguisse o poder); defendem uma burocracia tecnocrática contrarrevolucionária que perseguiu camaradas e revolucionários, mesmo da cultura de vanguarda, dizimou os conselhos dos Sovietes, Mandelstam, Pachukanis e centenas de outros, uma deturpação do marxismo (“socialismo em um só país”, ao invés da construção internacionalista de classe), etc. Se você crítica com vigor, é chamado de “trotskista” (não sou) e “fantoche do imperialismo”. Rasteirice pseudointelectual… O destino é o abismo, infelizmente; quadros mais sensíveis e mais cultos se afastam, desistem do estudo do marxismo, porque esses caras envenenam e contaminam tudo em seus submundos quase terraplanísticos… Esse revisionismo acrítico deságua numa defesa intransigente da China e/ou da Coréia do Norte, e também aqui esvazia-se tudo do marxismo: Gramsci (dupla de conceitos marxismo oriental / ocidental), a teoria do poder, a Economia Política, etc. para uma mera defesa apologética. Quanto à China e Coréia do Norte, as empresas chinesas e os mísseis norte-coreanos (nada contra um país soberano, erigido contra o gosto imperialista da Europa e dos EUA, se defender – o problema é que, esses dias, contaram-me que um desses juvenis, de nome Lucas Rubio, narrando a parada militar da Coréia, quase chorou, ou seja, o problema é depositar esperanças cegas nisso, com falta total de diplomacia, com espírito de tiete de torcida…), as empresas chinesas e os mísseis norte-coreanos estão pouco ligando para nós, revolucionários brasileiros e latino-americanos, mediante saber, ao invés dessa nojenta cretinice de militontos que, sem estofo teórico, ficarão perdidos quando essas formas entrarem em declínio e se transformarem, como tudo na vida: (A) O que a China e suas empresas e o que a Coréia do Norte e seu aparato militar farão diante de um processo revolucionário brasileiro e latino-americano? Como ajudarão? Quais serão suas condições? Lembrem-se que a União Soviética respeitou diplomaticamente as delimitações terríveis dos EUA nas ditaduras militares-empresariais que ajudaram a implantar em nosso continente. Lembrem-se que, quando Angola quis se emancipar pela via do socialismo, Cuba foi ajudá-la, não a União Soviética, que já havia deixado de ser uma superestrutura revolucionária há tempos… (B) O que faremos, extirpados os elementos do “Estado profundo” brasileiro, ou seja, aquele que sempre se mantém, na ditadura, na redemocratização, com Collor, FHC, Dilma, Lula, Bolsonaro, e extirpados capitalistas brasileiros importantes, ou seja, o que faremos quando tomarmos gradativamente o poder diante de uma nova diplomacia perante China e Coréia do Norte com nosso novo Estado? É isto o que deve ser debatido, escrito, estudado, planejado, ensinado! Todo o resto é lobotomização… Há uma renca de novinhos manipulados, lobotomizados nessas duas ondas supracitadas, enganados por “youtubers” que só buscam “likes”, rentabilidade, fama, holofote, e que são indigentes em marxismo. Nada ensinam sobre Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior e outros para a construção do socialismo brasileiro. Perda de energia, de tempo e de geração. Isso precisará ser impedido desde já. Tenho me empenhado, dentro das minhas limitações, a acordar incautos para estudarem a sério a teoria e desenvolverem uma prática muito mais madura.

Ps.: Mandei este presente texto em grupos de socialistas e comunistas, filiados em partidos ou não, militantes de movimentos sociais ou não. Recebi apoio, mas fui excluído de um deles, que passa dos 200 membros. Neste, que possui como membros até seguidores meus e também “neostalinistas” e pelegos com quem confrontei, recebi – mesmo expulso, através de camaradas – respostas muito frutíferas. Por exemplo, o criador, defensor explícito de Stálin, disse que este meu texto está corretíssimo em termos do que ele chama de “marxismo clássico”, e condena o meu “anti-stalinismo”. Diante de divergências e intensa discussão que meu texto provocou entre eles, este mesmo criador logo revela o caráter do pseudomarxismo “neostalinista”: “Aqui se passa a ‘mão na cabeça’ do período com Stálin”, escreveu ele. Depois: “1) Aqui se defende Stálin. 2) Aqui que se considera o período de Stálin ou Mao como períodos autoritários. 3) Se defende autoritarismo.” (Um aluno meu levantou a dúvida se não se trata de um “direitista” infiltrado, um “quinta-coluna”, pois defender autoritarismo assim, tão explicitamente?, mas não deve estar sozinho nessa mentalidade…) Nada a ver com ditadura do proletariado, que sempre significou uma contraposição à democracia farsante da ditadura do capital e da burguesa; trata-se da defesa do autoritarismo e da burocracia contrarrevolucionária. Ao defender isso e admitir minha coerência teórico-prática, apenas comprovam este meu alerta…

(3) Os “identitários” puros e pós-modernos (o pós-modernismo abandonou a centralidade da categoria Trabalho e a compreensão das lutas de classes, que unem a todos pela emancipação), ou seja, arrivistas ingênuos ou conformados que, sendo ou sentindo-se excluídos e diversos do modelo majoritário dominante, em busca de melhores condições subjetivas e materiais, não possuem qualquer outra pauta senão serem aceitos e cooptados pelo mercado (pelo modelo majoritário dominante do mercado), que através deles vai lucrar e espoliar. São talvez os menos nocivos do que os outros três, apenas não lhes foi apresentada a teoria revolucionária de acordo com suas realidades étnicas, sexuais, biológicas, etc. De qualquer forma, a casca é nociva. Construção revolucionária? Mudança estrutural? Não. Entregues ao liberalismo… Não lhes ensinaram ou não querem saber que o capitalismo é que deve ser combatido, pois o capitalista é o homem, branco, heteronormativo, etc. (Por outro lado, possuem toda razão de não quererem um socialismo só de brancos, só de homens, só de heteros, daí a necessidade da junção da causa.) Ao invés de tal visão, competem entre si. Não há, aqui, nada de Ângela Davis (comunista e marxista). Feministas, negros, LGBTs são levados a competirem dentro da própria classe em troca de um emprego, de um cargo maior, maior visibilidade, maior salário, salários iguais e afins. Há parlamentares do PSOL batendo palmas para uma Maju Coutinho como “representatividade”, quando, na realidade, trata-se de exemplo personalista, e de uma emissora que defende o neoliberalismo e a privatização diariamente, logo que promove o racismo. (Lembrem-se do livro do Diretor Geral de Jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel: Não Somos Racistas. Uma Reação aos que Querem nos Transformar Numa Nação Bicolor…)

(4) As cúpulas enrijecidas e eleitoreiras da democracia liberal burguesa, que lançam os quadros de cima para baixo para fins do grupelho político alçar vôo às buracracias federal, estadual, municipal. São determinantes para a peleguice. Existem em todos os exemplos anteriores, mesmo em partidos ditos socialistas e comunistas (afinal, a estrutura forma e mantém a superestrutura…), e em outros mais. Há, por exemplo, uma cúpula jurídica ferrenha no Partido dos Trabalhadores, e eu tenho insistido que esse partido só irá se renovar de verdade quando a “Juventude Socialista do PT” expulsar a cúpula eleitoreira e tomar a direção do partido, o que só aconteceria se tal Juventude fosse, mesmo, socialista e tivesse uma educação teórico-prática, da qual a cúpula jamais investirá para não perder seu pequeno poder… O PSOL, por exemplo, é um partido de frentes e, mesmo possuindo alas como a Revolução Brasileira e a Esquerda Marxista, amarra todo o partido numa lógica pequeno-burguesa de “manada”, sem perspectiva revolucionária, adequação ao sistema. É de se perguntar se o “centralismo”, portanto, não seria mais benéfico para o marxismo. Mesmo o Comitê Central do PCB ainda não conseguiu resolver a crise de direção, porque pensa totalmente em termos de Lênin (um partido que se confunde com o próprio Estado e não consegue mitigar a burocracia). Gramsci, com o seu “Príncipe moderno”, falava de um partido que fosse parte da classe, em contraposição a um partido com intelectuais dirigentes e filiados ou funcionários não necessariamente ligados à classe trabalhadora, que só se ligam a essa classe num momento de ruptura (espontaneísmo equivocado, ao invés de construção hegemônica). Para Gramsci (Q 13, 36, 1.634), que defende no cárcere fascista o centralismo democrático orgânico, é preciso “uma contínua adequação da organização ao movimento real, uma capacidade de temperar os impulsos da base com o comando pelo alto, uma inserção contínua dos elementos que desabrocham do mais profundo das massas no quadro sólido do aparato da direção que assegura a continuidade e a acumulação regular das experiências […] é ‘orgânico’ porque leva em conta o movimento, que é o modo orgânico de revelação da realidade histórica, e não se enrijece mecanicamente na burocracia”. O Partido emerge e realiza-se, assim, como instância reguladora e de estabilidade para a hegemonia (revolução) das forças de base e de seus grupos afins e aliados, não para o enrijecimento do núcleo dirigente central, que, em processo avançado, se se distanciar da sua vocação histórica, pode não só cair no centralismo burocrático como também não passar dum “órgão de polícia” (Q 14, 34, 1.692) de critérios discriminatórios. Isto, por enquanto, ainda não foi concretizado, daí a importância da teoria do partido gramsciano… Enfim, tanto num como noutro caso, é o oposto das cúpulas eleitoreiras e enrijecidas de que falo, que não só não são intelectuais (ou não têm sido) como tampouco descentralizam poder ao povo, filiados, militantes, sendo que estes últimos fazem papel de “militontos” (pior ainda quando são militontos eleitoreiros sem perspectiva de profunda transformação estrutural). Campanhas eleitorais e voto – o próprio Engels, sem abidcar da tomada de poder, admite num percuciente prefácio de As Lutas de Classes na França, quando ambos os direitos se consolidaram pela primeira vez na história a partir da luta do trabalhadores – são oportunidades de chegarmos na classe trabalhadora, de a organizarmos para governar e de divulgar nossa programática e luta. Mas a maior parte das cúpulas veem apenas eleições, mais nada; as eleições são um fim. Substituíram as lutas de classes, ou melhor, não percebem ou não querem perceber as lutas de classes permanentes e diárias em troca de disputas políticas e politiqueiras apequenadas. O país pode pegar fogo, não importa, isto apenas servirá daqui a 4 anos como justifica para esses irresponsáveis atacarem os candidatos adversários, todos eles lançados de cima para baixo pelas cúpulas, conquistarem a máquina pública, para administrarem o Estado burguês, ao invés de disputarem em todos os momentos posições revolucionárias na sociedade civil a fim de um novo Estado… Mas não pensem, não, que os partidos ditos revolucionários se diferenciam disto. A farsa é grande e ainda mais hipócrita neles. PCO ou Unidade Popular (este último ainda precisa esclarecer o fato de ser ou não braço institucional do PCR) não escapam disso. Os incautos da militância não notam. Uma vez tendo conquistado assinaturas do povo para a criação do partido, estes são esquecidos e, encalacradas nos vícios institucionais da ordem burguesa, sem abrir as listas partidárias para base, filiados e militância, com programas muitas vezes realmente socialistas (papel aceita tudo), contra as “leis burguesas” (mesmo enviando mensal ou anualmente comprovações para as instituições burguesas, para o TSE ou o TRE!!!), arrastam base e militância para apanhar em desvantagem na rua da polícia, pois nunca conseguem hegemonia, e tampouco se empenham de verdade para tal, porque estão conformados no poder institucional de cúpula. Este tem sido o nosso grande gargalo, o calcanhar de Aquiles, o círculo vicioso das esquerdas, que precisará ser resolvido de vez. Uma militância institucional revolucionária (parece paradoxo, revolução e instituição) precisa derrubar essas cúpulas pelegas a fim de começar a “traduzir” para nosso tempo e espaço o partido tal como teorizado por Gramsci e marxistas brasileiros.

Quem são os latifundiários que incendiaram e destruíram parte do Pantanal com aval de Jair Bolsonaro e Ricardo Salles

“Índios e caboclos”, conforme mentiu o calhorda Jair Bolsonaro na ONU, são os responsáveis por tantas imagens de horror de animais mortos, carbonizados e feridos (o Pantanal virou um cemitério de animais a céu aberto) e biomas destruídos por queimadas sem precedentes? (É o maior número mensal de focos de incêndio na história.) É claro que não, e esse cinismo assassino nem faz questão de esconder o seu propósito sórdido. Incêndios tomaram quase metade das terras indígenas no Pantanal; os dados indicaram que as queimadas começaram em terras privadas e os indígenas, que amam a natureza, relataram que “fogo veio de fora” e “destruiu tudo”. Além disso, invasões em terras indígenas aumentaram 130% no primeiro ano do (des)governo Bolsonaro e 113 indígenas foram assassinados, conforme relatório anual do Cimi, cujo coordenador reforçou: “É o aval do governo Bolsonaro que autoriza invasores a desmatar e devastar terras indígenas.”

Reportagem do G1 (“agro é pop” mesmo?) de 24/09/2020 revela alguns dos verdadeiros responsáveis pelas queimadas no Pantanal em 2020, indiciados pela Polícia Federal: 4 latifundiários(nomes deles mais abaixo), além de nomes de outros proprietários, empresários e desmatadores que eu coletei e que não estão na mídia hegemônica. A direitalha, há muito tempo, desconstruiu a imagem do MST – Movimento dos Sem-Terra ou da Funai como se os trabalhadores camponeses e os indígenas fossem os bandidos do campo, quando, na realidade, os verdadeiros bandidos são os fazendeiros, grileiros, madeireiros e garimpeiros, que roubam e concentram terras. Ainda de acordo com a própria PF, os incêndios foram causados propositalmente pelos latifundiários – nesta época de clima seco – para transformar a vegetação preservada em pasto. “Você extrai a mata nativa, e aí fica a pastagem para o gado”, explicou o delegado Alan Givigi, coordenador da Operação Matáá (“fogo” no idioma guató, homenagem aos indígenas que vivem nas proximidades atingidas), que apreendeu celulares, notebooks e outros materiais nas fazendas. O delegado de PF Leonardo Raifaini afirmou que a investigação, já adiantada, logo traria maiores informações e “(…) Se houve intenção de destruição do bioma ou não. Mesmo que seja para renovar pastagem.” Gado, carvão, cana e soja estão por trás do desmatamento milionário e criminoso no Pantanal, conforme revela reportagem do De Olho Nos Ruralistas, observatório do agronegócio no Brasil.

Tivéssemos um governo minimamente de esquerda ou socialista, apoiado no aparato de inteligência séria da PF, e esses agropecuaristas bandidos teriam suas terras expropriadas para os camponeses, trabalhadores do campo e para os indígenas. O horizonte seria rumo à propriedade coletiva e comunitária.

Grandes fazendeiros apoiadores da política ecocida do condenado por crime ambiental Ricardo Salles (aquele que quer devastar tudo, “passar a boiada”, enquanto o país queda paralisado diante dos óbitos e notícias sobre a pandemia de COVID-19) e Jair Bolsonaro, no rastro de sua explícita permissão destrutiva. A fala psicopática e chocante de Salles – que, quando quis ser deputado federal pelo Partido “Novo”, recebeu apoio de mais de 100 empresários do agronegócio e de setores de arma e munição – está alinhada com a de Bolsonaro (“esse governo é de vocês”, ele já disse para ruralistas): enquanto o país assistia sua natureza ser queimada e os óbitos de coronavírus subirem para mais de 140 mil, Bolsonaro se reunia com ruralistas para lhes parabenizar: “Vocês não entraram na conversa mole de ficar em casa.” Noutras palavras, estavam “passando a boiada”, porque “ficar em casa” – ou seja, seguir as medidas restritivas recomendadas pela ciência infectológica para barrar o contágio da pandemia – “é conversa mole de fracos”. Para estes inimigos da natureza e da vida humana, o lucro destrutivo no campo e empresarial nas cidades não pode parar, deve seguir apesar das vidas humanas e da própria vida natural do Planeta Terra. Paradoxalmente, durante essa mesma visita bandida em Mato Grosso, o avião presidencial teve de arremeter por causa de muita fumaça, mas nem esse susto fez o desprezível reconhecer a gravidade das queimadas.

