Fiquei sabendo da resposta de Jones Manoel acima em parte por camaradas próximos, em parte porque militantes ferrenhos e seus fãs vieram me linchar após sua resposta, já que eu não o acompanho.
Minha tréplica abaixo estendeu-se muito mais do que deveria, porque precisei fazer apontamentos teóricos fundamentais a militantes, alunos, estudantes, seguidores e camaradas próximos e vindouros, que vão me ler e que me pedem explicações que de nenhuma outra forma podem ser dadas senão com base em economia, história, filosofia, etc. Já que se estendeu, fica sendo o meu ponto final sobre a questão. Além do mais, abaixo, faço também inédita análise econômica revolucionária sobre a Coréia do Norte, que eu não vejo ninguém fazendo.
A Guerra das Coréias e contra os EUA é a “Guerra Fria” de muitos camaradas das novas gerações, o Paralelo 38 é o seu “Muro de Berlim”, a Coréia do Norte, a sua “União Soviética”. É degradante ter de escrever o óbvio, que a Coréia do Norte é também uma sociedade de classes e que, portanto, há uma sociedade dominante que explora economicamente as outras, a trabalhadora. Ou seja, trata-se dum novo fenômeno interimperialista (termo leniniano), só que, hoje, sem o “socialismo real”, num caráter ainda mais desvantajoso e claustrofóbico. As analogias históricas generalizam condições especiais, mas fatos conhecidos se repetem em certas situações. Já vimos como tudo isso termina, em desilusões, em crises, e sabemos de suas consequências para o fôlego de qualquer movimento comunista, restando ao marxismo fazer antecipadamente uma crítica radical (“Ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e a raiz para o homem é o próprio homem“) e de baixo com relação ao monopólio do poder, em favor da teoria revolucionária original do valor e pela tomada do Estado e dos meios de produção pela classe trabalhadora.
Comunismo sem marxismo (sem o tripé marxiano) é manco, apologético e não tange a resolução dos problemas sociais na prática.
A diferença entre opinião e burrice.
Não trata-se de “opinião”. Trata-se de Crítica, como é de praxe no marxismo. “Opinião” reside no senso comum. Essa tentativa de desqualificação serve somente para uma militância acrítica e pouco letrada, não acostumada a debate de alto nível, que, infelizmente, está trocando o “conhecimento mais profundo […] em função da tática do agir” (eis a definição de Lukács para o “stalinismo”, como veremos mais adiante). Defesa apologética que sacrifica a construção revolucionária, e que espero que seja conscientizada a tempo. Me admira que Jones Manoel não tenha dito que sou um “propagandista do imperialismo” ou “Quinta Coluna”, como outros da gangue, ou seja, ao menos reconhece que sou marxista.
Esse sujeito, meio famoso em redes sociais, publicou esse comentário fazendo referência a uma publicação da UJC.
Aqui, cabe uma recapitulação. Há poucas semanas, a mesma UJC – União da Juventude Comunista publicou o mesmo tipo de homenagem a Josef Stálin, mas logo apagou. Foi muito criticada. Militantes da UJC aplaudiram. Eu soube disso através de um camarada que chegou a ser da UJC, mas que justamente se afastou devido ao incômodo diante da apologia de caracteres estranhos ao marxismo estimulada por certos quadros. Minha posição torna-se ainda mais necessária para mim porque toda a querela envolve jovens em formação uma base de militância crítica que precisa ser constituída para, digamos, 2030!
Não pretendo fazer de Stálin ou de Kim Jon Un espantalhos para liberalóides (são muito mais representações de construções histórico-sociais complexas), mas é fundamental voltarmos, durante todo este texto, a Stálin, pois, primeiro, a ideologia apologética da qual critico e desmistifico foi urdida durante o período de Stálin (não à toa, os mesmos o resgatam com revisionismo idealista) e, segundo, sem ele, em sua postura interimperialista junto aos Aliados liberais e anticomunistas, talvez nem mesmo a Coréia do Norte existisse.
Cumpre informar apenas que Mauro Iasi, figura importante do PCB e que faz parte dos melhores quadros do partido, teve de intervir, após a atitude da UJC, com um texto contra o stalinismo intitulado “Dois métodos e uma decisão: a poesia do futuro ou os fantasmas do passado?”. (Podemos observar o termômetro desse velho racha sempre iminente no PCB aqui, na área de comentários deste post, em que Iasi conclama “Stalinismo nunca mais”.) A gangue fanática e aborrecente, movida pelo revisionismo histórico de Jones Manoel (Domenico Losurdo é bom autor, mas não para tratar de Stálin) e outros marmanjos, chegou a pedir a expulsão de Iasi (um homem que chegou a ser candidato à presidência da República pelo PCB!), quando, na verdade, falta pulso firme e um núcleo duro de intelectuais orgânicos (José Paulo Netto e Marcos del Roio não são mais orgânicos no partido, e muitos inteligentes já se afastaram) para expulsar a gangue anacrônica de Jones Manoel, porque não adianta simplesmente mostrar teoria a quem é basista, a quem apenas pretende aquecer e cultivar as bases.
Poderíamos colocar boa parte da responsabilidade desse conteúdo e forma no capitalismo financeiro e seus correlatos, “de vigilância”, do Vale do Silício, isto é, nas redes antissociais, que tomam de assalto a atenção e superficializam o debate, mas não se pode eximir da responsabilidade aqueles que pretendem usar para si os termos “comunismo”, “comunista”, “marxismo”, “marxista”, e essa querela já é velha no marxismo e no comunismo antes mesmo da Internet.
A linha desse setor do PCB e da UCJ é muito clara: qualquer “socialismo real” foi/é melhor do que o capitalismo, estimulando uma defesa intransigente dos modelos do “socialismo real”; serve para o embate ideológico e só, porque a prática é morta, já que as condições hoje não são mais as mesmas; assim, olham para o passado e muitos deles pretendem copiar modelo – quem copia modelo é conservador; essa visão é particularmente falsa, porque, embora eu concorde em parte com a afirmação de que o “socialismo real” teve fins mais grandiosos e, em diversos momentos, humanitários do que o capitalismo, que hoje se reduz à barbárie e números financeiros, uma crítica marxista revolucionária ao “socialismo real” não significa adesão ou defesa do capitalismo, ao contrário, significa uma dialética do continuum histórico da luta e aponta para o futuro na superação do passado pela transformação do presente.
