Estado e sociedade em Gramsci

No artigo disponível acima, em profundo contato com os Cadernos do Cárcere e outros textos gramscianos e marxistas fundamentais, praticamente a cada parágrafo, eu mostro que, para o líder dirigente do PCI, militante da Internacional, deputado preso pelos fascistas e grande intelectual marxista Antonio Gramsci, Estado e sociedade estão em relação dialética, não dualista.

A separação entre ambos só interessa à ideologia burguesa, que demoniza o público, torna o Estado pura coerção, reivindica a tirana autorregulação do mercado (neoliberalismo e afins) e camufla a dominação de classes na sociedade civil (tida como espaço da “livre iniciativa”), seja a dominação da fábrica capitalista ou do consenso em escolas, mídia, jornais etc. Há também uma esquerda de ingênua fenomenologia anarquista, pior ainda quando cita Gramsci (sem o estudar), que cai na armadilha liberal e, ao invés de lutar pela hegemonia da classe subalterna para esta tornar-se dominante (isto é Gramsci!), rejeita a luta política, reafirma a sua subalternidade.

Ao separar a superestrutura marxiana e engelsiana em dois níveis (“sociedade civil” e “sociedade política”), G. une os dois níveis em teoria inovadora e fatídica sobre o Estado. (Lembrem do poder do lobby no Congresso Federal, do vínculo podre entre empresariado e políticos, da legislação burguesa que molda as ações da sociedade sob a forma mercadoria ou do fato de que as forças militares do Estado servem à defesa da propriedade privada dos meios de produção da burguesia…)

Gramsci mostra que a sociedade civil é um momento do que ele chama de Estado integral ou ampliado e uma arena das lutas de classes. “Todo Estado é uma ditadura.” Esta teoria sustenta as estratégias gramscianas da revolução no Ocidente (“guerra de posição”, “guerra de movimento”, etc.) e a tese da “sociedade regulada” (comunismo), que é construída à medida que o Estado-coerção esgota-se e dissolve-se na sociedade civil para o fim da divisão de classes após a conquista proletária revolucionária do poder (tal como em Marx e Engels, com a diferença de que G. chega a defender a conquista da hegemonia antes da conquista do poder governamental).

Sobre o tripé marxiano ou marxista – a tese das “três fontes” em Engels, Kautsky, Lênin, Gramsci, Chasin, etc.

Texto em construção

Após muitas perguntas sobre esse termo que eu devo ter inventado, cumpre-me apresentá-lo, sobretudo neste momento de tantos desvios e deturpações com relação à teoria revolucionária. O termo é meu, mas não é nada de original ou de novo; trata-se da tese das “três fontes” e “três partes” do marxismo, ora criticada, ora reivindicada.

O marxismo não é monolítico; é, muitas vezes, oscilante, até contraditório e com divergências ferrenhas na própria luta ideopolítica. Porém, a teoria marxiana revolucionária é constituída por alguns princípios socioeconômicos, científicos, filosóficos e políticos básicos sem os quais não há marxismo de fato, porque tratam-se de descobertas seminais e próprias. (Por exemplo, sem a teoria do valor não se identifica a exploração do capitalismo; sem a concepção materialista da história, não se explica a estrutura e a superestrutura, etc.)

Engels

Exposição mais ou menos coerente do método dialético e da ideologia comunista defendida por Marx e por mim, numa série de domínios bastante vastos“, segundo escreve o próprio Friedrich Engels, a obra Anti-Dühring (1877 – recomendo a edição da Boitempo), que formou a primeira geração de “marxistas”, já visava se opor às deturpações do que seria o socialismo; livro “contemporâneo” a Marx, que, mesmo estando ocupado com O Capital, revisou e ajudou sobretudo a parte de Economia Política. A ideologia marxiana é dividida por Engels (ainda que interdependentes entre si) em Filosofia, Economia Política e Socialismo. Abaixo, o índice do livro (a parte da Filosofia será posteriormente criticada por Lukács, na medida em que a dialética engelsiana, com enfoque demasiado na natureza, desconsideraria o homem, o que compromete a práxis revolucionária):

Seção I – Filosofia

111. Subdivisão. Apriorismo
IV. Esquematismo do mundo
V. Filosofia da natureza: tempo e espaço
VI. Filosofia da natureza: cosmogonia, física, química
VII. Filosofia da natureza: mundo orgânico
VIII. Filosofia da natureza: mundo orgânico. Conclusão
IX. Moral e direito: verdades eternas
X. Moral e direito: igualdade
XI. Moral e direito: liberdade e necessidade
XII. Dialética: quantidade e qualidade
XIII. Dialética: negação da negação
XIV. Conclusão

Seção II – Economia política

111. Teoria do poder. Continuação
IV. Teoria do poder. Conclusão
V. Teoria do valor
VI. Trabalho simples e trabalho composto
VII. Capital e mais-valor
VIII. Capital e mais-valor. Conclusão
IX. Leis naturais da economia. Renda fundiária
X. Da História crítica

Seção III – Socialismo

Seção 111 – Socialismo
I. Aspectos históricos
11. Aspectos teóricos
111. Produção
IV. Distribuição
V. Estado, família, educação

