Texto em construção?
“[…] Convencidos, finalmente, de que a libertação de nossa raça, foi unicamente devida ao esforço popular, sem influencia do governo nem do throno, que mandou espingardear os nossos irmãos que sahiam das fazendas […]” – Trecho (até então inédito, não fosse por mim?) de protesto de libertos e republicanos contra recrutamento para a Guarda Negra da suposta “Redentora”, Provincia de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo, 30 de janeiro de 1889. Fonte: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18890130-4149-nac-0002-999-2-not
Não tenho televisão e não assisto telenovelas, mas, na quarentena da sindemia ou em temporada em Santos, passando para lá e para cá no apartamento de minha mãe [P.s. de 2023: saudosa mãe, que já se foi], involuntariamente dou umas olhadelas na TV, e ela mesma me faz perguntas históricas de acordo com o que é apresentado, ainda que em ficção, mas tratando-se duma ficção histórica ou “de época”.
Há muito tempo, antes mesmo da telenovela, eu queria escrever sobre tais temas e figuras da história do Brasil, sobretudo neste momento de tanto revisionismo à solta, em que é preciso resgatar a veracidade dos fatos, desmistificar, refutar, clarificar. Aproveito o ensejo.
Sempre tive muita dificuldade em comprar a imagem de abolicionistas do d. Pedro II e da Princesa Isabel, em detrimento de eminentes vultos, heróis e personagens (sobretudo de cor de pele negra) do próprio movimento abolicionista e republicano, como Luís Gama, André Rebouças, Silva Jardim, José do Patrocínio (que traiu a própria etnia por causa da Guarda Negra e da defesa da monarquia, conforme veremos mais adiante) e outros fervorosos e verdadeiros combatentes da causa nas ruas, tribunas, conferências e imprensa… O senso comum ainda pensa que a Abolição se deu do dia para a noite pela “caridade” dos monarcas, do alto, quando, na realidade, o movimento abolicionista foi um processo de lutas de décadas e séculos, diário, sobretudo dos cativos e rebeldes. Muitas vezes, há quem tenha a audácia cínica de retratar a família real embolorada, dum sistema socioeconômico carcomido, odioso e podre, como desgostosa da permanência tardia da escravidão no Brasil, que envergonhava o mundo “civilizado” (não menos pérfido, e sim industrializado, portanto necessitado de nova massa internacional de trabalhadores assalariados e consumidores de bens, sobretudo a Inglaterra), retratando tal família como praticamente resignada e impotente diante dos latifundiários exploradores, que necessitavam do braço escravizado; ora, a esse reducionismo histórico, a essa inverdade de imprecisão históricas veremos, com provas e registros, que o movimento abolicionista e o republicano cresciam cada vez mais e ganhavam mais e mais adesões importantes nas décadas finais do Segundo Império, não só dos próprios negros e mestiços ativistas, dos filhos e netos do escravagismo obsceno, mas igualmente de setores da elite pelo país, de liberais no geral e fora da corte do Rio de Janeiro. A tais movimentos, a princesa regente, ou antes seu esposo estrangeiro conde d’Eu, tendo o então velho Pedro II impossibilitado de continuar no trono por debilidades (inclusive mentais), no afã de engatarem um terceiro reinado tirano (esta é a expressão dos jornais da época diante de milícias e repressão), a princesa e o esposo trataram de reprimir com violência, chegando ao limite de arregimentar ex-escravizados iludidos para isto (com a tal “Guarda Negra”, conforme veremos, embasados em documentos).
Lembremos, a priori, da Lei Aberdeen, aprovada na Inglaterra no ano de 1845 e declarando piratas os navios negreiros brasileiros. Há suficiente historiografia a respeito. Essa lei “para inglês ver” autorizava que britânicos — cuja classe dominante tanto faturou com mercado de escravizados e com as colônias — prendessem qualquer navio suspeito de transportes escravizados no oceano Atlântico. Tratou-se, portanto, de duro recado ao Brasil. Não fosse tal lei, os navios negreiros, cujos horrores aprendemos na escola por meio da poesia engajada de Castro Alves, persistiriam por mais e mais tempo! Em 1850, é assinada na legislação brasileira a Lei Eusébio de Queirós, proibindo o tráfico de escravizados para o Brasil, e todo historiador sabe que isso se deu não pela caridade de conservadores e monarquistas brasileiros, mas também sob pressão utilitarista da Inglaterra industrializando-se (inclusive com o ouro roubado do Brasil por meio da colonização portuguesa), isto é, duma burguesia ascendente, necessitada de nova massa assalariada e consumidora de bens de países de “capitalismo periférico” e que haviam sido colonizados. Não é fácil sopesar qual lado dominante foi pior, mas, ainda assim, o vil açoite resistindo a qualquer ideia de libertação dos negros carimba qual lado representava maior atraso, naquele momento específico, a ponto dos resquícios de tal atraso estarem visíveis ainda hoje em nossa sociedade. Ora, de 1845 ou 1850 a 1888 correram décadas, o que comprova o quanto as desprezíveis classes dominantes nacionais postergaram a abolição por anos, mesmo com a pressão capitalista externa e mesmo com a pressão do movimento abolicionista interno! Volto a repetir que isso se deu, entre outros motivos estruturais e conjunturais, porque a monarquia brasileira era sustentada pelo latifúndio espoliativo, que, por sua vez, dependia do trabalho escravizado, sendo conveniente para a monarquia brasileira, inclusive, minar projetos de industrialização (tais como o do Barão de Mauá, falido propositalmente), que criaram nos outros países o trabalho assalariado, ou seja, uma mudança econômica libertadora da escravatura levaria à derrocada de todo um sistema político que sequer enfrentara, aqui, revolução (como houvera na França em nome da República ou mesmo em países vizinhos, quando tornaram-se independentes) ou opulenta guerra civil (como nos EUA) para tal.