Noto uma defasagem com relação ao que eu chamo de “tripé marxista” (no Anti-Dühring, ainda que de maneira demasiadamente sistemática, é dividido em Economia Política, sobretudo a teoria do valor, Filosofia, que envolve a dialética, e Socialismo, que abarca as lutas de classes, a distribuição e a perspectiva revolucionária). Jones Manoel e outros desconsideram a teoria do valor (já não é marxismo, então, porque sem compreender a lei do valor não se identifica a exploração capitalista e da apropriação do trabalho alheio), usam as lutas de classes com excelência na agitação, mas ainda de modo afunilado (não sei como ficará após a aproximação eleitoral do PCB com o PSOL pequeno-burguês) e nem passa pela cabeça deles o que seja dialética. “Concepção materialista da História” (frase frequente em Engels, nas obras e em cartas), então, é pretexto para revisionismo histórico. Nada de estrutura e superestrutura. De fato, para uma militância acrítica ou para um projetinho de poderio (não de poder), não se precisa da dialética, da teoria do valor, da visão abrangente das lutas de classes nem da concepção materialista da história. É importante deixar claro que não sou acadêmico, nem estou vinculado a qualquer academia neste momento, aliás, academia não possui práxis nem ensina marxismo a vero; marxismo aprende-se na marra, na luta, na teoria, na prática, de forma autodidática mas dialógica, e nunca antes a bibliografia clássica e contemporânea foi tão acessível.
No âmbito da filosofia da práxis, estamos diante de um grupo que, ao entrar na luta anti-colonial, anti-imperialista e anticapitalista, troca a teoria revolucionária pela prática propagandista do agir, privilegiando a tática em detrimento da teoria, que apenas é usada em suas generalizações a partir da tática; um grupo de comunistas que, mergulhado na categoria da universalidade vazia (interesse como universal), esquece-se da categoria da particularidade (interesses de classe). Essa inversão que não aprofunda o conhecimento histórico – certamente um legado do período stalinista -, provoca muitos desastres, ainda que as intenções sejam boas ou até sinceras (excluindo os oportunistas e arrivistas). Todo o problema entre os apologéticos e os verdadeiros marxistas se encontra no fato de que os primeiros perdem-se na categoria vazia do universal, e não consideram a categoria da particularidade. Para explicar melhor essa questão, é necessário um aprofundamento teórico e filosófico, no qual me é impossível neste momento, porque, para isso, seria preciso voltar (com o Marx da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e da Ideologia Alemã) a Hegel, mas exerço esta tarefa em outras oportunidades.
Todo o meu incômodo reside no fato de que a UJC não está ensinando à juventude em formação – cuja militância deve ser decisiva para a construção revolucionária internacionalista no Brasil – as teorias marxiana e engelsiana do poder e do Estado. (Tampouco a teoria do valor – sem a qual não se identifica a exploração no capitalismo -, no caso das empresas da China, que está voltando a ter o maior PIB do mundo, como teve no século XVIII.) Resultado: análise rasa de conjuntura, defesa meramente apologética do poder e do Estado, caráter “basista” e idólatra, nenhuma construção realmente revolucionária debaixo, nenhuma apuração classista. A síntese de tais teorias encontra-se sobretudo no Anti-Dühring de Engels, que formou a primeira geração de marxistas. Sem esse leque de teorias, indissociáveis da prática revolucionária, não teremos excelentes quadros e lideranças. Estes se afastam. Os que ficam, estão apostando todas as fichas no fracasso de formas mais ou menos reacionárias e conservadoras. Vez ou outra, temos de agitar a proposta revolucionária original, que ainda está em processo de construção, junto à proposta de Antonio Gramsci de formação de intelectuais orgânicos que sejam soldados junto à direção partidária e da vanguarda.
Antes de tudo, meu incômodo tático com relação à China e à Coréia do Norte reside em perguntas fundamentais para uma pedagogia revolucionária, já lançadas no texto “Os verdadeiros marxistas e comunistas e seus quatro principais adversários internos“:
(A) O que a China e suas empresas e o que a Coréia do Norte e seu aparato militar farão diante de um processo revolucionário brasileiro e latino-americano? Como ajudarão? Quais serão suas condições? Lembrem-se que a União Soviética respeitou diplomaticamente as delimitações terríveis dos EUA nas ditaduras militares-empresariais que ajudaram a implantar em nosso continente. Lembrem-se que, quando Angola quis se emancipar pela via do socialismo, Cuba foi ajudá-la, não a União Soviética, que já havia deixado de ser uma superestrutura revolucionária há tempos… (B) O que faremos, extirpados os elementos do “Estado profundo” brasileiro, ou seja, aquele que sempre se mantém, na ditadura, na redemocratização, com Collor, FHC, Dilma, Lula, Bolsonaro, e extirpados capitalistas brasileiros importantes, ou seja, o que faremos quando tomarmos gradativamente o poder diante de uma nova diplomacia perante China e Coréia do Norte com nosso novo Estado? É isto o que deve ser debatido, escrito, estudado, planejado, ensinado! Todo o resto é lobotomização…
Todos os membros da “gangue” que vieram tirar satisfações comigo (não vou considerar aqueles que simplesmente são fãs de Jones Manoel, que sequer são marxistas, o que achei um absurdo, e que só prova que a teoria não está sendo disseminada), desviavam-se da minha renitência à teoria da revolução, do poder e do Estado presente em Marx e Engels. Os piores momentos do movimento comunista são aqueles em que se desconsidera Marx e Engels, que se desconsidera a teoria para uma militância de simples ação propagandista. A quem interesse isso? Aos parasitários do Estado, assim como interessa à burguesia? Ficou claro que não leem nada de teoria, porque não houve qualquer ponderação ou contrargumentação entre o nosso objeto de discussão e a teoria!
Definitivamente, não estamos falando no mesmo nível!