O (des)governo agiu o tempo todo com perseguição e ataques contra ONGs e salvadores das florestas, cortou verbas dos brigadistas em mais da metade destinadas para a proteção ambiental, esvaziou por completo o orçamento de políticas ecológicas e estimulou em discursos e ações o ecocídio assassino para o lucro de ruralistas, agronegócio, oligarcas e capitalistas. Eleito em 2018, mas já antes da posse, Bolsonaro havia declarado: “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena. Já com o governo assentado, um levantamento revelou que mais de 100 propriedades foram autorizadas de maneira irregular em terras indígenas na Amazônia a partir de nova portaria dos serviçais de latinfundiários, que usurparam a Funai.

Mas as últimas queimadas no Pantanal passaram de todos os limites históricos, atingindo áreas de preservação, matando animais e destruindo biomas numa área equivalente ao Rio de Janeiro. Araquém Alcântara, um dos bravos fotógrafos que se empenha em registrar in loco um dos cenários mais importantes e bonitos do país, diz que o Pantanal está irreconhecível e que somente a chuva pode regenerá-lo.

Abaixo, os nomes dos 4 fazendeiros criminosos, indiciados pela Polícia Federal na Operação Matáá através de imagens de satélite e perícia local:

  • Hussein Ghandour Neto, proprietário da fazenda Califórnia, que possui 1.736 hectares de terra e onde os incêndios começaram em 30 de junho;
  • Pery Miranda Filho (preso em flagrante por porte ilegal de armas e munições, solto no dia seguinte por determinação judicial) e sua mãe Dania Tereza Sulzer Miranda, proprietários da fazenda Campo Dania, que possui 3.061,67 hectares de terra e onde os incêndios começaram em 1° de julho;
  • Ivanildo da Cunha Miranda, proprietário da fazenda Bonsucesso, que possui 32.147,06 hectares de terra e onde os incêndios começaram em 14 de julho;
  • Antônio Carlos Leite de Barros, proprietário da fazenda São Miguel, que tem 33.833,32 hectares de terra e onde os incêndios começaram em 16 de julho.

Ivanildo da Cunha Miranda, o único com rosto à mostra pelos jornais e maiores informações numa pesquisa rápida, é delator da operação Lama Asfáltica, em que detalhou esquema de propina da JBS para o governador do MT, André Puccinelli (MDB).

Há poucas informações mais substanciais sobre os outros, o que comprova que a oligarquia e a burguesia a serem derrotadas e expropriadas atuam praticamente às escondidas, enquanto os agentes públicos direitistas que lhes servem recebem todo holofote.

Hussein Ghandour Neto, Pery Miranda Filho, Dania Tereza Sulzer Miranda, Ivanildo da Cunha Miranda e Antônio Carlos Leite de Barros são os latifundiários, de acordo com investigação da Polícia Federal, diretamente envolvidos nas últimas queimadas criminosas no Pantanal com o aval do (des)governo ecocida de Jair Bolsonaro e Ricardo Salles.

Outros nomes importantes

Os maiores multados por desmate e crimes ambientais no Pantanal desde 1995 até 2018, de acordo com o Ibama e o De Olho Nos Ruralistas, observatório do agronegócio no Brasil: Geraldo Albanez, Oswaldo Cid Nunes da Cunha, Agropecuária Santa Mariana Ltda, Eurydes Beretta Júnior, Silvio Eduardo Burani, José Maria Costa, Black Ind. Imp. Expo. E Comércio De Carvão Vegetal Ltda – Me, Fazenda Ribeirão Agropecuária Ltda, Reginaldo Farias Santos, Simasul Siderurgia Ltda, Roberto Pedro Tonial, Raul Amaral Campos, Renato Alves Ribeiro, MMX Metálicos Corumbá Ltda (empresa de Eike Batista), Brpec Agropecuária S/A. Saiba mais na reportagem do De Olho Nos Ruralistas: “Eike Batista, Vale e família Steinbruch já receberam multas milionárias por desmatar Pantanal”.
Segundo reportagem do De Olho nos Ruralistas, a empresa é a BRPec Agropecuária, que recebeu em 2018 uma autuação de R$ 58 milhões, recorde entre os multados por desmatamento no bioma desde 1995, mais que o triplo da segunda maior multa; o banqueiro André Esteves, que já foi CEO do BTG Pactual, tem uma fortuna de cerca de R$ 25 bilhões.

É um trabalho extenso para uma pessoa só pesquisar e coletar todos os fazendeiros do Brasil a serem expropriados e os responsáveis diretos e indiretos pelo desmate dos anos anteriores, deste ano de 2020 e de 2019, em que o aval de Jair Bolsonaro e Ricardo Salles escancarou as queimadas. Pior: seria perigoso, num país em que jornalistas e ambientalistas são assassinados por mexerem com interesses do status quo… Para isto, há o aparato de inteligência e especialistas técnicos de institutos e organizações sérias. Para se ter uma ideia, depois da Operação Matáá ser iniciada, órgãos estaduais começaram a investigar origem do incêndio em 35 fazendas (!) de Mato Grosso do Sul. Ainda que talvez a maior parte destas tenham sido atingidas como consequência do descontrole do fogo, os fazendeiros, mesmo prejudicados, defendem as queimadas e o desmate para pastagem, e tratam-se de propriedades invadidas, roubadas, concentradas a custa de guerras seculares e sangue.

Mais ainda: descobriu-se, ao longo dos dias, que um dos focos de incêndio criminoso em Mato Grosso, que destruiu 90% do Parque Encontro das Águas, o principal refúgio de onças do Pantanal e do mundo (a Ampara Silvestre mostrou nas últimas semanas resgates e cuidados desses animais), teve origem em uma fazenda clandestina, isto é, que não aparece em dados oficiais, conforme estudo elaborado pelo Instituto Centro de Vida (ICV) com imagens fornecidas pela Agência Espacial Europeia (ESA). Tudo indica que a fazenda foi invadida e ocupada por grileiros de terras, que dificultam os órgãos públicos de encontrar responsáveis pelas queimadas e outros crimes ambientais.

No entanto, citarei alguns nomes muito relevantes, sem os quais a natureza do Brasil seria mais protegida e menos danificada.

Vale lembrar, além dos 4 nomes acima apontados pela própria Polícia Federal, o nome de Raimundo Cardoso Costa, defensor explícito de Jair Bolsonaro, latifundiário morador de São Paulo, investigado pela PF no início da operação por focos de incêndio em uma de suas duas propriedades do Mato Grosso, e que, para o Repórter Brasil (matéria importante sobre o fornecimento desses agropecuaristas para gigantes do agronegócio – “Fogo no Pantanal matogrossense começou em fazendas de pecuaristas que fornecem para gigantes do agronegócio“, https://reporterbrasil.org.br/2020/09/fogo-no-pantanal-mato-grossense-comecou-em-fazendas-de-pecuaristas-que-fornecem-para-gigantes-do-agronegocio/), afirmou que o incêndio em sua fazenda começou após a explosão de um carro (?!) e que, após as revelações, notícias, investigações, “Estão detonando a gente” (os fazendeiros do Pantanal), e, reclamando da regulação ambiental, veio com o mesmo vitimismo automático de sempre dos direitofrênicos:

“Tudo que acontece no Brasil é culpa do Bolsonaro. A mídia acha que quanto pior, melhor. Temos que ajudar o presidente a melhorar o Brasil.”

Parece a fala de um personagem caricato e padronizado. Lembra o fanatismo nazifascista, embora a direita brasileira e latino-americana seja, desde a Segunda Guerra, antinacional… O que será “melhorar o Brasil” para esses latifundiários? Destruí-lo para pasto e lucro de meia dúzia?! É isto ser “patriota”?! “Riscar os índios, nada esperar dos pretos”?!

Tanto Raimundo Cardoso Costa quanto José Sebastião Gomes da Silva, que tiveram focos de incêndio identificados em suas fazendas nas queimadas gigantescas de 2020, que chocaram o Brasil, vendem gado para empresas da família Maggi (Amaggi e Bom Futuro), fornecedoras de gigantes brasileiras como JBS (donos: José Batista Sobrinho e seus filhos, sobretudo Wesley Batista, Joesley Batista, Júnior Friboi – que estampam nos últimos anos os noticiários e as páginas políticas e policiais), Marfrig (de Marcos Antonio Molina dos Santos) e Minerva (da ‎‎Família Vilela de Queiroz). Essas gigantes são bem conhecidas por históricos de alta corrupção, propina (não há nada que não se faça hoje no capitalismo, sistema estruturalmente corrupto, já que o lucro está acima de tudo, sem propina), ilegalidade com fornecedores indiretos, ações bilionárias e, apesar de iniciativas aqui e ali de “sustentabilidade”, desmatamento.

André Maggi (1927-2001), tido por coniventes ou alienados como “herói matogrossense”, merece uma nota. Não há espaço suficiente neste texto para se aprofundar numa biografia cavada sobre esse nome, que estampa ruas e locais (o De Olho Nos Ruralistas tem as informações mais detalhadas e importantes), mas basta, como introdução, dizer que relatoria da PF comprovou que Maggi escravizou trabalhadores em suas fazendas já nos anos 1980. Em documento “confidencial”, um trabalhador relatou ter sido açoitado com um chicote de couro em fazenda pertencente à Agropecuária Maggi. No site oficial da Agropecuária, lemos o seguinte título: “AMAGGI | Desenvolvimento Sustentável para o Agronegócio”.

Eraí Maggi, presidente do Grupo Futuro, sobrinho de André Maggi, já posou sorridente com Jair Bolsonaro no hospital no final de 2018, quando este ainda era candidato. Aliás, Eraí Maggi possui ou tenta proximidade com todos os presidentes e figuras políticas de destaque, porque é considerado o maior produtor de soja do mundo.

Outro membro conhecido da família é Blairo Maggi, filho de André Maggi e primo de Eraí. Já em 2005 foi “premiado” com o Motosserra de Ouro do Greenpeace. Foi senador eleito em 2010 pelo Partido da República (PR) de Mato Grosso. (Em 27 de fevereiro de 2013, assumiu a presidência da Comissão de Meio Ambiente, Fiscalização e Controle do Senado Federal, apesar da resistência dos parlamentares ligados ao movimento ambientalista.) Também foi “Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil” durante o governo ilegítimo e golpista de Michel Temer (2016-2019). Durante a Operação Carne Fraca, falou em  “desburocratização do agronegócio” para diminuir a fiscalização sanitária. Mesmo durante a comoção nacional após o rompimento de barragem em Mariana, da mineradora Samarco, causando prejuízos ambientais, econômicos e dezenas de mortes, Blairo havia proposto o fim do licenciamento ambiental. Não para por aí. Durante a 22ª Conferência do Clima em Marrakech, uma dos encontros mais importantes da ONU, minimizou o conflito agrário, afirmando, sobre o número de mortes de ambientalistas no ano, que “é só 50” (!), quando, na verdade, naquele ano houve, no mundo, 200 mortes do tipo, sendo 50 só no Brasil, o que fez o país o campeão mundial de assassinato de ambientalistas.

Pois bem. Outros nomes de fazendeiros que precisam ser considerados, ainda que não estejam naquela lista da Operação Matáá da PF, senão como desmatadores diretos nos últimos anos e sobretudo a partir do (des)governo Bolsonaro, ao menos defensores de queimadas ou causadores de queimadas anteriores:

Há outros, muito possivelmente. Será importante um mapeamento de todas aquelas 35 fazendas investigadas a priori na Operação Matáá.

Encontramos vários desses nomes acima envolvidos em processos trabalhistas. Não é preciso dizer que, mesmo com a abolição da escravatura e o fim da escravidão enquanto modo de produção econômico, nos grotões e rincões do país ainda há pessoas em situações análogas à escravidão ou semiescravidão, nas mãos desses latifundiários e/ou de seus antecedentes.

Qual é a solução?

Processos, multas, indenizações aplicados aos fazendeiros, reflorestamento, cassação dos políticos envolvidos podem ser importantes num primeiro momento e a curto e médio prazo, mas a solução do problema não está dentro da justiça da ordem burguesa ou oligárquica. O que reproduz o crime ambiental possui uma causa a ser mitigada e extirpada. Este texto já forneceu, acima, nomes e informações substanciais para este trabalho revolucionário.

O “capitalismo verde”, que lucra com florestas em pé sem desmate, e que é a aposta dos países desenvolvidos da Europa que já fizeram uma reforma agrária, tampouco é a solução, ainda que num primeiro momento estratégico seja preciso se unir a esse setor para derrotar a oligarquia do atraso. Há uma parte do agronegócio – minoritária no Brasil? – que é contrária aos desmatamentos. São iniciativas de bioeconomia, agrofloresta, biotecnologia, bioindústria, etc. Há quatro dias, inclusive, por pressão interna e externa de investidores diante das imagens e das notícias do ecocídio na Amazônia e no Pantanal, gigantes multinacionais se uniram contra o desmatamento, o que foi recebido como boa notícia e sem críticas por parte da esquerda. Este comportamento da esquerda só pode surgir por uma defasagem da (ou preconceituosa ojeriza à) teoria revolucionária e anticapitalista.

Embora num primeiro momento possa parecer mil vezes melhor a sustentabilidade contra o obscurantismo destrutivo de parcelas atrasadas (o Brasil, mesmo no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, tem áreas que ainda lembram a Rússia feudal, pré-revolução – não fosse a Revolução Soviética, a Rússia possivelmente seria hoje ainda uma enorme Mongólia, como o Brasil é, em boa extensão, um enorme pasto, por causa dos latifundiários), pretender conciliar ambientalismo com capitalismo é cair na utopia, na ingenuidade, supor algo que jamais existiu: um capitalismo não-predatório, capaz de um desenvolvimento auto-sustentável em relação aos recursos ambientais, ou um capitalismo que não seja produtivista (produção pela produção), que não persiga em sua sanha o valor de troca, a acumulação do capital e todos seus descalabros sociais, políticos, econômicos, ecológicos, humanos, etc. (Lembremos que o pensamento prático de Karl Marx começa a amadurecer dentro do comunismo e de uma teoria da revolução a partir do furto de madeira, conforme o filme recente O Jovem Marx representa bem. “Todo o artigo de Marx sobre os furtos de madeira é uma defesa corajosa, inflamada e indignada dos miseráveis perseguidos e explorados pelos proprietários das florestas”, escreve Michael Löwy, historiador da esquerda, cujo livro A Teoria da Revolução no Jovem Marx eu uso na bibliografia dos meus grupos de estudos e formação.)

A solução tem de ser estrutural. O resto é paliativo. O planeta não pode mais esperar. Mudar a estrutura contempla grandes reformas estruturais que ataquem interesses dominantes e revolução ecossocialista.

