O que é teoria? Marxismo e obra marxiana entre a Filosofia e a Ciência: aproximações e diferenças

O texto abaixo serve para apoio básico e introdutório do meu grupo de estudos de teoria da revolução e do Estado e como anotação para a construção de algumas partes do meu livro Filosofia da Revolução:

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Teoria, palavra aparentemente mais científica que filosófica. Lembramos da teoria da relatividade geral de Albert Einstein (física), que era socialista declarado, lembramos da teoria da evolução de Charles Darwin (biologia), terror dos cristãos criacionistas. Ou seja, teoria enquanto construção reflexiva e de experimentos do conhecimento científico. Para alguns autores, a filosofia trata dos problemas mais gerais, enquanto as ciências estudam os menos gerais e mais específicos, sendo a filosofia, para muitos marxistas, um prolongamento das ciências, no sentido em que se apoia nas ciências e delas depende (POLITZER, 1979, p. 21). Não poderia ser diferente – o negacionismo anticientífico e irracional parte da direita… A Filosofia, partindo de problemas, lida com os conceitos e cria conceitos – criação e intelectividade influem na Filosofia, enquanto as ciências apresentam funções e categorias (esta última palavra é bastante comum nas ditas ciências sociais). Retomaremos o embate entre filosofia e ciência, aproximações e diferenças, durante todo este texto.

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Não sejamos, então, totalmente bairristas, apesar das diferenças fundamentais – não só as ciências dependem da Lógica, que é uma criação histórica da Filosofia, como é possível observar imbricações entre teoria e filosofia, sobretudo com o que se chama de desenvolvimento histórico da ciência: por exemplo, a ontologia não deixa de comportar alguma teoria (ou várias teorias, considerando a gama de autores ontológicos) do ser. Há um invólucro filosófico nas ciências, que remonta a propria história da filosofia antiga, embora cientistas no geral não se dêem conta disso. No decorrer dos postulados deste texto, demonstrarei que as teorias servem também a uma nova filosofia que engloba as ciências, à filosofia da práxis.

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A origem do vocábulo teoria data de finais do século 16, denotando um esquema mental: via latim tardio, theōria, “contemplação, especulação”, do grego theōrós (“espectador”). Veremos que, modernamente, esta etimologia é insatisfatória e até equivocada, mas ela elucida já alguns pontos. A teoria precisa de um “espectador”, ou melhor, do teórico, que chamamos de sujeito; mais do que isto, a teoria e este sujeito precisam de um objeto. Entre sujeito e objeto, há a pesquisa e seu método. Em Marx, há um sujeito que não apenas estuda o objeto, mas o confronta e o critica. Sua magnum opus, O Capital, é justamente a obra central em que encontramos um pesquisador às avessas com o inicio, a consolidação, o desenvolvimento e o fim ou a crise de seu objeto de estudo – o capital ou a sociedade burguesa, num trabalho obviamente inconcluso, pois ele vive e escreve quando o objeto já se desenvolveu, mas desaparece quando tal objeto ainda não se esgotou.

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No Prefácio da Edição Francesa do Livro I, Marx responde ao editor Maurice Lâ Châtre que concorda com sua ideia de publicar O Capital por fascículos para deixá-lo mais acessível à classe trabalhadora, mas que, por outro lado, o método de análise utilizado, ainda não aplicado aos problemas econômicos, torna árdua a leitura dos primeiros capítulos, concluindo: “Não há estrada real para a ciência, e só têm probabilidade de chegar a seus cimos luminosos aqueles que enfrentam a canseira para galgá-los por veredas abruptas.” O Capital é uma obra com mais ciência do que filosofia, praticamente sem filosofia, embora não fosse possível sem essa segunda.

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Darwin não inventou a evolução, Einstein não inventou a relatividade: ambos observaram e pesquisaram o objeto real (as espécies ou o desenvolvimento das espécies, para um, e a gravitação e o espaço-tempo para o outro), o funcionamento e desenvolvimento do(s) objeto(s) até o presente em que puderam viver e levar a pesquisa, tendo descobertas no processo. Isto é a teoria científica. Marx não inventou o capital. Pôde estudá-lo desde sua gênese até seu desenvolvimento a partir do século 16 e a sua consolidação em seu tempo, século 19, quando, aliás, guardadas as devidas diferenças e proporções, o capitalismo já apresentava crises como as de hoje. A mais-valia (ou mais valor) não é uma invenção do crânio de Marx – é um dado real da concretização do capital em face do trabalho, e nenhum outro senão Marx a expôs, e criticamente… Portanto, teoria científica não é inventar uma ideia ou interpretação da realidade nem propor uma sugestão para o futuro sem qualquer base no real, mas, sim, observar com precisão o real, possibilitando descobertas e conclusões a respeito dele. As hipóteses da teoria costumam ser bem fundamentadas. Teorias marxistas a respeito da revolução consideram o passado histórico, exemplos de revolução e como elas se deram e como podem ainda se dar (considerando a política e a economia), e veremos como isto enriquece o presente e futuro das ações revolucionárias (outro caráter da teoria, no âmbito da filosofia da práxis, não mais apenas como observação do fato, mas como projeção de um fato a ser realizado).

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A crítica na pesquisa científica – Em O Capital, ao tratar, por exemplo, do dinheiro, Marx discorre sobre quase todos os seus papéis, como ele é usado na sociedade e no percurso histórico, o dinheiro simples, o dinheiro que é capitalizado, etc.; mas também o trata criticamente, usa Shakespeare (versos da peça Titos Andronicos, em que se amaldiçoa o ouro) e também Aristóteles, para quem o dinheiro deveria ser um elemento de equilíbrio na sociedade para não gerar, de um lado, falta, e no outro, abundância (é o extremo oposto do que ocorre no capitalismo). Tal posicionamento de Marx não deixa de já ser uma visão crítica da realidade – mas que é pertinente justamente porque expõe fenômenos reais, a riqueza real de um lado e a pobreza real de outro. A ideologia dominante dos capitalistas, da farsa do neoliberalismo ou da extrema-direita procuram esconder tais dados, desprezam tal realidade desigual ou confundem com falácias como a da meritocracia, que não consideram as classes e o fato de que não partimos todos das mesmas condições socioeconômicas.

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Não há ciência – há ciências. Interligadas (por exemplo, o eletromagnetismo): a separação das ciências como autônomas era um equívoco metafísico até mais ou menos o século 18, contestado e corrigido sobretudo a partir do século 19 com uma melhor elaboração do materialismo. Os meios acadêmicos costumam fazer uma divisão entre ciências naturais e ciências sociais. Consideremos que o que se chama de “ciências sociais” possuem suas bases estruturadas a partir do trio (completamente distinto entre si) Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx.

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Na Antiguidade, sabemos que não havia distinção entre filosofia e ciência, porque a chamada filosofia da natureza, como uma pré-ciência ou uma protociência, se ocupava da busca do saber, dos fenômenos, da compreensão da natureza e do homem (Simões, 2014, p. 25). Precisamos recapitular esse processo histórico. Até meados do século 19, a ciência ainda não tinha satisfatoriamente se emancipado da filosofia: as teorias, para os cientistas, não apenas explicavam os fatos, mas eram uma apreensão última, total, ontológica da realidade (Cervo e Bervian, 1978). É, então, a partir do século 19, através de uma visão materialista da ciência moderna, que irá rechaçar a noção metafísica da natureza, com o início da modernidade, a revolução industrial e o desenvolvimento da ciência e o desenvolvimento econômico do capitalismo, que a filosofia se torna problemática em relação à ciência e ambas tomam novas posições. Marx e Engels serão também protagonistas neste processo, como veremos mais adiante. Depois da atitude materialista, toma-se no geral uma atitude mecanicista e, por fim, positivista. Neste momento, a teoria é restringida pelos cientistas ao âmbito dos experimentos, da experimentação (Pereira, 1990, p. 53). Assim, três definições de teoria passam a fazer sentido neste período: segundo E. Mach, “as teorias apenas orientam o sábio com economia de pensamento”; de acordo com Henri Poincaré, “as teorias não são verdadeiras nem falsas, são cômodas”; para Pierre Dühen, “as teorias servem apenas para classificar os fatos e as leis” (Pereira, 1990, p. 54). Nas últimas décadas, a posição tem sido intermediária, “sobretudo quando a visão positivista não se sustenta mais na sua pretensão de abarcar todo o pensamento e fazer da Ciência a síntese orgânica da cultura” (Idem). Isto sobretudo às ciências empírico-formais, ou seja, física, química, biologia, botânica, etc. Na matemática em especial, por ser uma “ciência formal” (ainda que não se separe das ciências empírico-formais, da física, da mecânica) que estuda principalmente as grandezas e as formas sempre através de conclusões e postulados simbólicos, não existiria teoria, pelo menos não nos mesmos moldes que das outras ciências empírico-formais, “na sua afronta ao fenômeno” (Pereira, 1990, p. 57). Um “naturalista” não inventa a ave; o matemático cria simbolicamente um “triângulo”, embora esta forma foi observada certamente a partir da natureza…

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Para o pensamento clássico antigo, mesmo na Grécia antiga (Aristóteles  identificava Teoria com bem-aventurança), a teoria, por ser especulação ou vida contemplativa, opunha-se à prática e a qualquer atividade não desinteressada, que não tenha a “contemplação” como objetivo (Abbagnano, 1998, p. 167). No senso comum dos dias de hoje, ainda vemos resquício desta noção, quando se diz que tal coisa “é muito teórica”, etc., ou seja, é “abstrata” demais, e nas tentativas de se desprezar grosseiramente a prática ou o real. Enfim, uma barreira explícita seria delineada entre teoria e prática, que a filosofia da práxis tratará de apagar.

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Nos dias atuais, há uma segunda definição principal de teoria: “condição hipotética ideal, a qual tenha pleno cumprimento normas e regras, que na realidade são observadas imperfeita ou parcialmente” (Op. cit.). Este significado se dá sempre quando se diz que, “teoricamente”, deveria ser assim, mas “na prática” é outra coisa. De todo modo, “Chama-se Teoria um conjunto de regras também práticas, quando são pensadas como princípios gerais, fazendo-se abstração de certa quantidade de condições que exerçam influência necessária sobre a sua aplicação” (Op. cit.), tanto na ciência quanto na filosofia.

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O que é uma boa teoria científica? Uma boa teoria é unificadora: como se ramificasse, explica um grande número de fatos e observações em um único modelo ou estrutura. A teoria deve também ser internamente consistente. Por fim, uma boa teoria não é fechada em si; encaixa-se em outras teorias bem testadas e consideradas, cooperando com outras teorias em suas explicações. Reunindo essas três características, teorias impactaram não só as suas áreas como também a própria mentalidade da humanidade.