Enquanto eu insisto na teoria a partir da qual se configura uma práxis coerente de acordo com a nossa realidade nacional e internacional, para eles é vital – com oportunismo de uns e ingenuidade de outros ainda em formação (tive alguns “pupilos”, que se interessavam por minhas recomendações, mas que logo rompemos, porque lhes incomodava minhas críticas a Jones Manoel) – realizar uma prática sem teoria, de agitação, de “militância” (em sentido comum), de apologia ao aparato, ainda que isso nada diga respeito direto à classe trabalhadora norte-coreana ou chinesa, quanto mais à classe trabalhadora brasileira e seus anseios e desafios. Excluem as particularidades de classes, defendem o tempo todo, não sem dogmatismo xucro, a particularidade da universalidade, que, por si só, é vazia… Veremos também, mais adiante, como isso é fruto dum absurdo hiperracionalismo, expressão que Lukács usava para o “stalinismo” enquanto ação política que não sabe manejar estratégia e tática, teoria e ação. Nem preciso dizer que são os mesmos que, com revisionismo e idealismo, também defendem o período de Stálin.
Todo ser humano é livre para ter a opinião que quiser sobre a Coreia Popular e Kim Jong-Un. Essa não é a questão central. Via de regra, essa opinião é desinformada e carente de estudos quando o tema é a Coreia, mas tudo bem.
Quero falar de algo mais importante: burrice.
Para Jones Manoel, a “burrice” é “mais importante” do que a Crítica revolucionária (que ele desqualifica como “opinião”)!
A Coréia do Norte é fruto dos interesses das classes dominantes após a sangrenta Segunda Guerra Mundial, que, por sua vez, foi um ponto de chega de diversas causas estruturais, notadamente as crises capitalistas; como sempre na história, após a conflagração monumental, essas classes acertaram de se encontrar para dividir o quinhão às custas do povo. O nascimento da Coréia do Norte está relacionado a uma “revolução passiva”, em termos de Antonio Gramsci (para um apanhado de escritos gramscianos do cárcere sobre a revolução passiva, cf. O Leitor de Gramsci. Escritos escolhidos: 1916-1935, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, da página 315 à 317), ou seja, um “transformismo pelo alto” entre as classes dominantes, em que se exclui as outras classes subalternas (fenômeno muito comum na história do Brasil, mas não com tal agudeza geopolítica). Mesmo que tenha contado com mobilização de massa (que não deixa de ser comum nas “revoluções passivas”), não houve uma revolução autêntica, orgânica, popular como em Cuba ou em Angola ou mesmo na Rússia.
É claro que, no caso das Coréias (e também na Coréia do Norte!), outros elementos das classes subalternas – praticamente escravizadas pelo domínio imperialista do Japão – também influíram na “revolução” (por exemplo, a invasão da Manchúria pelos japoneses mobilizou enormes forças anti-imperialistas na Coréia e na China), mas os interesses de classes dominantes logo suplantaram-nas e as acoplaram a seus aparatos estrangeiros no momento de pegar o mapa e traçar a divisão e estabelecer quem dominaria o que. Pelo suporte direto da União Soviética, que, no período do pós-guerra, só dispunha economicamente para valer de sua indústria bélico-militar (v. Eric Hobsbawm, Era dos Extremos, de 1994), não restara à Coréia do Norte outra saída senão investir em fábricas de materiais pesados e armamentos, já com Kim Il-Sung, “produção” essa que se arrasta até os dias de hoje. Essa produção, que não deixa de ocorrer com a espoliação do trabalho dos norte-coreanos, sempre estará associada à defesa territorialista, já que trata-se de um país teluricamente fraturado e ameaçado por todos os lados, “produção” bélico-militar acentuada após o desmanche do bloco soviético e o abandono do marxismo (abertura ao capital nos negócios) pela China. Baluarte final da resistência comunista, para alguns…
Note-se que o termo “revolução coreana”, porém, não é usado em consenso na historiografia (usa-se “Guerra da Coreia”), mas não deixa de fazer sentido quando se pensa na guerrilha anti-imperialista e na tomada de poder (que, porém, foi estimulada por agentes do alto escalão do monopólio de poder da URSS e mesmo da China). Assim, Kim il-sung, em seu ímpeto anticolonial, já estava ligado desde sua juventude militante ao alto aparato de URSS e China, e logo foi reconhecido como líder de toda a península. (Stálin enviou Lavrenti Beria, uma das figuras mais polêmicas do “período stalinista”, para tratar da implementação do regime.) É preciso admitir, portanto, que o povo e os trabalhadores da Coréia do Norte não estavam inteiramente emancipados. Quem realmente governava o país não era Kim Il Sung, mas sim o todo-poderoso embaixador soviético Terenty Shtykov. O próprio Kim Il Sung não tinha muitas escolhas no jogo interimperialista e não fez como um Che Guevara em Cuba, que se indispôs com o alto escalão da União Soviética em determinado momento, porque tinha ideias socialistas próprias (cf. o percuciente livro de Luiz Bernardo Pericás, Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba, São Paulo: Editora Boitempo, 2018, que venceu o Prêmio Jabuti de 2017).
Reforço que a classe dominante da União Soviética, entre outros nichos, vivia de “economia bélico-militar permanente” a partir do excedente de trabalhadores e camponeses desde a sua acelerada industrialização forçada em 1929, que o próprio Stálin chamava de “revolução pelo alto”, ou seja, uma atitude coercitiva que levou milhares de camponeses à morte (sobre esse trágico período da história soviética, cf. o documentado livro de Fabio Bettanin, A coletivização da terra na URSS. Stálin e a “revolução pelo alto” (1929-1933), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981) – tal fato é determinante na história da Coréia do Norte. A definição “Estado satélite” (o jornalismo prefere “Estado fantoche”), em que um governo depende da classe dominante (e da classe trabalhadora) de uma potência estrangeira para sua própria existência, sem a qual não pode existir, não é nenhuma novidade para diversas regiões correlacionadas à antiga União Soviética, tanto que o desmanche do domínio central de Moscou em meados dos anos 1990 – de maneira vendida e ridícula, é verdade – desmanchou também o restante do bloco – com exceção da Coréia do Norte, que teve de enfrentar o seu conhecido e violento período de fome (prova da dependência em relação à URSS), mas que permaneceu por ter logrado aspectos próprios de identidade e de economia, não sem carregar até hoje a sina da guerra soldada à essa identidade e “economia industrial-militar” (os trabalhadores não têm outra escolha, precisam obedecer com suas forças produtivas a indústria bélico-militar para a sua própria sobrevivência imediata e enquanto país).
