Maquiavel – sempre muito bem vendido, sobretudo em momentos mundiais como esse pelo qual passamos – ensinou, em O Príncipe, que cabe a um príncipe (hoje em dia, chefe de Estado ou governante em geral) ser temido e amado. O ideal, afirma, é ser ambos, mas, entre um ou outro, melhor ser temido.
Bolsonaro é ambas as coisas: amado por uma tribo muito reduzida que irá se extinguir (tal como os colloridos e os “aécistas”, e quem sabe até seu PSL não passe de um fenômeno eleitoreiro, passageiro, como o extinto PRN, Partido da Reconstrução Nacional, do Fernando Collor), mais ou menos “amado” por milhares de eleitores iludidos em lua-de-mel, que, já antes da posse, está por um fio, e temido até mesmo por um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (o que seria de nós, então, reles semi-cidadãos?!), que, em seu Twitter durante o segundo turno, declarou que, “pela primeira vez em 32 anos de exercício do direito de voto, um candidato me inspira medo”, declarando voto em Fernando Haddad. Temido menos por si só, pois é um bobo da corte que presta continência para qualquer um, temido mais pelas mexidas extremas na economia, que assombram a maior parte de nós, de classe média para baixo, e pelo aparato repressivo do Estado, já que tanto elogiou a ditadura e se cerca de militares, e do que pode vir com ele e sem ele, se levar um pé na bunda de Mourão e cia. (Indiscutivelmente, convenhamos, não é amado como um Lula: o único líder capaz de encher tanto a Avenida Paulista quanto o Nordeste, amado como líder sindical, depois como presidente, depois como ex-presidente, amado nos momentos mais crepusculares e mais solares de sua trajetória, o único amado tanto por intelectuais dos quilates de um Antonio Candido e de um Noam Chomsky como pelo povão, o único que, mesmo da cadeia, despontava em primeiro lugar nas intenções de voto com SESSENTA POR CENTO! Lula, aliás, sempre foi temido apenas por irracionais e anticomunistas direitofrênicos, até por setores da elite e por adversários direitistas, não pelo povo – que o enxergava ou o enxerga como orgânico -, e agora é temido por eles pelo seu retorno e libertação à lá Mandela.)
Mas há uma terceira fileira de pessoas que sabem que o ex-capitão, ainda que pilantra e politiqueiro, é um paspalho, que seu desgoverno já é um fracasso econômico, político e social, por causa das escolhas, das declarações, das brigas internas e externas e da plataforma de governo (quem fala em “torcer” desconhece a plataforma, acha normal não ter havido debate no segundo turno), o que nos leva também a Aristóteles, cuja Poética, ainda que tenha nos chegado incompleta, ensinou bem a diferença dos conceitos filosóficos/literários entre a tragédia e a comédia.
A tragédia é a história de um homem tão cumulado de virtudes e qualidades que prefere morrer a viver sem honra. Mesmo com a segunda parte da Arte Poética perdida, justamente aquela que conceituava a comédia (fato histórico, um dos grandes mistérios da antiguidade clássica que deu brecha para aquele famoso romance best-seller do Umberto Eco), Aristóteles nos adiantou, no finalzinho da parte sobre a tragédia, que a comédia seria exatamente o oposto daquela: a história dos homens não-virtuosos e cheios de defeitos.
Foi assim com a tragédia de Édipo. É assim com a comédia de Bolsonaro, ao contrário.
Édipo ouve de um adivinho que há uma peste sobre Tebas, que as pessoas estão morrendo, porque alguém cometeu um crime, alguém matou o próprio pai e se casou com a própria mãe. Não sei quantos anos antes do moralismo cristão, esses temas já eram chocantes para os gregos e pagãos.
Desesperado, Édipo, o rei, ordena que procurem este homem imediatamente e até às últimas consequências.
Triste ironia! Todos vocês devem conhecer o desfecho… À medida que avança na busca, aproxima-se de si mesmo: o menino abandonado num pântano é ele, ele foi o assassino do próprio pai, sem saber, e a sua esposa é justamente a sua própria mãe.
Catarse! Terminado a busca que descamba em si mesmo, dá o golpe final: numa das cenas mais marcantes e arrepiantes de todo o Teatro, fura os próprios olhos, prefere morrer a viver sem honra: é um trágico por excelência.
A tragédia de Hamlet também é assim: o jovem honrado, rodeado da gente baixa e corrupta de Elsinore, que morre justamente quando começa a praticar as mesmas vilanias dos vilões, em sua sanha por vingança pelo assassinato do pai.
Se, no entanto, Édipo tivesse feito o contrário disso, terminado a investigação quando ela chega em si, ou mandado buscarem em outro lugar qualquer, ou dito que não houvera assassinato algum, que não é por isso que as pessoas estão morrendo de peste, se mentisse, estaria livre e, na concepção aristotélica, podemos dizer que seria um cômico.