O que é o estrutural? Nele estão o modo de produção, os meios de produção, as relações de produção, as lutas das classes, ou seja, tudo o que forma e mantém a superestrutura política. O Manifesto Comunista, na parte final, deixa claro que, onde quer que estejam, os comunistas colocamos a questão da propriedade como central para uma alteração do status quo. Os gráficos abaixo explicam.

Ser revolucionário é agir no estrutural. Uma revolução ocorre a partir de uma condição, de uma situação revolucionária em que haja a necessidade da base, sua vontade organizada a partir da sua conscientização e a insustentabilidade do topo, mas precisamos desde já agitarmos e disseminarmos nossas pautas e construirmos, no plano das ideias e da realidade, uma construção revolucionária, não só a partir da conquista do Estado, mas em posições da sociedade civil.

As terras e fazendas devem ser expropriadas e socializadas, e todos os envolvidos, sobretudo os patrões e fazendeiros grandes, responsabilizados por tribunais revolucionários formados por indígenas, camponeses e trabalhadores do campo, unidos aos trabalhadores urbanos e sua luta pela socialização da propriedade privada dos meios de produção – fazendas, terras, indústria, grandes empresas, matérias-primas, etc.

28 de setembro de 2020

As 3 principais influências determinantes para o Brasil no próximo período pós-pandemia

1. A influência geopolítica, estrangeira. As eleições presidenciais nos EUA deste ano, que podem afastar Donald Trump, os neocons e o tea party republicano do poder federal, terá tanta importância quanto as eleições brasileiras municipais, em que frentes de esquerda contra o atual desgoverno podem surgir a partir de cidades-chaves. Sem Trump, sabemos que o pilantra do Planalto e seu desgoverno militarizado, subserviente, capacho isola-se ainda mais e não “fica bem das pernas” interna e externamente. O resto do mundo polido estranha ou detesta o atual inquilino do Planalto; mesmo os capitalistas internos, dependentes e ruins, preferem adular apenas o terraplanista econômico Paulo Guedes, um Bolsonaro com Phd, porque os engorda e sustenta. Outra influência geopolítica determinante para a próxima década: o papel global de um bebê da produção em larga escala, a China, principal parceiro comercial do Brasil, enquanto se deterioram o dólar, o PIB e o banditismo global dos Estados Unidos, onde também a fome¹ e o desemprego aumentam. (Infelizmente, não temos ainda um governo decente que pudesse, nesse momento crítico, desesperador e crepuscular para os EUA, jogar com as contradições, reunir Venezuela e a América Latina integrada, Rússia, China, África árabe e África negra para quebrar a potência hegemônica, criando uma nova moeda, por exemplo, e fortalecendo a militância socialista daquele país².) Nesse aspecto, embora a vitória de um liberal como Joe Biden aparentemente traga alguns benefícios imediatos ao Brasil e ao mundo, o seu low profile de Democrata, sem os preconceitos explícitos de Trump, apresenta maior competência para perpetuar o hegemonismo daquele país…

2. A reorganização do Estado, agora e no próximo período. A pandemia e a crise econômica que já lhe vinha antes obrigaram aos governantes uma reorganização do Estado burguês. Aos trancos e barrancos, o neoliberalismo foi golpeado em várias frentes. O terraplanismo ultraneoliberal de um Paulo Guedes – sujeito que aparece em lives com sua estante deserta (exemplo único no mundo!), vazia como sua cabeça – foi enxugado ou, em certos projetos, colocado de lado pelo Congresso. Países como a Espanha estatizaram hospitais privados, em que a saúde virava mercadoria para poucos. Sabemos que a solução vai além – é preciso socializar a indústria farmacêutica nas mãos dos trabalhadores. A saúde social e pública durante a pandemia do novo coronavírus mostrou a sua importância vital, provando a olhos vistos para quem se negava a ver que o capitalismo não dá conta do problema, e que, aliás, a única lógica do capital, diante de riscos de vida e diante de milhares de óbitos, é o lucro. Capitalismo é miséria, é exploração, é espoliação, é concentração de riqueza, é pobreza, é falta de qualidade de existência em todas as áreas. O desgoverno Bolsonaro destruiu, em menos de 2 anos, os ministérios da Saúde e da Educação e danou todos os outros, corrompe a todo o momento a frágil Constituição de 1988, mas absolutamente todos viram, até mesmo aqui, que trata-se de Estado social ou barbárie e morte. Mais do que isso, praticamente todos os países investiram num auxílio emergencial ou numa renda básica para a população durante o distanciamento físico. As esquerdas parlamentares foram protagonistas nessa conquista. Falou-se, na imprensa, em “keynesianismo”… Também voltou à baila a discussão da taxação de bilionários desprezíveis que aumentam sua fortuna em plena pandemia, enquanto os salários dos trabalhadores abaixam ou o desemprego explode em face de empresas e indústrias que fecham durante a crise capitalista e a pandemia. Nós, comunistas, sabemos que ambas as propostas da social-democracia – renda básica universal e taxação de grandes fortunas – varrem a poeira para debaixo do tapete, são lenitivos que resolvem o problema do capital apenas em alguns anos (vide a Europa), mas nos importa monitorar o seguinte: O que a direitalha – tanto a eleitoreira-populista quanto a burocrática da economia vulgar – faz e fará a respeito dessa nova reorganização do Estado para a sua manutenção do capitalismo moribundo? E as esquerdas?

3. O embate político nacional, fruto das lutas de classes (aqueles que não estudam teoria chamam vulgar e equivocadamente de “polarização”), permanente nas redes sociais e pronto para respingar nas ruas, entre fascistóides ou a direitalha no geral e a esquerda progressista, que sofreu diversas derrotas nos últimos quatro anos e que precisa (re)construir o seu retorno – dentro e fora do poder político – a partir da desmobilização generalizada, sem ainda forte liderança orgânica, e também de novas sendas de oportunidades populares (protestos antifascistas, a organização dos entregadores de aplicativos, das mulheres e suas causas, a necessidade de um renovador radicalismo comunista pela grande política³, etc.).

 

1. A fome avança nos EUA há décadas, provando que o capitalismo e a propriedade privada dos meios de produção nunca funcionaram. Cf., por exemplo, dois estudos deste vigente ano de 2020: pesquisa do Brookings Institution, revelando que a fome nos EUA já ultrapassa níveis da crise capitalista de 2008 (uma em cada cinco casas dos Estados Unidos com crianças com menos de 12 anos possui insegurança alimentar), e estudo da Household Pulse Survey, registrando que cerca ou mais de 30 milhões não têm o que comer naquele país.

2. Eu tenho estabelecido contato com jovens dos EUA que pretendem criar um novo movimento comunista no seio do “capitalismo desenvolvido”, mas internacionalista, é claro. Já participei também de reuniões online da Liga Internacional Socialista com membros dos 4 cantos do globo, e sempre há um representante dos EUA. Trump tem atacado o socialismo justamente porque o socialismo tem crescido nos EUA. A campanha presidencial de Bernie Sanders não passou de uma representação de organizações populares, ainda que pequenas (não se comparam, por exemplo, ao tamanho dos movimentos sociais do Brasil), e de toda uma geração que, insatisfeita com o fracasso das políticas capitalistas, pela primeira vez na história daquele país pode ler a bibliografia marxista sem cair na narrativa anticomunista dos pais, da TV, das escolas, da perseguição e censura maccartistas, etc.

3. Antonio Gramsci diferenciava a pequena política da grande política. A pequena política gira em torno dos pequenos elementos da conjuntura, das intrigas parlamentares, dos corredores das instituições, do “dia a dia”, das pequenas ambições, dos interesses particulares, muitas vezes superdimensionados pelas redes sociais, imprensa e TV. A grande política, estrutural, está associada a uma grande ambição, inevitavelmente ligada ao bem coletivo, e que visa manter ou destruir ou transformar o Estado, a política, a sociedade, a economia vigentes.

4 de agosto de 2020

O casal ignorante que ofendeu o fiscal no Rio de Janeiro é da classe “média” ou trabalhadora?

ENTENDAM DE UMA VEZ!

Sobre o casal de ignorantes que ofendeu o fiscal da Vigilância Sanitária em plena pandemia no Rio de Janeiro, li vários – jornais e usuários (a maioria de esquerda) – afirmando que o casal é de “classe média” (termo da sociologia do século 20) ou (o que talvez seja mais correto em termos ideológicos, mas não materiais) são “uma amostra da arrogância da classe média brasileira” (Folha de S. Paulo). Não parece que sejam de “classe média”, pois o tal “engenheiro civil, formado” (palavras de sua própria companheira) solicitou, segundo jornais apuraram, o auxílio emergencial destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e (diz ele) logo cancelou ao arranjar um novo emprego (já perdido pela repercussão negativa do vídeo); a esposa, que demonstra excesso de arrogância e empáfia, após o episódio televisionado também foi demitida da Taesa, onde era contratada em regime CLT – portanto, até que outras informações apareçam (por exemplo, parece também que ela será investigada por supostamente ter uma empresa em nome próprio atuando sem registro nos Conselhos Regionais de Química e de Engenharia, típico de “bolsominions”, e possivelmente típico da “classe média”), são, na verdade, ao que tudo indica até agora, trabalhadores sem consciência de classe. Sim, trabalhadores como os garçons e cozinheiros que, expostos a riscos de contaminação pelo coronavírus, servem os irresponsáveis e superficiais aglomerados em plena pandemia mortífera nos bares barulhentos onde ninguém ouve ninguém, eleitores da direitalha politiqueira que é mera serviçal de empresários que só querem se locupletar. O coitado do fiscal, funcionário público (com mestrado e doutorado, diga-se de passagem, conforme jornalistas apuraram depois de pedir seu relato), é que é, sem dúvidas, de “classe média”, não importando se ganha mais ou menos do que os abordados. Este caso, superdimensionado pela televisão e pelas redes sociais, nos ajuda a entender o bate boca das classes e a confusão do senso comum, a ser identificada e superada para a emancipação geral da divisão exploratória de classes.

Nota de Engels para a edição inglesa de 1888 do Manifesto Comunista. Mais claro, impossível: “Por ‘burguesia’, entende-se aqui a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção da sociedade e exploradores do trabalho assalariado. ‘Proletariado’ designa a classe dos trabalhadores assalariados modernos, os quais, despossuídos de meios de produção próprios, precisam vender sua força de trabalho para poder viver.” E a classe média?! Ora, a pequena-burguesia é uma classe intermediária entre essas duas, não detendo as forças produtivas nem os meios de produção.

No Brasil, onde milhões de pretos e miscigenados se acham brancos apenas por terem a cor de pele mais clara ou não retinta, a ignorância de classe, a falta de consciência de classe também é tão grande e generalizada que se confunde tudo a respeito. Em parte porque, com a nossa histórica tradição autoritária, classe trabalhadora é identificada exclusivamente com miseráveis deserdados da terra, favelados e periféricos sem eletricidade e esgoto, pobres desnutridos, migrantes analfabetos, “incompetentes”, peões de obra e cais sujos de graxa, etc. Talvez em menor medida, tal é o nível do nosso subdesenvolvimento histórico, que o trabalhador também é associado com “descendentes degenerados e aventureiros da burguesia, vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, escroques, saltimbancos, delinquentes, batedores de carteira e pequenos ladrões, jogadores, alcaguetes, donos de bordéis, carregadores, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, afiadores, caldeireiros, mendigos”, isto é, a classe informe que Marx assim enumerou em O 18 Brumário de Luís Bonaparte e, desde A Ideologia Alemã, com Engels, cunhou de lúmpenproletariado (a classe de farrapos, daqueles que dificilmente aderem à revolução e buscam apenas benefícios imediatos, na “hora H” aderindo aos reacionários ou a quem lhes der mais, por causa da própria condição extrema em que se encontram). Com os programas sociais petistas e o passageiro boom dos commodities, a classe trabalhadora brasileira melhorou um pouquinho e de maneira nacionalmente homogênea, mas também ali não houve conscientização de classe, pois logo falou-se, pela imprensa e mesmo entre a esquerda governante, em “nova classe média”, “classe média baixa”, essas besteiras achadas por aqueles que identificam o trabalhador apenas como o metalúrgico ou a faxineira incansável e o pedreiro sem carro, diariamente abarrotados em transporte público. (Tais exemplos também podem ser classe trabalhadora, mas não é esse por si só o critério de definição de classes, ou é o critério farsante da ideologia dominante.) A sociologia vulgar e os institutos de pesquisa do mercado tampouco ajudam, ao contrário, confundem e nublam, propagaram a ideia de que as classes são caracterizadas apenas pela renda e pelo patrimônio, ou seja, há a primazia da aparência superficial, não pelo modo econômico que as forma, pelas relações sociais e econômicas entre elas e pela ação que as caracteriza, tal como o marxismo nos ensina.

Assim, há sujeitos da classe trabalhadora que, apenas por terem renda diferenciada e até varanda gourmet, roupa de marca e celular e carro do ano (comprados não sei quantas vezes no cartão de crédito), já se sentem “classe média” – podem até demonstrar, estando num recorte social mais digno, gostos, ideologia e aparência de “classe média”, mas não o são concretamente, porque trabalham para produzir e enriquecer o capital do patrão, assim como há “classe média” que se acha elite e, não sendo, preenche seu vazio ontológico e sua crise social deslocada com tentativas de prestígio social, diplomas, consumismo, arrogância e riqueza simbólica. Podemos notar esta última característica na “classe média” de TODOS os países. É o que constitui a ação social estreita da “classe média”, que nada de estrutural produz nem detém na sociabialidade burguesa. Nas potências hegemônicas, contudo, a classe trabalhadora como um todo, por mais digna que seja em suas condições, tem consciência de que é classe trabalhadora e não “classe média”, ou padece da mesma alienação mental que temos visto aqui? Boa pergunta que ainda preciso investigar com meus colegas estrangeiros…

Não falo apenas do “pobre de direita” e do “capitalista sem capital”… Trata-se de falta de estudo da teoria entre as próprias esquerdas!

Aprendam de uma vez por todas como definir as classes: a pequeno-burguesia (termo do século 19) é a classe intermediária que não detém as forças produtivas da classe trabalhadora (que vende sua força de trabalho em troca de um salário para sobreviver e produz algo que será roubado, comercializado e acumulado pelo capitalista espoliador) NEM detém a propriedade privada dos meios de produção da burguesia (classe moderna dos capitalistas), restando atualmente a ela as burocracias estatal e empresarial, os serviços públicos, e a pequena propriedade e o pequeno comércio NÃO-FILIADOS às redes de oligopólios transnacionais. No panorama da nossa sociedade mundial, é de “classe média” APENAS quem se situa nesses espaços citados.

(Meios de produção: máquinas, ferramentas, edifícios privados dos ambientes de trabalho, grandes empresas, fábricas, terras, fazendas, matérias-primas, etc.)

Todos os teóricos marxistas e mesmo autores anteriores que observavam, por exemplo, a Revolução Francesa, notam que, por estar deslocada na sociedade, por não deter as forças produtivas nem os meios de produção, a pequeno-burguesia sofre de profunda crise de identidade, vazio espiritual e será sempre um gatilho reacionário e fascistóide. Sabemos que, por sentir-se mais próxima ideologicamente e materialmente da burguesia (daí o nome “pequeno-burguesia”) do que da classe trabalhadora, servirá sempre como um obstáculo aos avanços sociais. A “classe média” é uma tentativa rebaixada de se aproximar ou de chegar a ser classe dominante, ao mesmo passo que estabelece uma distância intransponível para com a classe trabalhadora. No Brasil, esse cenário foi amplamente notado em 1964 ou – guardadas as devidas diferenças – em 2016: a classe dominante interna – com a ordem da externa – preparando ideologicamente a “classe média” para sua contrarrevolução permanente… As exceções confirmam a regra, e os membros esclarecidos da classe média – certos intelectuais, professores e estudantes politizados – se identificam e apoiam a luta da classe trabalhadora, ainda que de maneira limitada pela própria condição de classe deles.