É verdade que no princípio de 1867 o imperador pede a seu gabinete proposta de discussão a ser enviada ao Legislativo para um prazo com relação ao fim da escravidão, porém isso ocorre num momento de crise internacional: com o fim da Guerra Civil Americana (1861-1865) e da servidão nos EUA, diversos registros e fatos comprovam que aumentaram as pressões internacionais para que o Brasil, como último país independente da América a mantê-la, pusesse fim à instituição. O próprio Pedro II abriu as portas do país para escravagistas dos EUA derrotados… Não nego que o movimento de D. Pedro II tenha recebido protestos lamentáveis ou chocantes, inclusive do escritor e político José de Alencar, então do Partido Conservador, que via utilidade na escravidão e que ela deveria ser superada “naturalmente” ao cabo de anos ou até séculos, conforme pesquisas e cartas só colhidas nas últimas décadas revelam.
Pesquisa rápida como esta que fiz, porém arrasadora e eficiente de notícias e registros da época (alguns inéditos, que historiador ou pesquisador nenhum colheu antes e trouxe à tona), portanto que destoa de qualquer revisionismo barato, atesta e fornece estofo para aquela relatada dificuldade, tal como mostrarei neste texto que merecerá maior aprofundamento em outra ocasião. Espero que ele forneça uma série de esclarecimentos fundamentais e destrua mitos.
Não posso deixar de notar, antes, que é de espantar que a emissora da Família Marinho, em pleno momento em que “neomonarquistas” anacrônicos pintam vez ou outra por aí, inclusive um dos descendentes parasitas na República ressuscitando enquanto deputado federal, queira retratar a família real como núcleo principal de uma telenovela. A troco de qual mensagem ou lição histórica ao público?! Assinala-se que a própria Rede Globo é “imperialista”, enquanto detentora de monopólio de TV, rádio e jornal impresso, ainda mais se pensarmos que o Rio de Janeiro, onde um dia fora a corte, é dominado pela Rede Globo dos quiosques da praia até à vida cultural e jornalismo. Aliás, o próprio patriarca da empresa, já falecido, foi ele mesmo, por décadas, sobretudo durante a ditadura empresarial-militar, uma espécie de “imperador” capitalista deste país…
Ainda hoje, em descompasso com a cultura deste século, perderam o bonde da história, mesmo da (tele)dramaturgia, que deveria seguir a corrente do retrato da luta raiz, para, ao invés, continuarem com um público fútil, obcecado por fofocas “reais” (tais como a dos tablóides britânicos), núcleos familistas à lá século 19, e tramas-clichês, bem compatíveis analogicamente com o modelo televisivo de “Hollywood” brasileira do brejo, que também já ficou para trás.
Justamente num momento em que é lançado no cinema, infelizmente sem a mesma projeção, filme sobre o grande Luís Gama, este, sim, um personagem inspirador!…
A verdadeira personalidade política de D. Pedro II e de Isabel I
Este tópico merece um tratado mais aprofundado com pesquisa histórica ampla, inclusive porque os livros históricos e as biografias mais conhecidas são omissos ou pouco cavados. Eu mesmo já pensei em escrever um livro a respeito, o que demanda cavucar demais. Dito isto, aqui teremos apenas resumo e esqueleto introdutório:
Dom Pedro II
À esquerda e à direita, rememoram que a nossa República nasceu de um golpe, no sentido negativo do termo. Trata-se de uma noção simplista. Antes de mais nada, a título de teoria política, existem enormes diferenças entre a República militar e a República civil. De fato, houve um golpe do alto escalão militar, mas a queda do regime monárquico ocorreu por diversos fatores, que incluem interesses liberais, perda de legitimidade e a queda do regime escravocrata que o sustentava pelo latifúndio. A acuidade histórica, por sua vez, faz a devida divisão entre a República Velha (1889-1930) das oligarquias e a construção do que se pode chamar de Estado brasileiro tal como o é hoje, conjuminada a um processo gradual de lutas e conquistas por parte das parcelas organizadas do povo trabalhador inseridas em lutas de classes com a classe dominante.
No entanto, costumam esquecer ou omitem que o Império do Brasil surge também de um golpe, que eu recordo ter inscrito nos livros didáticos quando estudei história do ensino fundamental ou médio: o “golpe da maioridade” de Dom Pedro II. Há grande historiografia a respeito. Se, por um lado, tal golpe ajudou a unificar o Brasil, por outro isso se deu, por parte dos dirigentes e tutores do adolescente real, através de repressões e contenções de rebeliões e protestos vários, alguns dos quais em busca já do estabelecimento de uma república, o que só ocorreu tardiamente.