No Hamlet, o tio usurpador e réprobo é o não-virtuoso e “cômico”, em tons de farsa. Assim foi muitas vezes representado no teatro e no cinema, como um sacana que não vale nada, sem escrúpulos, e mesmo Shakespeare o pinta como um beberrão, luxurioso. O príncipe Hamlet, que durante a peça vai mudando seu espírito em luto, primeiramente melancólico, para momentos de puro escárnio e fina ironia (ácida), se dissesse que o fantasma do pai está errado, que aquele nem era o fantasma do pai, que não vai procurar vingança coisa nenhuma, que o tio não é corrupto nem assassino nem ilegítimo, que a sua mãe não é adúltera, incestuosa nem conivente, que não quer o trono que é seu de direito, que Elsinore é um paraíso, que não, não há nada de podre no reino da Dinamarca, seria cômico, mas, por saber que tudo isso é verdade – uma verdade atroz que se sobrepõe aos seus princípios éticos mais nobres -, é trágico por excelência…
E Bolsonaro? Todos seus assessores ou ministros ou aliados são ou corruptos ou incompetentes ou destruidores de vários setores do Brasil: politiqueiros, malucos, aloprados, espertalhões, ruralistas, latifundiários, fundamentalistas, neoliberais, extremistas, fisiologistas do mais do mesmo, gente sem experiência na administração pública da alta burocracia federal etc. etc. etc. Na frente disso, ele próprio, parlamentar infecundo há 30 anos, encabeçando a trupe, como um pau-mandado. Sem falar nos filhos, que criou feito crápulas inconsequentes…
O que ele faz, entre a escolha da tragédia e da comédia?
Se ele eliminasse o confesso Onyx e todos os outros quatro ou cinco ministros investigados por corrupção, se não seguisse o charlatão descolarizado e folclórico Olavo de Carvalho, se recusasse seu “chanceler” absurdo e seu ministro colombiano da deseducação, se não aceitasse Moro para o “super” Ministério da Justiça, pois este é oportunista e não nasceu para ser coadjuvante, é capaz de vários abusos de poder, se soubesse que o ultraneoliberalismo de Paulo Guedes, o “super” ministro da economia terraplanista (repetindo o erro que Collor fez com a Zélia Cardoso), vai provocar um arrasa-quarteirão nos serviços públicos do Brasil e quebrar o país, se dissesse que não quer que o Brasil torne-se uma terra arrasada, se trocasse o Levy, porque, realmente, já tinha sido um erro a Dilma colocá-lo lá, se, de repente, dissesse que não, que o armamentismo e o Estado policialesco não vão resolver a violência, nunca resolveram, que o grosso da violência tem que ser combatida com a socialização dos meios de produção e transformação urbana e fim da pobreza e da desigualdade socioeconômica (como bem apontou o Atlas da Violência), se desmentisse a si mesmo, dizendo que não, que os índios não querem ser como nós, que eles têm pleno direito à sua própria terra e seu cultivo, que os ruralistas devem ser sustentáveis, ao invés de quererem lucro passando por cima de quilombos, áreas de preservação, demarcações indígenas e do próprio meio ambiente, que as mudanças climáticas são questões fundamentais, hoje, para não sermos um pária, que a educação deve ser democrática e plural e crítica, não só técnica, tampouco cívico-militar, que o imperialismo americano não deve ditar o rumo do Brasil (deixando de ser, portanto, um patriota de araque), que é preciso tirar dos bancos e dar para os previdenciários, se passasse para o lado da enorme massa que está na informalidade e abandonasse os interesses escravagistas dos megaempresários, se dissesse que o povo brasileiro merece uma revolução tributária e bancária ao invés de menos direitos sociais e trabalhistas, se contrariasse o mercado e a elite financeira nacional e internacional em favor de todos nós, se soubesse que seu extremismo direitista e seu ultraneoliberalismo não dão certo e terão de ser resolvidos pela social-democracia, se, de repente, contra tudo e contra todos, tentasse, pelo menos, não digo nem uma revolução socialista, mas um Estado de bem estar social, seria um trágico, mas colocaria seu nome na História do Brasil, não na linhagem que ficará, a do doido Jânio Quadros, nos anos de 1960, e do desastroso Fernando Collor, no início dos 1990.
Faria, aliás, como o ditador hitlerista do Chaplin, que, no final, diz o famoso, emocionante e genial discurso humanista que subverte todo seu comportamento durante todo o filme. Acho que Chaplin quis, mesmo, usar essa dicotomia em Aristóteles da forma como aqui coloco, ou terá sido inconscientemente?
O que Bolsonaro prefere fazer? Nada disso. Vai na contramão disso tudo. Permanece vicioso, dizendo o oposto do que é óbvio, seguindo em frente, como um serviçal cego a isso tudo, achando que está tudo mais ou menos perfeito, que ele e os seus vão salvar a nação com esta plataforma de desgoverno.
Um cômico caminhando para a sua tragédia, capaz de ter dito, dias atrás, que, se afundar, o Brasil iria junto com ele. Ele mesmo já sabe do fracasso.
Portanto, não há possibilidade de se escrever ou falar sobre Bolsonaro a não ser de maneira cômica, ainda que traga muitas tragédias econômicas (nada cômicas), sociAIS! e políticas … a serem resolvidas por nós, pelo povo brasileiro, movimentos sociais e estudantis, partidos de esquerda e oposição na Câmara e no Senado, cada um de nós ou – ai de nós, ai do Brasil! – pelo FMI, Banco Mundial e o Federal Reserve…
5 de dezembro de 2018