Por fim, a filósofa Marilena Chauí, alertando para a farsa da “nova classe média” propagada pelos jornais durante a era petista, argui, em tese recente e incontornável, que serve para o mundo todo por conta da internacionalização do capitalismo, o seguinte: com a mutação neoliberal do capital, com o desmantelamento do modelo fordista, a “classe média” DIMINUIU enormemente, ao contrário do que o senso comum acha, enquanto que a classe trabalhadora aumentou enormemente. Ou seja, vários sujeitos que eram antes da “classe média”, por conta da forte monopolização do capital nos oligopólios transnacionais, passaram a fazer parte da classe trabalhadora (se preferir, de uma “nova classe trabalhadora mundial”). Observe que uma série de profissões, liberais ou não – médicos, dentistas, advogados, e outras que sempre se consideraram classe média – estão hoje em grande parte trabalhando em empresas privadas de “saúde”, “advocacia”, etc., são empregados e assalariados, subordinados ao dono burguês. Mesmo que, agitando bandeira do Brasil (nacionalismo de araque) e se dizendo anticomunistas na Avenida Paulista ou na Candelária, mesmo que não saibam ou não queiram, ainda assim são classe trabalhadora.

Marx bem afirmou que, com o desenvolvimento e a crise do capitalismo, a classe média tende a desaparecer no confronto inevitável que existe pela contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Noto que, justamente por ter diminuído e por estar desaparecendo aos trancos e barrancos, a pequeno-burguesia (e a “nova classe trabalhadora mundial”, que pensa ser elite) dos EUA, da Europa, da América Latina, mesmo da Ásia (quem aí ainda não assistiu Parasitas?!) tem se tornado intransigentemente violenta e de extrema-direita, desesperada com o fim de seus valores, privilégios e tradições familistas, com o seu próprio fim.

Ps.: Classe social não é apenas algo determinado economicamente – é também um sujeito social, político, cultural – não é algo, é uma ação – que se transforma por meio das lutas de classes.

10 de julho de 2020

Filosofia brasileira, tradição e língua portuguesa (anotação)

Portugal, que nos legou uma tradição literária, nunca teve Filosofia, tradição filosófica. Quando surgiu alguma expressão filosófica portuguesa, no século 16, 17, a língua escrita oficial era o latim. Assim recorda José Arthur Giannotti em alguma entrevista… Portanto, não há ainda filosofia formativa em português. Reiteiro: há alguma filosofia, mas não formativa, de base, a ponto de constituir uma tradição! (Seria preciso, para isso, concomitantemente ou primeiro, uma superação economicamente estrutural e geopolítica do espaço marginalizado e periférico dos países que usam a língua portuguesa e da própria língua portuguesa em relação às outras?) Durante o século 20, houve a tentativa duma filosofia brasileira (bastante interrompida pela ditadura, que foi terrorista física e intelectualmente), dividida entre o legado francês ou germânico, certamente com importantes filósofos e professores brasileiros que puderam prosseguir a partir da redemocratização ou não. (O dialético Álvaro Vieira Pinto é um desses que eu quero retomar em textos e aulas, sobretudo o seu Consciência e Realidade Nacional). Neste século 21, há toda uma bibliografia interessante sendo produzida pela esquerda revolucionária (internacionalista, portanto) no bojo do complexo contexto histórico do nosso país, mas, novamente, partem de outras tradições (mais germanofilia do que francofilia?), ainda que adaptadas e coerentes. Esta empreitada da criação de uma língua filosófica brasileira continua, mas não está mais em sua fase apenas inicial e embrionária, por conta das traduções sistemáticas ao longo dos séculos e décadas de livros clássicos e formadores de filosofia para o português brasileiro. (Até que ponto, no entanto, e qual o impacto no fato de que muitos desses livros foram traduzidos por tradutores e não por filósofos?) Lembrar da diferenciação entre a criação de uma língua filosófica a partir do português (obviamente não a mesma dos nossos grandiosos romances, contos e poesia, e mesmo esta, artística, já é abundante, generosa, diversa) e a criação de uma tradição filosófica brasileira (é isto genuinamente possível? seu elã não seria outro senão o contato direto com os grandes temas nacionais e com a realidade do país até influir globalmente de dentro para fora – até que ponto isso ocorre com Paulo Freire na “filosofia da educação”?)… A escrita é das mais importantes ferramentas da filosofia, junto à oralidade. O diálogo, pelo qual a filosofia nasce, se dá em ambas, na escrita e na fala.

21 de maio de 2020

O que é teoria? Marxismo e obra marxiana entre a Filosofia e a Ciência: aproximações e diferenças

O texto abaixo serve para apoio básico e introdutório do meu grupo de estudos de teoria da revolução e do Estado e como anotação para a construção de algumas partes do meu livro Filosofia da Revolução:

1

Teoria, palavra aparentemente mais científica que filosófica. Lembramos da teoria da relatividade geral de Albert Einstein (física), que era socialista declarado, lembramos da teoria da evolução de Charles Darwin (biologia), terror dos cristãos criacionistas. Ou seja, teoria enquanto construção reflexiva e de experimentos do conhecimento científico. Para alguns autores, a filosofia trata dos problemas mais gerais, enquanto as ciências estudam os menos gerais e mais específicos, sendo a filosofia, para muitos marxistas, um prolongamento das ciências, no sentido em que se apoia nas ciências e delas depende (POLITZER, 1979, p. 21). Não poderia ser diferente – o negacionismo anticientífico e irracional parte da direita… A Filosofia, partindo de problemas, lida com os conceitos e cria conceitos – criação e intelectividade influem na Filosofia, enquanto as ciências apresentam funções e categorias (esta última palavra é bastante comum nas ditas ciências sociais). Retomaremos o embate entre filosofia e ciência, aproximações e diferenças, durante todo este texto.

2

Não sejamos, então, totalmente bairristas, apesar das diferenças fundamentais – não só as ciências dependem da Lógica, que é uma criação histórica da Filosofia, como é possível observar imbricações entre teoria e filosofia, sobretudo com o que se chama de desenvolvimento histórico da ciência: por exemplo, a ontologia não deixa de comportar alguma teoria (ou várias teorias, considerando a gama de autores ontológicos) do ser. Há um invólucro filosófico nas ciências, que remonta a propria história da filosofia antiga, embora cientistas no geral não se dêem conta disso. No decorrer dos postulados deste texto, demonstrarei que as teorias servem também a uma nova filosofia que engloba as ciências, à filosofia da práxis.

3

A origem do vocábulo teoria data de finais do século 16, denotando um esquema mental: via latim tardio, theōria, “contemplação, especulação”, do grego theōrós (“espectador”). Veremos que, modernamente, esta etimologia é insatisfatória e até equivocada, mas ela elucida já alguns pontos. A teoria precisa de um “espectador”, ou melhor, do teórico, que chamamos de sujeito; mais do que isto, a teoria e este sujeito precisam de um objeto. Entre sujeito e objeto, há a pesquisa e seu método. Em Marx, há um sujeito que não apenas estuda o objeto, mas o confronta e o critica. Sua magnum opus, O Capital, é justamente a obra central em que encontramos um pesquisador às avessas com o inicio, a consolidação, o desenvolvimento e o fim ou a crise de seu objeto de estudo – o capital ou a sociedade burguesa, num trabalho obviamente inconcluso, pois ele vive e escreve quando o objeto já se desenvolveu, mas desaparece quando tal objeto ainda não se esgotou.

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No Prefácio da Edição Francesa do Livro I, Marx responde ao editor Maurice Lâ Châtre que concorda com sua ideia de publicar O Capital por fascículos para deixá-lo mais acessível à classe trabalhadora, mas que, por outro lado, o método de análise utilizado, ainda não aplicado aos problemas econômicos, torna árdua a leitura dos primeiros capítulos, concluindo: “Não há estrada real para a ciência, e só têm probabilidade de chegar a seus cimos luminosos aqueles que enfrentam a canseira para galgá-los por veredas abruptas.” O Capital é uma obra com mais ciência do que filosofia, praticamente sem filosofia, embora não fosse possível sem essa segunda.

5

Darwin não inventou a evolução, Einstein não inventou a relatividade: ambos observaram e pesquisaram o objeto real (as espécies ou o desenvolvimento das espécies, para um, e a gravitação e o espaço-tempo para o outro), o funcionamento e desenvolvimento do(s) objeto(s) até o presente em que puderam viver e levar a pesquisa, tendo descobertas no processo. Isto é a teoria científica. Marx não inventou o capital. Pôde estudá-lo desde sua gênese até seu desenvolvimento a partir do século 16 e a sua consolidação em seu tempo, século 19, quando, aliás, guardadas as devidas diferenças e proporções, o capitalismo já apresentava crises como as de hoje. A mais-valia (ou mais valor) não é uma invenção do crânio de Marx – é um dado real da concretização do capital em face do trabalho, e nenhum outro senão Marx a expôs, e criticamente… Portanto, teoria científica não é inventar uma ideia ou interpretação da realidade nem propor uma sugestão para o futuro sem qualquer base no real, mas, sim, observar com precisão o real, possibilitando descobertas e conclusões a respeito dele. As hipóteses da teoria costumam ser bem fundamentadas. Teorias marxistas a respeito da revolução consideram o passado histórico, exemplos de revolução e como elas se deram e como podem ainda se dar (considerando a política e a economia), e veremos como isto enriquece o presente e futuro das ações revolucionárias (outro caráter da teoria, no âmbito da filosofia da práxis, não mais apenas como observação do fato, mas como projeção de um fato a ser realizado).

6

A crítica na pesquisa científica – Em O Capital, ao tratar, por exemplo, do dinheiro, Marx discorre sobre quase todos os seus papéis, como ele é usado na sociedade e no percurso histórico, o dinheiro simples, o dinheiro que é capitalizado, etc.; mas também o trata criticamente, usa Shakespeare (versos da peça Titos Andronicos, em que se amaldiçoa o ouro) e também Aristóteles, para quem o dinheiro deveria ser um elemento de equilíbrio na sociedade para não gerar, de um lado, falta, e no outro, abundância (é o extremo oposto do que ocorre no capitalismo). Tal posicionamento de Marx não deixa de já ser uma visão crítica da realidade – mas que é pertinente justamente porque expõe fenômenos reais, a riqueza real de um lado e a pobreza real de outro. A ideologia dominante dos capitalistas, da farsa do neoliberalismo ou da extrema-direita procuram esconder tais dados, desprezam tal realidade desigual ou confundem com falácias como a da meritocracia, que não consideram as classes e o fato de que não partimos todos das mesmas condições socioeconômicas.

7

Não há ciência – há ciências. Interligadas (por exemplo, o eletromagnetismo): a separação das ciências como autônomas era um equívoco metafísico até mais ou menos o século 18, contestado e corrigido sobretudo a partir do século 19 com uma melhor elaboração do materialismo. Os meios acadêmicos costumam fazer uma divisão entre ciências naturais e ciências sociais. Consideremos que o que se chama de “ciências sociais” possuem suas bases estruturadas a partir do trio (completamente distinto entre si) Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx.

8

Na Antiguidade, sabemos que não havia distinção entre filosofia e ciência, porque a chamada filosofia da natureza, como uma pré-ciência ou uma protociência, se ocupava da busca do saber, dos fenômenos, da compreensão da natureza e do homem (Simões, 2014, p. 25). Precisamos recapitular esse processo histórico. Até meados do século 19, a ciência ainda não tinha satisfatoriamente se emancipado da filosofia: as teorias, para os cientistas, não apenas explicavam os fatos, mas eram uma apreensão última, total, ontológica da realidade (Cervo e Bervian, 1978). É, então, a partir do século 19, através de uma visão materialista da ciência moderna, que irá rechaçar a noção metafísica da natureza, com o início da modernidade, a revolução industrial e o desenvolvimento da ciência e o desenvolvimento econômico do capitalismo, que a filosofia se torna problemática em relação à ciência e ambas tomam novas posições. Marx e Engels serão também protagonistas neste processo, como veremos mais adiante. Depois da atitude materialista, toma-se no geral uma atitude mecanicista e, por fim, positivista. Neste momento, a teoria é restringida pelos cientistas ao âmbito dos experimentos, da experimentação (Pereira, 1990, p. 53). Assim, três definições de teoria passam a fazer sentido neste período: segundo E. Mach, “as teorias apenas orientam o sábio com economia de pensamento”; de acordo com Henri Poincaré, “as teorias não são verdadeiras nem falsas, são cômodas”; para Pierre Dühen, “as teorias servem apenas para classificar os fatos e as leis” (Pereira, 1990, p. 54). Nas últimas décadas, a posição tem sido intermediária, “sobretudo quando a visão positivista não se sustenta mais na sua pretensão de abarcar todo o pensamento e fazer da Ciência a síntese orgânica da cultura” (Idem). Isto sobretudo às ciências empírico-formais, ou seja, física, química, biologia, botânica, etc. Na matemática em especial, por ser uma “ciência formal” (ainda que não se separe das ciências empírico-formais, da física, da mecânica) que estuda principalmente as grandezas e as formas sempre através de conclusões e postulados simbólicos, não existiria teoria, pelo menos não nos mesmos moldes que das outras ciências empírico-formais, “na sua afronta ao fenômeno” (Pereira, 1990, p. 57). Um “naturalista” não inventa a ave; o matemático cria simbolicamente um “triângulo”, embora esta forma foi observada certamente a partir da natureza…

9

Para o pensamento clássico antigo, mesmo na Grécia antiga (Aristóteles  identificava Teoria com bem-aventurança), a teoria, por ser especulação ou vida contemplativa, opunha-se à prática e a qualquer atividade não desinteressada, que não tenha a “contemplação” como objetivo (Abbagnano, 1998, p. 167). No senso comum dos dias de hoje, ainda vemos resquício desta noção, quando se diz que tal coisa “é muito teórica”, etc., ou seja, é “abstrata” demais, e nas tentativas de se desprezar grosseiramente a prática ou o real. Enfim, uma barreira explícita seria delineada entre teoria e prática, que a filosofia da práxis tratará de apagar.

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Nos dias atuais, há uma segunda definição principal de teoria: “condição hipotética ideal, a qual tenha pleno cumprimento normas e regras, que na realidade são observadas imperfeita ou parcialmente” (Op. cit.). Este significado se dá sempre quando se diz que, “teoricamente”, deveria ser assim, mas “na prática” é outra coisa. De todo modo, “Chama-se Teoria um conjunto de regras também práticas, quando são pensadas como princípios gerais, fazendo-se abstração de certa quantidade de condições que exerçam influência necessária sobre a sua aplicação” (Op. cit.), tanto na ciência quanto na filosofia.

11

O que é uma boa teoria científica? Uma boa teoria é unificadora: como se ramificasse, explica um grande número de fatos e observações em um único modelo ou estrutura. A teoria deve também ser internamente consistente. Por fim, uma boa teoria não é fechada em si; encaixa-se em outras teorias bem testadas e consideradas, cooperando com outras teorias em suas explicações. Reunindo essas três características, teorias impactaram não só as suas áreas como também a própria mentalidade da humanidade.