No Brasil, o termo “revolução coreana” remete a um livro considerável. Li, há alguns meses, o livro de Paulo Visentini (com apoio de Helena Melchionna e Analúcia Pereira), A Revolução Coreana. O desconhecido socialismo Zuche (2015), pela editora UNESP. Sua abordagem não é totalmente pelo método marxista. O livro erra em não tratar da “revolução passiva”. Completamente favorável à Coréia do Norte (os autores a visitaram) e debruçado em ampla documentação e registros de diversos países (mesmo os Estados Unidos) envolvidos no contexto histórico, o livro explica o suficiente para os ocidentais. Pretende desfazer a forma caricatural com que o Ocidente vê a CN e mostrar “tanto […] a real configuração do regime norte-coreano, de impressionantes conquistas socioeconômicas, quanto as complexidades que caracterizaram todo o processo revolucionário e continuam a tensionar o sudeste asiático“.
A grosso modo, para quem não sabe, a região do Sul foi logo objeto de interesse dos capitalistas dos Estados Unidos e Europa, enquanto que a União Soviética sob Stálin e o Politiburo dominou a região do Norte, o que arrefeceu os conflitos.
Ou seja, a Coréia do Norte é fruto das tortuosidades do percurso do movimento comunista em período pós-revolucionário e até contarrevolucionário, de um lado, e do capitalismo imperialista, do outro. (Não à toa, como justificativa para desenvolver o seu arsenal nuclear, tem sido importante na Coréia do Norte manter acesa a memória dos terríveis ataques aéreos dos Estados Unidos sobre sua região e a trágica morte de milhões de civis durante a guerra.)
É fundamental esse entendimento histórico sobre a correlação de forças! Sem ele, qualquer defesa é rala e apologética e acrítica em relação ao aparato, e mesmo em relação à reação imperialista do capitalismo.
A prova de que a Coréia é fruto das formas interimperialistas de ambos os lados (o Stálin que aperta as mãos de Harry Truman e Churchill, na Conferência de Potsdam, é um Stálin de postura interimperialista) é que a organização do líder Kim II-Sung, conforme mostra o livro de Visentini, possuía muitas frações, com membros do Exército Vermelho (ele próprio fez parte do Exército) ou que lutaram com Mao Tsé-Tung. Ou seja, as disputas de poder na URSS e o abandono do marxismo, como também, posteriormente, na abertura econômica da China, forjaram o que a Coréia do Norte é hoje, além de definições internas próprias. (O desmanche do bloco soviético acentua sua crise, que logo é abrandada com a dolarização décadas depois.) Esse amálgama formou o que seria o “socialismo” para a Coréia do Norte hoje, ou seja, quando ela surge, o marxismo e o próprio movimento comunista, por diversos motivos, estão emperrados no gargalo do monopólio de poder pelo alto. O seu caráter nacionalista foi a grande sacada para não terminar como a Alemanha Oriental. O fato inconteste é que a Coréia do Norte amarga aquelas querelas, como se fosse um resquício final delas frente à globalização do planeta.
O Paralelo 38 é fruto do desprezível controle das classes dominantes dos quatro cantos do globo para segregar e dividir fisicamente a classe trabalhadora mundial, mas é também – para o bem, para o mal – o “Muro de Berlim” do futuro…
E, justamente por isso é que cabe a nós, marxistas, nos adiantarmos, termos um discurso radical, uma prática radical e totalizante em torno do valor, do poder e do Estado, calcada na teoria original formativa, ainda que esta tenha de ser, aqui e ali, atualizada de acordo com as condições.
Sei que é um vespeiro sem tamanho tomar qualquer posição no caso da Coréia do Norte. É notório que lá se pratica o maior e mais longo jogo de truco do mundo moderno. Não tem santinho e nem legado importante a se defender. O máximo que se pode apoiar é a integridade da população. Defendo que é prioritário olhar com crítica marxista a respeito da classe trabalhadora norte-coreana, já que lá, como aqui, cada um a seu modo, há a apropriação do produto do trabalho alheio (componente do mais-valor descoberto por Marx, segundo o Engels do Anti-Dühring, p. 222), e já que norte-coreanos trabalham (com consentimento ou coercitivamente ou sem qualquer outra escolha em nome da sobrevivência perante as forças imperialistas externas) sobretudo para produzir rendimentos à classe dominante cleptocrática do tipo Clódio da economia nacional, do aparato de Defesa e seus filigranas (afinal, só restava aos “padrinhos” soviéticos uma “economia armamentista permanente“), que, em troca, lhes garante a segurança nacional contra um mundo hostil (a pilhagem existente em todo Estado e capital), constantemente ameaçando levar o mundo inteiro junto consigo, caso tenha de capitular ou acabar.
Esse caráter distópico (um povo que movimenta suas forças produtivas para a própria sobrevivência imediata elementar e a serviço de uma classe dominante que circunda a indústria bélico-militar, que produz o armamento nuclear que, paradoxalmente, o protege e evitaria o seu suicídio) só pode ser fruto de um choque conflitivo entre o aceleramento e o desaleceramento da História, entre o fluxo de capitais que tudo contamina e o fechamento regulador… Mostrarei no decorrer deste texto que, mais ou menos equidistante da economia de mercado, da ditadura do capital e da inserção nos ditames do comércio internacional, os meios de produção da Coréia do Norte são concentrados por uma família que se pretende “monárquica”, pela elite, altos oficiais, pelo Exército e pelo aparato do Partido dos Trabalhadores, que praticamente se confunde com o Estado.