Kautsky

As três fontes do marxismo (1908), livrinho de Karl Kautsky, teórico importante para o marxismo e que tivera contato com Marx e Engels no século 19, mas que logo no século 20 será chamado por Lênin de “o renegado Kautsky” por lamentavelmente ter apoiado a guerra imperialista de 1914, já expunha as três fontes a partir do que fora organizado por Engels em Anti-Dühring, porém de maneira mais acessível. Kautsky expõe as três explícitas influências: a economia política inglesa (Adam Smith e David Ricardo), a filosofia alemã (sobretudo Hegel e Feuerbach) e o socialismo francês (que Engels, em seu célebre ensaio Do socialismo utópico ao socialismo científico, opúsculo retirado do Anti-Dühring, chamará de “utópico”, isto é, o socialismo de Saint Simon, Charlie Fourier, Robert Owen, mas no qual Marx, antes de fundar o socialismo científico, entra em contato teórico-prático em sua experiência com a classe trabalhadora francesa revolucionária).

Lênin

As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo (março de 1913), de Lênin, além do “Karl Marx (Breve Esboço Biográfico Seguido de uma Exposição do Marxismo)” de novembro 1914 são dois textos que estão nos meus 3 tomos calhamaços das Obras Escolhidas de Lênin, que, ao menos em termos teóricos, foi fiel a Marx, embora de maneira apressada e, portanto, um tanto quanto reducionista, mas trata-se do beabá: Lênin divide seu breve texto em materialismo e dialética (a partir de Hegel e Feuerbach), economia (Smith e Ricardo, mas sobretudo a teoria da mais-valia de Marx) e o socialismo enquanto lutas de classes. Para Lênin, enfim, há a concepção materialista da história, a teoria da mais-valia e as lutas de classes. Lênin cita duas obras importantes de Engels, Anti-Dühring e Ludwig Feuerbach, afirmando que são livros de cabeceira de “todo operário consciente”. O seu esboço biográfico de Marx seguido de uma exposição do marxismo é um tanto mais explicativo, inclusive sobre o valor.

Gramsci

(Aqui, temos um dos pontos em que Gramsci supera Lênin; há outros, e pretendo enumerar todos ou os principais em outro ensaio.)

Antonio Gramsci, que, nos Cadernos do Cárcere, dispõe de um laboratório terminológico e criptográfico original, refere-se (em parte para escapar da censura fascista, em parte para dialogar com outros autores que usavam tal termo) ao marxismo como filosofia da práxis. Defensor de uma filosofia de base historicista, Gramsci refutou todo e qualquer vestígio de metafísica, mecanicismo, economicismo vulgar e idealismo no tratamento do pensamento de Marx.

No § 33 (“Questões gerais”) e no § 46 do Caderno 11, Gramsci se contrapõe ao ensaio supracitado de Lênin (com quem militou enquanto membro do comitê executivo da Internacional Comunista e a quem define, nos Cadernos, como o “maior teórico moderno da filosofia da práxis”). Ele não descaracteriza as formulações expostas ali por Lênin, mas em Gramsci o tratamento do marxismo surge de maneira bem mais crítica, problematizada e complexa, porque suas condições são outras, enquanto que as preposições leninianas reforçaram a vulgata russa (promovendo parte considerável da vulgata marxista ocidental). Para Gramsci:

“Um estudo acurado da cultura filosófica de Marx […] é certamente necessário, mas como premissa ao estudo bem mais importante de sua própria e ‘original’ filosofia que não pode ser esgotada em algumas ‘fontes’” (Q 11, 70, 1.508 [CC, 1, 223]).

Gramsci parece se referir diretamente ao opúsculo de Lênin:

“Uma concepção muito difundida é a de que a filosofia da práxis é uma
pura filosofia, a ciência da dialética, e as outras partes são a economia e a política; daí se afirmar que a doutrina é formada por três partes constitutivas, que são ao mesmo tempo o coroamento e a superação do mais elevado nível que, por volta de 1848 [data das revoluções de 1848 e do Manifesto Comunista], tinha atingido a ciência das nações mais desenvolvidas da Europa: a filosofia clássica alemã, a economia clássica inglesa e a atividade e a ciência política francesa. Essa concepção – que é mais uma investigação genérica das fontes históricas do que uma classificação nascida do interior da doutrina – não pode se contrapor, como esquema definitivo, a qualquer outra organização da doutrina que seja mais adequada à realidade” (Q 11, 33, 1.448)

Essa “outra organização” é exatamente a filosofia da práxis.

Voltando à “cultura filosófica de Marx” citada por Gramsci, (Caderno 11, § 25):

“A filosofia da práxis nasceu sob a forma de aforismos e de critérios práticos por um mero acaso, a saber, porque o seu fundador dedicou
sistematicamente as suas forças intelectuais a outros problemas, notadamente econômicos; nestes critérios práticos e nestes aforismos,
contudo, está implícita toda uma concepção do mundo, uma filosofia.”

Segundo a filosofia da práxis, política, filosofia e economia são reciprocamente traduzíveis (Q 4, 46, 472-3). Além disso, para Gramsci, não se pode deixar de tratar dos aspectos pertinentes à arte, economia, ética e até mesmo das teorias das ciências naturais, elementos que não aparecem nem de modo implícito no texto de Lênin.