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Finalmente, nas “ciências humanas”, que se estabelecem sobretudo na passagem do século 19 para o 20, o ato de teorizar é mais aberto do que nas ciências empírico-formais, estritamente presas ao objeto, e do que na matemática com seus postulados e conjunturas simbólicas. O objeto de investigação das ciências humanas “é ao mesmo tempo sujeito” (Pereira, 1990, p. 58), ou seja, não é o que chamam de “natureza natural”. Portanto, “a relação sujeito-objeto das ciências empírico-formais torna-se relação sujeito-sujeito nas ciências humanas” (Idem). É por causa disto que há um debate infindável para os mentores desta área de conhecimento a respeito de um estatuto científico padrão e da proclamação de resultados, fazendo com que as ciências humanas não sejam enquadradas no estatuário científico das ciências empírico-formais. Não há consenso. Porém, neste aspecto, o marxismo, o socialismo científico, o materialismo histórico e dialético têm o seu projeto revolucionário internacionalista e de mentalidade em comum.

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Nas ciências humanas, a formulação teórica e a proclamação de resultados não se bastam no método indutivo nem na relação causa-efeito das ciências empírico-formais, porque é forte nas ciências humanas o fator da interpretação, ainda que tal fator não seja central tampouco absoluto, fazendo com que suas questões estejam em aberto quando transformadas em teorias, sistemas, doutrinas, mesmo tendo um acervo histórico, algum progresso e desenvolvimento, mas não de modo fechado e “absoluto” como nas teorias e leis das ciências empírico-formais. É um consenso entre os cientistas de que “interpretar, em sentido amplo, já não é fazer ciência”, embora possamos chamar as ciências humanas de “ciência da interpretação por excelência” (Pereira, 1990, p. 59-60). Assim, as ciências humanas galgaram importante posição ao promoverem um “encontro entre a matematização dos resultados com a interpretação do homem” (Pereira, 1990, p. 60). É óbvio que as ciências humanas não abandonam as “ciências da natureza”: aproveitam delas dados da natureza para o conhecimento cada vez mais rico do objeto, mas com exclusividade, inclusive porque não possuem um padrão formal de linguagem matematizada, unitária, universal como nas outras ciências, atuando a partir de escolas e modelos de pensamento, sem dúvida muitos deles internacionalistas, como é o próprio socialismo científico, o materialismo histórico, a filosofia da práxis, o marxismo. É, porém, nas ciências humanas que o ato teórico, que a práxis teórica mostra-se em seu momento mais complexo para além da lógica e da gnoseologia, pelo fato do caráter eminentemente antropológico ou humanista das ciências humanas. Aqui, as melhores respostas – e as mais inovadoras – surgem sem dúvida com a filosofia da práxis. Nós não somos apenas protagonistas de toda teoria, mas somos (ou podemos ser) teórico-práticos!

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Agora está claro. Não podemos abordar a teoria em termo amplo (e tal amplitude só pode ser alcançada pela filosofia, por uma nova filosofia, como veremos adiante) apenas com o pensamento clássico nem apenas com a ciência moderna (empírico-formal), porque ambas caem num círculo vicioso. Por quê? Porque 1) A abordagem clássica, “idealista” e contemplativa, tomava o conhecimento da realidade como abstração, como raciocínio ou ciência da lógica, exagerando a “teoria” e esquecendo-se da síntese, que é um elemento fundamental na articulação do pensar (Pereira, 1990, p. 64). Antes de tudo, a abstração não é o todo da teoria tampouco é a própria teoria, a abstração é apenas um momento da teoria, do ato de teorizar, não raro ligado a junções concretas… Por fim, é a síntese que liga pensamento e realidade, o real ao racional e o racional ao real, numa relação dialética. A abordagem clássica, mesmo sendo essencialista, não chega à essência das coisas, porque esconde, desvincula ou ignora a concretude (Pereira, 1990, p. 65). Quem, em pleno século 21, ainda se posicionar assim, demonstra dogmatismo religioso,consciência ingênua (como argumentava o professor e filósofo Álvaro Vieira Pinto), limitada e alienada, ou tentativa proposital de alienar outros, sendo nosso dever alertar, refutar e desmascarar tais noções metafísicas. 2) A abordagem científico-experimental também não nos ajuda numa abordagem ampla da teoria, porque, se os clássicos não puderam trazer à tona o objeto real, concreto, a ciência moderna, reagindo ao posicionamento clássico, exagerou o outro lado e também não chegou à plena síntese. A ciência moderna, focada nos experimentos do objeto concreto, esqueceu, ignorou ou desprezou a ontologia da realidade (Pereira, 1990, p. 65-66). O século 20 viu ainda outros muitos aspectos para a ciência moderna, notavelmente a questão da tecnologia, levando a uma mentalidade pragmática e utilitarista, ainda vigente neste século 21.

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Neste processo, não é errado dizer que ela subtraiu ou se esqueceu do Homem, ou da Mulher, para usarmos um termo menos dominante. Esqueceu-se do Jovem Estudante, do Trans, do Trabalhador! Em suma, esqueceu-se do protagonista do conhecimento e da ação, levando aos problemas cada vez mais frequentes das últimas décadas em relação ao complexo ciência-tecnologia, que ela parece não poder dominar, a menos que “peça auxílio a quem anteriormente abandonou como companheira inútil: a filosofia” (Pereira, 1990, p. 66). Não a filosofia clássica. Uma filosofia crítica e da práxis.

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Marx fala-nos do ser social. Não será a metafísica nem a ciência moderna que nos ensinarão sobre os protagonistas do conhecimento e da ação (nós) inseridos em classes sociais, processos históricos, relações de poder, etc. São terrenos para as chamadas ciências humanas. A significação dos seres sociais sobre o mundo não deixa de ser uma ação prática. Portanto, a teoria que não ascendeu ao nível da ação possui resíduos de mera abstração. Não se teoriza no vazio, mas em contexto x, y, ou z. A teoria não se refere apenas ao pensar ou à inteligência e ao raciocínio. A filosofia da práxis surge do aspecto teórico da prática para a unidade teoria-prática.

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Na concepção clássica (filosofia grega antiga e medieval – Platão, Aristóteles, até o cristianismo de São Tomás de Aquino, etc.), teoria, teorizar é/era abstrair, “exercício abstrato do raciocínio distante do concreto, do real” (Pereira, 1990, p. 18). Tratava-se quase de ginástica mental que leva a um círculo vicioso formal do conhecer as coisas, do adaequatio rei intelectus (adequação do objeto com a mente) e do adaequatio intelectus et rei (adequação da mente com o objeto). De certa forma, muitos dicionários e enciclopédias mostram ainda hoje definições de teoria através dessa visão metafísica, abstrata, essencialista e mecanicista… “Ora, é a contradição que gera a unidade. Unidade sem contradição não é unidade, é uniformidade. Se há tese e não há antítese, não acontece a síntese. O pensamento em si mesmo, em sendo a ausência da unidade dos contrários, torna-se tão somente uma bela moldura, mas sem estampa” (Pereira, 1990, p. 24). Portanto, apesar de nos fornecer as regras dos conceitos e os fundamentos das definições, tal pensamento clássico tem um limite e nos é insuficiente, porque não resolve problemas contraditórios (pensamento e realidade, teoria e ação, sujeito e objeto, subjetivo e objeto, ciências teoréticas específicas e ciências teoréticas filosóficas, etc.) nem nos apresenta, em sua lógica formal (mesmo sendo ela básica para estudar filosofia e mesmo as ciências), a lógica em fluxo, a dinâmica dialética do discurso que se encontra entre teoria e prática.

18

Por outro lado, a teoria também é problemática na ciência moderna, cujo berço é o pensamento clássico (muitas vezes chamado de “pré-ciência” ou “protociência”). Na ciência moderna de experimentos, assim como na concepção clássica, que era abstrata, a teoria se opõe à prática, desta vez por sua visão estritamente objetual e técnica (Pereira, 1990, p. 51). Neste processo histórico entre a filosofia clássica e a ciência moderna, em que novos instrumentos científicos foram criados e muitas mudanças econômicas ocorreram, vimos surgir uma novidade para a teoria, novos elementos significativos, a saber: “a vinculação com o objeto pesquisado e, portanto, com a experiência, ou experimentação, na relação direta de causa-efeito” (Pereira, 1990, p. 30). Trata-se de uma revolução – agora, o método de abordagem do objeto pesquisado e a ser conhecido envolve dados, fatos, fenômenos, fazendo com que sem o horizonte da experimentação não se possa compreender a elaboração teórica na ciência moderna. Porém, apesar da relação causa-efeito e da experimentação, a teoria na ciência moderna não anulou a abstração mental, por causa das hipóteses variadas a serem levantadas pelo cientista sobre o mesmo fenômeno. A teoria, aqui, é resultante do experimento – bastam uma ou várias leis para a ciência moderna garantir a elaboração de uma teoria, de um sistema, de uma doutrina. Basicamente, há o momento da observação e da pergunta, depois a hipótese da pergunta, então o experimento e, por fim, a lei, o postulado, a conclusão. (Para entender este processo com um exemplo simples, Cf. Pereira, 1990.) A “ciência moderna” acontece pelas relações entre dedução-indução (modos de raciocínio lógico-formal) e análise-síntese (o mesmo processo vinculado ao fenômeno observado) (Pereira, 1990, p. 31). Há pelo menos três modalidades de ciências: ciências formais ou exatas (lógica e matemática), ciências empírico-formais (física, biologia, química, etc.) e ciências hermenêuticas ou interpretativas (as “humanas”) (Pereira, 1990, p. 31).

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“Ciência antiga/grega”, “ciência moderna” – Não existiu uma ciência grega nos termos científicos de hoje, como já vimos anteriormente, apenas uma pré-ciência ou uma protociência em forma de filosofia (Pereira, 1990, p. 49). De todo modo, a filosofia clássica ou a ciência grega antiga era qualitativa (Aristóteles falava em termos de quente/frio, etc.), enquanto que a ciência moderna é quantitativa (conforme já foi explicado acima), sobretudo a partir de Copérnico ou Galileu Galilei, quando surgem aparelhos mais sofisticados e exatos de medir o objeto e o fenômeno (Pereira, 1990, págs. 49-50). Ademais, o conhecimento de causas para o pesquisador antigo era sempre metafísico e essencialista (um tipo de pensamento primeiro a respeito do ser), enquanto que para o cientista moderno o que vale sobretudo é a interação e a funcionalidade da pesquisa. Enquanto a ciência antiga buscava a causa num sentido amplo, filosófico e não raro metafísico, a ciência moderna constrói a lei geral com uma linguagem simbólica e matematizada a partir da resolução das relações de causa-efeito do fenômeno específico. Por fim, a ciência grega antiga era antropocêntrica (a medieval era teocêntrica) no sentido físico e cognitivo, enquanto a ciência moderna se supõe excêntrica, ou seja, não gira em torno de nada além de si e existe em função de seus resultados (Pereira, 1990, p. 50).

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As seis características da ciência moderna – 1) A mensuração das medidas, temperaturas, atributos de cor, peso, forma, voltz, etc., toda uma simbologia lógico-matemática unitária, que torna a ciência moderna universalmente válida; 2) a funcionalidade, a função de todo o processo sem necessariamente se levantar questões mais culturais, ontológicas e filosóficas do por quê ou do que é; 3) o caráter seletivo de método indutivo de elementos/dados específicos para chegar à lei geral; 4) o caráter aproximativo da teoria científica, em que existe um certo nível de interpretação para o esforço de compreensão simbólica do fato, que substituirá ou representará o real, o fenômeno; 5) o caráter progressivo, isto é, cumulativo em uma trajetória histórica de descobertas e experimentos irreversíveis em relação ao passado, mas não às descobertas futuras mais desenvolvidas; 6) por fim, a exatidão na formulação unívoca, dependendo de seus resultados e da lei anterior sobre um fenômeno testado e observado (Pereira, 1990, págs. 46, 47 e 48).

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Hipótese e teoria – Nas ciências modernas, ambas (hipótese e teoria) estão ligadas ao processo de pesquisa, mas a hipótese, que surge de conjeturas e suposições a partir da observação do fenômeno, é praticamente a antessala da teoria, que, por sua vez, “exerce o papel de coroamento da hipótese, depois de experimentada e comprovada” (Pereira, 1990, p. 52). A teoria é um ponto final do processo, considerando o todo (observação, hipótese, experimento, lei), embora outras teorias surjam, mais desenvolvidas a partir daquela, porque uma teoria pode abrir espaço para novas conjunturas.

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Afirmei linhas acima que, na ciência moderna de experimentos, assim como na concepção clássica abstrata, a teoria se opõe à prática, mas desta vez por sua visão estritamente objetual e técnica, dependendo exclusivamente dos experimentos. Nas ciências empírico-formais como a biologia, a física e outras, a teoria depende do método e nele se envolve.

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Filosofia e ciência, diferenças básicas que a modernidade explicita – Um filósofo pode ter uma “linha de pensamento”, mesmo a partir de conceitos filosóficos formativos predecessores. O cientista, não. Um filósofo, pelo fato da filosofia ser um campo do saber intelectivo e criativo, pode partir de um ponto zero ou de uma “novidade absoluta” (será mesmo que existe isso?!), seja o seu estilo ensaístico ou em forma de tese. Na ciência, não: sobretudo nas ciências empírico-formais, a trajetória é sempre progressiva e não se volta à estaca zero, mantendo sempre relação coerente com o trabalho de outros cientistas globais, não existindo nas ciências, portanto, muito espaço para as interpretações pessoais como na filosofia, apenas conjeturas ou suposições (Pereira, 1990, págs. 43-44). O cientista está subordinado ao fenômeno em si e o seu experimento consagra (ou não) a hipótese como certa.

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Teoria e conceito – Não são a mesma coisa. Conceitos são criados pela filosofia. As ciências empírico-formais se contentam com as teorias. Ao passo que os conceitos filosóficos surgem de uma criação do filósofo a partir de um problema e tendem a uma generalização das ideias, as teorias, por mais gerais que possam se tornar, são sempre específicas em torno do objeto real pesquisado. Teorias não são fatos, mas podem ser nomeadas como a melhor hipótese ou suposição possível sobre um certo fenômeno. Um conceito é uma ideia geral, criada. Uma teoria é uma explicação sustentada por evidências significativas. Um conceito não possui necessariamente tal evidência. Teoria como um sistema de ideias que pretendem explicar, expor ou justificar um fenômeno real, que se apresenta na realidade, que não é criação do pesquisador, embora ele possa ser crítico. Não raro, uma teoria se mostra como um conjunto de regras, de leis sistematicamente organizadas, que servem de base a uma ciência. Veremos, mais adiante, que na filosofia da práxis a teoria pode ser também como a científica, mas ascende ainda a um outro nível diferente ao das ciências tradicionais: o de projetar, preparar e anteceder a transformação do real. Os conceitos inserem-se num processo criativo “pelo qual atores sociais buscam solucionar os problemas que eles enfrentam ao tentar entender e transformar o mundo ao seu redor”, enquanto as “teorias, por outro lado, devem ser entendidas como tentativas intencionais e racionais de resolver problemas práticos” (Berger & Luckmann, 1987, p. 33). Mais ainda, os conceitos são os elementos últimos de todos os pensamentos, constituindo uma concepção geral ou até universal. Somente a filosofia da práxis parece englobar teorias e conceitos, preservando as suas diferenças.