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Finalmente, nas “ciências humanas”, que se estabelecem sobretudo na passagem do século 19 para o 20, o ato de teorizar é mais aberto do que nas ciências empírico-formais, estritamente presas ao objeto, e do que na matemática com seus postulados e conjunturas simbólicas. O objeto de investigação das ciências humanas “é ao mesmo tempo sujeito” (Pereira, 1990, p. 58), ou seja, não é o que chamam de “natureza natural”. Portanto, “a relação sujeito-objeto das ciências empírico-formais torna-se relação sujeito-sujeito nas ciências humanas” (Idem). É por causa disto que há um debate infindável para os mentores desta área de conhecimento a respeito de um estatuto científico padrão e da proclamação de resultados, fazendo com que as ciências humanas não sejam enquadradas no estatuário científico das ciências empírico-formais. Não há consenso. Porém, neste aspecto, o marxismo, o socialismo científico, o materialismo histórico e dialético têm o seu projeto revolucionário internacionalista e de mentalidade em comum.

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Nas ciências humanas, a formulação teórica e a proclamação de resultados não se bastam no método indutivo nem na relação causa-efeito das ciências empírico-formais, porque é forte nas ciências humanas o fator da interpretação, ainda que tal fator não seja central tampouco absoluto, fazendo com que suas questões estejam em aberto quando transformadas em teorias, sistemas, doutrinas, mesmo tendo um acervo histórico, algum progresso e desenvolvimento, mas não de modo fechado e “absoluto” como nas teorias e leis das ciências empírico-formais. É um consenso entre os cientistas de que “interpretar, em sentido amplo, já não é fazer ciência”, embora possamos chamar as ciências humanas de “ciência da interpretação por excelência” (Pereira, 1990, p. 59-60). Assim, as ciências humanas galgaram importante posição ao promoverem um “encontro entre a matematização dos resultados com a interpretação do homem” (Pereira, 1990, p. 60). É óbvio que as ciências humanas não abandonam as “ciências da natureza”: aproveitam delas dados da natureza para o conhecimento cada vez mais rico do objeto, mas com exclusividade, inclusive porque não possuem um padrão formal de linguagem matematizada, unitária, universal como nas outras ciências, atuando a partir de escolas e modelos de pensamento, sem dúvida muitos deles internacionalistas, como é o próprio socialismo científico, o materialismo histórico, a filosofia da práxis, o marxismo. É, porém, nas ciências humanas que o ato teórico, que a práxis teórica mostra-se em seu momento mais complexo para além da lógica e da gnoseologia, pelo fato do caráter eminentemente antropológico ou humanista das ciências humanas. Aqui, as melhores respostas – e as mais inovadoras – surgem sem dúvida com a filosofia da práxis. Nós não somos apenas protagonistas de toda teoria, mas somos (ou podemos ser) teórico-práticos!

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Agora está claro. Não podemos abordar a teoria em termo amplo (e tal amplitude só pode ser alcançada pela filosofia, por uma nova filosofia, como veremos adiante) apenas com o pensamento clássico nem apenas com a ciência moderna (empírico-formal), porque ambas caem num círculo vicioso. Por quê? Porque 1) A abordagem clássica, “idealista” e contemplativa, tomava o conhecimento da realidade como abstração, como raciocínio ou ciência da lógica, exagerando a “teoria” e esquecendo-se da síntese, que é um elemento fundamental na articulação do pensar (Pereira, 1990, p. 64). Antes de tudo, a abstração não é o todo da teoria tampouco é a própria teoria, a abstração é apenas um momento da teoria, do ato de teorizar, não raro ligado a junções concretas… Por fim, é a síntese que liga pensamento e realidade, o real ao racional e o racional ao real, numa relação dialética. A abordagem clássica, mesmo sendo essencialista, não chega à essência das coisas, porque esconde, desvincula ou ignora a concretude (Pereira, 1990, p. 65). Quem, em pleno século 21, ainda se posicionar assim, demonstra dogmatismo religioso,consciência ingênua (como argumentava o professor e filósofo Álvaro Vieira Pinto), limitada e alienada, ou tentativa proposital de alienar outros, sendo nosso dever alertar, refutar e desmascarar tais noções metafísicas. 2) A abordagem científico-experimental também não nos ajuda numa abordagem ampla da teoria, porque, se os clássicos não puderam trazer à tona o objeto real, concreto, a ciência moderna, reagindo ao posicionamento clássico, exagerou o outro lado e também não chegou à plena síntese. A ciência moderna, focada nos experimentos do objeto concreto, esqueceu, ignorou ou desprezou a ontologia da realidade (Pereira, 1990, p. 65-66). O século 20 viu ainda outros muitos aspectos para a ciência moderna, notavelmente a questão da tecnologia, levando a uma mentalidade pragmática e utilitarista, ainda vigente neste século 21.

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Neste processo, não é errado dizer que ela subtraiu ou se esqueceu do Homem, ou da Mulher, para usarmos um termo menos dominante. Esqueceu-se do Jovem Estudante, do Trans, do Trabalhador! Em suma, esqueceu-se do protagonista do conhecimento e da ação, levando aos problemas cada vez mais frequentes das últimas décadas em relação ao complexo ciência-tecnologia, que ela parece não poder dominar, a menos que “peça auxílio a quem anteriormente abandonou como companheira inútil: a filosofia” (Pereira, 1990, p. 66). Não a filosofia clássica. Uma filosofia crítica e da práxis.

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Marx fala-nos do ser social. Não será a metafísica nem a ciência moderna que nos ensinarão sobre os protagonistas do conhecimento e da ação (nós) inseridos em classes sociais, processos históricos, relações de poder, etc. São terrenos para as chamadas ciências humanas. A significação dos seres sociais sobre o mundo não deixa de ser uma ação prática. Portanto, a teoria que não ascendeu ao nível da ação possui resíduos de mera abstração. Não se teoriza no vazio, mas em contexto x, y, ou z. A teoria não se refere apenas ao pensar ou à inteligência e ao raciocínio. A filosofia da práxis surge do aspecto teórico da prática para a unidade teoria-prática.

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Na concepção clássica (filosofia grega antiga e medieval – Platão, Aristóteles, até o cristianismo de São Tomás de Aquino, etc.), teoria, teorizar é/era abstrair, “exercício abstrato do raciocínio distante do concreto, do real” (Pereira, 1990, p. 18). Tratava-se quase de ginástica mental que leva a um círculo vicioso formal do conhecer as coisas, do adaequatio rei intelectus (adequação do objeto com a mente) e do adaequatio intelectus et rei (adequação da mente com o objeto). De certa forma, muitos dicionários e enciclopédias mostram ainda hoje definições de teoria através dessa visão metafísica, abstrata, essencialista e mecanicista… “Ora, é a contradição que gera a unidade. Unidade sem contradição não é unidade, é uniformidade. Se há tese e não há antítese, não acontece a síntese. O pensamento em si mesmo, em sendo a ausência da unidade dos contrários, torna-se tão somente uma bela moldura, mas sem estampa” (Pereira, 1990, p. 24). Portanto, apesar de nos fornecer as regras dos conceitos e os fundamentos das definições, tal pensamento clássico tem um limite e nos é insuficiente, porque não resolve problemas contraditórios (pensamento e realidade, teoria e ação, sujeito e objeto, subjetivo e objeto, ciências teoréticas específicas e ciências teoréticas filosóficas, etc.) nem nos apresenta, em sua lógica formal (mesmo sendo ela básica para estudar filosofia e mesmo as ciências), a lógica em fluxo, a dinâmica dialética do discurso que se encontra entre teoria e prática.

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Por outro lado, a teoria também é problemática na ciência moderna, cujo berço é o pensamento clássico (muitas vezes chamado de “pré-ciência” ou “protociência”). Na ciência moderna de experimentos, assim como na concepção clássica, que era abstrata, a teoria se opõe à prática, desta vez por sua visão estritamente objetual e técnica (Pereira, 1990, p. 51). Neste processo histórico entre a filosofia clássica e a ciência moderna, em que novos instrumentos científicos foram criados e muitas mudanças econômicas ocorreram, vimos surgir uma novidade para a teoria, novos elementos significativos, a saber: “a vinculação com o objeto pesquisado e, portanto, com a experiência, ou experimentação, na relação direta de causa-efeito” (Pereira, 1990, p. 30). Trata-se de uma revolução – agora, o método de abordagem do objeto pesquisado e a ser conhecido envolve dados, fatos, fenômenos, fazendo com que sem o horizonte da experimentação não se possa compreender a elaboração teórica na ciência moderna. Porém, apesar da relação causa-efeito e da experimentação, a teoria na ciência moderna não anulou a abstração mental, por causa das hipóteses variadas a serem levantadas pelo cientista sobre o mesmo fenômeno. A teoria, aqui, é resultante do experimento – bastam uma ou várias leis para a ciência moderna garantir a elaboração de uma teoria, de um sistema, de uma doutrina. Basicamente, há o momento da observação e da pergunta, depois a hipótese da pergunta, então o experimento e, por fim, a lei, o postulado, a conclusão. (Para entender este processo com um exemplo simples, Cf. Pereira, 1990.) A “ciência moderna” acontece pelas relações entre dedução-indução (modos de raciocínio lógico-formal) e análise-síntese (o mesmo processo vinculado ao fenômeno observado) (Pereira, 1990, p. 31). Há pelo menos três modalidades de ciências: ciências formais ou exatas (lógica e matemática), ciências empírico-formais (física, biologia, química, etc.) e ciências hermenêuticas ou interpretativas (as “humanas”) (Pereira, 1990, p. 31).

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“Ciência antiga/grega”, “ciência moderna” – Não existiu uma ciência grega nos termos científicos de hoje, como já vimos anteriormente, apenas uma pré-ciência ou uma protociência em forma de filosofia (Pereira, 1990, p. 49). De todo modo, a filosofia clássica ou a ciência grega antiga era qualitativa (Aristóteles falava em termos de quente/frio, etc.), enquanto que a ciência moderna é quantitativa (conforme já foi explicado acima), sobretudo a partir de Copérnico ou Galileu Galilei, quando surgem aparelhos mais sofisticados e exatos de medir o objeto e o fenômeno (Pereira, 1990, págs. 49-50). Ademais, o conhecimento de causas para o pesquisador antigo era sempre metafísico e essencialista (um tipo de pensamento primeiro a respeito do ser), enquanto que para o cientista moderno o que vale sobretudo é a interação e a funcionalidade da pesquisa. Enquanto a ciência antiga buscava a causa num sentido amplo, filosófico e não raro metafísico, a ciência moderna constrói a lei geral com uma linguagem simbólica e matematizada a partir da resolução das relações de causa-efeito do fenômeno específico. Por fim, a ciência grega antiga era antropocêntrica (a medieval era teocêntrica) no sentido físico e cognitivo, enquanto a ciência moderna se supõe excêntrica, ou seja, não gira em torno de nada além de si e existe em função de seus resultados (Pereira, 1990, p. 50).