No Caderno 11, Gramsci pergunta-se várias vezes sobre a tradutibilidade recíproca de várias linguagens filosóficas e científicas; a indagação tem como objetivo compreender a “integração” entre filosofia clássica alemã, literatura e prática política francesa e economia clássica inglesa na filosofia da práxis. Para Gramsci, a vulgata russa exposta por Lênin e que remontava a Plekhanov do materialismo marxismo promovia uma justaposição das três fontes, mas a justaposição dos três grandes movimentos culturais do século 19 foi fruto, na crítica de Gramsci e até em estudos de Labriola, da sociologia positivista (v. Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci  (1926-1937), tradução de Luiz Sérgio Henriques, Brasília: Fundação Astrojildo Pereira: Rio de Janeiro: Contraponto, 2012; cf. Paolo Nosella, A escola de Gramsci, São Paulo: Cortez Editora, 2018).

Para resolver a problemática da “integração” que preserve a originalidade da filosofia da práxis, Gramsci aposta no conceito de imanência (Caderno 10 § 9):

“O momento sintético unitário, creio, deve ser identificado no novo conceito de imanência, que da sua forma especulativa, tal como era apresentada pela filosofia clássica alemã, foi traduzido em forma historicista graças à ajuda da política francesa e da economia clássica inglesa”

Giancarlo Schirru, em “La categoria di hegemonia e il pensiero linguístico di Antonio Gramsci” (In: Egemonie, coordenador Angelo d’Orsi com a colaboração de Francesca Chiarotto, Ed. Libreria Dante & Descartes, Napoli. 2008, pp. 397-444, 2008), observa que as notas dos Cadernos detêm-se longamente, e não sem oscilações, sobre as modalidades de como descrever essa conexão [entre filosofia, política e economia], ou seja, de “como a filosofia da práxis chegou à síntese dessas três correntes vivas na nova concepção de imanência, depurada de qualquer vestígio de transcendência e de teologia” (p. 421). Vale dizer que para Gramsci a filosofia da práxis deve criticar e superar a religião – “ópio do povo” para o Marx  da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – para um progresso intelectual  da massa e da classe trabalhadora!

Gramsci, que havia entrado no curso de Letras da melhor universidade de seu país através de uma bolsa (era pobre), ainda que não o tenha concluído devido a vida política atribulada, sabia por meio da Ciência Linguística o reconhecimento da autonomia de cada linguagem. Segundo Paolo Nosella (A escola de Gramsci, 2018), quando esboça o conceito de “tradutibilidade”, Gramsci “rechaça as tentativas do bolchevismo de reduzir o marxismo a instrumento político contingencialmente útil que identificava, mecânica e interesseiramente, política, filosofia e economia, e, até mesmo poesia, música e arte em geral“.

A “unidade” pode ser entendida e até praticada dialeticamente se (Caderno 11, 22)

“[…] a filosofia da práxis for concebida como uma filosofia integral e
original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e, superando, integra em si os seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicional, expressões das velhas sociedades. Se a filosofia da práxis é pensada apenas como subordinada a uma outra filosofia, é impossível conceber a nova dialética, na qual, precisamente, aquela superação se efetua e se expressa.”

Portanto, Gramsci posiciona-se como contrário a reducionismos explicativos do “marxismo vulgar”. Atenta que o tratamento sistemático da filosofia da práxis não pode se dar de maneira reducionista para não se negligenciar nenhuma das partes constitutivas, caso contrário as explicações fáceis levam a noções mecânicas e até idealistas no interior do próprio marxismo, sobretudo quando este penetra no seio da classe trabalhadora.

Gramsci rascunha (Caderno 7, § 18; 1, 236-237):

“A unidade [do marxismo] é dada pelo desenvolvimento dialético das contradições entre o homem e a matéria (natureza – forças materiais de produção). Na economia, o centro unitário é o valor, ou seja, a relação entre o trabalhador e as forças industriais de produção (os que negam a teoria do valor caem no crasso materialismo vulgar, colocando as máquinas em si – como capital constante e técnico – como produtoras do valor, independentemente do homem que as manipula). Na filosofia, é a práxis, isto é, a relação entre a vontade humana (superestrutura) e a estrutura econômica. Na política, é a relação entre o Estado e a sociedade civil, isto é, intervenção do Estado (vontade centralizada) para educar o educador, o ambiente social em geral. (Deve ser aprofundado e posto em termos mais exatos.)”

Ainda sobre o materialismo vulgar, Gramsci atesta no § 16 do Caderno 11:

“[…] É notório, por outro lado, que o fundador da filosofia da práxis [Marx] jamais chamou sua concepção de ‘materialismo’ e que, falando do materialismo francês, criticou-o, afirmando que a crítica deveria ser mais exaustiva. Assim, jamais usou a fórmula ‘dialética materialista’, mas sim ‘racional’, em contraposição a ‘mística’, o que dá ao termo racional uma significação bastante precisa”

Gramsci, acima, me parece se referir ao posfácio à segunda edição de O Capital, em que Marx explica como seu método dialético é oposto ao de Hegel – pondo este “de pé”, mitiga seu invólucro místico e procura o que há ali de racional.