O sr. D. Pedro II parece evocar temperança, que logo cai em sonolência e monotonia, típicos da indolência elitista. Seria preciso, entanto, investigar com espírito desarmado o quanto essa personalidade fazia parte menos de sentimentos e intenções altas e mais da síntese da indolência da elite brasileira. Não há dúvidas de que tinha cultura, tanto quanto privilégios. Porém, mesmo quando tento considerar a hombridade pessoal de Pedro II e a estatura que a direita revisionista tenta lhe atribuir, seja como suposto “estadista” (do que, se não levou à frente sequer um projeto de industrialização, pois isto acabaria com a mão de obra escravagista, logo com a coroa?!) ou mesmo como “intelectual” (de obra intelectual nenhuma), sabendo, entretanto, de antemão (justiça seja feita) que ele passou muito, muito longe dum proto-nazista feito o Leopoldo II da Bélgica e sua devastação genocida no Congo, a tentativa é minimizada ao lembrar-me, indignado, da escravidão cotidiana no Brasil de então, mantida vergonhosamente até o quanto se pôde pelo sistema de um imperador rodeado de latifundiários escravagistas e, conforme veremos, nomeador direto de gabinetes não só conservadores como pró-escravidão; ao revigorar em mim o absoluto anticlericalismo; e, por tabela, também por minha postura antielitista e anti-monárquica, sistema de castas.
Como era o imperador retratado em seu próprio tempo? É isto o que deveria ser levado em conta, antes de tudo. Conforme caricaturas da época atestam (e os chargistas captam o momento na crista da onda, como nenhum outro artista ou intelectual, que necessitam o distanciamento histórico), Pedro II era um contumaz distribuidor de títulos de nobreza e de cargos, partícipe direto e intermediário de processos de corrupção, clientelismo, manipulação eleitoral, benesses, “toma-lá-dá-cá” e correlatos, junto aos parlamentares e outras figuras das franjas ou do centro da corte. (Há um cordão umbilical entre tais práticas e o famigerado “Centrão” do Congresso Federal contemporâneo.) Este o legado político da monarquia no Brasil, que se manteve na República, além da escravidão obscena de séculos, ainda que já extinta, mas com resquícios inegáveis e sem tempo cronológico equivalente de completa cicatrização e resolução, oriunda primeiramente dos processos desprezíveis e sanguinários da colonização europeia e suas navegações monumentais.
O comércio de comendas, corrupto, realizado sob anuência do imperador, era forma sabida de aumentar as receitas e de manipulação política do governo no Segundo Reinado. Não sei até que ponto a telenovela, formato muito aprisionado ainda a clichês de protagonistas bonzinhos (mas Pedro II destoa desse modelo) e, do outro lado, vilões (mesmo que tenha, em produções das últimas décadas, pulverizado tal maniqueísmo e atribuído maior complexidade às personagens), mostra este fato e conduta política do Segundo Império. Talvez os retratos cinematográficos do imperador tenham sido um tanto quanto mais fidedignos do que este da TV, mas isto é assunto para outro texto. Pela olhadela que dei em uma ou outra cena na TV, parece que retratam certos políticos como pérfidos antiabolicionistas (não sem humor), enquanto o imperador, cheio de intenções honestas, sobretudo quanto à abolição, cercado por torpes e aproveitadores, quedaria impotente e frustrado. Não deixam de retratar seus casos de infidelidade, mas isto é já corriqueiro em todas as cortes nobres, que fingiam se suceder honestamente por meio do sangue ou que fingem família “tradicional”, sempre de fachada… A realidade política foi bem diferente, no entanto: Pedro II era conivente e complacente, para dizer o mínimo, porque não consta que tenha tido ação enérgica ou mesmo de inegável reformista.
Foi conservador, nem sequer liberal, possivelmente até reacionário. O episódio em que demitiu, em 1868, o gabinete liberal de Zacarias de Góis, formado pela Liga Progressista, substituindo-o pelo Gabinete Itaboraí montado pelo Partido Conservador, rendeu-lhe a acusação de bonapartista por parte de grêmios e jornais mais liberais (cf. Alfredo Bosi, O teatro político nas crônicas de Machado de Assis, São Paulo, IEA/USP, Coleção Documentos, Série Literatura, 2004, p. 1).
Joaquim José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí, que chefiou o gabinete conservador, era contrário à Lei do Ventre Livre antes de sua promulgação!
Conforme escrevi — quando ainda era adolescente, anos e anos atrás — no verbete biográfico de Machado de Assis na Wikipédia, o notável escritor, atento a seu tempo, e que mais tarde em seus contos e romances da maturidade retratará o liberalismo que convivia com a exploração do regime escravocrata, testemunhou aquela situação com simpatia aos não-conservadores e contra o despotismo e o clero (ibidem, p. 2). Aliás, monarquia pressupõe clero e toda sorte de teocracia que lhe segue. Quanto a esse aspecto não quero me alongar, porque as críticas são vastas e mereciam rigor específico, não só nos costumes hipócritas, inclusive no âmbito educacional, que só começara a experimentar reivindicações decentes com a República civil e a sua (trepidante) participação popular. (Há uma charge na Revista Illustrada em que no quadro de uma lousa de sala de aula aparece, enquanto matérias de ensino, rezas e correlatos, ao invés de conteúdos formativos.)
Pedro II continuou com o sistema de trocas de favores e benesses e com a corrupção do comércio de comendas até o fim da vida, haja vista que esta seção inicia-se com charge de 1867 e, mais abaixo, temos a caricatura de 1885, em que, vestido de Papai Noel, Pedro II, já bem mais velho e de barba branca, distribui presentes ao Gabinete do Barão de Cotegipe do Partido Conservador.