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Filosofia e ciências, atuação – Ao afirmar que a estrutura (o modo econômico que caracteriza as classes sociais, o trabalho, as ferramentas e meios de produção, etc.) pode ser estudada com os métodos das ciências naturais e exatas, Gramsci escreve que “precisamente por esta sua ‘consistência’ objetivamente verificável, a concepção da história foi considerada ‘científica’ (Gramsci, Caderno 10, II, S 41; 1, p. 361). Aqui, delineia-se algo muito importante para uma definição precisa e moderna de ciência (ou de ciências ditas naturais e exatas) ao apoiá-la à verificabilidade e à consistência objetiva. Para Gramsci, a filosofia, por sua vez, é uma concepção, uma conceituação de mundo.

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Com a indústria, surgiu o “especialista da ciência aplicada e organizador técnico, que age por meio da ordem e da disciplina intelectual” nas “sociedades cujas forças econômicas se desenvolveram em sentido capitalista até absorver a maior parte da atividade nacional” (Gramsci, “Alguns temas da questão meridional”, Escritos Políticos 2, págs. 405-435). Antes, o elemento organizador da sociedade era o “velho intelectual da sociedade de base predominantemente
camponesa e artesã” (Op. cit.).

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A filosofia descolada do mundo – Em A Ideologia Alemã, lemos Marx e Engels ousadamente afirmarem: “A relação entre filosofia e estudo do mundo real corresponde à relação entre onanismo e amor sexual.” (Segunda parte, 6, C, “O liberalismo humano”.) Para quem não sabe, onanismo é masturbação… Algo como masturbação mental e intelectual. Eles chegam a afirmar, citando ipsis litteris uma frase do botânico alemão Albert Wigand: “É preciso “deixar a filosofia de lado” (Wig[and,] p. 187, cf. Heß, Die letzten Philosophen, p. 8), é preciso desembarcar dela e dedicar-se como um homem comum ao estudo da realidade, tarefa para a qual existe uma gigantesca quantidade de material literário, certamente desconhecido dos filósofos (…)”m Na segunda parte desta obra, sobre a organização do trabalho, Marx e Engels criticam diretamente a elucubração filosófica sobre a substância e a negligência dos filosófos para com o real. “A luta dos filósofos contra a “substância” e sua total negligência em relação à divisão do trabalho, à base material, onde tem origem o fantasma da substância, apenas comprova que estes heróis se voltam apenas para a destruição de frases, e de modo algum para a mudança das relações, de onde estas frases deviam surgir. Por isso, eles negligenciam tranquilamente a divisão de trabalho, a produção material e o intercâmbio material, justamente tudo aquilo que subsume os indivíduos a determinadas relações e modos de atividade. Em geral, para eles se trata, apenas, de descobrir novas fraseologias para a interpretação do mundo existente, fraseologias que se esgotam em bazófias burlescas na mesma medida em que eles cada vez mais acreditam se elevar acima deste mundo e pôr-se em oposição a ele. Do que Sancho constitui um exemplo deplorável.”

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Vemos, acima, a crítica radical de Marx e Engels a todas as filosofias até então, idealistas, e da filosofia como tal em sua forma clássica, ou seja, crítica da “filosofia” enquanto teoria pura ou interpretação pura, isenta de se submeter à verificação da prática e seu critério. É a crítica ao filósofo que governa as palavras como se as palavras tomassem o lugar do mundo, filósofo como demiurgo de um pseudo-mundo.

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“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; trata-se, agora, de transformá-lo” (Marx, 1978). Nesta famosa frase, Marx está conclamando a Filosofia para a atuação ou está chamando a atenção para o fato de que agora (século 19, com todo seu desenvolvimento) é a hora e a vez da ciência? Para Marx, a ciência tem um compromisso com a transformação social. Marx acredita que os filósofos estudaram o mundo, mas limitaram-se a isso, enquanto os cientistas devem agora transformá-lo. Ele afirma: “Só no contexto social é que o subjetivismo e o objetivismo, o espiritualismo e o materialismo, a atividade e a passividade, deixam de ser e de existir como antinomias. A resolução das contradições teóricas unicamente é possível através dos meios práticos, através da energia prática do homem. Por conseguinte, a sua resolução não constitui de modo algum apenas um problema de conhecimento, mas é um problema real da vida, que a filosofia não conseguiu solucionar, precisamente porque a considerou só como problema puramente teórico.” (Marx, 1971, p. 200)

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A tese 11 de Marx é um rompimento metodológico sem precedentes com a noção clássica (Pereira, 1990, p. 80).

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(Quando Deleuze e Guattari – dois autores da segunda metade do século 20, influentes em certos círculos brasileiros de hoje em dia, embora pareçam não se encaixar neste texto, mas faz algum sentido se os pensarmos no contexto do Maio de 68 e na insistência duma filosofia da imanência contra a transcendência vertical – afirmam, com o corpo sem órgãos de Artaud e com a ética de Espinosa (filósofo clássico querido por comunistas como Marilena Chauí ou Antonio Negri), mas também com as lutas de classes e a produção em Marx, que é citado várias vezes em O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia ou no Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, que o desejo não é falta, mas criar, produzir, e que não se trata de interpretar, como pensam a psicanálise freudiana, lacaniana, presas ainda a um platonismo renitente, mas de experimentar, não há aí também alguma influência marxiana ou marxista da tese 11? O último livro de Deleuze, que em seus últimos anos, n’O Abecedário, afirma que ainda é marxista, se chamaria “A Grandeza de Marx”. No livro de ambos, O Que é Filosofia, as ciências assumem a posição de criadoras de funções, enquanto a filosofia, a partir de problemas, cria conceitos num plano de imanência, sendo imediatamente contrária à religião, que está na posição vertical da transcendência.)

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O francês Georges Labica, em seu livrinho Democracia e Revolução (2002), ao afirmar que a revolução socialista, comunista não pode se aninhar na forma do Estado burguês/capitalista, nos lembra que a tese 11 de Marx opõe a palavra alemã verändern, “que não se reduz à vaga transformação, nem mesmo à metamorfose, já que ele diz respeito às próprias formas. A vontade de mudar não pode excluir o destruir.” (Labica, 2009, p. 44.)

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É especialmente importante também a anotação de Antonio Gramsci décadas e décadas depois, já no século 20, de que a tese 11 “não pode ser interpretada como um gesto de repúdio a qualquer espécie de filosofia, mas apenas de fastio para com os filósofos e seu psitacismo, bem como de enérgica afirmação de uma unidade entre teoria e prática.” (Gramsci, Caderno 10, II, S 31, págs. 339-346.)

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Mas a querela continuava, estabelecendo um embate que precisou e, diante dos nossos problemas atuais, ainda precisa ser resolvido. Nos `Manuscritos Econômicos-Filósóficos`, Marx faz uma distinção do papel das ciências naturais e da filosofia. Segundo o autor, a primeira tem um papel mais ativo na vida prática humana através da indústria: “(…) transformou-a (a indústria) e preparou a emancipação da humanidade, muito embora o seu efeito imediato tenha consistido em acentuar a desumanização do homem” (Marx, 1971, p. 201). Aqui, Marx ao menos considera a desumanização do processo de desenvolvimento.

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Engels, o grande amigo e companheiro de luta inseparável de Marx, afirmou que, por ressaltar a transitoriedade, “Não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado para a filosofia dialética” (Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã). Aqui, há uma afirmação da nova filosofia. Em outro momento, o co-fundador do materialismo histórico e do socialismo científico lembra que, na superação de Hegel, a dialética ficou reduzida “à  ciência das leis gerais do movimento, tanto do mundo exterior como do pensamento humano” (Op. cit., ). Este aspecto da obra de Marx e Engels foi notavelmente transformador e revolucionário, a ponto de se afirmar que o materialismo dialético “não necessita de nenhuma filosofia colocada acima das outras ciências”, restando da filosofia anterior apenas “a teoria do pensamento e das suas leis, a lógica formal e a dialética” (Engels, Anti-Dühring). Aqui, é praticamente como se a ciência tivesse superado a filosofia, que teria perdido o seu sentido no mundo moderno. Trata-se, na verdade, de um tipo específico de “filosofia” que foi superada – a metafísica, como sabemos. Seria a constatação de Engels uma negação total da filosofia e o predomínio da ciência? Não é assim que a posterioridade encarou dentro do próprio marxismo. Ganhou força a tentativa de constituir melhor a filosofia da práxis, que, embora não seja separada do processo de desenvolvimento e predomínio das ciências, conquista seu espaço a partir das consequências científicas pós-Marx e Engels, como vimos anteriormente na insuficiência da teoria nas ciências empírico-formais.

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Diante de tal posicionamento tácito que sublima a ciência sobre a Filosofia, gostaria de estabelecer três conclusões: 1) A filosofia do tempo de Marx e Engels, sobretudo os alemães em questão, era condizente com a ideologia burguesa mistiticadora e com a ideologia direitista do império prussiano-germânico, ou seja, era preciso uma crítica violenta à consciência descolada do real e à filosofia que, distraída pelo método clássico, simplesmente desconsiderava os novos progressos científicos. 2) No entanto, há algo de mais profundo na crítica dos dois, que remonta toda a história da filosofia: ela anda num descompasso em relação ao mundo real e às urgências desse mundo, muitas vezes imbuída de quietismo, principalmente quando, em meados do século 19, é defrontada com o pleno desenvolvimento da ciência, que age no real ou a partir do real e pode transformar a matéria. 3) Não se trata necessariamente de acabar com a filosofia, porque a filosofia tem o seu espaço próprio de conceituação, mas de evocar a partir do desenvolvimento da ciência uma filosofia nova, uma filosofia da práxis. Isto constituirá o materialismo filosofico, o materialismo histórico e dialético, o socialismo científico, que ja são métodos de ambas, filosofia e ciência.

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Isso tudo não quer dizer que Marx não tenha também escrito em termos filosóficos, enfim. Marx não deixa de trabalhar com conceitos – herança certamente hegeliana, que ele superará constantemente… Em Hegel, conceito é a universalização das categorias. O trabalho de Marx é basicamente voltado às categorias. Luckás foi quem trouxe à tona a palavra ontologia para tratar da pesquisa de Marx: há uma ontologia imanente… Quando Marx é crítico (a palavra crítica é constante e reiteirante em toda sua obra, até mesmo nos títulos dela), é porque parte de concepções e intervenções de fundo filosófico. Além do mais, ninguém nega que Marx tenha lidado com problemas filosóficos e com conceitos. Por exemplo, há um conceito marxista de dialética, de ideologia, de alienação, etc., partindo da filosofia clássica antiga e de Hegel, mas de maneira crítica e original em sua obra. Sua teoria social só pode ocorrer no interior de um invólucro dialético. Por fim, lembremos dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, lembremos do Miséria da Filosofia, das 11 Teses de Feuerbach ou mesmo da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São obras em que pululam conceitos filosóficos, mesmo que seja para criticar a própria filosofia. Enfim, não deixou Marx de transitar ou de desconhecer a filosofia e a história do pensamento filosófica. Em carta de 3 de março de 1870 para J. M. Weber, o próprio Marx testemunha (tradução minha a partir do Marx&Engels Collected Works, Volume 41): “Em Bruxelas, além de contribuições não remuneradas a diversos jornais radicais de Paris e Bruxelas, eu escrevi a Crítica do Criticismo Crítico [Marx refere-se ao livro A Sagrada Família] em colaboração com Fr. Engels (um livro sobre filosofia, publicado por Rütten, Frankfurt am Main, 1845), Misere de la Philosophie (livro sobre economia publicado por Vogler em Bruxelas e por Frank em Paris em 1847) [Miséria da Filosofia], Discours sur le libre échange (Bruxelas, 1848) [A Ideologia Alemã], um trabalho em dois volumes sobre a filosofia e o socialismo alemães dos últimos tempos (não publicado; veja meu prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, F. Duncker, Berlim, 1859), e numerosos panfletos.”

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“O problema de saber o que é a “ciência” deve ser posto. Não é a ciência, em si mesma, “atividade política” e pensamento político, na medida em que transforma os homens, torna-os diferentes do que eram antes? Se tudo é “político”, é preciso, para não cair num fraseado tautológico e enfadonho, distinguir com conceitos novos entre a política que corresponde àquela ciência que tradicionalmente se chama “filosofia” e a política que se chama ciência política em sentido estrito. Se a ciência for “descoberta” de realidade antes ignorada, não será esta realidade, em certo sentido, concebida como transcendente? E não se pensará que ainda existe algo de “desconhecido” e, portanto de transcendente? E o conceito de ciência como “criação”, afinal, não equivale a “política”? Tudo consiste em ver se se trata de criação “arbitrária” ou racional, isto é, “útil” aos homens para ampliar seu conceito da vida, para tornar superior (desenvolver) a própria vida.” (Gramsci, Caderno 15, S 10; 3, págs. 33-332).

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Este papel real e ativo do cientista e do filósofo é reiteirativo também em Antonio Gramsci, ou seja, na primeira metade do século 20. Não basta eloquência nem escolaticismo. É preciso que o intelectual esteja inserido na vida prática como construtor, organizador, “persuasor permanentemente, já que não apenas orador puro – mas superior ao espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho, chega à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual permanece “especialista” e não se torna dirigente (especialista + político).” (Gramsci, Caderno 12, S 3; 2, págs. 52-53).

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A Filosofia pode exercer sua própria tarefa em relação às teorias científicas. Pode e deve, como já foi escrito, ser um prolongamento das ciências, apoiando-se nas ciências. Eu defendo que a elaboração filosófica pode resultar num sistema que fornece base, sentido e perspectiva crítica à nossa realidade, aos nossos problemas e à própria ciência. A filosofia pode demarcar boas teorias científicas das não-científicas (falsificabilidade). Pode refletir criticamente sobre o sujeito e sua perspectiva em relação ao objeto. Pode conceituar a respeito do invólucro filosófico que engloba sujeito, pesquisa e objeto. O método do materialismo histórico, por exemplo, sem dúvida tem um invólucro da grande mãe da ciência, a Filosofia e sua Dialética. No auge do positivismo lógico, abordagens altamente formais das teorias as tratavam em termos de sistemas axiomáticos, cujos termos teóricos estavam intimamente ligados a um vocabulário observacional que deveria fundamentar o significado empírico; uma abordagem menos formal e mais contextualizada, anunciada no trabalho de Thomas Kuhn, enfatizava a abertura da atividade científica, o valor heurístico das analogias e modelos, a elasticidade e o holismo do significado, os quais sugeriam que uma abordagem excessivamente formal distorceu o assunto.

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Uma “filosofia da ciência” tem a utilidade, no século 20 e para este 21, de destecnocratizar a ciência, ao concebé-la como uma forma humana de ser no mundo, e pode mostrar que a ciência é atividade humana historicamente determinada (assim opera a filosofia da práxis). A técnica não pode manipular homens e elementos coisificados, sendo que nenhum outro campo do saber senão a filosofia intervém neste perigoso processo. Eis aí um dos papéis da filosofia da práxis, ainda mais pungentes hoje, pelo próprio desenvolvimento científico e novas formas de sociabilidade e trabalho virtual, do que nos séculos dos marxistas precedentes – reiterar que a técnica precisa mudar o homem, que a possui, pela própria práxis. Assim, a filosofia pode evitar a tecnologização do homem e humanizar a técnica. (Em seu Bodenlos: uma autobiografia filosófica, Vilém Flusser, filósofo tcheco naturalizado brasileiro e radicado durante 30 anos em São Paulo, que se debruçou sobre uma “filosofia da ciência”, apesar dos elementos demasiadamente metafísicos e até esotéricos de seu pensamento, é justamente o que acabei de escrever “o núcleo de todo verdadeiro marxismo”.)