Para Gramsci, a influência de David Ricardo é particularmente significativa tanto na economia quanto na filosofia, porque a teoria do valor e a lei da tendência em Marx deriva dele (Q 7, 42 e Q 10 II, 31, 1.275), além da noção de homo oeconomicus, uma descoberta a que também se deve a Ricardo, implicando no marxismo “uma nova ‘imanência’, uma nova concepção da ‘necessidade’ e da liberdade etc.” (Q 10 II, 9, 1.247) que levou Marx e Engels à superação da filosofia hegeliana e à construção dum novo historicismo sem traços de lógica especulativa (Cartas, II, 205).

Por fim, é impossível compreender totalmente Gramsci se não se compreender outras fontes e autores extrínsicos ao marxismo nos quais ele se debruçou, como Benedetto Croce, George Sorel (e seu neoidealismo e bergsonismo), Giovanni Gentile, depois, Maquiavel (para Gramsci, o “Príncipe moderno” é o Partido Comunista). Ou seja, assim como Marx teria procedido com Hegel, Smith, Ricardo, Gramsci empreende uma assimilação-superação, uma fusão de socialismo deglutindo outras correntes intelectuais para uma formulação revolucionária marxista original. É de Sorel, por exemplo, que Gramsci tomará emprestado o termo “bloco histórico”, mas sob outro ponto de vista, marxista, gramsciano, ou seja, “bloco histórico” enquanto a unidade dialética entre a superestrutura e a estrutura e, a partir de tal superação, o estímulo à criação revolucionária de um novo bloco histórico.

Contudo, se as fontes são discutíveis, constituem para G. três caracteres inseparáveis do marxismo: filosofia, economia e política“, escreve Giuseppe Prestipino no Dicionário Gramsciano.

Chasin

Investigando os textos marxianos, o Prof. brasileiro José Chasin concluiu que neles não haveria comprovação textual da ideia do “tríplice amálgama” ou da incorporação da herança hegeliana e que a própria colocação da questão em termos de três fontes seria enviesada, porque toma elementos alheios ao novo padrão reflexivo instituído por Marx. (Cf. Chasin, “Ad Hominem – Rota e prospectiva de um projeto marxista”, Revista Ensaios Ad Hominem, São Paulo, n. 1, t. I pp. 37-40.) É o caso de sopesar o quanto tal argumentação é pertinente em termos de práxis e de renovação do marxismo, o quanto é ou não academicista, como encarar as citações explícitas nos textos marxianos a partir de tal afirmação polêmica, etc.

Dois parágrafos sobre Aristóteles e Adam Smith em Marx

Aristóteles opunha economia (valores de uso indispensáveis à vida) à crematística (ligada à incessante produção e busca pela riqueza) e já condenava, em sua Política, o dinheiro que é usado para um fim em si mesmo, para a acumulação, ao invés de ser a justa medida na sociedade para que não haja carência de um lado nem excesso do outro. “A troca não pode existir sem a igualdade, nem a igualdade, sem a comensurabilidade”, escreveu Aristóteles citado por Marx em O Capital. O legado de Adam Smith em Marx é bastante “simples”: o autor de Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, mais conhecida simplesmente como A Riqueza das Nações (1776), trabalha a partir das ideias de Aristóteles em sua Política (que já distinguia duas dimensões da mercadoria: o valor de uso e o valor de troca) e na Ética a Nicômaco (que lega à época moderna a compreensão da teoria do valor-trabalho e do valor-utilidade), assim como Marx fará no século posterior (Aristóteles é citado várias vezes no primeiro livro de O Capital); desde a economia mercantil a que se referia Aristóteles, já que as mercadorias devem ser equiparadas ao serem trocadas umas pelas outras, devem conter algo igual quantitativa e qualitativamente, e este “algo igual” é o valor.

Em finais do capitalismo manufatureiro e nos primórdios do capitalismo industrial do século 18, Smith procura explicar o valor de troca pelo trabalho empregado na produção da mercadoria (Marx partirá deste ponto), não pela utilidade, argumentando que coisas vitais como água possuem valor baixo de troca, enquanto coisas menos úteis como jóias têm alto valor de troca. Mas o que é o valor? Há dois significados da palavra valor para Smith – valor enquanto utilidade de um determinado objeto e valor enquanto poder de compra que o referido objeto possui em relação a outras mercadorias. “O primeiro”, conclui Smith, “pode se chamar valor de uso e o segundo, valor de troca”. Eis precisamente o ponto de partida de Marx para O Capital, além de muitos outros autores e até mesmo Shakespeare.

25 de janeiro de 2021

Povo e Centrão e (des)governo Bolsonaro

O quanto você, que se diz de esquerda, conhece realmente o Brasil e os brasileiros da base da pirâmide social?

