Certo dia, quando eu estava entre a pré-adolescência e a adolescência, meu afetuoso pai (quando eu nasci, eu, filho caçula, “raspa do tacho” e “não planejado, mas que mudou a mãe totalmente” — parentes distantes sempre me definiram assim –, eu, nascido de uma recidiva entre eles e da traição da traição — gosto disso –, ele já estava aposentado e separado da minha mãe, mas nem por isso não presente) me apareceu com filmes do Pasolini (os quais guardo até hoje); depois, com ‘Traídos Pelo Desejo’, filme cult (para quem não viu, o espião da IRA – Irish Republican Army, apaixonado, descobre que a personagem é trans, é uma travesti, perdoem o spoiler, e meu pai adorava essa reviravolta), sem contar os vários livros que me presenteou com dedicatória e os quais ainda hoje guardo, desde que minha mãe lhe disse que o filho queria ser escritor; dele herdei também ouvir muito samba bom, muita “MPB”… Morreu em 2011. Sem saber, me “estragou”, e o agradeço por isso, porque o clichê, o padrão e o quadradismo são execráveis. Na verdade, deu-se conta, mas já era tarde, em seu ano derradeiro, insistindo para um amigo dele me arranjar um emprego, quando eu o ajudava; já disfuncional, no dia a dia, em seu apartamento de “classe média”, junto à enfermeira e minha madrasta, mas já era tarde… Só pude avaliar recentemente o impacto paterno a me forjar, agora beirando os 30, criando analogia entre isso e quem sou hoje, meus referenciais artísticos e estilo de vida não-ortodoxo. Em seu leito no hospital, em 2022, também minha mãe, que me criou solteira e na raça, viu o seu “estrago” quanto à minha formação, mas também já era tarde; em nosso último diálogo, ela, entre a consciência e a inconsciência, e sob a morfina, enquanto eu lhe dizia gentilmente coisas amenas de resolução final, como “Você me criou muito bem, foi uma ótima mãe”, ao que ela respondeu, com dificuldade, mas não sem comicidade: “Será?!”, e eu: “Sim, todos elogiam o seu filho”, para então ela arrematar: “Fui liberal demais…” Somam-se a eles minhas professoras de português, história e filosofia das escolas públicas que frequentei, sempre elogiosas às minhas redações, e uma prima de segundo grau, professora, que me deu várias coleções de livros basilares da literatura, que suas sobrinhas usaram apenas para vestibulares e logo dispensaram.
Perdeu pai e mãe tão cedo,que pena.Eu tenho quase 59 anos e minha mãe continua viva,graças a Deus.