Ora, João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, foi um dos cinco senadores desprezíveis a votar contra a aprovação da Lei Áurea! Não pelas insuficiências de tal lei, que veremos mais adiante, e não só por interesses socioeconômicos dos mais sórdidos e anacrônicos e atrasados, mas também porque sabia que a tal lei precipitaria o fim da monarquia caduca e calcada no latifúndio. (Afinal, ele teria dito à Isabel: “A senhora acabou de redimir uma raça e perder o trono!”. Fontes: Carlos Penna Brescianini, «Há 131 anos, senadores aprovavam o fim da escravidão no Brasil», Agência Senado, 13 de maio de 2019, Senado Federal do Brasil, consultado em 29/10/2021; Carlos Lopes, «A formação do abolicionista Rui Barbosa», Hora do Povo, consultado em 29/10/2021.)
À guisa de analogia com ícones atuais, que atravessa tempo-espaço para ajudar a compreensão, há distância entre Pedro II e um Temer ou um Sarney, guardadas as enormes diferenças de sistema e época, porém nos liames institucionais e postura política há alguma espécie de cordão umbilical oligárquico, é difícil ver grande distância entre o imperador e um dos dois citados…
Segundo minha mãe, a telenovela o pinta como um amigão dos escravizados… Isto o que mais me indignou. Não vemos embasamento concreto neste retrato de Pedro II, considerando que, segundo conta Décio Pignatari, para quem Pedro II seria um dos agentes do atraso do Brasil e especificadamente do Rio de Janeiro, o imperador ganhava percentual por cada peça de escravizado vendida, ou seja, ele engordou, junto com a classe dominante latifundiária que lhe rodeava, em cima do criminoso e indecente trabalho escravizado. Não temos notícias ou registros de grande convocação ou escusa ou pronunciamento de Pedro II contra a escravidão. Conforme escrito anteriormente, em 1867 o monarca pede ao gabinete que se discuta um prazo para o fim da escravidão junto ao Legislativo; não tratava-se de iniciativa originalmente própria, mas das pressões da burguesia internacional após a Guerra Civil Americana e com a industrialização acelerada na Inglaterra. E, mesmo assim, recebeu críticas e protestos de conservadores — um dos casos mais lamentáveis é o do escritor e político José de Alencar, conforme atesta sua correspondência.
Nunca é demais frisar, para além de críticas personalistas, que a monarquia no Brasil estava assentada sobre o latifúndio, que necessita do braço escravo, portanto sem o qual a coroa sucumbiria (como de fato veio a acontecer por este e diversos outros fatores durante a posterior e última regência de Isabel I e seu esposo estrangeiro e semi-ditador, o conde d’Eu); este sistema segregatório de classes e castas comprova que o imperador, representante máximo da superestrutura, indubitavelmente estava cercado e próximo dos agentes dominantes da estrutura, classe escravagista de proprietários de terras, latifúndios e fazendas, logo equidistante dos escravizados pela própria posição social e hereditária, ao contrário do que essa telenovela e outras representações ou opiniões possam fazer crer, e é simplesmente desprovido de convencimento representação de Pedro II íntimo de negros; é notório que o imperador Pedro II, junto aos escravagistas, contribuiu significativamente para a falência do barão de Mauá e seu arrojado projeto de industrialização do país, um dos motivos do nosso secular atraso e dependência — aqui, cabe rememorar o exemplo da Guerra Civil nos EUA (entre industrialistas do norte contra escravistas do sul, com a vitória de Lincoln, elogiado por Marx): a industrialização significará sempre o fim do trabalho escravizado em troca não da libertação total, mas do exploratório trabalho assalariado em face do desenvolvimento capitalista e o fim definitivo dos resquícios do feudalismo que caduca; além do mais, como pode ter maiores preocupações sociais um imperador que nomeava ele próprio os principais cargos políticos gabinetes pró-escravidão em sistema que, em seus finais, caminhando para um terrível e incerto terceiro reinado, já era menos monarquia constitucional e mais absoluta oligarquia, segundo palavras então contemporâneo Machado de Assis em crônica de 11 de maio de 1888?
A caricatura de Faria, aliás, já evidencia tal configuração de nomeações, benesses e correlatos entre o monarca e os parlamentares, estabelecida muito antes da República:
Ora, a monarquia brasileira não só foi brutalmente estratificadora, tal qual a monarquia em qualquer canto do globo o é, já que é inerente a esse sistema uma sociedade de castas (não só de classes), como foi sustentada pelo escravismo, tanto que ela caducou no mundo inteiro quando a escravidão deixou de ser o modo de produção em larga escala. (As “realezas” de hoje em dia, diante da “democracia liberal”, presidentes e primeiros-ministros, são meros bibelôs turísticos, anacrônicos, de escanteio em vias de decomposição, já sem poderio ou significação efetiva como outrora. A aristocracia praticamente foi extinta enquanto classe dominante e perdeu os poderes político e econômico dominantes para a burguesia num longo processo que culminou de vez na Primeira Guerra Mundial, conforme mostram livros recentes de Thomas Piketty e outros.)