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As seis características da ciência moderna – 1) A mensuração das medidas, temperaturas, atributos de cor, peso, forma, voltz, etc., toda uma simbologia lógico-matemática unitária, que torna a ciência moderna universalmente válida; 2) a funcionalidade, a função de todo o processo sem necessariamente se levantar questões mais culturais, ontológicas e filosóficas do por quê ou do que é; 3) o caráter seletivo de método indutivo de elementos/dados específicos para chegar à lei geral; 4) o caráter aproximativo da teoria científica, em que existe um certo nível de interpretação para o esforço de compreensão simbólica do fato, que substituirá ou representará o real, o fenômeno; 5) o caráter progressivo, isto é, cumulativo em uma trajetória histórica de descobertas e experimentos irreversíveis em relação ao passado, mas não às descobertas futuras mais desenvolvidas; 6) por fim, a exatidão na formulação unívoca, dependendo de seus resultados e da lei anterior sobre um fenômeno testado e observado (Pereira, 1990, págs. 46, 47 e 48).

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Hipótese e teoria – Nas ciências modernas, ambas (hipótese e teoria) estão ligadas ao processo de pesquisa, mas a hipótese, que surge de conjeturas e suposições a partir da observação do fenômeno, é praticamente a antessala da teoria, que, por sua vez, “exerce o papel de coroamento da hipótese, depois de experimentada e comprovada” (Pereira, 1990, p. 52). A teoria é um ponto final do processo, considerando o todo (observação, hipótese, experimento, lei), embora outras teorias surjam, mais desenvolvidas a partir daquela, porque uma teoria pode abrir espaço para novas conjunturas.

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Afirmei linhas acima que, na ciência moderna de experimentos, assim como na concepção clássica abstrata, a teoria se opõe à prática, mas desta vez por sua visão estritamente objetual e técnica, dependendo exclusivamente dos experimentos. Nas ciências empírico-formais como a biologia, a física e outras, a teoria depende do método e nele se envolve.

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Filosofia e ciência, diferenças básicas que a modernidade explicita – Um filósofo pode ter uma “linha de pensamento”, mesmo a partir de conceitos filosóficos formativos predecessores. O cientista, não. Um filósofo, pelo fato da filosofia ser um campo do saber intelectivo e criativo, pode partir de um ponto zero ou de uma “novidade absoluta” (será mesmo que existe isso?!), seja o seu estilo ensaístico ou em forma de tese. Na ciência, não: sobretudo nas ciências empírico-formais, a trajetória é sempre progressiva e não se volta à estaca zero, mantendo sempre relação coerente com o trabalho de outros cientistas globais, não existindo nas ciências, portanto, muito espaço para as interpretações pessoais como na filosofia, apenas conjeturas ou suposições (Pereira, 1990, págs. 43-44). O cientista está subordinado ao fenômeno em si e o seu experimento consagra (ou não) a hipótese como certa.

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Teoria e conceito – Não são a mesma coisa. Conceitos são criados pela filosofia. As ciências empírico-formais se contentam com as teorias. Ao passo que os conceitos filosóficos surgem de uma criação do filósofo a partir de um problema e tendem a uma generalização das ideias, as teorias, por mais gerais que possam se tornar, são sempre específicas em torno do objeto real pesquisado. Teorias não são fatos, mas podem ser nomeadas como a melhor hipótese ou suposição possível sobre um certo fenômeno. Um conceito é uma ideia geral, criada. Uma teoria é uma explicação sustentada por evidências significativas. Um conceito não possui necessariamente tal evidência. Teoria como um sistema de ideias que pretendem explicar, expor ou justificar um fenômeno real, que se apresenta na realidade, que não é criação do pesquisador, embora ele possa ser crítico. Não raro, uma teoria se mostra como um conjunto de regras, de leis sistematicamente organizadas, que servem de base a uma ciência. Veremos, mais adiante, que na filosofia da práxis a teoria pode ser também como a científica, mas ascende ainda a um outro nível diferente ao das ciências tradicionais: o de projetar, preparar e anteceder a transformação do real. Os conceitos inserem-se num processo criativo “pelo qual atores sociais buscam solucionar os problemas que eles enfrentam ao tentar entender e transformar o mundo ao seu redor”, enquanto as “teorias, por outro lado, devem ser entendidas como tentativas intencionais e racionais de resolver problemas práticos” (Berger & Luckmann, 1987, p. 33). Mais ainda, os conceitos são os elementos últimos de todos os pensamentos, constituindo uma concepção geral ou até universal. Somente a filosofia da práxis parece englobar teorias e conceitos, preservando as suas diferenças.

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Filosofia e ciências, atuação – Ao afirmar que a estrutura (o modo econômico que caracteriza as classes sociais, o trabalho, as ferramentas e meios de produção, etc.) pode ser estudada com os métodos das ciências naturais e exatas, Gramsci escreve que “precisamente por esta sua ‘consistência’ objetivamente verificável, a concepção da história foi considerada ‘científica’ (Gramsci, Caderno 10, II, S 41; 1, p. 361). Aqui, delineia-se algo muito importante para uma definição precisa e moderna de ciência (ou de ciências ditas naturais e exatas) ao apoiá-la à verificabilidade e à consistência objetiva. Para Gramsci, a filosofia, por sua vez, é uma concepção, uma conceituação de mundo.

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Com a indústria, surgiu o “especialista da ciência aplicada e organizador técnico, que age por meio da ordem e da disciplina intelectual” nas “sociedades cujas forças econômicas se desenvolveram em sentido capitalista até absorver a maior parte da atividade nacional” (Gramsci, “Alguns temas da questão meridional”, Escritos Políticos 2, págs. 405-435). Antes, o elemento organizador da sociedade era o “velho intelectual da sociedade de base predominantemente
camponesa e artesã” (Op. cit.).

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A filosofia descolada do mundo – Em A Ideologia Alemã, lemos Marx e Engels ousadamente afirmarem: “A relação entre filosofia e estudo do mundo real corresponde à relação entre onanismo e amor sexual.” (Segunda parte, 6, C, “O liberalismo humano”.) Para quem não sabe, onanismo é masturbação… Algo como masturbação mental e intelectual. Eles chegam a afirmar, citando ipsis litteris uma frase do botânico alemão Albert Wigand: “É preciso “deixar a filosofia de lado” (Wig[and,] p. 187, cf. Heß, Die letzten Philosophen, p. 8), é preciso desembarcar dela e dedicar-se como um homem comum ao estudo da realidade, tarefa para a qual existe uma gigantesca quantidade de material literário, certamente desconhecido dos filósofos (…)”m Na segunda parte desta obra, sobre a organização do trabalho, Marx e Engels criticam diretamente a elucubração filosófica sobre a substância e a negligência dos filosófos para com o real. “A luta dos filósofos contra a “substância” e sua total negligência em relação à divisão do trabalho, à base material, onde tem origem o fantasma da substância, apenas comprova que estes heróis se voltam apenas para a destruição de frases, e de modo algum para a mudança das relações, de onde estas frases deviam surgir. Por isso, eles negligenciam tranquilamente a divisão de trabalho, a produção material e o intercâmbio material, justamente tudo aquilo que subsume os indivíduos a determinadas relações e modos de atividade. Em geral, para eles se trata, apenas, de descobrir novas fraseologias para a interpretação do mundo existente, fraseologias que se esgotam em bazófias burlescas na mesma medida em que eles cada vez mais acreditam se elevar acima deste mundo e pôr-se em oposição a ele. Do que Sancho constitui um exemplo deplorável.”

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Vemos, acima, a crítica radical de Marx e Engels a todas as filosofias até então, idealistas, e da filosofia como tal em sua forma clássica, ou seja, crítica da “filosofia” enquanto teoria pura ou interpretação pura, isenta de se submeter à verificação da prática e seu critério. É a crítica ao filósofo que governa as palavras como se as palavras tomassem o lugar do mundo, filósofo como demiurgo de um pseudo-mundo.

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“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; trata-se, agora, de transformá-lo” (Marx, 1978). Nesta famosa frase, Marx está conclamando a Filosofia para a atuação ou está chamando a atenção para o fato de que agora (século 19, com todo seu desenvolvimento) é a hora e a vez da ciência? Para Marx, a ciência tem um compromisso com a transformação social. Marx acredita que os filósofos estudaram o mundo, mas limitaram-se a isso, enquanto os cientistas devem agora transformá-lo. Ele afirma: “Só no contexto social é que o subjetivismo e o objetivismo, o espiritualismo e o materialismo, a atividade e a passividade, deixam de ser e de existir como antinomias. A resolução das contradições teóricas unicamente é possível através dos meios práticos, através da energia prática do homem. Por conseguinte, a sua resolução não constitui de modo algum apenas um problema de conhecimento, mas é um problema real da vida, que a filosofia não conseguiu solucionar, precisamente porque a considerou só como problema puramente teórico.” (Marx, 1971, p. 200)

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A tese 11 de Marx é um rompimento metodológico sem precedentes com a noção clássica (Pereira, 1990, p. 80).

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(Quando Deleuze e Guattari – dois autores da segunda metade do século 20, influentes em certos círculos brasileiros de hoje em dia, embora pareçam não se encaixar neste texto, mas faz algum sentido se os pensarmos no contexto do Maio de 68 e na insistência duma filosofia da imanência contra a transcendência vertical – afirmam, com o corpo sem órgãos de Artaud e com a ética de Espinosa (filósofo clássico querido por comunistas como Marilena Chauí ou Antonio Negri), mas também com as lutas de classes e a produção em Marx, que é citado várias vezes em O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia ou no Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, que o desejo não é falta, mas criar, produzir, e que não se trata de interpretar, como pensam a psicanálise freudiana, lacaniana, presas ainda a um platonismo renitente, mas de experimentar, não há aí também alguma influência marxiana ou marxista da tese 11? O último livro de Deleuze, que em seus últimos anos, n’O Abecedário, afirma que ainda é marxista, se chamaria “A Grandeza de Marx”. No livro de ambos, O Que é Filosofia, as ciências assumem a posição de criadoras de funções, enquanto a filosofia, a partir de problemas, cria conceitos num plano de imanência, sendo imediatamente contrária à religião, que está na posição vertical da transcendência.)

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O francês Georges Labica, em seu livrinho Democracia e Revolução (2002), ao afirmar que a revolução socialista, comunista não pode se aninhar na forma do Estado burguês/capitalista, nos lembra que a tese 11 de Marx opõe a palavra alemã verändern, “que não se reduz à vaga transformação, nem mesmo à metamorfose, já que ele diz respeito às próprias formas. A vontade de mudar não pode excluir o destruir.” (Labica, 2009, p. 44.)

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É especialmente importante também a anotação de Antonio Gramsci décadas e décadas depois, já no século 20, de que a tese 11 “não pode ser interpretada como um gesto de repúdio a qualquer espécie de filosofia, mas apenas de fastio para com os filósofos e seu psitacismo, bem como de enérgica afirmação de uma unidade entre teoria e prática.” (Gramsci, Caderno 10, II, S 31, págs. 339-346.)