São os descendentes periféricos da escravização in loco de 3 séculos e da Abolição feita nas coxas, da miscigenação mais explícita na cor de pele, filhos, depois, da migração-consequência-do-desajuste-geográfico-da-industrialização-nacional, de nível técnico e crítico baixo ou ingênuo ou nenhum, são os estigmatizados, os “burros”, “ignorantes”, mais do que pobres, semi-analfabetos e analfabetos, Macabéas, mas que, paradoxalmente, neste momento de crise, são os que seguram o país no dia a dia, dada a quantidade e espessura dessa camada na sociedade, através de bicos e na informalidade. Parece que Chico Buarque lhes retratou bem na canção “Brejo da Cruz” – salvo engano, canção dos anos 1980, depois de anos de uma ditadura que impediu reformas estruturais e atirou o país na marginalização… São, mentalmente, quase crianças – para usar a poética, não fosse trágica, denominação de um camarada comunista meu, funcionário público do setor de obras, que possui contato direto com pedreiros, motoristas, etc. Só os “evangélicos” — tanto pastores bandidos, ricos e fundamentalistas quanto “pastores/intelectuais orgânicos”, i.e., mais próximos da comunidade e de sua própria cor de pele miscigenada e classe social — é que penetraram para valer nessa camada nesses últimos 30 anos, prometendo-lhes subir e crescer, ter carro, negócio, dinheiro, o que a Igreja Católica, já em declínio e secularização, sempre demonizou (o catolicismo sempre quis perpetrar a condição do lúmpen miserável, nunca tirá-lo dessa situação). Donas de casas, faxineiras, guardas noturnos em maior dignidade do que os farrapos, mas essas classes da base da pirâmide muitas vezes se misturam e se confundem, sobretudo num país continental e complexo…

A esquerda (no mundo) comeu poeira, deixou de falar em revolução desde a Queda do Muro e o desmanche da burocracia da União Soviética, distanciou-se (um dos grandes erros do PT) dos seus princípios mais radicais, é hoje identificada por camadas sociais — caso dos Coletes Amarelos, na França, que expulsam partidos de esquerda dos protestos — com o próprio sistema econômico e estatal (direitista). A boa notícia — a médio e longo prazo — é que esse cenário tem solução. É incontornável, para uma solução, a construção da organização revolucionária que saiba que é possível conquistar a hegemonia antes de conquistar o poder. Que, formando intelectuais orgânicos e soldando intelectuais revolucionários com o povo-nação e sobretudo com uma classe trabalhadora sólida e consciente (classe essa que se encontra “acima” da “massa” na pirâmide), acabe com a desigualdade socioeconômica (fruto da maior parte do desespero espiritual contemporâneo) através da tomada, distribuição e socialização da propriedade privada dos meios de produção e que, concomitante e até antes disso, supere num processo gradual o senso comum com um novo senso crítico filosófico.

Tenho um cunhado que é gerente da Caixa Econômica Federal (outro funcionário público). Me contou do perfil geral dessa massa sem perspectiva nas enormes filas das agências pelo auxílio emergencial, que acaba este mês e cujo fim mudará todo o cenário diante do DESgoverno, da pauperização causada pelas contrarreformas neoliberais desde o golpeachment e Temer, da pandemia e do capitalismo contemporâneo, que já não gera mais emprego e nem vai gerar. Não sem incômodo por conta de seu ar de superioridade e por suas expressões pejorativas, ouvi ele me contar dos “vergonhosos”, “patéticos” e até insólitos erros linguísticos que têm escutado quase que diariamente e a falta de informação e de conhecimento (das coisas mais simples e bestas) que têm de enfrentar com esse “povo”. Houve até aqueles que, mesmo sem direito ao auxílio, quiseram ir saber o que diabos o governo estava dando para o povo. Suponho que não possuem acesso decente à Internet ou arrisco a dizer, com base no depoimento do meu cunhado, que possuem acesso, mas não sabem mexer (sem contar que, nos primeiros meses, a incompetência do desgoverno criou instabilidade no aplicativo do auxílio). Também, não basta “saber mexer” – é preciso transferir o auxílio da “conta virtual” do aplicativo para a conta bancária da Caixa ou esperar a data para transferir, sendo que para sacar é mais rápido, enfim, uma série de situações burocráticas que dificultam o acesso a todos. Caso contrário, não haveria fila pelas agências, com todos os riscos da aglomeração em plena pandemia de COVID-19.

(Não houve informação suficiente a respeito do fato de Bolsonaro e do terraplanista econômico Paulo Guedes, um Bolsonaro com Phd, não quererem, desde o início, dar auxílio algum, e que este foi conquista da oposição de esquerda e de outros setores do Congresso. No início, R$600 reais, que logo foram cortados pelo (des)governo pela metade, R$300 reais, e que chegarão ao fim mesmo com a pandemia e sem vacina, enquanto o resto do globo já começa a adquirir suas doses.)