O considerado professor-historiador Fernando Novaes, cuja geração fez de fato história, em determinada passagem da aula gravada abaixo, fornece outros dados importantes: Pedro II escrevia, em suas cartas, inclusive para as mulheres próximas, meros relatórios maçantes, burocráticos e numéricos, o oposto da personalidade integralmente humanista que geralmente lhe é atribuída; a violência da estúpida e desprezível escravidão piorou no Segundo Reinado, já que no Primeiro os colonizadores enviavam livros e manuais sobre os “tratos” necessários aos escravizados. (Para detalhes iconográficos de tal violência, jamais esquecermos as tristes pinturas então contemporâneas de Debret et al…)
Nesta aula, Novaes ainda diz preferir — enquanto figura histórica — Pedro I, o pai, do que seu filho, porque aquele foi responsável pela proclamação da Independência do Brasil, maior país da América do Sul, mesmo tendo sido uma independência conservadora, mas importante ao país contra a tirania colonizatória, e depois também responsável pela implementação do liberalismo — que era, então, a vanguarda — em Portugal (contra o despotismo de seu irmão), país europeu. Em que pese o comentário de Machado de Assis em Esaú e Jacó na boca dos protagonistas — num dos raros momentos em que os irmãos concordam entre si! — de que Pedro de Alcântara fora mau pai (largou o filho pequeno aqui), mau irmão, mau esposo (muito adúltero e “galinha”), etc., eu subscrevo a visão de Novaes, ainda mais considerando que não sai de minha cabeça o ar “latino” de Pedro I em seu cavalo, de preferência junto ao meu conterrâneo José Bonifácio, o patriarca da Independência, porém igualmente maçom…
Selton Mello é, sem dúvida, ator de talento e carisma, o oposto de Pedro II. (Aliás, sua atuação, pelo que vi, deixa a desejar justamente por conta dos equívocos teledramatúrgicos e de direção, que criaram um Pedro II pouco verídico… Não vejo um Pedro II ali, e sim o próprio Selton Mello. Nem mesmo a voz ele trabalhou/criou! É somente a dele. Pode ser que Lincoln tenha sido completamente diferente de como Daniel Day Lewis brilhantemente o interpretou e o criou — uma das suas grandes dificuldades, conforme este contou à época do filme, foi criar ou “achar” a voz do lendário presidente que nunca se ouviu posteriormente –, mas a conjunção representativa na construção daquele personagem faz com que nos sintamos realisticamente no século 19.)
Pedro II, ao invés, sempre me pareceu a súmula da elite brasileira definida por Darcy Ribeiro em sua mítica entrevista no Roda Viva: indolente, ranzinza, inerte, de braços cruzados (como na caricatura mais acima de Agostini), incapaz de grandes feitos. Abaixo, eis outra boa representação de Agostini, que comprova e vem ao encontro desta minha impressão, já nos estertores da monarquia:
Princesa Isabel, o conde d’Eu e a Guarda Negra
São atribuídos à Princesa Isabel, enquanto regente, os “maiores” feitos para a abolição no Brasil. Atribuições apressadas e meramente repetitivas, sem apuração e crítica. Ainda hoje, sem qualquer juízo científico ou levantamento histórico, há quem incorra em idealismo ingênuo (ou má fé) para achar que tudo não passou de “ato caridoso” pessoal da princesa (demorou tal “ato caridoso”, não?), e assim descartam o cálculo utilitário diante de países mais avançados na industrialização, por exemplo.
Veremos, nas próximas seções, que a Lei do Ventre Livre, a Lei do Sexagenário e a Lei Áurea não passam de escárnio, utilitarismo, trapaça, etc.
Fiquemos, por enquanto, com o ponto de vista da personalidade. No jornal A Metralha, de 23 de novembro de 1888, a sra. Isabel I é chamada de “pobre burgueza, sabendo um pouco de piano e canto, muito carola, casada com um príncipe vencedor de asneiras bellicas. Roubou ao povo a iniciativa da abolição.”
Pior do que isso, conforme atestam documentos da época, com seu esposo conde d’Eu prenunciava um terceiro reinado que seria tirano, sobretudo no que tange à tentativa de repressão aos republicanos reunidos em conferências pacíficas, com a sordidez de arregimentarem uma espécie de milícia com negros libertos para o intuito (a famigerada Guarda Negra). Se era “muito carola”, era de fato submissa ao príncipe estrangeiro, ambicioso e obtuso, e ao sistema patriarcal, conforme é por vezes retratada em estudos acadêmicos de fácil pesquisa.
Quanto ao Conde d’Eu, para começo de conversa, este homem europeu deveria ficar para sempre marcado pelo massacre terribilíssimo que promoveu de crianças paraguaias entre 9 e 15 anos na Batalha de Acosta Ñu ou Batalha de Campo Grande (1869), enquanto comandava o Exército do Brasil durante finais da Guerra do Paraguai… É certo que fora o próprio presidente paraguaio, o desprezível Solano López e seu entorno, que enviaram tais crianças disfarçadas ao campo sanguinário de batalha, mas isso não isenta o outro lado, que logo deve ter percebido o erro, a catástrofe, o crime… Não pretendo me aprofundar nesse triste episódio que avilta qualquer esperança na humanidade, pois os registros a respeito abundam. (É provável que a telenovela de plantão retrate o conde francês e o comandante paraguaio como tipos mais pífios do que os nobres brasileiros, e de fato eles eram, porém o parentesco com a nobreza europeia também liga Pedro II, Isabel et al ao lastro histórico da dominação e do imperialismo.)