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Mas a querela continuava, estabelecendo um embate que precisou e, diante dos nossos problemas atuais, ainda precisa ser resolvido. Nos `Manuscritos Econômicos-Filósóficos`, Marx faz uma distinção do papel das ciências naturais e da filosofia. Segundo o autor, a primeira tem um papel mais ativo na vida prática humana através da indústria: “(…) transformou-a (a indústria) e preparou a emancipação da humanidade, muito embora o seu efeito imediato tenha consistido em acentuar a desumanização do homem” (Marx, 1971, p. 201). Aqui, Marx ao menos considera a desumanização do processo de desenvolvimento.

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Engels, o grande amigo e companheiro de luta inseparável de Marx, afirmou que, por ressaltar a transitoriedade, “Não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado para a filosofia dialética” (Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã). Aqui, há uma afirmação da nova filosofia. Em outro momento, o co-fundador do materialismo histórico e do socialismo científico lembra que, na superação de Hegel, a dialética ficou reduzida “à  ciência das leis gerais do movimento, tanto do mundo exterior como do pensamento humano” (Op. cit., ). Este aspecto da obra de Marx e Engels foi notavelmente transformador e revolucionário, a ponto de se afirmar que o materialismo dialético “não necessita de nenhuma filosofia colocada acima das outras ciências”, restando da filosofia anterior apenas “a teoria do pensamento e das suas leis, a lógica formal e a dialética” (Engels, Anti-Dühring). Aqui, é praticamente como se a ciência tivesse superado a filosofia, que teria perdido o seu sentido no mundo moderno. Trata-se, na verdade, de um tipo específico de “filosofia” que foi superada – a metafísica, como sabemos. Seria a constatação de Engels uma negação total da filosofia e o predomínio da ciência? Não é assim que a posterioridade encarou dentro do próprio marxismo. Ganhou força a tentativa de constituir melhor a filosofia da práxis, que, embora não seja separada do processo de desenvolvimento e predomínio das ciências, conquista seu espaço a partir das consequências científicas pós-Marx e Engels, como vimos anteriormente na insuficiência da teoria nas ciências empírico-formais.

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Diante de tal posicionamento tácito que sublima a ciência sobre a Filosofia, gostaria de estabelecer três conclusões: 1) A filosofia do tempo de Marx e Engels, sobretudo os alemães em questão, era condizente com a ideologia burguesa mistiticadora e com a ideologia direitista do império prussiano-germânico, ou seja, era preciso uma crítica violenta à consciência descolada do real e à filosofia que, distraída pelo método clássico, simplesmente desconsiderava os novos progressos científicos. 2) No entanto, há algo de mais profundo na crítica dos dois, que remonta toda a história da filosofia: ela anda num descompasso em relação ao mundo real e às urgências desse mundo, muitas vezes imbuída de quietismo, principalmente quando, em meados do século 19, é defrontada com o pleno desenvolvimento da ciência, que age no real ou a partir do real e pode transformar a matéria. 3) Não se trata necessariamente de acabar com a filosofia, porque a filosofia tem o seu espaço próprio de conceituação, mas de evocar a partir do desenvolvimento da ciência uma filosofia nova, uma filosofia da práxis. Isto constituirá o materialismo filosofico, o materialismo histórico e dialético, o socialismo científico, que ja são métodos de ambas, filosofia e ciência.

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Isso tudo não quer dizer que Marx não tenha também escrito em termos filosóficos, enfim. Marx não deixa de trabalhar com conceitos – herança certamente hegeliana, que ele superará constantemente… Em Hegel, conceito é a universalização das categorias. O trabalho de Marx é basicamente voltado às categorias. Luckás foi quem trouxe à tona a palavra ontologia para tratar da pesquisa de Marx: há uma ontologia imanente… Quando Marx é crítico (a palavra crítica é constante e reiteirante em toda sua obra, até mesmo nos títulos dela), é porque parte de concepções e intervenções de fundo filosófico. Além do mais, ninguém nega que Marx tenha lidado com problemas filosóficos e com conceitos. Por exemplo, há um conceito marxista de dialética, de ideologia, de alienação, etc., partindo da filosofia clássica antiga e de Hegel, mas de maneira crítica e original em sua obra. Sua teoria social só pode ocorrer no interior de um invólucro dialético. Por fim, lembremos dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, lembremos do Miséria da Filosofia, das 11 Teses de Feuerbach ou mesmo da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São obras em que pululam conceitos filosóficos, mesmo que seja para criticar a própria filosofia. Enfim, não deixou Marx de transitar ou de desconhecer a filosofia e a história do pensamento filosófica. Em carta de 3 de março de 1870 para J. M. Weber, o próprio Marx testemunha (tradução minha a partir do Marx&Engels Collected Works, Volume 41): “Em Bruxelas, além de contribuições não remuneradas a diversos jornais radicais de Paris e Bruxelas, eu escrevi a Crítica do Criticismo Crítico [Marx refere-se ao livro A Sagrada Família] em colaboração com Fr. Engels (um livro sobre filosofia, publicado por Rütten, Frankfurt am Main, 1845), Misere de la Philosophie (livro sobre economia publicado por Vogler em Bruxelas e por Frank em Paris em 1847) [Miséria da Filosofia], Discours sur le libre échange (Bruxelas, 1848) [A Ideologia Alemã], um trabalho em dois volumes sobre a filosofia e o socialismo alemães dos últimos tempos (não publicado; veja meu prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, F. Duncker, Berlim, 1859), e numerosos panfletos.”

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“O problema de saber o que é a “ciência” deve ser posto. Não é a ciência, em si mesma, “atividade política” e pensamento político, na medida em que transforma os homens, torna-os diferentes do que eram antes? Se tudo é “político”, é preciso, para não cair num fraseado tautológico e enfadonho, distinguir com conceitos novos entre a política que corresponde àquela ciência que tradicionalmente se chama “filosofia” e a política que se chama ciência política em sentido estrito. Se a ciência for “descoberta” de realidade antes ignorada, não será esta realidade, em certo sentido, concebida como transcendente? E não se pensará que ainda existe algo de “desconhecido” e, portanto de transcendente? E o conceito de ciência como “criação”, afinal, não equivale a “política”? Tudo consiste em ver se se trata de criação “arbitrária” ou racional, isto é, “útil” aos homens para ampliar seu conceito da vida, para tornar superior (desenvolver) a própria vida.” (Gramsci, Caderno 15, S 10; 3, págs. 33-332).

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Este papel real e ativo do cientista e do filósofo é reiteirativo também em Antonio Gramsci, ou seja, na primeira metade do século 20. Não basta eloquência nem escolaticismo. É preciso que o intelectual esteja inserido na vida prática como construtor, organizador, “persuasor permanentemente, já que não apenas orador puro – mas superior ao espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho, chega à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual permanece “especialista” e não se torna dirigente (especialista + político).” (Gramsci, Caderno 12, S 3; 2, págs. 52-53).

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A Filosofia pode exercer sua própria tarefa em relação às teorias científicas. Pode e deve, como já foi escrito, ser um prolongamento das ciências, apoiando-se nas ciências. Eu defendo que a elaboração filosófica pode resultar num sistema que fornece base, sentido e perspectiva crítica à nossa realidade, aos nossos problemas e à própria ciência. A filosofia pode demarcar boas teorias científicas das não-científicas (falsificabilidade). Pode refletir criticamente sobre o sujeito e sua perspectiva em relação ao objeto. Pode conceituar a respeito do invólucro filosófico que engloba sujeito, pesquisa e objeto. O método do materialismo histórico, por exemplo, sem dúvida tem um invólucro da grande mãe da ciência, a Filosofia e sua Dialética. No auge do positivismo lógico, abordagens altamente formais das teorias as tratavam em termos de sistemas axiomáticos, cujos termos teóricos estavam intimamente ligados a um vocabulário observacional que deveria fundamentar o significado empírico; uma abordagem menos formal e mais contextualizada, anunciada no trabalho de Thomas Kuhn, enfatizava a abertura da atividade científica, o valor heurístico das analogias e modelos, a elasticidade e o holismo do significado, os quais sugeriam que uma abordagem excessivamente formal distorceu o assunto.

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Uma “filosofia da ciência” tem a utilidade, no século 20 e para este 21, de destecnocratizar a ciência, ao concebé-la como uma forma humana de ser no mundo, e pode mostrar que a ciência é atividade humana historicamente determinada (assim opera a filosofia da práxis). A técnica não pode manipular homens e elementos coisificados, sendo que nenhum outro campo do saber senão a filosofia intervém neste perigoso processo. Eis aí um dos papéis da filosofia da práxis, ainda mais pungentes hoje, pelo próprio desenvolvimento científico e novas formas de sociabilidade e trabalho virtual, do que nos séculos dos marxistas precedentes – reiterar que a técnica precisa mudar o homem, que a possui, pela própria práxis. Assim, a filosofia pode evitar a tecnologização do homem e humanizar a técnica. (Em seu Bodenlos: uma autobiografia filosófica, Vilém Flusser, filósofo tcheco naturalizado brasileiro e radicado durante 30 anos em São Paulo, que se debruçou sobre uma “filosofia da ciência”, apesar dos elementos demasiadamente metafísicos e até esotéricos de seu pensamento, é justamente o que acabei de escrever “o núcleo de todo verdadeiro marxismo”.)

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Estrutra e superestrutura, as ciências e a filosofia – Numa formativa passagem do “Prefácio” à Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx escreve: “É preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo.” De fato, as ciências exatas ou físicas são capazes de delinear objetivamente as forças sociais da estrutura, o grau de desenvolvimento das forças materiais de produção, os agrupamentos sociais que derivam deste desenvolvimento, a função e posição de cada um desses agrupamentos, o número de empresas e empregados, o número de cidades e sua respectiva população, o modo de produção, etc. A filosofia pode se utilizar desses dados para a sua concepção de mundo, mas tais dados não são o seu fim e objetivo. 

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Marx não desenvolveu uma teoria específica sobre a ciência ou a tecnologia. O que aparece como central na obra desse autor são as relações de produção, as relações trabalhistas, a divisão de classes e outros. Contudo, o pensamento instigante de Marx deu espaço para uma famosa e já bastante tratada discussão sobre a tecnologia, especialmente em “O Capital”, que tangencia também a questão do papel da ciência na nossa sociedade.

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A suposta autonomia da ciência – Para Marx, a ciência não é autônoma por três motivos. O primeiro refere-se ao fato de que uma ciência que se diz autônoma é ideológica, ou seja, acredita-se ou quer que acreditem-na desvinculada das relações de produção, autônoma, negando o dado do homem como ser social e ocultando seus comprometimentos sociais. Nesse sentido, ela não é nem autônoma nem neutra. O segundo motivo é relativo à questão de que a ciência, conforme Marx, tem um papel objetivo, direto, prático, portanto político que deve ser cumprido. O terceiro motivo, enfim, refere-se ao fato da ciência estar na superestrutura e, portanto, ser formada e mantida pela esfera econômica. Quanto a isso, parece incontestável: para haver pesquisa, é preciso haver condições materiais, além de determinados utensílios e ferramentas.

