Existem brancos e negros no Brasil?!

“Ninguém no Brasil é branco a não ser a Xuxa, e, se ela não casar com o Taffarel, vão acabar os últimos brancos…”

– Chico Buarque em entrevista, brincando (seriamente)

Meu pai, Roberto Édio de Souza, se dizia “café-com-leite”. Eu era criança e, ao ouvir, não problematizava. Na verdade, seria o “moreno” (segundo o senso comum) ou o mestiço brasileiro clássico, filho de negra com um pai branco, que ele não conheceu, e de quem certamente vieram seus fios de cabelo claros, quase loiros, apenas na infância (assim como os meus). Minha mãe é parda, filha de muitas misturas: há negros, brancos, mestiços e indígenas em minha linhagem materna, estes últimos, inclusive, muito provavelmente em gerações não tão longínquas (a começar por seu sonoro nome tupi, que faz parecer ter saído de personagem de algum romance indianista de José de Alencar: Iraci; Iraci de Souza Graça).

Tenho a cor de pele muito clara (mesmo nascido no litoral ensolarado e abafado), porém, com esse background genealógico acima esboçado, estou longe de ser branco — sou, no entanto, resultado do embranquecimento, e só muito recentemente me dei conta disso, e entrei em crise. Concluí, depois, que a muita mistura étnica que me compõe se deu tanto por ordem politicamente proposital das classes dominantes durante a história brasileira para controle social e “melhoramento” discriminatório da espécie humana, como também das eventuais circunstâncias subjetivas das relações, amorosas e sexuais da biologia, até se chegar nesta minha cor de pele, mas meu sangue/DNA não é “branco puro”, para minha satisfação (nem tenho ascendentes europeus que sejam diretos na árvore genealógica). Tampouco sou negro, apesar do meu cabelo não ser liso. Mesmo assim, a sociedade brasileira, calcada na aparência do colorismo, trata-me como branco, e nos formulários não há uma designação correta para mim, restando-me frequentemente marcar a inexata opção “caucasiano”. Obviamente, nos EUA ou na Europa, não sou visto como branco branco. No mínimo, “latino”, sobretudo se deixo a barba e o cabelo crescerem. Minha raça ou etnia, mesmo meu fenótipo, é maravilhosa problemática, frutos de choques, retalhos e somatórias, uma crise de identidade(s).

Machado de Assis não foi negro, ao contrário do que se diz nos últimos anos, se considerarmos que sua mãe era portuguesa branca dos Açores e seu pai, mestiço, ou, para usar designação desgastada e devidamente criticada, “mulato”. É certo que não tinha a cor de pele clara, tal como os embranquecedores quiseram fazer crer em sua iconografia; tinha a cor de pele mais escura, conforme fotografias de boa qualidade comprovam; entanto, era um miscigenado ou mestiço, fruto explícito da inovadora mistura de raças.

Quem são os negros na sociedade brasileira atual, então? A rigor, somente os imigrantes retintos de países como Moçambique, Haiti, Congo, Angola, etc., que não sofreram ou não passaram por largos e acentuados processos de miscigenação em seu DNA. Esta é minha tese. E os brancos? Seriam os descendentes diretos de europeus, embora, à presente altura geracional de nossa história, eles rareiem ou nem mais existam; também os ascendentes já se misturaram demais durante os séculos 19 e 20, de modo que não podem mais se dizer brancos brancos; neste século 21, os próprios países que não são da Europa ibérica (formada por Portugal, Itália e Espanha, onde a miscigenação foi mais acelerada), sobretudo a França e mesmo a Inglaterra, também adentram na miscigenação com os filhos e netos negros da (neo)colonização e também com árabes. O mesmo processo — acelerado pelas novas diásporas e grandes imigrações — não demora a chegar na Alemanha, que um dia comprou o mito da raça ariana, e nos demais.

Filosoficamente, o negro é um devir, porque não é hegemonicamente dominante (tal como o modelo cristão, branco, proprietário, homem adulto heteronormativo, etc.)…

Hoje em dia, com o avanço da genealogia genética e os testes de DNA, é possivel mapear com certa precisão o percentual étnico/racial dos sujeitos e da população no geral. Os resultados espantam. Assim, se realmente há brancos brancos no Brasil atual, devem ser minoria percentual: os coloniais paulistas, por exemplo, têm, em média, 80% de DNA branco (Europeu e MENA – Oriente médio e norte da África) e 20% de DNAs africano e ameríndio, mas não fazem parte da massa. A massa, porém, tem muito de DNA europeu. Em grupos de pesquisa étnico-genética, vemos vários brasileiros com fenótipo negro ou “quase negro” (segundo o senso comum) que possuem surpreendentes 60% de DNA europeu. Não devem ser a maioria, mas tal fato não ocorre nos EUA, onde os negros têm, no máximo, 30% de DNA branco. Também surpreende que o pardo brasileiro tenha, em média, 60% de DNA branco e 40% de DNAs africano e indígena. (Estes e outros dados podem ser consultados em dois estudos disponíveis no Scielo: <https://www.scielo.br/j/gmb/a/fk6kLTxZknvrJjmC9hdcZBC/?lang=PT> e <https://www.scielo.br/j/ea/a/6Ym7R859tBjyNgV96LcZmKr>, sendo esse último meio enviesado, e também neste artigo pela Fiocruz: <https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/12570/2/milton2_moraes_etal_IOC_2013.pdf>. Esta reportagem <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1802201101.htm> divulgou ainda a constatação científica de que a cor da pele é parâmetro enganoso, pois tem elo com poucos genes.)