Cabe introduzir uma diferenciação básica do Estado no marxismo entre Oriente e Ocidente, tal como mostrada brilhantemente por Gramsci, que aduz (Caderno 7, § 16, escrito entre 1930-1931):
“[…] No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma relação apropriada e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento de caráter nacional. […]”
Esta é parte de importante frase em que, segundo o gramscista brasileiro Carlos Nelson Coutinho, Gramsci resume sua posição que define a novidade de seus conceitos de Estado e revolução em relação à experiência dos bolcheviques (Coutinho, Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios, 2. ed. São Paulo: Cortez, 1996, p. 58). Desta observação, surge em Gramsci a reivindicação de que, enquanto as revoluções socialistas no Oriente, partindo da velha ordem, precisavam diretamente conquistar o Estado, porque assim conquistavam todo o resto, no Ocidente tal revolução é mais complexa (tal como o Lênin de Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo já considerava), precisa considerar uma guerra de posições na sociedade civil (arena das lutas de classes e principal espaço do setor privado), que é tão forte ou mais do que o Estado, e que pode-se e deve-se conquistar a hegemonia antes de se conquistar o poder, mas isso é assunto para outros textos…
Nesse sentido, só para fechar, há duas propostas do dirigente do PCI que nos interessa (Cadernos do Cárcere, 8, S 130; 3, 279-280) a respeito de Coréia do Norte: primeiro, a “estatolatria” não deve “ser abandonada a si mesma, não deve, especialmente, tornar-se fanatismo teórico e ser concebida como ‘perpétua’: deve ser criticada, exatamente para que se desenvolvam e se produzam novas formas de vida estatal, em que a iniciativa dos indivíduos e dos grupos seja ‘estatal’, ainda que não se deva ao ‘governo dos funcionários’ (fazer com que a vida estatal se torne ‘espontânea’)“.
Deriva de tal formulação temática uma segunda, a ideia de “iniciativa individual” em Gramsci (8, s 142; 282-283), que em nada deve ser confundida com iniciativa privada, individualismo, liberalismo, nada dessas farsas, porque se dá pela “identidade-distinção entre sociedade civil e sociedade política [lembre-se que Gramsci divide a superestrutura nesses dois campos de sociedade] e, portanto, identificação orgânica entre indivíduos (de um determinado grupo) e Estado, de modo que ‘todo indivíduo é funcionário’, não na medida em que é empregado pago pelo Estado e submetido ao controle ‘hierárquico’ da burocracia estatal, mas na medida em que, ‘agindo espontaneamente’, sua ação se identifica com os fins do Estado (ou seja, do grupo social determinado ou sociedade civil)“. Aqui, considerando a censura do cárcere fascista, podemos até substituir o termo “grupo social determinado” por classe trabalhadora.
Voltando à Coréia do Norte, o conflito sanguinário de proporções mundiais da Segunda Grande Guerra produziu um país que, na ausência de uma economia vigorosa, vive em certo grau de distopia e permanente produção bélic para barganhar acordos, ou seja, como necessidade de sua própria sobrevivência, sua única alternativa é desenvolver tecnologia nuclear para sobreviver, mergulhando na indústria bélico-militar (legado da União Soviética, que, tendo saído mais pobre de 1945 do que de 1917, dispunha principalmente de tal indústria como “economia permanente”), uma das mais caras do mundo: sob o paradigma do complexo industrial-militar dos EUA, ou seja, a partir da pressão do capitalismo de reação imperialista (mas não só), os trabalhadores norte-coreanos trabalham principalmente para a sobrevivência paranoica de si mesmos em nome da Defesa das Forças Armadas, entregue a uma classe dominante cleptocrática do tipo Clódio, que se apropria do produto do trabalho alheio, ainda que seja estranho compará-los com a classe capitalista corrupta e podre. Guardadas as devidas proporções, os EUA não parecem, de longe, muito diferentes (talvez outros “imperadores” que se revesem nos tipos entre Neros e Adrianos sejam mais adequados enquanto encarnações dos comandantes-fantoches desse país, ornem mais com a arquitetura fake de Washington – simulacro como quase tudo nos EUA – justamente replicada a partir da arquitetura do Império Romano), mas, na Coréia do Norte, o caso é ainda mais agudo e sufocado, sem domínio expansivo pelo mundo e num nível de absurdidade e despojamento de qualquer fantasia.
É uma “super-superestrutura”…rs
O fato de Kim Il-sung (1912-1994), lá atrás, a partir de sua luta de guerrilha antijaponesa, ter lutado no Exército Vermelho da URSS – que se urdiu sob a égide de uma revolução comunista -, ter entrado num partido chamado Partido Comunista Chinês e adaptado tal comunismo em seu país, não muda a realidade da observação científica. Não há marxismo que se resigne a essa realidade, não há autonomia da classe trabalhadora (talvez haja soberania, isso, sim, e uma soberania exemplar, invejável para a “América Latina” cuja elite e povo tudo aceita dos EUA), nem há o intuito de uma sociedade comunista sem classe, caso a Coréia do Norte vencesse os EUA.
Por trás das classes dominantes ligadas ao aparato e da cortina de mentiras que caricaturiza o país há uma nação habitada por cerca de 24 milhões de pessoas dignas que merecem nosso olhar humano e revolucionário.
Sim, não tem outra forma de caracterizar o comentário do sujeito sobre Trump e Kim Jong-Un.
Preciso, primeiro, externar toda a ojeriza deste sujeito aqui que vos escreve a qualquer forma monárquica (fruto da sociedade de classes), que sempre faço questão de dizer aos ingleses, por exemplo. Tenho horror a linhagens sanguíneas! O desenvolvimento histórico-social sempre pôs a pessoa de um soberano em confronto com a Revolução. E o marxismo possui postura equidistante com relação a isso. Não à toa, o Manifesto Comunista já estabelecia o fim da herança…
O grego Hesíodo, antecipando a modernidade não sei quantos mil anos atrás, quando escreveu O Trabalho e Os Dias, nos legou um pensamento divisor na história da humanidade: a grandiosidade do ser humano está no trabalho, não em ter “sangue azul”…
Estou ao lado da classe trabalhadora, não do herdeiro sanguíneo Kim Jon Un. Nesse particular, quando a Coréia do Norte retoma a tradição monárquica das Coréias através da Dinastia Kim ou Linhagem do Monte Paektu (ao invés da sucessão de membros do alto escalão político, tal como ocorria na URSS e na China), ela aposta numa enorme regressão, pior do que qualquer representação cidadã, e que hoje se adequa ao antigo modelo que lembra a vassalagem e o feudalismo. A implementação desse modelo “monárquico” ajudou a “nacionalizar” o comunismo na Coréia ao fundi-lo com uma tradição antiga, torná-lo mais popular e entendível? É possível, mas ele apenas levou a um culto à personalidade (que logo foi expurgado na União Soviética pelos sucessores de Stálin), bastante superado para o marxismo, porque personifica metafisicamente a vocação histórica da classe trabalhadora e escamoteia essa vocação da classe produtora em si para si. Um aspecto político e cultural desse tipo hereditário só interessa a classes dominantes espoliativas em qualquer canto.