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Para Marx, os cientistas, como bem está colocado nas citações acima, têm de tomar posição política, tem de fazer uma intervenção social, uma vez que as ciências estão geralmente mais diretamente ligadas ao mundo material e a uma prática do que a filosofia. A ciência é e sempre será engajada: “Uma base para a vida e outra para a ciência constituem a priori uma mentira” (Marx, 1971, p. 201). O próprio Marx foi um intelectual engajado na medida em que investiu no socialismo científico não só para compreender a sociedade, mas, sobretudo, para dar respostas a problemas concretos.

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Os principais objetivos da discussão científica são o progresso da ciência e a pesquisa da verdade (Gramsci, Caderno 10, II, S 24; 1, 333), uma verdade que certamente não é absoluta, porquanto é próprio da natureza científica, sem deixar de incorporar pesquisas e descobertas anteriores ou até de adversários contemporâneos, desmistificar mentalidades e trazer constantemente outra(s) verdade(s) num continuum.

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Gramsci, ao definir marxismo como ciência e ação, cita Lênin – “o maior teórico atual da filosofia da práxis” – em relação a Marx (criador de Weltanschauungen, concepção de mundo), e fazendo uma associação (histórica, não religiosa!) entre os dois com Jesus, concepção de mundo, e Paulo, organização, continuação, expansão da Weltanschauung (Gramsci, Caderno 7, S 33; 1, 242-243). Do desejo ou mesmo da utopia para a ciência, e desta para a prática.

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“Só uma teoria revolucionária cria uma ação revolucionária” é a frase mais famosa do grande teórico da Revolução de 1917. Lênin – protótipo do intelectual revolucionário que parte da filosofia, da ciência, da teoria, do pensamento, do espírito para a prática, para o real, com todos os erros e glórias deste processo e fluxo -, em texto famoso sobre as três fontes e as três partes constituivas do marxismo, escreve que “A filosofia do marxismo é o materialismo”, denominando-o “materialismo filosófico”, e que “O materialismo histórico de Marx é uma conquista formidável do pensamento científico” (p. 36). Temos, aqui, um equilíbrio entre filosofia e ciência. As outras duas partes do marxismo são a economia inglesa de Adam Smith e David Ricardo, da qual Marx irá retirar valiosas teorias econômicas para sua crítica em O Capital, e o socialismo utópico (que se difundiu na passagem do século 18 para o 19), que virará científico com Marx e Engels. Este materialismo – que parte do materialismo francês do século 18 e depois bebe da filosofia alemã de Hegel (idealista, mas dialético, notando a matéria em desenvolvimento) e Feuerbach (que é crítico de Hegel, e que depois Marx e Engels irão criticar e superar) – é filosoficamente fiel a todos os ensinamentos verificáveis das ditas ciências naturais e hostil às superstições e às ideias meramente religiosas, enquanto que o materialismo histórico se transforma em método científico integral e harmonioso para analisar as forças produtivas e as formas de vida social, por exemplo, do feudalismo para o capitalismo, e deste para o socialismo, depois o comunismo, ou o ocaso em conjunto das classes em conflito, conforme assinala o início do Manifesto Comunista. Conclui Lênin: “A filosofia de Marx é o materialismo histórico acabado, que deu à humanidade, à classe operária sobretudo, poderosos instrumentos de conhecimento” (Op. cit, p. 37). Em outro texto mais cavado, um verbete com breve nota biográfica de Marx com uma exposição do marxismo, Lênin é plenamente consciente do legado da velha filosofia idealista para a nova filosofia materialista e para a ciência utilizada pelo marxismo.

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Em determinado momento dos Cadernos do Cárcere, a respeito da questão da “natureza humana”, Gramsci anota: “O problema do que seja o homem […], isto é, a tentativa de criar uma ciência do homem (uma filosofia) que parta de um conceito inicialmente ‘unitário’, de uma abstração na qual se possa conter todo o ‘humano’ […]” (Gramsci, Caderno 7, S 35; 1, p. 243). Atenção para este trecho que praticamente estabelece um sinônimo: “uma ciência do homem (uma filosofia)”…

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Para Antonio Gramsci, todos têm o potencial de serem filósofos, porque todos pensamos, lidamos com problemas altos ou do “senso comum”, podemos ser críticos e até criarmos concepções de mundo. No entanto, os filósofos “profissionais” ou “técnicos” possuem maior homogeneidade, coerência e logicidade do que as demais pessoas, trabalham com maior rigor, originalidade e sistematização, conhecem também toda a história do pensamento, além do fato de que nem toda concepção da vida e do mundo, nem qualquer tendência de pensamento ou orientação podem ser chamados de filosofia. “Ele [o filósofo] tem, no campo do pensamento, a mesma função que, nos diversos campos científicos, têm os especialistas. Entretanto, existe uma diferença entre o filósofo especialista e os demais especialistas, a saber, a de que o filósofo especialista se aproxima mais dos outros homens do que os demais especialistas. Foi precisamente o ter feito do filósofo especialista uma figura similar, na ciência, aos demais especialistas aquilo que determinou a caricatura do filósofo. Com efeito, é possível imaginar um entomólogo especialista sem que todos os outros homens sejam “entomólogos” empíricos, ou um especialista de trigonometria sem que a maior parte dos outros homens se ocupem da trigonometria etc. (podem-se encontrar ciências refinadíssimas, especializadíssimas, necessárias, mas nem por isso ‘comuns’), mas é impossível pensar em um homem que não seja também filósofo, que não pense, precisamente porque o pensar é próprio do homem como tal (a menos que seja patologicamente idiota).” (Gramsci, Cadernos, 10, II, S 52; 1, págs. 410-411).

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A filosofia, no marxismo, é a práxis, ou seja, é a relação entre a vontade humana (superestrutura) e a estrutura econômica (Gramsci, Caderno 7, S 18; 1, págs. 236-237). Nesta relação, encontra-se também o desenvolvimento dialético entre natureza e forças materiais de produção, entre homem e matéria. Na economia, o valor, a teoria do valor é o centro unitário. Na política, há a questão do Estado e da sociedade civil.

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Filosofia e Política é pensamento e ação, é filosofia da práxis (Gramsci, Caderno 7, S 35; 1, p. 246). Uma filosofia que abarca a massa, porque possui uma concepção de massa, e cuja função não é o individualismo do pensador, mas a unidade social na qual ele está inserido, ou seja, direção política (Gramsci, Caderno 10, II, S 31; 1, págs. 339-346). O movimento dos trabalhadores e estudantes brasileiros e latino-americanos precisa ser, já é, herdeiro da nossa filosofia: continua o predecessor, mas o continua praticamente sem contemplação, conhecimento real sem “escolasticismo”, mas com ação e vontade ativa transformadoras.
“A precedência passa à prática, à história real das modificações das relações sociais, das quais, portanto (e portanto, em última análise, da economia), surgem (ou são apresentados) os problemas que o filósofo se propõe e elabora” (Op. cit.).

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Teoria e prática – A prática é o ato de realizar. O professor Georges Politzer ensinava que a indústria e a agricultura, por exemplo, realizam, ou seja, tornam reais certas teorias (teorias químicas, físicas, biológicas, etc.), ao passo que, para ele, a teoria é o conhecimento das coisas que queremos realizar (POLITZER, 1979, págs. 19-20). Eu acrescentaria este “realizar” (que, por si só, une uma teoria a uma prática) a também “transformar”, “alterar”, “mudar”, ou até mesmo “destruir”. Ser apenas prático é realizar por rotina, e a rotina aliena. É possível também ser apenas teórico – o que periga conceber o que é irrealizável. Portanto, é preciso haver uma interligação entre a teoria e a prática.

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Ainda que sem um horizonte de realidade e/ou de prática a teoria não deixe de ter componentes abstratos, devemos liberar a teoria de qualquer “tecnicismo” ou mesmo do sinônimo único de “pensamento puro”, tampouco associarmos a teoria apenas ao “conhecimento abstrato e intelectualista”, porque “não é a teoria que se opõe à prática pura, é a abstração” (Pereira, 1990, p. 11).

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Teoria e prática, práxis – Prática separada da teoria não é ação consciente e transformadora, é prática pura, nos impossibilita de passar da prática à práxis, ou seja, de completar a síntese e a unidade (Pereira, 1990, p. 75). Não confundir prática com práxis, apesar das semelhanças entre tais palavras. Quando falamos em teoria, precisamos considerar o aspecto teórico da prática, que abre o ato para seu significado cultural e amplia a ação para uma finalidade, uma teleologia. A filosofia da práxis ocorre justamente ali do aspecto teórico da prática para a unidade teoria/prática.

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A dialética da relação teoria/prática – Antes de tudo, quem diz dialética diz movimento, contradição e dinâmica. Então, por que é que a teoria precisa estar presente no processo de construção da práxis? Porque a prática pura não cria cultura nem transforma a História. A contradição máxima da relação teoria/prática se dá pelo fato de que não podemos nos livrar nem da teoria nem da prática. Negamos a prática pura como instintiva ou mecânica. Através da teoria, devolvemos à prática pura algum significado histórico, social, cultural, psicopolítico, geopolítico, etc. Portanto, atenção: na verdade, não existe de maneira absoluta separação entre teoria e prática! Não se idealiza uma prática sem já estar em tal prática. Eis a contradição máxima desta relação, que revela uma separação apenas de âmbito formal, um círculo vicioso mais ou menos falso de priorizar a teoria sobre a prática ou a prática sobre a teoria. (Um exemplo de contradição, corriqueiro neste século: as redes sociais. Elas “individualizam”, mas, ao mesmo tempo, imbricam todos em rede, sem a qual não existe sem tal coletividade. O próprio sistema capitalista é assim. Tanto o jovem que trabalha em call center quanto o trabalhador rural estão em realidades muito diversas, mas ambos imbricados num mesmo sistema, o que, aliás, nos leva à conclusão de que a luta anticapitalista tem de ser também unitária, fluída e totalizante. O capital é apenas comando e obediência, resposta a um trabalho que gera valor. A contradição máxima do capital, portanto: não existe sem resposta a um trabalho que gera valor, não existe sem trabalhador. A pandemia do coronavírus deixou isto explícito. Toda greve de trabalhadores escancara tal realidade e o poder das forças produtivas detidas pelos trabalhadores contra o acúmulo de capital nas relações de produção.)

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Teoria não se faz apenas com pensamento, ou nós seríamos apenas máquinas pensantes: ligado à prática, o ato teórico se estabelece a partir do que somos no mundo, um nó de relações concretas, materiais, físicas, de desejos, geopolíticas, telúricas, sociais, etc. como um todo, uma amálgama. (Pereira, 1990, págs. 84-85). Não podemos achar que a teoria se articula apenas no ato de pensar, mas sim em algum dos níveis ou camadas do real.