Portanto, a respeito do tema Bolsonaro, sustentação da aprovação (grande entre emprésarios semiescravagistas) e desaprovação (a maior rejeição entre os presidentes em primeiro mandato, com exceção de Collor), é a subjetividade e condição de LÚMPEN (termo usado por Karl Marx em 18 Brumário de Luís Bonaparte e outros textos) que nos importam enquanto esquerda empática, não os fascistóides minoritários. O lúmpenproletariado é, em tradução literal, o proletariado de farrapos, mas existe uma mentalidade de lúmpen em amplos setores. Antes de mais nada, essa classe do lúmpen brasileiro é formada pela chocante desigualdade deste rico país (quando se afirma que o Brasil é desigual, trata-se não de um país pobre, mas “de um lado este carnaval/do outro, a fome total” num mesmo país, cidade, estado, bairro, rua). Além dos lúmpens, há uma “nova” classe trabalhadora informal chamada de precariado. Os livros do prof. Ricardo Antunes mapeiam a condição subproletária, do precariado, dos trabalhadores intermitentes e afins no capitalismo atual, inclusive entre os jovens com a “uberização”, que trabalham sem hora fixa para enriquecer a Uber, o iFood, etc. O problema é que o auxílio emergencial, justamente por ser destinado a quem não tem salário, acaba agregando todos esses. Assim, importa-nos, em caráter de urgência, a chocante defasagem socioeconômica e educacional dos abandonados, metidos numa ignorância proposital e secular, Macabéas que embarcam em quem lhes der mais e lhes ajudar com migalhas, não importando se é centro-esquerda ou se é direita aporofóbica, tal a situação degradante em que estão! Esta é a subjetividade e condição material típicas do chamado “lúmpen-proletariado”: aderir a quem possa lhes resolver, mesmo que momentaneamente, a dificuldade material. O Estado brasileiro na forma da oligarquia sempre foi hábil em sustentar o lúmpen, tirando-lhe a consciência crítica e revolucionária em troca de leite, uniforme escolar, migalhas.

Enfim, do que eles precisam e do que precisamos? Precisam duma esquerda que deseje e concretize construção revolucionária pela conquista da hegemonia mesmo antes da conquista do poder; da “soldagem” gramsciana entre intelectuais e povo-nação; de Paulo Freire e Antonio Gramsci; que sejam parte dirigente de um partido revolucionário e de movimentos sociais, unidos à classe trabalhadora, já que o capitalismo contemporâneo dificilmente vai transformá-los em classe trabalhadora clássica; precisam surgir do mais profundo da massa e virar intelectuais orgânicos que não só saibam exercer seu simples trabalham, mas que também entendam de teoria do valor, economia, política, história, dialética e revolução; não precisam de mera política pública e assistencialismo barato para voto de cabresto que, desde pelo menos Getúlio Vargas (“Façamos a revolução antes que o povo a faça!“), não derruba os pilares do país.

Outro dia, uma amiga me perguntou se a taxação de grandes fortunas não seria um passo decisivo para a transição socialista. Eu quase ri. Sem teoria, a esquerda parlamentar não faz outra coisa senão nivelar o debate. Uma pergunta lúcida a ser ensinada, pergunta de esquerda raiz: quem administrará o montante recolhido dos lucros e dividendos, das grandes heranças, dos iates e jatinhos? A classe trabalhadora? Os burocratas de Brasília? O Congresso, que nos espolia, pois a esquerda não tem ali uma hegemonia? Já na Crítica do Programa de Gotha Marx escreve que o imposto sobre renda (pauta de vários liberais da Manchester industrial) pressupõe as diferentes rendas das classes, logo pressupõe a sociedade de classes capitalista, não a construção de uma sociedade comunista. Transição socialista é, no mínimo, um governo popular e orgânico em forma de cooperativas, no setor da economia, e de conselhos populares na política, ao invés do Estado enquanto balcão administrativo da burguesia.

Voltemos ao caso do lúmpen. Guardadas as ENORMES diferenças, motivações, intuitos e proporções, trata-se da quase mesma postura que também o Centrão — direita sem ideologia, corrupta e fisiologista do sistema — desempenha na alta burocracia federal para apoiar governos federal, estaduais e municipais em troca de emendas parlamentares milionárias e cargos gordos na administração pública… Com o Centrão, um desgoverno fraco ganha mais musculatura, mesmo com todos os seus descalabros sociais. O Centrão que apoiou FHC, Lula, Dilma, Temer e agora Bolsonaro. Quem dá mais, lá vão eles. (O gângster psicopata Eduardo Cunha, antes de ser preso, ia além: era o “Centrão” que tinha pautas retrógradas em nome de Deus e Jesus, um pré-Bolsonaro bem mais calculista, centrado, perigoso…) Sem eles, não há voto no Congresso.  Até os milicos moralistas do DESgoverno já descobriram isso. Atualmente, neste ano de 2020, o Centrão é formado por parlamentares do PP (40 deputados), Republicanos (31), Solidariedade (14) e PTB (12). Este seria o “Centrão oficial”, mas, em certos momentos, dependendo da oferta, são somados o PSD (36 deputados), MDB (34), DEM (28), PROS (10), PSC (9), Avante (7) e Patriota (6).

Ora, como são eleitos, então? Uma mera reforma política que enxugasse o número de partidos mitigaria o poderio do Centrão? Um rápido estudo a respeito das origens do “Centrão” nos levará à constatação não só do lobby capitalista em Brasília, mas da renitente oligarquia brasileira e também do “coronelismo” regional em cidades por todo o país, da falta de uma democratização socialista de base, mas seria preciso maior aprofundamento a respeito.

Temos, assim, dois lados do país, de alto a baixo, a serem resolvidos.

