Estou pensando em escrever um livro (vários) tão estupendo!… (São tantos livros na minha cabeça, alguns já iniciados e inconclusos! Uns experimentais, outros mais tradicionais… Poesia, prosa, desprosa. “Terra e Flutuação: Brasília” deve sair logo no primeiro semestre de 2018, por uma grande editora, por uma editora cult, ou do meu próprio bolso.)
Mas esse é diferente. Um romance (ou peça? ou novela?) passado nas horas finais do século XIX, na biblioteca do casarão do sinhô Marco Polo Foster (encontrei esse nome numa notícia muito antiga do acervo do Estadão; era um bandido da época! rs), senhor que é acompanhado o tempo todo por seu último escravo remanescente, Pancrácio. Todos os outros escravos o deixaram, inclusive a cozinheira. Pancrácio ficou por não ter para onde ir, provavelmente por ser jovem, e ainda ganharia uns trocados. Nutre grande respeito por seu amo.
(A Lei Áurea, de 1888, e o fim da Monarquia desestabilizaram completamente a elite brasileira. Machado de Assis, nos contos e romances, retratou muito bem essa gente em decadência, essa classe decadente e elitista completamente infecunda, sem grandes projetos para o país e que nunca trabalharam, agora desesperados numa sociedade movida pelo fim da escravidão e pelo dinheiro, portanto ele servirá como influência para o livro. Lembremos também que o desprezível D. Pedro II, junto com os sempre pérfidos ricos fazendeiros, ruralistas e escravistas — antepassados desses que hoje atrasam lá no Congresso e noutros poderes –, faliu o Barão de Mauá, homem branco raro, que tinha um grande projeto de industrialização nacional; projeto que, como no exemplo americano, acabaria de vez com a escravidão e com a monarquia, impulsionando o Brasil num novo rumo, o que acabou acontecendo de forma atrasada, deficiente e sem qualquer planejamento nacional adequado.)
A filha do sinhô, garota mimada, rude, niilista, depois de chorar copiosamente aos pés do pai, acabou casando com um bom partido de uma família melhor situada na República incerta e naqueles primeiros passos do capitalismo brasileiro, mas será sempre infeliz e agora o despreza. O filho mais novo, poeta, sonhador romântico, sempre descolado da realidade prática, vê os seus projetos pessoais minguarem, vai pedir emprego para um tio velho, major que mora longe, sentindo-se completamente humilhado — bocas futuras dirão que ele não encontrou nada mais do que perdição mundana… O filho do meio, decidido, foi procurar fortuna em Nova Iorque, mas é provável que só tenha encontrado miséria e fracasso ou que tenha se alinhado com anarquistas, comunistas, socialistas europeus… O sinhozinho mais velho, típico playboy branco que tem imenso pavor da palavra trabalho (bom, até eu tenho, em minhas crises aristocráticas anticapitalistas), uma espécie de Leôncio, acaba de chegar de uma viagem divertida no exterior e também se desespera ao ver que o país mudou e que o pai está completamente arruinado. O banqueiro da família envia diversas cartas notificando urgentemente que não tinham mais do que alguns poucos contos de réis e que estavam em completo perigo. Sobraram só as terras abandonadas, as posses difíceis de se desfazer, o casarão… Nenhum amigo bajulador, nenhuma ajuda. Todos viraram as costas. O filho então desaparece da casa em busca de alguma solução mirabolante, dizendo que vai inventar isso ou aquilo, como um patético Brás Cubas, já que não quer arranjar um casamento rico, nem ir achar fortuna em Nova Iorque, muito menos procurar emprego: pode ser que simplesmente se suicide com um tiro na cabeça diante dos instrumentos de tortura que usaram contra os negros.
Esse é o contexto superficial, romancesco, embora seja pungente: talvez tudo isso transcorra em capítulos curtos e intercalados, como Machado fazia. A grande obra se encontrará depois, talvez nos diálogos metafísicos do senhor já solitário, decadente, apenas com seu escravo, naquele lento entardecer dos finais do século XIX anunciando já a aurora do século XX… Diálogos que guardam a essência de um Fernando Pessoa ou de um Jorge Luis Borges.
O patriarca poderia fazer como o protagonista na última cena do último filme do Tarkovski: numa espécie de sacrifício, queima sua casa enquanto todos discutem suas vidinhas.
Ou então algo muito melhor, numa espécie de quebra brusca de estilo literário, em forma mais moderna e longa, depois dos capítulos curtos romancescos e dos diálogos metafísicos, algo kafkiano : repara que, assim como sua própria classe social, como sua própria vida, a casa também está instável, insegura, com rachaduras, ameaçando despencar; começa então a construir uma nova do lado com o material da antiga. Na metade do trabalho, Pancrácio morre de exaustão e o pobre senhor, percebendo que tem uma casa meio demolida e outra semi-edificada, ou seja, nada, enlouquece e cava seu próprio túmulo entre as duas residências.
11 de novembro de 2017