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Estrutra e superestrutura, as ciências e a filosofia – Numa formativa passagem do “Prefácio” à Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx escreve: “É preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo.” De fato, as ciências exatas ou físicas são capazes de delinear objetivamente as forças sociais da estrutura, o grau de desenvolvimento das forças materiais de produção, os agrupamentos sociais que derivam deste desenvolvimento, a função e posição de cada um desses agrupamentos, o número de empresas e empregados, o número de cidades e sua respectiva população, o modo de produção, etc. A filosofia pode se utilizar desses dados para a sua concepção de mundo, mas tais dados não são o seu fim e objetivo. 

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Marx não desenvolveu uma teoria específica sobre a ciência ou a tecnologia. O que aparece como central na obra desse autor são as relações de produção, as relações trabalhistas, a divisão de classes e outros. Contudo, o pensamento instigante de Marx deu espaço para uma famosa e já bastante tratada discussão sobre a tecnologia, especialmente em “O Capital”, que tangencia também a questão do papel da ciência na nossa sociedade.

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A suposta autonomia da ciência – Para Marx, a ciência não é autônoma por três motivos. O primeiro refere-se ao fato de que uma ciência que se diz autônoma é ideológica, ou seja, acredita-se ou quer que acreditem-na desvinculada das relações de produção, autônoma, negando o dado do homem como ser social e ocultando seus comprometimentos sociais. Nesse sentido, ela não é nem autônoma nem neutra. O segundo motivo é relativo à questão de que a ciência, conforme Marx, tem um papel objetivo, direto, prático, portanto político que deve ser cumprido. O terceiro motivo, enfim, refere-se ao fato da ciência estar na superestrutura e, portanto, ser formada e mantida pela esfera econômica. Quanto a isso, parece incontestável: para haver pesquisa, é preciso haver condições materiais, além de determinados utensílios e ferramentas.

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Para Marx, os cientistas, como bem está colocado nas citações acima, têm de tomar posição política, tem de fazer uma intervenção social, uma vez que as ciências estão geralmente mais diretamente ligadas ao mundo material e a uma prática do que a filosofia. A ciência é e sempre será engajada: “Uma base para a vida e outra para a ciência constituem a priori uma mentira” (Marx, 1971, p. 201). O próprio Marx foi um intelectual engajado na medida em que investiu no socialismo científico não só para compreender a sociedade, mas, sobretudo, para dar respostas a problemas concretos.

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Os principais objetivos da discussão científica são o progresso da ciência e a pesquisa da verdade (Gramsci, Caderno 10, II, S 24; 1, 333), uma verdade que certamente não é absoluta, porquanto é próprio da natureza científica, sem deixar de incorporar pesquisas e descobertas anteriores ou até de adversários contemporâneos, desmistificar mentalidades e trazer constantemente outra(s) verdade(s) num continuum.

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Gramsci, ao definir marxismo como ciência e ação, cita Lênin – “o maior teórico atual da filosofia da práxis” – em relação a Marx (criador de Weltanschauungen, concepção de mundo), e fazendo uma associação (histórica, não religiosa!) entre os dois com Jesus, concepção de mundo, e Paulo, organização, continuação, expansão da Weltanschauung (Gramsci, Caderno 7, S 33; 1, 242-243). Do desejo ou mesmo da utopia para a ciência, e desta para a prática.

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“Só uma teoria revolucionária cria uma ação revolucionária” é a frase mais famosa do grande teórico da Revolução de 1917. Lênin – protótipo do intelectual revolucionário que parte da filosofia, da ciência, da teoria, do pensamento, do espírito para a prática, para o real, com todos os erros e glórias deste processo e fluxo -, em texto famoso sobre as três fontes e as três partes constituivas do marxismo, escreve que “A filosofia do marxismo é o materialismo”, denominando-o “materialismo filosófico”, e que “O materialismo histórico de Marx é uma conquista formidável do pensamento científico” (p. 36). Temos, aqui, um equilíbrio entre filosofia e ciência. As outras duas partes do marxismo são a economia inglesa de Adam Smith e David Ricardo, da qual Marx irá retirar valiosas teorias econômicas para sua crítica em O Capital, e o socialismo utópico (que se difundiu na passagem do século 18 para o 19), que virará científico com Marx e Engels. Este materialismo – que parte do materialismo francês do século 18 e depois bebe da filosofia alemã de Hegel (idealista, mas dialético, notando a matéria em desenvolvimento) e Feuerbach (que é crítico de Hegel, e que depois Marx e Engels irão criticar e superar) – é filosoficamente fiel a todos os ensinamentos verificáveis das ditas ciências naturais e hostil às superstições e às ideias meramente religiosas, enquanto que o materialismo histórico se transforma em método científico integral e harmonioso para analisar as forças produtivas e as formas de vida social, por exemplo, do feudalismo para o capitalismo, e deste para o socialismo, depois o comunismo, ou o ocaso em conjunto das classes em conflito, conforme assinala o início do Manifesto Comunista. Conclui Lênin: “A filosofia de Marx é o materialismo histórico acabado, que deu à humanidade, à classe operária sobretudo, poderosos instrumentos de conhecimento” (Op. cit, p. 37). Em outro texto mais cavado, um verbete com breve nota biográfica de Marx com uma exposição do marxismo, Lênin é plenamente consciente do legado da velha filosofia idealista para a nova filosofia materialista e para a ciência utilizada pelo marxismo.

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Em determinado momento dos Cadernos do Cárcere, a respeito da questão da “natureza humana”, Gramsci anota: “O problema do que seja o homem […], isto é, a tentativa de criar uma ciência do homem (uma filosofia) que parta de um conceito inicialmente ‘unitário’, de uma abstração na qual se possa conter todo o ‘humano’ […]” (Gramsci, Caderno 7, S 35; 1, p. 243). Atenção para este trecho que praticamente estabelece um sinônimo: “uma ciência do homem (uma filosofia)”…

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Para Antonio Gramsci, todos têm o potencial de serem filósofos, porque todos pensamos, lidamos com problemas altos ou do “senso comum”, podemos ser críticos e até criarmos concepções de mundo. No entanto, os filósofos “profissionais” ou “técnicos” possuem maior homogeneidade, coerência e logicidade do que as demais pessoas, trabalham com maior rigor, originalidade e sistematização, conhecem também toda a história do pensamento, além do fato de que nem toda concepção da vida e do mundo, nem qualquer tendência de pensamento ou orientação podem ser chamados de filosofia. “Ele [o filósofo] tem, no campo do pensamento, a mesma função que, nos diversos campos científicos, têm os especialistas. Entretanto, existe uma diferença entre o filósofo especialista e os demais especialistas, a saber, a de que o filósofo especialista se aproxima mais dos outros homens do que os demais especialistas. Foi precisamente o ter feito do filósofo especialista uma figura similar, na ciência, aos demais especialistas aquilo que determinou a caricatura do filósofo. Com efeito, é possível imaginar um entomólogo especialista sem que todos os outros homens sejam “entomólogos” empíricos, ou um especialista de trigonometria sem que a maior parte dos outros homens se ocupem da trigonometria etc. (podem-se encontrar ciências refinadíssimas, especializadíssimas, necessárias, mas nem por isso ‘comuns’), mas é impossível pensar em um homem que não seja também filósofo, que não pense, precisamente porque o pensar é próprio do homem como tal (a menos que seja patologicamente idiota).” (Gramsci, Cadernos, 10, II, S 52; 1, págs. 410-411).

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A filosofia, no marxismo, é a práxis, ou seja, é a relação entre a vontade humana (superestrutura) e a estrutura econômica (Gramsci, Caderno 7, S 18; 1, págs. 236-237). Nesta relação, encontra-se também o desenvolvimento dialético entre natureza e forças materiais de produção, entre homem e matéria. Na economia, o valor, a teoria do valor é o centro unitário. Na política, há a questão do Estado e da sociedade civil.

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Filosofia e Política é pensamento e ação, é filosofia da práxis (Gramsci, Caderno 7, S 35; 1, p. 246). Uma filosofia que abarca a massa, porque possui uma concepção de massa, e cuja função não é o individualismo do pensador, mas a unidade social na qual ele está inserido, ou seja, direção política (Gramsci, Caderno 10, II, S 31; 1, págs. 339-346). O movimento dos trabalhadores e estudantes brasileiros e latino-americanos precisa ser, já é, herdeiro da nossa filosofia: continua o predecessor, mas o continua praticamente sem contemplação, conhecimento real sem “escolasticismo”, mas com ação e vontade ativa transformadoras.
“A precedência passa à prática, à história real das modificações das relações sociais, das quais, portanto (e portanto, em última análise, da economia), surgem (ou são apresentados) os problemas que o filósofo se propõe e elabora” (Op. cit.).

53

Teoria e prática – A prática é o ato de realizar. O professor Georges Politzer ensinava que a indústria e a agricultura, por exemplo, realizam, ou seja, tornam reais certas teorias (teorias químicas, físicas, biológicas, etc.), ao passo que, para ele, a teoria é o conhecimento das coisas que queremos realizar (POLITZER, 1979, págs. 19-20). Eu acrescentaria este “realizar” (que, por si só, une uma teoria a uma prática) a também “transformar”, “alterar”, “mudar”, ou até mesmo “destruir”. Ser apenas prático é realizar por rotina, e a rotina aliena. É possível também ser apenas teórico – o que periga conceber o que é irrealizável. Portanto, é preciso haver uma interligação entre a teoria e a prática.

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Ainda que sem um horizonte de realidade e/ou de prática a teoria não deixe de ter componentes abstratos, devemos liberar a teoria de qualquer “tecnicismo” ou mesmo do sinônimo único de “pensamento puro”, tampouco associarmos a teoria apenas ao “conhecimento abstrato e intelectualista”, porque “não é a teoria que se opõe à prática pura, é a abstração” (Pereira, 1990, p. 11).

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Teoria e prática, práxis – Prática separada da teoria não é ação consciente e transformadora, é prática pura, nos impossibilita de passar da prática à práxis, ou seja, de completar a síntese e a unidade (Pereira, 1990, p. 75). Não confundir prática com práxis, apesar das semelhanças entre tais palavras. Quando falamos em teoria, precisamos considerar o aspecto teórico da prática, que abre o ato para seu significado cultural e amplia a ação para uma finalidade, uma teleologia. A filosofia da práxis ocorre justamente ali do aspecto teórico da prática para a unidade teoria/prática.

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A dialética da relação teoria/prática – Antes de tudo, quem diz dialética diz movimento, contradição e dinâmica. Então, por que é que a teoria precisa estar presente no processo de construção da práxis? Porque a prática pura não cria cultura nem transforma a História. A contradição máxima da relação teoria/prática se dá pelo fato de que não podemos nos livrar nem da teoria nem da prática. Negamos a prática pura como instintiva ou mecânica. Através da teoria, devolvemos à prática pura algum significado histórico, social, cultural, psicopolítico, geopolítico, etc. Portanto, atenção: na verdade, não existe de maneira absoluta separação entre teoria e prática! Não se idealiza uma prática sem já estar em tal prática. Eis a contradição máxima desta relação, que revela uma separação apenas de âmbito formal, um círculo vicioso mais ou menos falso de priorizar a teoria sobre a prática ou a prática sobre a teoria. (Um exemplo de contradição, corriqueiro neste século: as redes sociais. Elas “individualizam”, mas, ao mesmo tempo, imbricam todos em rede, sem a qual não existe sem tal coletividade. O próprio sistema capitalista é assim. Tanto o jovem que trabalha em call center quanto o trabalhador rural estão em realidades muito diversas, mas ambos imbricados num mesmo sistema, o que, aliás, nos leva à conclusão de que a luta anticapitalista tem de ser também unitária, fluída e totalizante. O capital é apenas comando e obediência, resposta a um trabalho que gera valor. A contradição máxima do capital, portanto: não existe sem resposta a um trabalho que gera valor, não existe sem trabalhador. A pandemia do coronavírus deixou isto explícito. Toda greve de trabalhadores escancara tal realidade e o poder das forças produtivas detidas pelos trabalhadores contra o acúmulo de capital nas relações de produção.)

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Teoria não se faz apenas com pensamento, ou nós seríamos apenas máquinas pensantes: ligado à prática, o ato teórico se estabelece a partir do que somos no mundo, um nó de relações concretas, materiais, físicas, de desejos, geopolíticas, telúricas, sociais, etc. como um todo, uma amálgama. (Pereira, 1990, págs. 84-85). Não podemos achar que a teoria se articula apenas no ato de pensar, mas sim em algum dos níveis ou camadas do real.

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Ideologia, teoria e prática – Ideologia em seu duplo sentido. Ideologia enquanto supraideia, metaideia, então nossos atos e teorias e nossa práxis são ideológicos, porque são sociais e históricos, e ideologia como aquilo que toma o falso pelo verdadeiro, a consciência falsa que Marx e Engels tratam em A Ideologia Alemã, uma consciência moldada pela classe dominante, já que é ela que detêm a propriedade privada dos meios materiais de produção, os jornais e a mídia de maior disseminação e circulação, etc.

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Teoria e prática – A unidade entre teoria e prática é como a do intelectual com o simples: elaboração e concepção que são colocados na atividade real. Para se transformar em vida, para se depurar de elementos intelectualistas que a confinam num grupo restrito, a filosofia tem de trabalhar na construção de um pensamento que seja superior ao senso comum e cientificamente coerente, encontrando nos “simples” a fonte dos problemas a serem estudados e solucionados. Tal unidade não é um dado de fato mecânico, mas um devir histórico que possui uma fase primitiva em que o sentimento é de “separação” até a concepção de mundo unitária (Gramsci, Caderno 11, S 12; 1, págs. 93-114). Ainda é preciso, nos dias de hoje, melhorar o conceito dessa unidade, porque, geralmente, a teoria é vista como acessório, complemento ou até serva da prática, por conta de resquícios de mecanicismo, quando, na realidade, as distinções entre teoria e prática não podem levar a separações nem à insistência sobre o elemento prático da ligação teoria-prática.

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Teoria e prática, mesmo – Aos comunistas, conforme bem anotou Gramsci (Caderno 15, S 22; 1, p. 260), temos dois modos de agir na unidade de teoria e prática, a saber: 1) Com base numa prática, construir uma teoria que acelere em ato o processo histórico pela identificação dos elementos decisivos da própria prática; 2) Através de uma posição teórica, é possível organizar elementos práticos indispensáveis para que essa teoria seja colocada em ação.

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Teoria e prática, transição – São nos momentos históricos de transição que a unidade entre teoria e prática está mais explícita, pois as forças práticas de transformação e a própria realidade demandam uma justificação, no momento mesmo em que partiram de alguma elaboração e pensamento precedentes que foram consolidados. Em momentos pós-revolucionários ou pré-revolucionários, o sentimento de separação, assim como a urgência de unidade entre teoria e prática, pesa muito mais.

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Teoria e prática, unidade perfeita através da ciência – A ciência é a atividade teórica ou a atividade prático-experimental dos cientistas? Ou síntese de ambas? Há sem dúvida um processo unitário do real na mediação dialética entre o homem e a natureza. De acordo com Gramsci: “A experiência científica é a primeira célula do novo método de produção, da nova forma de união ativa entre o homem e a natureza. O cientista experimentador é um operário, não um puro pensador; e seu pensar é continuamente verificado pela prática e vice-versa, até que se forme a unidade perfeita de teoria e prática.” (Gramsci, Caderno 11, S 34; 1, págs. 166-167).