Voltando ao aspecto acerca do perigo antidemocrático que um terceiro reinado de Conde d’Eu e Isabel representaria ao Brasil nos estertores da monarquia, importa o manifesto de 10 de fevereiro de 1889 (fonte: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18890210-4158-nac-0001-999-1-not/busca/Pedro+II) do Boletim Republicano, que recebia importantes adesões, publicado no jornal A Provincia de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo (a título de nota, no Rio de Janeiro surgiu imediatamente a República militar, enquanto que foi em São Paulo que surgiu primeiro a República civil e a industrialização acelerada — sem ingenuidades, porém, com tais marcas paulistas e paulistanas, pois o descortinar do século posterior mostraria os interesses da oligarquia da política do café-com-leite de SP e Minas):
“Arredado da direcção politica do imperio o sr. d. Pedro II, o governo da regente ou antes o do sr. conde d’Eu iniciou uma politica de corrupção e violencia, que não póde e não deve ser tolerada por um povo educado na escola da Democracia”
Note-se que o mesmo Boletim Republicano supracitado afirmara que o sr d. Pedro II “sempre se inspirou nos sentimentos de justiça, que sempre respeitou, mais ou menos, a livre manifestação da vontade nacional”, mas, por problemas de saúde (inclusive mental), encontrava-se “inutilizado para reger os destinos do paiz” (ibidem). Em seu lugar, o príncipe estrangeiro (esse fato tocava fundo na questão de soberania nacional, tal como mostra literalmente o jornal) e sua filha regente cerceavam a livre defesa da República.
O boletim cita uma série de nomes de políticos e cidadãos, parte deles provavelmente da oligarquia paulista/paulistana, mesmo de certos fazendeiros, mas não são os interesses dessa classe que são expostos aqui, e sim dos cidadãos brasileiros como um todo no que tange a um avanço de conquistas civis. A necessidade da República é colocada em compasso com a nomeada Democracia. Esses valores, fossem liberais ou não, encontrariam impasses enormes décadas depois, já no século seguinte, em que presidentes da oligarquia se revesaram com o voto direto até o chamado Estado Novo, porém, num retrospecto, as reivindicações populares, aqui e ali pelo país, ansiavam pela derrubada duma corte emborolada, tendendo à tirania, e pelo avanço irrevogável.
O manifesto, assinado por políticos, vereadores e juízes-de-paz e outros, queria a República para que os brasileiros pudessem escolher seu governo e impedir um terceiro reinado tirano. E relata que, contra os defensores da oportunidade da República em livre manifestação do pensamento, o governo monárquico,
“em vez de oppôr a tribuna e a imprensa, unicas armas possíveis em um paiz livre, arregimentou a escória das ruas da capital — que, sob a denominação de Guarda Negra, foi investida pelo presidente do conselho da alta missão de defender e guardar o throno do Brazil.”
No mês anterior, em 5 de janeiro de 1889, denuncia-se que o órgão conservador de São Paulo estaria com a Guarda Negra e sob a influência de José do Patrocínio; indaga se os conservadores de São Paulo entendem que
“os capoeiras, os secretas e alguns libertos illudidos e mal aconselhados podem atacar os cidadãos que se reunem em um edificio particular, para ouvir um orador republicano e, porque atacam dando vivas à monarchia, devem levar a efeito o seu plano, sendo obedecidos, respeitados?!”
Fica explícita a indagação de que os republicanos deveriam saber se eram fora da lei, se não podiam se reunir, fazer conferências nas garantias de ordem e liberdade:
“[…] não são os republicanos os ameaçados, é a sociedade brazileira […]”.
Estes registros históricos sobre a Guarda Negra são de grande validade de resgate, porque, vez ou outra, tanto neomonarquistas toscos (perdoem o pleonasmo) quanto sujeitos mais à esquerda, só que sem maior embasamento, atribuem à Guarda Negra caráter totalmente positivo, usando-a como suposta prova de como a princesa regente,”Redentora”, fosse próxima dos libertos e a eles caridosa. (Conferir, por exemplo, este post no Twitter de um neomonarquista ridículo — perdoem a redundância.) Não. Em verdade, eram libertos iludidos, mal aconselhados, catequisados para defender a branquitude e a monarquia.
Já é de espantar, por si só, que monarquistas e seus correligionários tenham, mesmo após a Abolição, arregimentado negros para lhe servir como cães-de-guarda, mas isso servia ao propósito da direitalha do tipo mais torpe para fingir que haviam negros do seu lado; logo, para que os racistas fingissem-se de não-racistas (como vemos ainda hoje com a extrema-direitalha politiqueira). Noutras palavras, em português claro, guardadas as diferenças, há histórico cordão umbilical entre José do Patrocínio e um Sérgio Camargo ou Hélio Lopes, esquecíveis e em breve esquecidos. Tais fileiras são sempre perdedoras e fracassadas diante do avanço de conquistas socioeconômicas, intelectuais, humanistas e civis de massas mais esclarecidas de sua posição.
A situação era iminentemente ainda mais grave e assassina. O retrato revelador que se tem aqui, de que a tal Guarda Negra tenha sido criada contra os militantes e propagandistas pacíficos da República, é totalmente diverso e oposto ao que muitas vezes se pensa:
“A’s victimas do punhal e da navalha, sacrificadas no dia 30 de Dezembro pela Guarda Negra, com a acquiessencia da policia, respondeu o governo com a publicação de um inquerito immoral e monstruoso onde toda a criminalidade dos sicarios é imputada aos que foram cruel e miseravelmente massacrados.”