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Ideologia, teoria e prática – Ideologia em seu duplo sentido. Ideologia enquanto supraideia, metaideia, então nossos atos e teorias e nossa práxis são ideológicos, porque são sociais e históricos, e ideologia como aquilo que toma o falso pelo verdadeiro, a consciência falsa que Marx e Engels tratam em A Ideologia Alemã, uma consciência moldada pela classe dominante, já que é ela que detêm a propriedade privada dos meios materiais de produção, os jornais e a mídia de maior disseminação e circulação, etc.

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Teoria e prática – A unidade entre teoria e prática é como a do intelectual com o simples: elaboração e concepção que são colocados na atividade real. Para se transformar em vida, para se depurar de elementos intelectualistas que a confinam num grupo restrito, a filosofia tem de trabalhar na construção de um pensamento que seja superior ao senso comum e cientificamente coerente, encontrando nos “simples” a fonte dos problemas a serem estudados e solucionados. Tal unidade não é um dado de fato mecânico, mas um devir histórico que possui uma fase primitiva em que o sentimento é de “separação” até a concepção de mundo unitária (Gramsci, Caderno 11, S 12; 1, págs. 93-114). Ainda é preciso, nos dias de hoje, melhorar o conceito dessa unidade, porque, geralmente, a teoria é vista como acessório, complemento ou até serva da prática, por conta de resquícios de mecanicismo, quando, na realidade, as distinções entre teoria e prática não podem levar a separações nem à insistência sobre o elemento prático da ligação teoria-prática.

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Teoria e prática, mesmo – Aos comunistas, conforme bem anotou Gramsci (Caderno 15, S 22; 1, p. 260), temos dois modos de agir na unidade de teoria e prática, a saber: 1) Com base numa prática, construir uma teoria que acelere em ato o processo histórico pela identificação dos elementos decisivos da própria prática; 2) Através de uma posição teórica, é possível organizar elementos práticos indispensáveis para que essa teoria seja colocada em ação.

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Teoria e prática, transição – São nos momentos históricos de transição que a unidade entre teoria e prática está mais explícita, pois as forças práticas de transformação e a própria realidade demandam uma justificação, no momento mesmo em que partiram de alguma elaboração e pensamento precedentes que foram consolidados. Em momentos pós-revolucionários ou pré-revolucionários, o sentimento de separação, assim como a urgência de unidade entre teoria e prática, pesa muito mais.

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Teoria e prática, unidade perfeita através da ciência – A ciência é a atividade teórica ou a atividade prático-experimental dos cientistas? Ou síntese de ambas? Há sem dúvida um processo unitário do real na mediação dialética entre o homem e a natureza. De acordo com Gramsci: “A experiência científica é a primeira célula do novo método de produção, da nova forma de união ativa entre o homem e a natureza. O cientista experimentador é um operário, não um puro pensador; e seu pensar é continuamente verificado pela prática e vice-versa, até que se forme a unidade perfeita de teoria e prática.” (Gramsci, Caderno 11, S 34; 1, págs. 166-167).

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Filosofia da práxis e ciências empírico-formais – Nas ciências empírico-formais, as teorias e leis surgem após o fato, embora haja também toda uma ciência voltada para a previsibilidade e para o que pode ocorrer de acordo com sinais da realidade presente (por exemplo, os estudos sobre o impacto terrível do capitalismo no meio ambiente, o aquecimento global e os prognósticos preocupantes para os próximos anos e para este século, relacionados a estatísticas e outros dados de pesquisa progressivos a respeito do passado e do presente). Na filosofia da práxis, por sua vez, eu considero que a teoria assume uma função mais complexa: pode se referir ao acontecido, ao fato, a um objeto da ciência política, do socialismo científico e do materialismo histórico (por exemplo, a teoria do elo mais fraco de Lênin, que é uma constatação, embora Marx sempre retorne mais certo ao ter afirmado que a revolução em regiões atrasadas seria problemática, simplesmente porque os revolucionários começariam o socialismo do zero, sem riqueza capitalista a socializar, e, justamente por isso, o próprio Lênin teve depois de criar a NEP, assim como Cuba, após sua revolução socialista e na periferia do hegemonismo econômico, administra aos trancos e barrancos a sua transição socialista cercada por um mundo que internacionalizou o capitalismo, além de criminosas sanções dos EUA), mas, na filosofia da práxis e parece que somente nela, a teoria tem também o potencial de ser teoria que se antecipa à prática e influi na prática, ou seja, num devir em preparo que pode ser iminente e impelir. A teoria da filosofia da práxis projeta; modela idealmente (no plano das ideias, não o idealismo extrínseco à realidade) um processo.

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O estudo da matéria ajuda na proximidade e diferenciação da atuação entre filosofia e ciência – Se a filosofia da práxis não é propriamente ciência em si, se é tão independente e historicamente original quanto insiste Antonio Gramsci, como ela concebe a matéria? Para a filosofia da práxis, não deve a matéria ser entendida nas diversas “metafísicas materialistas” nem no âmbito das ciências naturais (física, química, mecânica, etc., sendo tais significados considerados, é claro, não são ignorados pela filosofia da práxis, mas são registrados e estudados em seu desenvolvimento histórico). Na filosofia da práxis, propõe Gramsci, as propriedades físicas, químicas, mecânicas, etc. da matéria não deixam de ser consideradas, mas só na medida em que já são “elemento econômico” produtivo, ou seja, a matéria é considerada como “social e historicamente organizada pela produção e, desta forma, a ciência natural deve ser considerada essencialmente como uma categoria histórica, uma relação humana.” (Gramsci, Caderno 11, S 30; 1, págs. 160-163).

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Filosofia da práxis e ciência política – A filosofia da práxis é uma “concepção sistemática (coerente e consequente) do mundo” (Gramsci, Caderno 13, S 10; 3, págs. 26-27). A distinção entre a filosofia da práxis e a ciência política não se dá em termos de momentos teóricos (lógica e estética) e práticos (ética e economia), mas no de fato que a ciência política ocupa um espaço na filosofia da práxis em relação aos graus da superestrutura, sendo a atividade política justamente o primeiro momento ou primeiro grau superestrutural (Op. cit.). Assim, a filosofia da práxis é mais abrangente, mas precisa: considera o modo econômico estrutural no bojo do materialismo histórico, a ciência política e a unidade teoria/prática, além de todo o legado conceitual e humanista da história da filosofia.

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O que é práxis – Práxis não é a prática pura, práxis é “o coroamento da relação teoria/prática” “como questão eminentemente humana” (Pereira, 1990, p. 70). Práxis é ação transformadora de si e dos outros, da realidade; o nível superior de tal ação transformadora (páxis) é a ação revolucionária (Pereira, 1990, p. 72). Como se vê, o campo da práxis é mais complexo e rico do que a simples prática. A práxis engloba teoria-prática. Parece-nos, até que se mostre o contrário, que os “animais” (em falta de palavra mais complexa para tratar de seres tão diversos, usamos esta) possuem instintos e também agem de acordo com algum tipo de “prática pura”, sem teoria, sem elaboradas significações e reflexões sobre seus atos pretéritos e por vir, ainda que o “reino animal”, dos “insetos” e mesmo o chamado “reino vegetal” nos apresentem tantas vezes um invejável desenvolvimento e aperfeiçoamento prático. As massas, lato sensu, se movimentam no cotidiano, agem o tempo todo, mas é em certos momentos que revelam seu potencial coletivo e organizado de práxis… A rotina nos aliena. De todo modo, nós podemos fazer a relação social e criar ou mudar a história. (Mas, atenção: Marx lembra no início de O 18 Brumário de Luís Bonaparte que fazemos a história não de maneira autônoma, mas de acordo com circunstâncias materiais mais ou menos determinadas.)

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Se a práxis não é a prática pura, é “a prática objetivada (individual e socialmente) pela teoria” (Pereira, 1990, p. 77). Uma prática aprofundada pela consciência crítica, ou seja, consciência que percebe as determinações e condições sociais da realidade (nacional, continental, internacional) pelas quais podemos atuar, mesmo que seja para destruí-las em emancipação e liberdade. Práxis é ação “transformadora do natural, do humano e do social” (Op. cit.).

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A prática é o fundamento da teoria. Teoria fora do horizonte da prática é abstração. Este é um princípio básico da filosofia da práxis. Por outro lado, esquecer da teoria ou até mesmo desprezá-la, como se fosse uma “contemplação inútil”, em nome da sobreposição de uma “prática”, leva-nos apenas ao pragmatismo e ao utilitarismo (Pereira, 1990, p. 80). Assim, enquanto a teoria pode ter alguma “autonomia” em relação à prática, porque a antecipa e a influi, a prática possui primazia em relação à teoria (Pereira, 1990, p. 76). Mas, justamente porque podemos idealizar ou projetar uma prática antes dela acontecer no plano da realidade, é que a teoria deve servir de instrumento à práxis social, isto é, tanto no pensamento quanto na ação, constituir um projeto humano pessoal e social, coletivo, nacional, continental, internacional, global, etc.

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Qual teoria? Qual prática? Estas duas perguntas críticas importam muito… Certamente não são quaisquer uma. Um militante comunista, trabalhador e/ou estudante, precisa de uma filosofia e de um método de análise e de raciocínio que sejam justos para que a sua ação revolucionária de transformação das realidades e da História seja justa também: sem dogmatismo, sem soluções acabadas, mas com circunstâncias e fatos que nunca são os mesmos, procurando não separar a teoria da prática (POLITZER, 1979, p. 20). Ora, é justamente tal filosofia e tal método que se encontram no materialismo dialético, base fulcral do marxismo.

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Teoria e prática, sabedoria de vida – Quando pinta o ranço da teoria ou ela já se extrapola para fora, vai-se para a prática; quando fracassamos ou somos fatalmente impedidos pela direitalha, mergulhamos na teoria. Com a derrota das revoluções de 1848, ele, antes protagonista revolucionário de tal momento histórico, mergulha no estudo do sistema que maravilhosamente produz riqueza e vida material como nenhum outro na história da humanidade, gerando do outro lado mais e mais pobreza e problemas humanos… Com a prisão pelo fascismo, que derrota o movimento operário e revolucionário de seu país e mina todos os seus planos, ele não pode fazer outra coisa senão mergulhar também no teórico e na teoria para compor os seus Cadernos do Cárcere. Não é justamente este o sentido de pessimismo na razão e otimismo na ação?