Tenta-se, muitas vezes, — sobretudo nas discussões de esquerda identitarista — replicar teoricamente no Brasil a polarização explícita do aparthaid dos EUA (país que viveu colonização de povoamento) entre negros e brancos, quando, na realidade, o conjunto histórico que caracteriza o caso brasileiro — no bojo das “três raças tristes” de que escrevera Bilac, sendo que modernamente acrescentaram-se a elas japoneses, árabes e muitos outros — é a pulverização das etnias comprovada em nosso cotidiano e pelas pesquisas genéticas, o fracasso da pureza de qualquer ordem, o preconceito velado e mal resolvido em meio à tal pulverização étnicosocial, o sincretismo e a miscigenação.

Basta constatar que, antes de mais nada, os portugueses se misturaram muito mais do que os ingleses, e não apenas por talvez serem eles menos racistas, mas também como parte dos vínculos de relações da exploração colonizatória, uma vez que, nas suas colônias tardias como Angola (quando o Brasil já era há muito tempo independente), criou-se com a abolição da escravatura um estatuto especial para quem não era branco, o sistema do indigenado de mão de obra gratuita, escravatura disfarçada. É o que, por consequência, me contara, certa vez, um camarada português muito crítico da história colonizatória de seu país não contada nas escolas, residente da França: que a mistura étnica pode ser encarada também como estratégia de controle, sobretudo nas décadas finais do decadente império português (quando o Brasil já era há muito tempo independente). Os mestiços, que serviam à coroa ou, posteriormente, ao Estado Novo de Salazar, eram mais escutados pelos negros por também terem sangue centro-africano, tal como um estrato social médio que servia para articular o sistema de exploração dos negros pelos brancos. Esse camarada português lembrou, ainda, que o próprio Salazar, sob a pressão europeia para deixar as colônias de África, pensou em mudar a capital para Luanda, assim como a corte portuguesa esteve uns tempos no Brasil quando os franceses invadiram Portugal no início do século 19. Portugal sempre gostou dessa estratégia da mistura ou a cogitou em momentos críticos, ao contrário dos britânicos.

Ainda que no Brasil influam a miscigenação, o sincretismo, a ambiguidade étnica, a mistura e correlatos, tudo isso não quer dizer que não há, aqui, racismo, de preferência o racismo do colorismo, pois trata-se de país com exclusões sociais e sistemas de poder, com mais séculos de escravidão do que de abolição (feita tardiamente e nas coxas, sem socialização de terras); no entanto, o processo de miscigenação no Brasil — pelas circunstâncias da vida em meio às interrelacões entre diferentes povos e também pelo proposital embranquecimento classista de cima para baixo e historicamente comprovado como política eugenista desde a colônia, mas sobretudo de finais do século 19 até os anos 1930 — criou um gênero novo na história da humanidade, para usar insistente tese de Darcy Ribeiro em entrevistas e livros. Esse gênero não é branco nem negro. É já outra múltipla somatória de ambos — e dos vários outros.

Há militantes, porém, que consideram todos os pardos como negros, sem considerar os indígenas na discussão racial, e que simplesmente ignoram quando esses mesmos pardos têm suas cotas negadas em universidades e instituições públicas. Vimos, acima, que os pardos brasileiros possuem considerável percentual de DNA europeu também, não podendo ser considerados negros em stricto sensu.

Todavia, à guisa de considerarmos a teoria da gota única, muito defendida por alguns dos movimentos negros dos EUA mais elucidados, a reivindicar que não importa o fenótipo, se você tem apenas uma gota de sangue negro, você já pode ser considerado negro, assumo que, nesses casos, a (auto)designação negro/preto faria sentido, mas apenas em termos retóricos e simbólicos: em matéria de lógica básica, se temos algum laço negro em nosso sangue que não é total, é sinal que temos também de outras etnias que nos compõem, o que nos torna imediatamente miscigenados, escapados dum padrão inequívoco e limitado à univocidade; uma outra nova raça/etnia de somatórias e multiplicidades, sem que se exclua nenhuma. É que apenas alguns têm cor de pele mais clara e outros, mais escura, embora isso faça toda diferença na nossa sociedade geograficamente dividida em periferias e centros de acordo com o colorismo historicamente marcado… Bastaria essa conscientização da miscigenação para que arrefecesse a regra da violência lastreada em características da vítima, por exemplo, em raça.

A designação “pessoas de cor” não está equivocada e é mais abrangente, do ponto de vista antropológico e científico: lembro de Michael Jackson, que tinha vitiligo, numa de suas entrevistas, a explicar que “people of color” são assim chamadas, porque a cor de suas peles pode ir da cor da palma da mão até o ébano…

E, se os percucientes estudos sobre a Pangéia estão corretos, desmorona ainda todo um paradigma histórico e qualquer tentativa de pureza racial ou mesmo de linhagem diferencial. Ou seja, as cores de peles teriam se distinguido ao longo de séculos e milênios à medida que os diferentes grupos tenham tendido a regiões de climas diversos e aspectos geográficos impactantes na melanina mais desbotada ou tonalizada, bronzeada ou mais escurecida, não estando, porém, a humanidade, em seus primórdios, diferenciada em continentes separados.

Enfim, não esqueçamos do que houve aqui com a miscigenação, que traz consigo problemáticas, traumas e maravilhas. Esse novo gênero humano é, na realidade, o futuro do mundo, sobretudo neste século 21, estando o Brasil em posição avançada de vanguarda na miscigenação global dos povos. Como uma mácula na falsa pureza, isto apavora a direitalha, a extrema-direitalha cristofrênica, racista, branca ou que se acha branca ou que quer ser branca, assecla das explorações do capitalismo tardio, agarrando-se o quanto pode nos últimos resquícios insuportáveis e danosos da branquitude e da univocidade dominadora.

1 de fevereiro de 2022