Houve um conluio entre os chefes da Guarda Negra com a polícia contra uma conferência republicana. O inquérito policial, forjado, cairia sobretudo contra Antônio da Silva Jardim, mestiço e conhecido ativista republicano. (Fonte: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18890227-4172-nac-0002-999-2-not/busca/negra+guarda.)
Em 12 de janeiro de 1889 (fonte: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18890112-4135-nac-0001-999-1-not/busca/guarda+negra), o mesmo jornal dizia que para a Guarda Negra existir bastou “mudarem o nome aos capoeiras e dirigerem os instinctos ferozes destes contra os republicanos” (recorde-se que os capoeiras formavam grupos conhecidos como maltas, que andavam com navalhas e sofriam muitos estigmas, servindo, neste caso, como grupos de manobra contra a própria classe e etnia); também se afirma que
“a crença, a fé na monarchia tenha, ha muito, desapparecido”
E arremata, já no proto-ranço moderno entre SP e RJ, que tal guarda só medra na corte do Rio de Janeiro, não fora dela:
“Fóra da côrte, se quizerem impedir aos republicanos o sagrado direito de propaganda, será preciso que os monarchistas commettam o crime por si, e não por mandatarios assalariados e illudidos.
“Si a monarchia para viver mais algum tempo precisa de apoiar-se na guarda negra, então reconhece e confessa que já perdeu todo o apoio na consciencia do povo, e deve desapparecer quanto antes.”
Na mesma página, lemos na última coluna sábias e emocionantes frases intituladas “Actos e Palavras”, dum pseudônimo sugestivo, Proudhon, que alerta para a raça negra não ser confundida com a guarda negra:
“[…] Afinal a guarda-negra não deve inspirar odio, nem medo – inspira compaixão.
“Deve-se ver nella a parcella mais infeliz de sua raça.
“Liberta de uma exploração odiosa, pelo decreto de 13 de maio, cahiu pelo mesmo decreto noutra exploração. […]“
Ocorre, então, importante protesto de negros libertos contra recrutamento para a Guarda Negra em outras cidades além da corte, conforme noticia em detalhes o mesmo jornal em 30 de janeiro de 1889 (fonte: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18890130-4149-nac-0001-999-1-not/busca/Guarda+Negra, págs. 1 e 2). Este protesto recebe ajuda e divulgação de variados republicanos, sejam morenos ou mestiços e negros (como Silva Jardim), certamente alguns brancos e alfabetizados e de acesso (intermediário?) ao jornal, mas que em momento algum, neste caso, se utilizam dos libertos para expor qualquer interesse escuso ou ganhar louros e créditos próprios, ao contrário, falam sempre no coletivo, na primeira pessoa do plural, e no texto colhido — de alto valor histórico — atribuem corretamente a libertação ao esforço popular, expondo a chocante e violenta reação monárquica durante a Lei Áurea, pouco divulgada e ensinada:
“[…] Convencidos, finalmente, de que a libertação de nossa raça, foi unicamente devida ao esforço popular, sem influencia do governo nem do throno, que mandou espingardear os nossos irmãos que sahiam das fazendas […]”
Há certamente muitas outras figuras e personagens de importância dentro e no entorno da corte, incluindo a medíocre elite militar que a derrubará de vez e todos os agentes das classes dominantes nesta transição, mas cessamos aqui, por enquanto.
A escravidão e a abolição no Brasil diante da industrialização internacional
Durante décadas e décadas e provavelmente por mais de um século, nas escolas brasileiras das gerações do século 20, dizia-se que a Abolição fora um ato caridoso da Princesa … e desprezou-se o cálculo utilitário. Salvo engano, em meus livros didáticos e pedagógicos de escola pública, o quadro da situação era apresentado de forma mais balanceada e mais ou menos crítica.
Nada mais anti-histórico… Jamais esquecer — para a enorme vergonha humanista ou “patriótica” — que este país foi o último a abolir a escravidão, justamente por conta de sua corte embolorada unida a latifundiários parasitários. Até mesmo um escritor de episódios marcadamente racistas (tanto em cartas quanto aqui e ali na obra ficcional) feito Monteiro Lobato escrevera, indignado, em diálogo entre D. Benta (cor de pele branca) e seus netos em Geografia de D. Benta (São Paulo: Brasiliense, 1960, págs. 213-215), sobre tal acinte nacional. Faltou vontade. Sobraram interesses.
Dando a César o que é de César: não foi um assomo de bondade que conduziu a Princesa Isabel a sancionar a Lei Áurea, já que se tornava insustentável para as relações com países industrializados um contingente grande de indivíduos que não recebessem salários para adquirirem bens de consumo. Este fator é fundamental e, em alguma medida, foi central para a Lei.
Entretanto, Carlos Maximiliano (1873-1960) a criticou porque não houve “nenhuma providência para compensar os agricultores” que eram seus “donos”. Este teve a audácia de se condoer dos escravocratas, e calar-se diante da massa de ex-escravizados despossuídos de terras e do que produziram na base do chicote entre os matos, do pelourinho ou da ameaça urbana! Detalhe: Carlos Maximiliano tinha quinze anos quando da abolição da escravatura em 1888 e escreveu essas supostas críticas nos comentários à Constituição de…1946. A assertiva está no primeiro volume dos Comentários à Constituição de 1946, publicados pela Freitas Bastos.