Tenho gigantesco horror da carcomida família real britânica, que não passa de um “bibelô” diante do parlamentarismo inglês e da burguesia, o que piora ainda mais a justificativa de sua existência ainda hoje. Há direitistas que alegam que a família real britânica, com seus palácios, ao menos garante rendimento turístico – guardadas as enormes proporções e diferenças, é também o que ocorre com o turismo na Coréia do Norte, que procura zelar por sua imagem, construções oficiais do governo e espaços limpos e bem ordenados…
Uma vez, um sujeito, contra o meu ímpeto antimonárquico, disse-me que visitou a Holanda ou a Suécia, ou viu em algum lugar, já não lembro, viu lá o “povo feliz diante do seu Rei”. Isto me dá náuseas, assim como certos direitistas têm nojo do vídeo que compartilhei em meu perfil no Instagram de Chávez ensinando Gramsci brilhantemente num comício popular na Venezuela. Ora, vemos, neste vídeo, uma boa parcela do povo inglês feliz diante do criminoso de guerra e imperialista Winston Churchill… E daí? Mas, definitivamente, não estamos falando da mesma coisa quando falamos em realeza e um líder mais orgânico vindo do povo (ainda que do seio militar) feito Chávez, comprometido com o marxismo e com a revolução, ainda que tenha implantado amplas reformas.
Tanto pior nos exemplos ocidentais, porque aí a monarquia é atrelada à religião cristã e a dEU$, enquanto que a Coréia do Norte ao menos tem forte caráter irreligioso na sociedade e como política de governo, ainda que o cheondoísmo tenha ganhado popularidade (tendo até um partido próprio entre os três únicos partidos legalizados do país, o Partido Chondoísta, junto ao Partido dos Trabalhadores oficial e ao “Partido Social-Democrata”).
De qualquer forma, desde a “revolução burguesa” e a criação dos Estados-nacionais contra a aristocracia, já não existe monarquia nem clero em parte alguma, porque a estrutura já não é feudal, então tais países vivem de “bibelôs”, enquanto as verdadeiras decisões estão em outros domínios. Perto deles, Kim Jon Un é certamente mais ativo e mais engajado, mas a forma de “casta” não muda.
O Príncipe Charles vive apenas para viver dos rendimentos de seus súditos, assim como Kim Jong-il. Em termos de simpatia, tenho muito mais horror ao conservador Charles, que, não sei por que, me faz lembrar da oligarquia Sarney.
Um dos membros apologéticos, Rafael Caixeta, que, para minha surpresa, me acompanhava e estava em minha lista de contatos do Facebook, escreveu para mim, depois do linchamento virtual que fez questão de empreender após o post de Jones Manoel (“Fernando Graça puta merda em bixo, tu falando da RPDC só mostra que enfiou a boca na propaganda imperialista, vergonhoso ler uma merda dessas, pior ainda vindo de tu.“); disse-me que Kim Jon Un “visita cada fábrica e fazenda diariamente”… Ora, isso é de um ridículo… A um marxista interessa saber sobre condições de trabalho e para onde vai a mais-valia roubada da classe trabalhadora pelas fábricas de toda a parte do mundo! Qualquer “gado” eleitoreiro é capaz de bater palma para visitas oficiais sobre seu “político de estimação”, até mesmo os de direita… Ele as visita para ver se tudo está conforme a ordem. Qualquer político ou chefe de Estado visita fábricas e fazendas, assim como proprietários fundiários e capitalistas visitam suas propriedades privadas de meios de produção. Isso nada agrega ao marxismo, só à apologia do culto à personalidade, que personifica em termos idealistas, não materialistas, a vocação comunista e rapta a sabedoria histórico-universal da classe trabalhadora para um chefe… É o lado reverso da moeda da ideologia neoliberal, que personifica nos autocráticos Jeff Bezos ou Elon Musk o sucesso, a meta, a perfeita administração, a indissociabilidade de nossas vidas com relação a esses superiores e outras besteiras incentivas pela mídia hegemônica que só camuflam a exploração de trabalhadores e despossuídos dos meios de produção… Que ele é “muito amado pelo povo, que está sempre junto ao povo”… Já escrevi, acima, do meu horror a formas monárquicas. Também falam isso da Rainha Elizabeth II… Os “neomonarquistas” (sic) inventam sobre Dom Pedro II, símbolo da elite brasileira atrasada e escravista, nos mesmos termos… Sempre guardando as devidas diferenças e proporções, tais analogias apenas servem para que eu mostre o conteúdo da forma ideológica (outro conceito fundamental no marxismo e polissêmico), que toma o falso pelo verdadeiro.
É horrível, portanto, que um herdeiro desse tipo veja uma amizade de “força mágica” num capitalista falido e megalomaníaco da extrema-direitalha dos EUA feito Donald Trump, conforme revelam as correspondências de ambos. Os apologéticos dirão que Kim Jon Un apenas vê Trump como aquele que melhor evitou um conflito bélico para o seu país e população, mas, dessa forma, novamente estão trazendo a categoria da universalidade e desconsiderando os interesses de classe (particular) no contexto da indústria bélico-militar, sobre o qual escreverei mais abaixo.