Ps.: Os requisitos para o auxílio emergencial, segundo a própria página da Caixa Econômica Federal, ajudam a caracterizar melhor essa “sub-classe” (não inserida diretamente na contradição entre as forças produtivas da classe trabalhadora assalariada e os meios de produção detidos pelos capitalistas) da qual não estou, neste momento, muito distante: insta-me dizer que, como professor autônomo, também tive “direito automático” ao auxílio, sem nem mesmo fazer qualquer procedimento:

Pode solicitar o benefício o cidadão maior de 18 anos, ou mãe com menos de 18, que atenda a todos os seguintes requisitos:

Esteja desempregado ou exerça atividade na condição de:

– Microempreendedores individuais (MEI);  <- É preciso saber o quanto há resquício de ideologia neoliberal nesta denominação de “microempreendedor individual”.

– Contribuinte individual da Previdência Social; 

– Trabalhador Informal.

Pertença à família cuja renda mensal por pessoa não ultrapasse meio salário mínimo  (R$ 522,50), ou cuja renda familiar total seja de até 3 (três) salários mínimos (R$ 3.135,00).

A hora e a vez de Gramsci

 

Fernando Graça e Antonio Gramsci.

Gramscistas, pelo seu próprio leque de repertórios, sempre estiveram entre os mais inteligentes do marxismo, mas, até agora, infelizmente, desagregados: um ou outro aqui, outro acolá; a maioria, ou os principais (a memória mais óbvia lembrará com justiça do importante trabalho de divulgação e organização gramscianas de Carlos Nelson Coutinho, ainda que incompletas, e de Marcos del Roio, com quem tive ótimo contato), não são orgânicos nos partidos nem “núcleos duros” como os leninistas e trotskistas, são confinados na academia tanto quanto os agudos “lukacsianos”. Dos governantes latino-americanos, somente o brilhante Chávez conhecia e ensinava Gramsci em comícios populares (https://youtu.be/xxnWoR61z30). Não há ainda um partido ou organização política gramscista; nem o próprio Partido Comunista Italiano de Togliatti chegou a ser o “Príncipe moderno” de Gramsci… No Brasil, a International Gramsci Society tem participantes simpáticos ou filiados ao PT, PCdoB (PelegodoB, segundo camaradas), PSOL, PCB sem que Gramsci predomine em nenhum desses partidos (que, aliás, não são organizações revolucionárias, com exceção histórica do PCB, que é simpático a Gramsci, um ou outro camarada vê com bons olhos meu projeto, sua sede em SP possui um quadro do italiano, mas só; nenhum deles senão o PT, que teve um ou outro intelectual gramscista e que passou pela experiência do poder político, poderia ter usado Gramsci lá atrás na comunicação e organização para se salvar, mas a cúpula eleitoreira, jurídica, e a enorme ojeriza do partido a qualquer teoria revolucionária impediriam o básico).

Isto precisará ser mudado!

Tal realidade, somada à defasagem ou má vontade dos próprios camaradas (pelos quais tenho afeto e/ou relação intelectual), todos excelentes marxistas, leninistas e trotskistas, em relação a Gramsci (para não citar certos preconceitos, de que Gramsci seria meramente “culturalista”, “revisionista”, “maquiavélico” – maquiaveliano, talvez, porque maquiavélico foi o Mussolini -, ou, em tom de admiração dispensável do ponto de vista praticista, “a perfumaria do marxismo” – e outros preconceitos, que se devem também à caricatura que a direitalha xucra fez e faz desse gênio aprisionado – “essa cabeça tem de ficar sem se pronunciar por uns 20 anos!”, disse o promotor fascista do seu caso – e deixado para morrer precocemente, sem contar certas leituras pequeno-burguesas, reformistas e “pop”s de Gramsci), tal realidade e defasagem é parte determinante da nossa crise de direção revolucionária dos trabalhadores!

Porque, se Marx e Engels são os formativos e se Lênin ou mesmo Trótski (que não construiu uma filosofia da práxis como Gramsci, e do qual ele, apesar do respeito intelectual, tinha enormes críticas) nos dizem quase tudo o que é necessário para a luta comunista e revolucionária, é a partir das estratégias teóricas e dos conceitos de Gramsci que resolveremos tal crise, mas de maneira integrada e orgânica, para usar um termo tão caro a ele. Por isso, é preciso estudar, ensinar e formar militância crítica em Gramsci. O meu empenho dos próximos meses e anos será o de defender esta visão.

O meu desejo dos últimos meses, e desde que ano passado desenvolvi grupos de estudos de Gramsci, tem sido o de estudar criar uma vanguarda a partir de Gramsci – sem esquecer Lênin (grande parte de Gramsci é uma “tradução” de alto nível ou tentativa de “traduzir” Lênin para seu tempo e espaço, mas Gramsci supera dialeticamente Lênin em assuntos primordiais), Rosa Luxemburgo, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, outros autores brasileiros e, INTRANSIGENTEMENTE, a defesa do tripé da obra marxiana e de Engels, tão esvaziada ou ignorada por (pseudo)marxistas e (pseudo)comunistas (a saber, a teoria do valor, a dialética e a perspectiva revolucionária, ou a crítica da Economia Política, a Filosofia materialista dialética e o socialismo).

