Shakespeare foi tantos homens que mal sabemos alguma coisa de concreto a seu respeito – mas Ricardo III insinua que faz o papel de muitos e Iago diz: “não sou o que sou”. Hermann Hesse escreveu, numa página que já me esqueço, que um único homem abarca a humanidade inteira. Whitman, num de seus versos famosos, afirma que é contraditório, que é imenso, que há multidões dentro de si. O maníaco Charles Manson (que não merecia estar nessa enumeração) responde, encolhendo os ombros num vídeo viral do YouTube, depois de caretas múltiplas diante do ingênuo entrevistador oculto que quer saber “essencialmente” quem ele é: “Nobody, I’m nobody.” Eu, nas horas finais dessa madrugada, sou (ou penso ser) simplesmente Fernando, único, indissociável! Já me bastam os meus próprios fantasmas!… Não quero agora falsear, pensar em princípios budistas nem mesmo entrar nesses desvarios borgeanos… Não quero, como aquele outro, meu xará além-mar, depurar minha veia poética em seres de linguagem, em heterônimos vários desapegados de mim… Não, não neste momento, onde quero ser eu! Entre fascinado e cansado, rindo de mim mesmo ou amargando minha própria angústia, relembro da ilusão do próprio verbo “ser”, que não existe no tupi, nem no japonês, nem no hebraico, e que no russo é oculto… Minha gata se aproxima – “ser” apartado de mim! -, deita em minha perna nua, à mostra por fora do meu roupão, e adormece; apesar de sua personalidade, ela não sabe o que é a morte, não tem passado, não tem futuro, vive unicamente no presente, logo é eterna. Eterna?… Ah! E o que significa ser eterno? E o que significa ser?!… Recordo automaticamente o pensamento de Schopenhauer em seu mundo de vontade e representação, para quem um gato é todos os gatos: “Sei muito bem que qualquer um poderia me acusar de louco se eu seriamente assumisse que aquele gato brincando no gramado neste exato momento é ainda o mesmo que pulava e brincava há trezentos anos atrás, mas também sei que é um absurdo muito maior acreditar que aquele gato de hoje seja um gato inteiramente diferente daquele de trezentos anos atrás.” Chega!… O esforço, entendido por Espinosa numa de suas preposições, de que cada coisa quer perseverar em seu ser, é isso que há em mim, é isso que há em mim agora, entenderam bem?, sou, até onde sei, o Fernando que me coube, me agarro nisso, excessivamente individual, excessivamente individual, concreto; mas Espinosa não foi aquele que intuía e reivindicava o panteísmo?…
Olho a porta. Silhueta encostada no batente. É a Morte? Talvez depois dela eu compreenda tudo isso!… Não – com tantas asas esqueci do que tivemos há poucos minutos. Com voz de canastrão, lanço a pergunta no ar:
– De qual canto da minha alma é que surge a tua presença?
A silhueta dá um passo e acende a luz: configuração excessivamente individual e apartada – outra pessoa que não sou eu. Na escuridão, arquetípica, inconsciente, junguiana, somos todos um só. Debaixo da luz não sou o outro, mesmo que seja humano como eu, mesmo que seja (ou não) do mesmo sexo: diante daquela nudez toda na minha frente, não ligo para minha vasta e prodigiosa memória, onde a frase de John Donne – “Nenhum homem é uma ilha” – ecoa, aparece mas se dissipa, não me atinge neste momento. Sim, diante do outro encontrei eu mesmo, único, indissociável, singular, eu, euuuuuuu!
Mas novamente me confundem horror e maravilha ou simplesmente aceitação absoluta do mistério ou então pleno insight religioso quando minha companhia dá por encerrado o assunto, ao dizer simplesmente, num sussurro em tesão:
– No nosso orgasmo esquecemos de nós: la petite mort…
2.9.2017