Sinto que minha mãe só tem dias ou poucas semanas de vida: mesmo com a memória espantosamente intacta, cada vez mais precisa fazer esforço para falar, come praticamente nada do hospital, dificuldade de mastigar, sem apetite, olhos a maior parte do tempo vidrados, definhando. Câncer terminal. As duas únicas formas atuais mais fortes de combater o câncer, quimio (ela fez 4 sessões antes da internação) e radioterapia, só lhe trariam mais reações sem resultados de reversão do quadro; enquanto isso, os tumores continuam marchando, espalhando-se e não param. Estamos lhe dando conforto, cuidando, realizando possíveis desejos, etc.
Alivia lembrar que ela sempre me dizia que preferia morrer a ficar dependente numa cama… Também é inacreditável a sua força de resistência e lucidez – o oncologista achou semana retrasada que ela viria logo a óbito, e se surpreendeu ela ter durado muito mais; outra oncologista disse que, no estágio em que ela está sob cuidados paliativos, não é comum manter a memória que ela mantém, sobre situações e coisas recentes, depois desse tempo todo e ainda responder normalmente às pessoas. Classificou isso como “milagre” (palavra rara na fria e realista oncologia). Há quem diga que são as orações e correntes que centenas de pessoas mandam. Atribuo isso à sua força de vontade de querer retomar sua rotina, levantar da cama, ir para casa, não se entregar. Informo a todos que, embora eu chore e preveja sentir incomensurável falta da minha mamãe (por exemplo, sou novo e fico pensando quanta coisa de valor farei e ela não verá ou não poderei compartilhar com ela), sempre tive conversas muito francas com ela sobre a vida e a morte, e no leito confirmei que ela quer ser cremada. Tudo isso me prepara bastante neste processo de luto, assim como o espiritualismo dela mais o meu materialismo.
Além do fator genético (pai que teve tuberculose), os mais próximos sabem que ela era tabagista de marca maior desde os 14 anos de idade (hoje tem 61), fumava muito (só parou em dezembro, determinada, e por insistência minha ao vê-la indo fumar quando tinha crises de tosse — este foi o primeiro sintoma significativo, que ela negligenciou, mesmo com meus pedidos para ir ver do que se tratava a tosse anormal, mas também por conta das dificuldades de atendimento durante a pandemia, depois o emagrecimento absurdo, tudo isso em questão de meses ou um ano –, e colei até o último adesivo de tratamento de nicotina nela, já internada, dando-lhe os parabéns).
Considero importante dizer que, se antes eu achava exagerada a (recente) campanha de conscientização dos malefícios do cigarro, depois de ver o que as toxinas fizeram com minha mãe, vibro que se intensifique, sem ares de moralismo ou de culpabilidade, mas por questão de saúde pública, sem deixar de notar que há muita hipocrisia com relação ao álcool, muito mais aceito, porém tão ou mais destrutivo a si e aos outros, se em excesso e vício.
Aos fumantes, vale a máxima “é melhor prevenir do que remediar”: que não só parem ou diminuem, tratando a ansiedade e outros motivos subjacentes ao vício ou hábito, mas principalmente que façam exames periódicos, sobretudo de pulmão, e espero que a oncologia, no geral, avance nas próximas décadas a ponto de reverter quadros avançados dessa mortífera doença, cada vez mais comum no mundo todo e em todas as classes sociais, que começa silenciosa e, quando descoberta, já encontra-se implacável e veloz.