A prática é o critério da verdade da teoria. O fato é que, enquanto teoria do partido, arrisco dizer que o marxismo-leninismo (mesmo o marxismo-leninismo-trotskismo, sendo vários camaradas deste rótulo do qual sou muito crítico, porque vejo como datado, bastante solidários e solícitos a mim) tem sido, não em sua totalidade, mas por si só, insuficiente, num impasse crítico – e, em certos pontos do nosso tempo histórico e espacial, mas não em sua totalidade!, anacrônico. Por muitos motivos que pretendo expor nos próximos meses e anos, sabemos que levam à burocratização e à centralização, ao invés da insistência na organicidade entre base e partido. Isso se deve ao pensamento dos russos (ou soviéticos) a partir de uma diferença basilar, que Gramsci viu bem, a respeito da teoria da revolução no Ocidente e mesmo a concepção de Estado entre os dois pólos. Gramsci elaborou uma inovadora e revolucionária teoria do partido enquanto centralismo orgânico, a partir da qual precisamos formar as novas gerações. Será difícil convencer os camaradas que já estão na luta e na militância desse fato, mas a minha argumentação, diante da realidade atual de conquistas e fracassos dos partidos de vanguarda, não é nem um pouco fraca.

É Gramsci — experiência revolucionária dos conselhos de fábrica; partido enquanto parte da classe, ao invés de cabide de cargos ou burocracia distante da base; intelectuais orgânicos; diferenciação entre marxismo ocidental / marxismo oriental; Estado ampliado e sociedade civil; guerra de movimento e guerra de posição; construção do nosso novo bloco histórico, (superestrutura-estrutura); estudo popular da filosofia da práxis (marxismo), que criará um novo senso comum e, criticando e superando a religião dominante, um progresso intelectual da massa; soldagem dos intelectuais marxistas e revolucionários com o povo-nação, etc. — o autor que pode resolver a crise de direção revolucionária que se arrasta há décadas e encontrará seu ponto decisivo nos próximos anos do “capitalismo tardio”, da extrema-direitalha e da esquerda insatisfatória, fraca e até liberalóide.

Vários partidos, legalizados ou não, do centralismo democrático ou de frentes, são simpáticos a este projeto de formação em Gramsci e de criação de intelectuais orgânicos. Obviamente, só até certo ponto, porque tal projeto ameaça cúpulas e a “pequena política“, tal como escrevia Gramsci. Entre os desafios, saber até onde a teoria do partido de Gramsci, bastante particular e ainda não testada na prática (eis outro motivo fundamental e positivo), seria tolerada ou aceita por eles. Um teste teórico-prático progressivamente, gradual… Entre os desafios, resolver a desagregação dos marxistas-gramscistas através da criação de marxistas-gramscistas integrados, mas não confinados na academia. Resta saber como e até onde irá minha/nossa práxis.

A atualidade de Gramsci

  • Atualidade de Gramsci” (1997), texto fundamental de Carlos Nelson Coutinho. É totalmente possível – e necessário – escrevermos um texto mais de 20 anos depois reforçando os pontos e adicionando outros mais que se fizeram evidentes a respeito da atualidade de Gramsci ao Brasil e mundo nessas últimas décadas.

Como começar a ler Gramsci?

Através de O Leitor de Gramsci, livro com escritos gramscianos pré-cárcere e no cárcere (divididos por temas), organizado por Carlos Nelson pela editora Civilização Brasileira. Também é muito importante adquirir o volumoso Dicionário Gramsciano da Editora Boitempo para consulta permanente! Os Cadernos do Cárcere não estão ainda completos no Brasil, mas Carlos Nelson e equipe fizeram amplo trabalho de tradução – são 12 volumes pela Civilização Brasileira. Todos estes estão na nossa pasta virtual do grupo! Um bom livro biográfico: Antonio Gramsci, o homem filósofo: uma biografia intelectual, de Gianni Fresu (radicado no Brasil), novo, lançado ano passado (2020). Os Prismas de Gramsci: a fórmula política da frente única (1919-1926), de Marcos del Roio, lançado em 2005 e com nova edição em 2019 (contra a direitalha e a extrema-direitalha?), serve (1) para pensarmos a fórmula política da frente única como uma estratégia revolucionária de fôlego ainda hoje e (2) apresentar o Gramsci corporificado, enquanto pensamento e ação, sem o abstracionismo costumeiro, pois é livro denso e histórico-político que trata concretamente de um período decisivo na vida de Gramsci e do movimento comunista – dos conselhos de fábricas à liderança no PCI, às voltas com a Internacional, até ser preso, período pouco explorado, ainda mais com profundidade e historicidade.

Como se sabe, Gramsci, apesar de talento para as Letras (cursou isto, inclusive), não publicou nenhum livro em vida – não teve tempo, pois, além da vida engajada atribulada de militante e depois de dirigente do Partido Comunista Italiano, logo foi preso pelos fascistas e morreu prematuramente. Escrevia textos para os jornais proletários. Na prisão, depois de muito pedir – sentiu a necessidade de deixar um legado – e sempre com o olho da censura sobre seus ombros, pôde escrever em 33 cadernos-brochura que hoje são chamados de Cadernos do Cárcere. Saiba mais neste relato importante aqui (“Antônio Gramsci, Chefe da Classe Operária Italiana”), escrito por Palmiro Togliatti, dirigente histórico do PCI e camarada de Gramsci.