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Para Antonio Gramsci, a filosofia da práxis “é igual a Hegel + David Ricardo” (Gramsci, caderno 10, II, S 9; 1, págs. 317-318). O que ele quer dizer com isso? Que as contribuições metodológicas de Ricardo para a ciência econômica (por exemplo, a teoria do valor, a regularidade) e para o trabalho de Marx e Engels, fundadores da filosofia da práxis, do socialismo científico e do materialismo histórico e dialético, podem trazer também alguma inovação filosófica, já que o princípio lógico da “lei tendencial” – pela qual encontra-se a definição científica de cânones fundamentais da economia, como o homo economicus, o “mercado determinado” -, garantiu uma descoberta de valor também gnosiológico. (Gnosiologia, teoria do conhecimento humano; termo proveniente da filosofia estética do século 18; na antiga União Soviética e período subsequente à sua dissolução, foi utilizado como sinônimo de epistemologia.) Trata-se, sugere Gramsci, de uma nova imanência, de uma nova concepção filosófica da necessidade e da liberdade. Aqui, temos substanciais atributos para a nova filosofia, não apenas para a ciência econômica. Gramsci conclui que a filosofia da práxis universalizou as descobertas de Ricardo ao extendê-las para toda a história e extrair delas uma nova concepção do mundo e da vida (Op. cit).

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“A filosofia da práxis é o historicismo absoluto, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história. Nesta linha é que deve ser buscado o filão da nova concepção do mundo. […]” (Gramsci, Caderno 11, S 27; 1, p. 156). A filosofia da práxis revela nova síntese e concepção de mundo, como nunca antes na história, e da própria filosofia.

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De acordo com Gramsci, a “teoria” da filosofia da práxis é constituída pela resposta das seguintes perguntas, além de outras: “Que é a filosofia? Em que sentido uma concepção do mundo pode se chamar filosofia? Como tem sido concebida, até nossos dias, a filosofia? A filosofia da práxis inova esta concepção? Que significa uma filosofia ‘especulativa’? A filosofia da práxis poderá algum dia ter uma forma especulativa? Que relações existem entre as ideologias, as concepções do mundo e as filosofias? Quais são, ou devem ser, as relações entre a teoria e a prática? Como são concebidas estas relações pelas filosofias tradicionais? etc. etc.” (Gramsci, Caderno 11, S 26; 1, p. 149).

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Em Gramsci, a filosofia da práxis não está simplesmente cindida como teoria da história e da política a ser construída de acordo com os métodos das ciências naturais e de um materialismo filosófico ou metafísico ou mecânico (vulgar); na verdade, o autor dos Cadernos do Cárcere concebe a filosofia da práxis como “uma filosofia integral e original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e, superando, integra em si os seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicionais, expressões das velhas sociedades.” (Gramsci, Cadernos, 11, S 22; 1, págs. 140-144.) Tal superação se efetua e se expressa numa nova dialética; para concebê-la e compreendê-la, ensina Gramsci, não se pode pensar a filosofia da práxis apenas como subordinada a uma outra filosofia (Op. cit.).

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“Uma ‘teoria’ é revolucionária”, escreve Gramsci, “precisamente na medida em que é elemento de separação e de distinção consciente em dois campos, na medida em que é um vértice inacessível ao campo adversário.” (Gramsci, Caderno 11, S 27; 1, págs. 152-156.) A filosofia da práxis, portanto, é independente e está em antagonismo com todas as filosofias e religiões tradicionais; é assim ou, então, significa não ter rompido os laços com o velho mundo ou, até mesmo, ter capitulado (Op. cit.).

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A filosofia da práxis inovou tudo e segue pertinente, porque é “subversiva”. Podemos crescer, amadurecer e progredir a partir de nossas práticas teorizadas e refletidas. O inverso também é válido. Mas o oposto é direitismo, fascismo, neonazismo, mistificação, rigidez, etc. A filosofia da práxis rejeita a mera abstração e o mero pragmatismo – são campos de alienação. Todo respaldo teórico e crítico serve ao projeto emancipatório da humanidade e também contra a mediocridade do senso comum. A filosofia da práxis, em todas suas vertentes, seja na política estrito senso ou nas artes, deve lutar por uma nova cultura e um novo humanismo a partir da crítica dos costumes, sentimentos, concepções vigentes de mundo para o social e o comum.

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“O que será conservado do passado no processo dialético não pode ser determinado a priori, mas resultará do próprio processo, terá um caráter de necessidade histórica e não de escolha arbitrária por parte dos chamados cientistas e filósofos.” (Gramsci, Caderno 10, II, S 41, XIV-XVI; 1, págs. 393-396.)

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Voltemos à concepção anterior de teoria, para resumi-la em termos marxianos. Para Marx, a teoria é um modo especial de apropriação, de apreensão da realidade e da materialidade pelo cérebro humano (V. posfácio da segunda edição se O Capital). É aquela modalidade de conhecimento pelo qual o pesquisador reproduz idealmente, ou seja, na sua cabeça, no seu cérebro, o movimento real, histórico e as tendências de desenvolvimento do objeto pesquisado. Nesse sentido estrito, a obra O Capital é a expressão tornada consciente pela atividade da pesquisa humana do movimento real do próprio capital. A análise teórico-crítica das condições da produção material como fundamento necessário para a análise da vida social que se ergue sobre esse fundamento, embora o próprio Marx saiba que a vida social vai além e é mais complexa, sendo, no entanto, o modo econômico e sua organização das produções materiais da existência dos homens indispensável de ser considerado. Usa-se o termo “marxiano” para tratar da obra mesma de Marx, desvinculando-a dos “marxismos” posteriores e principalmente de suas experiências políticas, sociais, históricas reais que muitas vezes maculariam a obra de um dos maiores gênios do século 19. É famosa, entre os marxistas, a afirmação do próprio Marx de que ele próprio não era marxista. Esta é uma posição polêmica e problemática, se o “marxiano” não servir para o marxismo. Se ficar reduzido apenas ao que se chama de “teoria marxiana”, o empenho cai no círculo vicioso das ciências experimentais transposto para as ditas ciências sociais, como vimos anteriormente, ou esquece-se da práxis, formando universitários ou cientistas que até podem ser anticapitalistas, mas que não contribuem para a filosofia da práxis. O professor José Paulo Netto tem reiterado a separação, insistindo sempre que a teoria em Marx é a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa, e que, “pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a dinâmica do objeto que pesquisa” (2011, p. 21). Esse movimento ocorre por meio de gênese, consolidação, desenvolvimento e fim (ou crise), em relação dinâmica e contraditória (dialética). Compreendemos, nesta esteira, que a teoria social em Marx gira em torno da historicidade e da valoração da sociedade burguesa a partir do socialismo científico e do comunismo crítico. Seu objeto principal é o capital, ou as relações sociais da sociabilidade burguesa, com todas suas contradições entre as forças produtivas possuídas pela classe trabalhadora as relações de produção estabelecidas por enquanto pela burguesia. Seu método é o materialismo histórico e dialético.

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Não pode ser só isso. Para finalizar, portanto, outra vez Marx, mas o Marx revolucionário, que extrapola o retrato “universitário” e intelectual do parágrafo anterior, embora aquele complemente este e este dê sentido real ao outro, sendo ambos senão um só indivisível: “A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas assim que se evidencia ad hominem [no ser humano], e de fato ela se evidencia ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar a questão pela raiz. Mas a raiz, para o ser humano, é o próprio ser humano.” (Marx, 2010, p. 151.)

18 de maio de 2020

BIBLIOGRAFIA

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Ed. de Carlos Nelson Coutinho, M. A. Nogueira e L. S. Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 6 vs., 1999-2003.

________. Escritos Políticos 1910-1926. Ed. de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2 vs., 2004.

LÊNIN, V. “As três partes e as três fontes constitutivas do marxismo” (1913) e “Karl Marx (breve nota biográfica com uma exposição do marxismo)” (1914). in: V. I. Lénine – Obras Escolhidas (em Três Tomos), Tomo II, Editorial Avante!, 1977 (edição portuguesa).

MARX, Karl. O Capital – Critica da Economia Política. Livro Primeiro. Tradução de Reginaldo Sant’anna. Difusão Editorial, 1984 [1867].

_______. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, 2010 [1843].

________. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1971 [1844].

_________. Teses Contra Feuerbach. (Coleção Os pensadores). São Paulo: Ed. Abril, 1978 [1888].

NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

PEREIRA, Otaviano. O que é teoria. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 7a. edição, 1990 [1982].

POLITZER, Georges. Princípios Elementares de Filosofia. 9a. edição. Lisboa: Prelo, 1979.

SIMÕES, Darcilia. “Ciência, teoria e método” in: SIMÕES, Darcilia e GARCÍA, Flávio (orgs.). A Pesquisa Científica Como Linguagem e Práxis. Dialogarts Publicações, 2014.

17 comentários em “O que é teoria? Marxismo e obra marxiana entre a Filosofia e a Ciência: aproximações e diferenças”

    1. Muito bom, professor. Sarei algumas dúvidas que tinha a respeito da metafísica, e tmb reforcei minha perspectiva materialista de compreensão da realidade. Interessante a maneira como Diderot trabalha em cima do materialismo e refuta os espantalhos do essencialismo metafísico, é muito mais coerente à concretude.

    1. Um texto introdutório mui elucidativo sobre o que é teoria, filosofia, prática e práxis. Ótimo pontapé inicial.

  1. Parabéns Fernando! Extraordinário texto introdutório. Cheia de expectativas para o Curso! Abraço.

  2. Professor, sua abordagem muito me surpreendeu, mas não pude deixar de ter algumas dúvidas, algumas sanadas pelo próprio texto, na sequência da leitura, outras com uma breve pesquisa no google. Mas valem fazer algumas, a saber:
    1. o que se quis dizer com o “eletromagnetismo”, como exemplo das ciências interligadas (tópico 7)?
    2. Como ocorreu a transição do materialismo para o mercantilismo e deste para o positivismo (tópico 8)?
    3. Não haveria um equívoco em afirmar que (tópico 10) o “‘teoricamente’ deveria ser assim, mas ‘na prática’ é outra coisa”, a partir da premissa de que a teoria é a “condição hipotética ideal, a qual tenha pleno cumprimento de normas e regras, que na realidade são observadas imperfeita ou parcialmente”? Não seria melhor dizer que teoricamente se observa dessa forma, mas na prática se observa de outra, uma vez que o conceito trabalha que “na realidade são observadas”, com ênfase na observação, “perfeita ou parcialmente”?
    4. Há uma afirmação (tópico 13) de que as ciências humanas não têm uma linguagem universal como as outras ciências. Gostaria de saber quais ciências têm uma linguagem universal e se você acredita, como diz pude inferir do texto, que a linguagem matemática é universal, mesmo havendo a inexisténcia do “zero” para algumas civilizações, para ficar nesse exemplo?
    5. No texto (tópico 23), diz que o cientista não pode ter linha de pensamento, mas isso parece se contradizer com o que o próprio Marx fala sobre o cientista ter um posicionamento político (tópico 45).
    6. O que seriam as “metafísicas materialistas” (tópico 64)?