Para finalizar, ele me citou a Assembleia Popular Suprema da Coréia do Norte, mas a APS é o mais alto cargo do Estado, segundo a própria Constituição da Coreia do Norte; a APS está abaixo dos marechais e políticos do Presidium do Politiburo (um de seus membros é o Presidente da APS) e subordinada ao Politburo. Há Comitês Populares locais, além das autoridades centrais. Sim, aqui também há os CONSEGs do PSDB e afins… Não é a APS uma organização da classe trabalhadora. Não é ali que encontraremos o espírito revolucionário – assim como também não o encontramos na institucionalização do Congresso Federal do Brasil. Ou seja, os apologéticos residem todos eles no nível superestrutural voltado ao aparato ou ao simbolismo retórico descolado da realidade…
O domínio se concentra nas mãos do semi-monarca e do chefe militar (pouco conhecido, mas que está em quase todas as fotos públicas com Kim Jon Un).
Quando Trump e Kin Jon Un – ambos de linhas dinásticas e sem organicidade a não ser em comportamento cultural – dão as mãos, são dois representantes de classes dominantes (plutocratas, burocratas, capitalistas), uma em vantagem econômica, a outra em aparente vantagem militar, jogando com o mundo entre a destruição em massa e as negociatas decididas pelo alto, excluindo as classes subalternas, sem o consentimento das classes despossuídas que lhes sustenta na base da pirâmide social.
A Coreia é um país que formalmente, pelo direito internacional, está em guerra com os Estados Unidos. Há décadas uma das prioridades da política externa dos EUA é a “mudança de regime” na Coreia e o país é cercado por mais de 30 mil soldados dos EUA e armas atômicas. Aliado a isso, na prática, a Coreia do Sul é um estado cliente na dimensão militar dos EUA.
Não custa lembrar que Bush chamava a Coreia de um dos países do “eixo do mal” e o Governo Obama, a partir da assassina Hillary Clinton, colocou a “mudança de regime” na Coreia como prioridade no seu governo.
Aí, depois de anos, aparece um governo nos EUA que muda de abordagem em relação a Coreia. O Governo Trump viu na Coreia a sua grande oportunidade de ganhar um Nobel da Paz e deixar sua marca na política externa.
É risível, porque Trump foi indicado ao Nobel da Paz por um parlamentar norueguês da extrema-direita (Christian Tybring-Gjedde) pelo acordo histórico entre Israel e Emirados Árabes… Fora isso, ninguém nunca jamais cogitou Prêmio Nobel da Paz a Trump. (Ademais, pululam os exemplos de equívocos crassos dessa instituição; deram, anos antes, o Prêmio a Obama logo em início de mandato, ele que, prometendo em campanha retirar tropas do Iraque, tornou-se o 1º presidente dos EUA a estar em guerra durante todos os dias de seu governo.)
JM chama Hillary de “assassina”, mas nada diz de Trump. Ao contrário, quase o vê de forma positiva. Faz parecer, inclusive, que ansiava o Prêmio Nobel da Paz àquele cara…
Aliado a isso, o Governo Trump, de forma bem inteligente, se aproxima de Rússia e Coreia como forma de quebrar a unidade de parceiros estratégicos da China. Trump, seguindo um preceito clássico da diplomacia dos EUA, sabe que é necessário manter Rússia e China separados e a Coreia é uma peça importante nesse xadrez.
O Governo da Coreia, é óbvio, aproveitou essa abertura diplomática para tentar negociar um alívio das pressões diplomáticas, econômicas e militares e reduzir a força dos EUA na Coreia do Sul – a influência dos EUA na Coreia do Sul, impede qualquer tentativa de reunificação.
O governo democrata de Joe Biden já deixou que vai acabar com a política de Trump para Coreia, e retomar a linha anterior do Governo Obama: máxima pressão e agressão.
A exposição acima mal se esforça para ser marxista.
Não vai “retomar a linha do Governo Obama” coisa nenhuma, vai “retomar” a linha de sempre (que teve mesmo sob o início do Governo Trump) do paradigma complexo industrial-militar (aconselho que se estude a respeito), que possui sua própria lógica independentemente da cara dos governos, Democrata ou Republicano, e da qual a classe dominante da Coréia do Norte também participa, por causa do legado “econômico-bélico” da União Soviética (é a forma específica da lei do valor do sistema capitalista mundial na economia norte-coreana).
Não se iludam: esse encontro pode ocorrer também com o liberal do establishment Joe Biden, recém eleito, sempre após um período de ataques mútuos e ameaças.
Lembrem-se vocês que, antes dos encontros e troca de afagos entre Trump e Kim Jon Un, houve contundente período de tensões em 2017 (lembro que os mais exagerados falavam em destruição total do mundo como na época das crises dos mísseis em Cuba nos anos 1960 durante a “Guerra Fria”, já que estava em questão uma ameaça nuclear), só arrefecido em 2018: Trump, divulgando novas sanções econômicas, chamou Kim Jon Un de “pequeno homem foguete” e, diantes das ameaças nucleares da Coréia do Norte, afirmou que atacaria o país asiático com “fogo e fúria” (“fire and fury”) nunca antes vistos, enquanto Kim Jon Un falou em bombardear Guam, território ultramarino dos EUA no Oceano Pacífico, havendo exercícios militares e envio de submarinos nucleares dos EUA.
Foi uma tensão explícita, mas, na verdade, apenas a nível aparente.
Naquela época, o NYTimes teve de redigir guia para acalmar seus leitores sobre o possível conflito Coreia do Norte/EUA – tratou os perigos como “reais”, mas “exagerados”: informaram que as ameaças da Coréia do Norte existem desde seu primeiro teste nuclear, há mais de 20 anos, mas que não são ameaças reais, segundo o guia, enquanto que as ameaças verbais de Trump também eram vazias e desmentidas pela sua própria equipe de gabinete.
A lógica do paradigma do complexo-industrial o retroalimenta, daí as constantes guerras; e ele precisa do Estado, enquanto espaço de domínio da classe dominante sobre as outras classes e como ente que faz a guerra.
Dois efeitos da trama: (1) favorecimento da “lucrativa” indústria bélico-militar, tanto da parte dos EUA quanto da Coréia do Norte; (2) as tensões criam expectativas na Bolsa de Valores, há uma leve queda, além de medo na população e aquecimento das bases extremistas nos países; quando, finalmente, há o encontro e o pacto (momentâneo ou não) de paz, as ações voltam a subir e os golpistas do mercado se lambuzam.