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Filosofia da práxis e ciências empírico-formais – Nas ciências empírico-formais, as teorias e leis surgem após o fato, embora haja também toda uma ciência voltada para a previsibilidade e para o que pode ocorrer de acordo com sinais da realidade presente (por exemplo, os estudos sobre o impacto terrível do capitalismo no meio ambiente, o aquecimento global e os prognósticos preocupantes para os próximos anos e para este século, relacionados a estatísticas e outros dados de pesquisa progressivos a respeito do passado e do presente). Na filosofia da práxis, por sua vez, eu considero que a teoria assume uma função mais complexa: pode se referir ao acontecido, ao fato, a um objeto da ciência política, do socialismo científico e do materialismo histórico (por exemplo, a teoria do elo mais fraco de Lênin, que é uma constatação, embora Marx sempre retorne mais certo ao ter afirmado que a revolução em regiões atrasadas seria problemática, simplesmente porque os revolucionários começariam o socialismo do zero, sem riqueza capitalista a socializar, e, justamente por isso, o próprio Lênin teve depois de criar a NEP, assim como Cuba, após sua revolução socialista e na periferia do hegemonismo econômico, administra aos trancos e barrancos a sua transição socialista cercada por um mundo que internacionalizou o capitalismo, além de criminosas sanções dos EUA), mas, na filosofia da práxis e parece que somente nela, a teoria tem também o potencial de ser teoria que se antecipa à prática e influi na prática, ou seja, num devir em preparo que pode ser iminente e impelir. A teoria da filosofia da práxis projeta; modela idealmente (no plano das ideias, não o idealismo extrínseco à realidade) um processo.

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O estudo da matéria ajuda na proximidade e diferenciação da atuação entre filosofia e ciência – Se a filosofia da práxis não é propriamente ciência em si, se é tão independente e historicamente original quanto insiste Antonio Gramsci, como ela concebe a matéria? Para a filosofia da práxis, não deve a matéria ser entendida nas diversas “metafísicas materialistas” nem no âmbito das ciências naturais (física, química, mecânica, etc., sendo tais significados considerados, é claro, não são ignorados pela filosofia da práxis, mas são registrados e estudados em seu desenvolvimento histórico). Na filosofia da práxis, propõe Gramsci, as propriedades físicas, químicas, mecânicas, etc. da matéria não deixam de ser consideradas, mas só na medida em que já são “elemento econômico” produtivo, ou seja, a matéria é considerada como “social e historicamente organizada pela produção e, desta forma, a ciência natural deve ser considerada essencialmente como uma categoria histórica, uma relação humana.” (Gramsci, Caderno 11, S 30; 1, págs. 160-163).

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Filosofia da práxis e ciência política – A filosofia da práxis é uma “concepção sistemática (coerente e consequente) do mundo” (Gramsci, Caderno 13, S 10; 3, págs. 26-27). A distinção entre a filosofia da práxis e a ciência política não se dá em termos de momentos teóricos (lógica e estética) e práticos (ética e economia), mas no de fato que a ciência política ocupa um espaço na filosofia da práxis em relação aos graus da superestrutura, sendo a atividade política justamente o primeiro momento ou primeiro grau superestrutural (Op. cit.). Assim, a filosofia da práxis é mais abrangente, mas precisa: considera o modo econômico estrutural no bojo do materialismo histórico, a ciência política e a unidade teoria/prática, além de todo o legado conceitual e humanista da história da filosofia.

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O que é práxis – Práxis não é a prática pura, práxis é “o coroamento da relação teoria/prática” “como questão eminentemente humana” (Pereira, 1990, p. 70). Práxis é ação transformadora de si e dos outros, da realidade; o nível superior de tal ação transformadora (páxis) é a ação revolucionária (Pereira, 1990, p. 72). Como se vê, o campo da práxis é mais complexo e rico do que a simples prática. A práxis engloba teoria-prática. Parece-nos, até que se mostre o contrário, que os “animais” (em falta de palavra mais complexa para tratar de seres tão diversos, usamos esta) possuem instintos e também agem de acordo com algum tipo de “prática pura”, sem teoria, sem elaboradas significações e reflexões sobre seus atos pretéritos e por vir, ainda que o “reino animal”, dos “insetos” e mesmo o chamado “reino vegetal” nos apresentem tantas vezes um invejável desenvolvimento e aperfeiçoamento prático. As massas, lato sensu, se movimentam no cotidiano, agem o tempo todo, mas é em certos momentos que revelam seu potencial coletivo e organizado de práxis… A rotina nos aliena. De todo modo, nós podemos fazer a relação social e criar ou mudar a história. (Mas, atenção: Marx lembra no início de O 18 Brumário de Luís Bonaparte que fazemos a história não de maneira autônoma, mas de acordo com circunstâncias materiais mais ou menos determinadas.)

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Se a práxis não é a prática pura, é “a prática objetivada (individual e socialmente) pela teoria” (Pereira, 1990, p. 77). Uma prática aprofundada pela consciência crítica, ou seja, consciência que percebe as determinações e condições sociais da realidade (nacional, continental, internacional) pelas quais podemos atuar, mesmo que seja para destruí-las em emancipação e liberdade. Práxis é ação “transformadora do natural, do humano e do social” (Op. cit.).

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A prática é o fundamento da teoria. Teoria fora do horizonte da prática é abstração. Este é um princípio básico da filosofia da práxis. Por outro lado, esquecer da teoria ou até mesmo desprezá-la, como se fosse uma “contemplação inútil”, em nome da sobreposição de uma “prática”, leva-nos apenas ao pragmatismo e ao utilitarismo (Pereira, 1990, p. 80). Assim, enquanto a teoria pode ter alguma “autonomia” em relação à prática, porque a antecipa e a influi, a prática possui primazia em relação à teoria (Pereira, 1990, p. 76). Mas, justamente porque podemos idealizar ou projetar uma prática antes dela acontecer no plano da realidade, é que a teoria deve servir de instrumento à práxis social, isto é, tanto no pensamento quanto na ação, constituir um projeto humano pessoal e social, coletivo, nacional, continental, internacional, global, etc.

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Qual teoria? Qual prática? Estas duas perguntas críticas importam muito… Certamente não são quaisquer uma. Um militante comunista, trabalhador e/ou estudante, precisa de uma filosofia e de um método de análise e de raciocínio que sejam justos para que a sua ação revolucionária de transformação das realidades e da História seja justa também: sem dogmatismo, sem soluções acabadas, mas com circunstâncias e fatos que nunca são os mesmos, procurando não separar a teoria da prática (POLITZER, 1979, p. 20). Ora, é justamente tal filosofia e tal método que se encontram no materialismo dialético, base fulcral do marxismo.

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Teoria e prática, sabedoria de vida – Quando pinta o ranço da teoria ou ela já se extrapola para fora, vai-se para a prática; quando fracassamos ou somos fatalmente impedidos pela direitalha, mergulhamos na teoria. Com a derrota das revoluções de 1848, ele, antes protagonista revolucionário de tal momento histórico, mergulha no estudo do sistema que maravilhosamente produz riqueza e vida material como nenhum outro na história da humanidade, gerando do outro lado mais e mais pobreza e problemas humanos… Com a prisão pelo fascismo, que derrota o movimento operário e revolucionário de seu país e mina todos os seus planos, ele não pode fazer outra coisa senão mergulhar também no teórico e na teoria para compor os seus Cadernos do Cárcere. Não é justamente este o sentido de pessimismo na razão e otimismo na ação?

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Para Antonio Gramsci, a filosofia da práxis “é igual a Hegel + David Ricardo” (Gramsci, caderno 10, II, S 9; 1, págs. 317-318). O que ele quer dizer com isso? Que as contribuições metodológicas de Ricardo para a ciência econômica (por exemplo, a teoria do valor, a regularidade) e para o trabalho de Marx e Engels, fundadores da filosofia da práxis, do socialismo científico e do materialismo histórico e dialético, podem trazer também alguma inovação filosófica, já que o princípio lógico da “lei tendencial” – pela qual encontra-se a definição científica de cânones fundamentais da economia, como o homo economicus, o “mercado determinado” -, garantiu uma descoberta de valor também gnosiológico. (Gnosiologia, teoria do conhecimento humano; termo proveniente da filosofia estética do século 18; na antiga União Soviética e período subsequente à sua dissolução, foi utilizado como sinônimo de epistemologia.) Trata-se, sugere Gramsci, de uma nova imanência, de uma nova concepção filosófica da necessidade e da liberdade. Aqui, temos substanciais atributos para a nova filosofia, não apenas para a ciência econômica. Gramsci conclui que a filosofia da práxis universalizou as descobertas de Ricardo ao extendê-las para toda a história e extrair delas uma nova concepção do mundo e da vida (Op. cit).

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“A filosofia da práxis é o historicismo absoluto, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história. Nesta linha é que deve ser buscado o filão da nova concepção do mundo. […]” (Gramsci, Caderno 11, S 27; 1, p. 156). A filosofia da práxis revela nova síntese e concepção de mundo, como nunca antes na história, e da própria filosofia.

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De acordo com Gramsci, a “teoria” da filosofia da práxis é constituída pela resposta das seguintes perguntas, além de outras: “Que é a filosofia? Em que sentido uma concepção do mundo pode se chamar filosofia? Como tem sido concebida, até nossos dias, a filosofia? A filosofia da práxis inova esta concepção? Que significa uma filosofia ‘especulativa’? A filosofia da práxis poderá algum dia ter uma forma especulativa? Que relações existem entre as ideologias, as concepções do mundo e as filosofias? Quais são, ou devem ser, as relações entre a teoria e a prática? Como são concebidas estas relações pelas filosofias tradicionais? etc. etc.” (Gramsci, Caderno 11, S 26; 1, p. 149).

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Em Gramsci, a filosofia da práxis não está simplesmente cindida como teoria da história e da política a ser construída de acordo com os métodos das ciências naturais e de um materialismo filosófico ou metafísico ou mecânico (vulgar); na verdade, o autor dos Cadernos do Cárcere concebe a filosofia da práxis como “uma filosofia integral e original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e, superando, integra em si os seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicionais, expressões das velhas sociedades.” (Gramsci, Cadernos, 11, S 22; 1, págs. 140-144.) Tal superação se efetua e se expressa numa nova dialética; para concebê-la e compreendê-la, ensina Gramsci, não se pode pensar a filosofia da práxis apenas como subordinada a uma outra filosofia (Op. cit.).

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“Uma ‘teoria’ é revolucionária”, escreve Gramsci, “precisamente na medida em que é elemento de separação e de distinção consciente em dois campos, na medida em que é um vértice inacessível ao campo adversário.” (Gramsci, Caderno 11, S 27; 1, págs. 152-156.) A filosofia da práxis, portanto, é independente e está em antagonismo com todas as filosofias e religiões tradicionais; é assim ou, então, significa não ter rompido os laços com o velho mundo ou, até mesmo, ter capitulado (Op. cit.).

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A filosofia da práxis inovou tudo e segue pertinente, porque é “subversiva”. Podemos crescer, amadurecer e progredir a partir de nossas práticas teorizadas e refletidas. O inverso também é válido. Mas o oposto é direitismo, fascismo, neonazismo, mistificação, rigidez, etc. A filosofia da práxis rejeita a mera abstração e o mero pragmatismo – são campos de alienação. Todo respaldo teórico e crítico serve ao projeto emancipatório da humanidade e também contra a mediocridade do senso comum. A filosofia da práxis, em todas suas vertentes, seja na política estrito senso ou nas artes, deve lutar por uma nova cultura e um novo humanismo a partir da crítica dos costumes, sentimentos, concepções vigentes de mundo para o social e o comum.

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“O que será conservado do passado no processo dialético não pode ser determinado a priori, mas resultará do próprio processo, terá um caráter de necessidade histórica e não de escolha arbitrária por parte dos chamados cientistas e filósofos.” (Gramsci, Caderno 10, II, S 41, XIV-XVI; 1, págs. 393-396.)

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Voltemos à concepção anterior de teoria, para resumi-la em termos marxianos. Para Marx, a teoria é um modo especial de apropriação, de apreensão da realidade e da materialidade pelo cérebro humano (V. posfácio da segunda edição se O Capital). É aquela modalidade de conhecimento pelo qual o pesquisador reproduz idealmente, ou seja, na sua cabeça, no seu cérebro, o movimento real, histórico e as tendências de desenvolvimento do objeto pesquisado. Nesse sentido estrito, a obra O Capital é a expressão tornada consciente pela atividade da pesquisa humana do movimento real do próprio capital. A análise teórico-crítica das condições da produção material como fundamento necessário para a análise da vida social que se ergue sobre esse fundamento, embora o próprio Marx saiba que a vida social vai além e é mais complexa, sendo, no entanto, o modo econômico e sua organização das produções materiais da existência dos homens indispensável de ser considerado. Usa-se o termo “marxiano” para tratar da obra mesma de Marx, desvinculando-a dos “marxismos” posteriores e principalmente de suas experiências políticas, sociais, históricas reais que muitas vezes maculariam a obra de um dos maiores gênios do século 19. É famosa, entre os marxistas, a afirmação do próprio Marx de que ele próprio não era marxista. Esta é uma posição polêmica e problemática, se o “marxiano” não servir para o marxismo. Se ficar reduzido apenas ao que se chama de “teoria marxiana”, o empenho cai no círculo vicioso das ciências experimentais transposto para as ditas ciências sociais, como vimos anteriormente, ou esquece-se da práxis, formando universitários ou cientistas que até podem ser anticapitalistas, mas que não contribuem para a filosofia da práxis. O professor José Paulo Netto tem reiterado a separação, insistindo sempre que a teoria em Marx é a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa, e que, “pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a dinâmica do objeto que pesquisa” (2011, p. 21). Esse movimento ocorre por meio de gênese, consolidação, desenvolvimento e fim (ou crise), em relação dinâmica e contraditória (dialética). Compreendemos, nesta esteira, que a teoria social em Marx gira em torno da historicidade e da valoração da sociedade burguesa a partir do socialismo científico e do comunismo crítico. Seu objeto principal é o capital, ou as relações sociais da sociabilidade burguesa, com todas suas contradições entre as forças produtivas possuídas pela classe trabalhadora as relações de produção estabelecidas por enquanto pela burguesia. Seu método é o materialismo histórico e dialético.

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Não pode ser só isso. Para finalizar, portanto, outra vez Marx, mas o Marx revolucionário, que extrapola o retrato “universitário” e intelectual do parágrafo anterior, embora aquele complemente este e este dê sentido real ao outro, sendo ambos senão um só indivisível: “A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas assim que se evidencia ad hominem [no ser humano], e de fato ela se evidencia ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar a questão pela raiz. Mas a raiz, para o ser humano, é o próprio ser humano.” (Marx, 2010, p. 151.)

18 de maio de 2020

BIBLIOGRAFIA

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LÊNIN, V. “As três partes e as três fontes constitutivas do marxismo” (1913) e “Karl Marx (breve nota biográfica com uma exposição do marxismo)” (1914). in: V. I. Lénine – Obras Escolhidas (em Três Tomos), Tomo II, Editorial Avante!, 1977 (edição portuguesa).

MARX, Karl. O Capital – Critica da Economia Política. Livro Primeiro. Tradução de Reginaldo Sant’anna. Difusão Editorial, 1984 [1867].

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NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

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SIMÕES, Darcilia. “Ciência, teoria e método” in: SIMÕES, Darcilia e GARCÍA, Flávio (orgs.). A Pesquisa Científica Como Linguagem e Práxis. Dialogarts Publicações, 2014.