    1. Olá, José Wendel. Como tais questionamentos são pertinentes, vou me alongar um pouco, mas não muito. Aí vão as respostas para as tuas ótimas perguntas:

      1) O eletromagnetismo é a “fusão” de duas ciências, a saber a eletricidade e o magnetismo; é a parte da Física que relaciona ambas, estabelecida sobretudo em 1820 pelo dinamarquês Hans Christian Ørsted, o que só foi possível naquela época com a invenção dos geradores elétricos, que permitiam gerar correntes elétricas duradouras e estáveis para o estudo dos fenômenos! Até o século 19, ambas estavam “separadas” pelo entendimento geral, assim como todos os fenômenos e ciências e categorias eram separadas, por causa da tendência metafísica de querer que se desconheçam as relações das coisas na noção de que nada haveria de comum entre elas, e que “sempre foi assim” (terceiro caráter da metafísica, conforme explica Politzer em seu livro que está na bibliografia deste texto, e que verificamos frequentemente no senso comum) – mas também porque o conhecimento material dos fenômenos era ainda insuficiente para os pesquisadores dos séculos passados, influenciados pela noção clássica, quando os antigos começaram a estudar a realidade num estado de praticamente ignorância, e sem aparelhos e instrumentos de melhor precisão e observação dos objetos de estudo dos fenômenos (como o microscópio e o telescópio, apenas para ficarmos nos modernos, foram um ponto de virada na história da ciência e, por consequência, da humanidade). Com o desenvolvimento das ciências empírico-formais de experimentos, vários testes provaram a interligação das ciências: biologia e química eram separadas, mas o estudo da digestão, por exemplo, que é do domínio da biologia, torna-se impossível ou incompleto sem a química, assim como os fenômenos da física (som, calor), que antes eram estudados separadamente, hoje sabe-se que eram da mesma natureza (ao bater com um martelo, temos um som e obtemos calor, por causa do movimento), etc. A história progressiva da ciência é um estudo maravilhoso. Não irei discorrer sobre todas as experimentações que levaram a tais conclusões, porque são numerosas; no caso do referido eletromagnetismo, também era completamente separado entre eletricidade e magnetismo, mas os testes, sobretudo a partir de Ørsted, provaram a interligação dos fenômenos da eletricidade e do magnetismo, fazendo com que a teoria do eletromagnetismo, nesses exatos 200 anos (1820 a 2020), considere ainda hoje, antes de tudo, os seguintes princípios inovadores: 1) Cargas elétricas em movimento geram campo magnético; 2) Variação de fluxo magnético produz campo elétrico. A partir de conhecimentos como estes, o materialismo tornou-se plenamente dialético, inclusive na filosofia dialética, ou será um retrocesso metafísico.

      2) O livrinho O Que é Teoria, que está na pasta do grupo, explica tal processo histórico, embora sem grande aprofundamento, de maneira simples e precisa.

      3) Mas essa afirmação é a afirmação do senso comum. Não é, mesmo, uma afirmação 100% correta, apenas um exemplo tirado do senso comum.

      4) Para isso seria preciso um estudo da História da matemática… Não vou me aprofundar, mas o zero só se consagra na Europa (!) por volta do século 15, embora saibamos que outras civilizações já o utilizassem desde a época antiga. O zero matemático tem um cordão umbilical com o “shunya” (“zero”, em sânscrito) indiano. Portanto, a “inexistência” do zero só era observada em certas sociedades da história passada, quando a separação entre filosofia e ciência não era clara nem definida, e quando a “globalização” e o intercâmbio de conhecimentos – que, aliás, se estabelecem justamente nos momentos de avanço científico e de modo econômico estrutural mais desenvolvido, como no século 16 ou 20 e de forma ainda mais surpreendente e constante neste 21, cada um com suas respectivas “tecnologias” – era limitado. Hoje, não tem nada que ver; as ciências ditas exatas e as ciências empírico-formais são completamente uniformizadas mundialmente, possuem uma linguagem própria, sejam os números ou o uso do latim (para as espécies da biologia, por exemplo), enquanto as humanas estão diretamente inseridas aos diferentes idiomas. Assim, a arte, sobretudo a literatura, existe de acordo com uma língua e com um povo determinado, embora exista o fator da influência; a filosofia também: uma “filosofia alemã” está intimamente interligada à “língua alemã”, assim como a criação de uma “filosofia brasileira” requer não apenas que nos debrucemos sobre os “grandes temas nacionais” (e sua relação com os temas internacionais), mas requer a criação de uma língua própria dentro da língua portuguesa, e dentro do português brasileiro.

      5) Essa é uma ótica pergunta, porque é sutil. Retirei tais afirmações do livrinho de Otaviano Pereira. Nele, o autor escreve que “na filosofia, a visão de Deus, existência, mundo, etc. depende da interpretação do filósofo ou da ‘linha de pensamento’ seguida por ele.” Desta forma, na filosofia, temos várias concepções de existência, de mundo, etc., muitas delas contrastantes, imediatamente opostas. Seria estranho acontecer o mesmo na ciência: não há múltiplas teorias contrastantes do eletromagnetismo, por exemplo… Compreende? Desta maneira, no procedimento da ciência, se há teorias contrastantes e opostas sobre um mesmo assunto, fato ou campo é preciso se valer de verificabilidade, testes, experimentações para que se mostre que uma delas (ou ambas) se equivocou, fazendo com que seja(m) desconsiderada(s) em âmbito internacional, ou que se preserve algum elemento fidedigno em relação às duas ou a uma delas, etc. – enfim, todo esse modus operandi será válido para todos os cientistas, e sabemos que, de fato, a ciência progride e se movimenta assim. (Perceba que o que eu acabo de afirmar torna-se problemático nas ciências ditas humanas, por motivos que já esbocei no texto em relação à diferença destas para com as ciências ditas exatas e empírico-formais, e por outros fatores, certamente também pela herança filosófica de concepção de mundo que há nas ciências ditas humanas: na sociologia, por exemplo, a teoria social é diferente em Marx e Weber e Durkheim, fazendo com que criem-se “escolas” de pensamentos…) Estamos, então, se referindo à Filosofia em termos amplos, historicamente gerais, e como tendência, não ainda à filosofia da práxis, que se apoia na ciência e leva a ciência para uma concepção que será prática. Se houve uma separação formal entre ciência e filosofia, a verdade é que, hoje, a filosofia que desconsidera a ciência, as suas conclusões sobre o real, é meramente uma pseudofilosofia direitista, mistiticadora, ou uma filosofia irracional… Veja: um cientista, às avessas em sua pesquisa com um fato ou com a realidade, não pode inventar, criar a partir do seu cérebro, como a filosofia é intelectiva, “criativa” em sua criação de conceitos e conceituação de mundo. Também seria estranho que um cientista se una a uma certa “linha de pensamento” (não confundir com determinada área mais ao gosto do cientista), desprezando outras, a menos que essas outras estejam completamente equivocadas sobre a realidade. Esse tipo de comportamento é mais típico da filosofia, em que pode-se “começar do zero” (em relação ao pensamento e seus postulados, embora ninguém parta “do nada”), enquanto a ciência não dispõe de tamanha liberdade. Na ciência, não se trata de uma linha de pensamento geral, mas de um método preciso (ainda que a interligação entre ciência e filosofia torne-se vista no método dialético). No entanto, o cientista não parte “do nada”, como muitas vezes nos é ensinado, mas conforme o materialismo trata de nos mostrar: ele com certeza pensará de acordo com sua época e classe social, a partir da ideologia dominante (ou, se tem consciência de classe, pensará diferente), trabalhará a partir de condições materiais mais ou menos determinadas pessoal e/ou coletivamente, se é um cientista financiado por empresas privadas ou por pesquisa pública, quais materiais têm à sua disposição e como e qual é sua índole, intuito, interesse, objetivo final, quais suas limitações e possibilidades, em que ponto está o objeto estudado na sua época, etc. (Ao meu ver, tudo isso envolve uma ética – infelizmente, não tratei sobre ética no texto, e devo acrescentar também sobre a questão do rigor filológico e da ética do discurso.) Mas nada disso compõe uma “linha de pensamento”. Marx, ao estudar especificadamente o funcionamento do capital, teve uma “linha de pensamento”? Não é bem isso. O socialismo científico, calcado no materialismo histórico e dialético? Não é propriamente uma “linha de pensamento”, mas um método, porque ele não ignorou os outros, partiu deles e soube criticá-los. Em O Capital, não saiu escrevendo filosoficamente sobre o capital, embora ele trabalhe com conceitos e tivesse profundo conhecimento filosófico, escreveu livros sobre filosofia, mas O Capital é um livro científico equivalente, guardadas as enormes diferenças mas cito por serem autores contemporâneos, ao A Origem das Espécies de Darwin. Há uma variante posterior daquele processo do cientista que eu vinha explicando acima, e que inclui novamente Marx, e conforme expus no próprio texto: partindo de determinado lugar geográfico, geopolítico e de classe social, o cientista – a partir das decadências históricas do abstracionismo, da pura teoria e do idealismo – deve se engajar na ação, mas sempre com base na verdade ou nas aproximações da verdade, aplicando seus conhecimentos na transformação do mundo (só podemos alterar melhor o real conhecendo o real – não basta ser anticapitalista se não se estuda o capitalismo). É por isso que considero a filosofia da práxis um campo decisivo; porque, apoiando-se nas ciências (e abrangendo a ciência política, sobretudo nas questões superestruturais), é capaz de potencializar e inserir a ciência na modificação da realidade a partir e no momento mesmo de uma nova concepção de mundo.

      6) Até o século 18, mais ou menos, pode-se dizer que o materialismo era metafísico (a ele opomos o materialismo dialético), porque as ciências eram mecanicistas, tudo era estudado através da mecânica: para os melhores cientistas ou “filósofos naturais”, o fator primeiro era a matéria (materialismo, portanto), mas o universo seria um conjunto de fenômenos e elementos congelados e mecânicos, não raro caindo no fixismo (metafísica). Porquê? Por causa da ideologia cristã e religiosa, predominante e impositiva naquelas séculos através do poderio do clero antes da revolução do Iluminismo, e que é essencialista, fixa, metafísica? Também, mas não só. Porque não se sabia, não se podia saber, não existiam meios materiais mais suficientes para a pesquisa científica e filosófica. (Repare como a teoria social materialista é uma vez mais comprovada nesse exemplo: o modo econômico de uma época determina, forma e mantém as ideias desse tempo, que, por sua vez, também mantém tal modo econômico; à medida que tal estrutura se altera, os elementos superestruturais também se modificam, mudando a política, a ciência, tudo.) Estudar uma maçã que balança no pomar ou que simplesmente cai é/era muito mais fácil do que estudar a “história” da maçã, o seu processo de amadurecimento, etc., que é próprio da dialética. O imóvel é mais fácil de ser compreendido do que o movimento (quem diz dialética, diz movimento). Conforme ensina Politzer (Quarta parte – Estudo da dialética, Capítulo primeiro – introdução ao estudo da dialética, III), “Certamente, o estudo das coisas em repouso é um momento necessário do pensamento dialético — mas só um momento, insuficiente, fragmentário, e que é preciso integrar no estudo das coisas em transformação.” Portanto, o desenvolvimento trazido com a modernidade, a partir sobretudo do século 19, muda totalmente essa noção, conforme expliquei na primeira resposta.

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