Machado de Assis, grandioso, e então contemporâneo, que posteriormente relataria (A Semana, 14 de maio, 1893) ter celebrado na rua a Lei Áurea votada pelo Senado e sancionada pela princesa regente, em outra crônica ácida, notável, de inestimável valor histórico (datada de 19 de maio de 1888 na Gazeta de Notícias, portanto apenas seis dias depois da Abolição), utiliza-se da narrativa em primeira pessoa do singular para se passar por um senhor de escravizados que, em nome de ser cristão, gaba-se de, antes mesmo da lei ser promulgada, ter emancipado um criado “molecote”. Este, porém, como todos os escravizados (descendentes de sequestrados internacionais e despossuídos dos meios de produção e quase até do próprio corpo físico, lhes restando quilombos e proto-favelas), não tem para onde ir, portanto continua amarrado ao “dono”, que, entre petelecos, pontapés, puxões de orelhas, xingamentos e insultos, lhe promete um “ordenado pequeno”, já que “de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha“… Não faltarão, anos depois, crônicas do Machado, já na República transcorrida, e que me servirão de baseamento para ficção, a relatar um ou outro caso de escravizado ou escravizada achados pela polícia sem saber que já estavam livres, ou sabendo-se e sem condições de ter emancipação real. (Vide, por exemplo, o caso da preta Ana numa casa de S. Paulo em A Semana, 15 de maio de 1892, que “produziu imenso abalo”, e de um preto de Uberaba em 1º de janeiro de 1893, que envolveu prisão dos capangas do ex-senhor.) Resquícios do horror da escravidão e mesmo de sua alienação. São casos que espantosamente tornam-se avatares noticiados ainda hoje.
A Princesa Isabel tinha 42 anos quando sancionou a Lei Áurea (Lei 3.353, de 13 de maio de 1888), em sua terceira e última regência. A maioridade de seu pai, o Imperador Pedro II, ocorrera 48 anos antes. Os motivos de foro privado da Princesa, que somente governava quando os respectivos pais saíam em viagem, seriam totalmente irrelevantes, sob o ponto de vista da condução dos negócios de Estado, que são governados por lógica distinta, como já nos ensinou, de um modo nada agradável, Nicolau Maquiavel.
A monarquia baseava-se, em muito, nos latifundiários, e o latifúndio necessitava do braço escravo. No entanto, os países industrializados com que o Brasil mantinha relações não admitiam mais a escravidão. Basta ver a diferença entre John Locke, que sem dúvidas merece um espaço na lata de lixo da História, já que seu liberalismo clássico é antes uma defesa da expropriação para fins particulares e da escravidão do que uma doutrina de liberdade, mas chegou a elaborar documentos jurídicos disciplinando o comércio de escravos, e Adam Smith e Jean-Baptiste Say, que escreveram passagens condenando a escravidão, o primeiro, na Riqueza das Nações, o segundo, no seu Tratado de Economia Política.
A sórdida enganação da Lei do Ventre Livre e da Lei do Sexagenário
Recentemente, fez 150 anos a Lei do Ventre Livre, também assinada em 28/09/1871 por Isabel I em sua primeira regência.
Muitos aprenderam na escola que foi um passo importante na emancipação dos escravos. Afinal, quem nascesse a partir daquela data estaria livre!
Fui ler a lei com mais afinco. Pois bem, até os 21 anos o nascido livre teria que prestar serviços ao “dono” da mãe.
Continuei, e vi que o “acoutamento” de escravos tornava-se crime.
Não pensem que tratava-se duma forma arcaica de dizer açoitamento, isto é, que seria proibido chicoteá-los. Não! O artigo referido do Código Criminal do Império punia furto!
Acoutar era dar couto, dar abrigo, acolher escravos fugidos! Virava furto.
Mais este dado, que liquida ou ao menos pulveriza a tentativa de aceitar a imagem de abolicionistas de Pedro II e da princesa Isabel…
Quem quiser ver o horror, abaixo está o link da lei. Curiosamente, não consta sua revogação…
Resumindo a lei do Ventre Livre: o filho de escrava que nascesse de 1871 em diante serviria como se escravo fosse até os 21 anos de idade. Portanto, pelo menos até 1892.
1892!
Antes disso, em 1888, a luta dos cativos aboliu a escravidão.
A tal lei não libertou ninguém, se entendi direito.
Nem devemos nos estender a respeito da “Lei do Sexagenário”, quando os escravizados, dada sua condição socioeconômica mais precária e humilhante, nem sempre chegavam aos 60 anos… E para onde iria essa massa, o que teriam construído, depois de seis décadas pessoais de total entrega e submissão de seu corpo e força de trabalho (sem contar os séculos precedentes que atingiram seus descendentes)? Lei para inglês ver.
Conclusão preliminar
Historiadores mais recentes têm sugerido que a Lei Áurea só foi promulgada para estancar a torrente imprevisível do movimento abolicionista e impedir reforma agrária e expropriação dos latifundiários. Vide a matéria abaixo:
Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária, diz historiador
Enfim, nada a comemorar, ou melhor: coloquemos toda a ênfase nos quilombos e rebeliões, conforme relato já supracitado e iniciatório:
“[…] Convencidos, finalmente, de que a libertação de nossa raça, foi unicamente devida ao esforço popular, sem influência do governo nem do trono, que mandou espingardear os nossos irmãos que saíam das fazendas […]”
E ênfase em todos aqueles que estiveram social e verdadeiramente entre e por baixo do movimento abolicionista, enquanto este avançava rumo a uma libertação total e ainda hoje em plena construção…
28 de outubro de 2021