A simples contextualização de Jones Manoel, acima, desconsidera completamente todos esses fatos, o encadeamento do acontecimento e já parte para a suposta tentativa do governo Trump de ganhar o Prêmio Nobel da Paz!
Não há dúvidas, para mim, de que o capitalismo hegemônico dos EUA tenha de ser esmagado de vez, que, se preciso for, países como o Brasil formem um bloco para este intento, e que ele não fará qualquer falta – o problema é o agora e o depois.
É, mesmo, trágico saber que o fim da Coréia do Norte, no contexto atual, significa as forças capitalísticas da Coréia do Sul se apropriando da redoma, significa um aliado militar a mais dos EUA passando a fazer fronteira com a China – e com a Rússia.
A História, porém, já mostrou que não é seguro nos pendurarmos na tecnocracia estrangeira sem despender um violento e autônomo trabalho de construção revolucionária interna, a História já mostrou que isso não leva a futuro concreto algum, que o movimento comunista perde-se quando regimes dos quais eles se penduram caem.
Quando Stálin dissolveu a Internacional para agradar os Aliados liberais e anticomunistas, instaurou-se, em nome da luta contra o imperialismo capitalista, a defesa apologética da União Soviética (mesmo antes, já nos anos 1930 como consequência do Grande Expurgo) em detrimento da construção revolucionária nos PCs pelo mundo, mesmo no Brasil, até o regime ser desmantelado e amargarmos décadas de contarrevolução e tapinhas nas costas entre os chefes de Estado do Kremlin junto aos presidentes do capitalismo hegemônico, respeitando diplomaticamente todos os descalabros que o capitalismo hegemônio dos EUA (ou o “imperialismo”) nos lançava com o beneplácito da elite nacional do capitalismo dependente.
Portanto, o detalhamento acima de Jones Manoel não consegue nem ao menos ser marxista, porque é totalmente superestrutural e “jornalístico”, no mau sentido, ou melhor, panfletário. Fornece o básico do teatro de marionetes entre os chefes de Estado, mas não chega na estrutura. Interessa apenas para agitação momentânea, é tática pura, sem teoria e práxis. E não apenas porque é uma simples resposta a mim – toda a análise da Coréia do Norte, em qualquer texto ou fala sua, gira em torno da mesma tática limitada e alheia.
No entanto, é justamente esse o cerne do escamoteamento jonesmanoelesco que torna a sua plateia deficitária: no hiperracionalismo em favor da luta anti-colonial e anti-imperialista, ao esconder as lutas de classes entre ambos os países em questão e dar enfoque nas representações políticas superestruturais, leva-se jovens em formação e militância acrítica à defesa ou à defenestração de símbolos que camuflam as lutas de classes, o verdadeiro terreno do marxismo. A quem interessa esconder o caráter classista da questão? A quem interessa mera defesa apologética do aparato, que conforme ensina a dialética, não é eterno? A parasitas do Estado e de aparato partidário?
Nem sequer explicita – nem na resposta a mim tampouco em qualquer texto ou fala sua sobre a Coréia do Norte, e tenho certeza disso mesmo sem o acompanhar – a contradição entre as decisões das classes dominantes: há alguns anos, não apoiar a Coréia do Norte implicaria em apoiar a Coréia do Sul e os EUA, mas, de lá para cá, as Coréias estreitaram mais ou menos a relação, para o bem de seus povos, e a Coréia do Norte teve uma aproximação com os EUA. Essas contradições só podem ser ensinadas partindo-se da estrutura.
No âmbito geopolítico, é indiferente o mandatário dos EUA, quando o governo é controlado pelo complexo industrial-militar e precisa gerar guerras para perpetuar o capitalismo hegemônico de Wall Street (com seus bancos e companhias de petróleo), conforme Eisenhower já alertou no começo dos anos 50.
Isso significa que as classes dominantes dos países, mesmo quando erguem a bandeira do comunismo e do marxismo, é marcada por interesses particulares de classes.
Vou partir, agora, para uma exposição estrutural e marxista, que é o que está faltando quando pseudomarxistas tratam desses assuntos:
Visentini, em seu livro supracitado, mostra que, apesar das montanhas e das pedras que dificultam a agricultura e apesar de ter metade da população da Coréia do Sul, a região da Coréia do Norte era a mais industrializada, através de minérios e hidroelétricas e parte siderúrgica, do que a região do Sul, que era mais pobre e dominada basicamente por proprietários de terras, tendo que ser “socorrida” durante a Guerra pelas potências ocidentais e seus interesses de classes. Há uma virada nos anos 1960 e 1970, em que o PIB se inverte e o Sul torna-se mais rico (com seus conglomerados familiares) do que o Norte, configuração que permanece hoje. A história da Coréia do Norte, assim, nasce em contraposição a esse Sul. (Quem assistiu ao instigante filme sul-coreano Parasitas, de 2019, sabe que, dado o seu espelhamento das guerras de classes contemporâneas, poderia ter sido gravado em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Recife de Kléber Mendonça Filho, em Nova Iorque, daí o seu súbito sucesso e identificação mundiais…)
Veremos que, após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, a União Soviética só dispunha de sua indústria bélica; não à toa, a Coréia do Norte, através dessa influência direta, devastada pela guerra, só poderá investir para valer em fábricas estatais de produção de armas e maquinários pesados.
Todo marxista deve se perguntar: quem detém os meios de produção daquela industrialização? Outro dia, Ciro Gomes, com seu “trabalhismo” charlatão, disse que a Petrobrás pertence ao “povo brasileiro”; isto é certo apenas em termos retóricos, porque o lucro dessa empresa, que é uma sociedade mista, é administrado não pela classe trabalhadora, mas por burocratas do Estado e do governo federal do momento, além de outros domínios privados influírem. Assim, as plataformas submersíveis da Petrobrás e outros exemplos, a priori, não têm dono privado, mas são fruto de matérias-primas privadas da classe dominante e da redistribuição do sistema capitalista, e a ele servem, porque o Estado é a forma política do capital. Assim, Dilma, em determinado momento, quis destinar grandes porcentagens dos royalities do pré-sal à Educação e Saúde públicas, os plutocratas brasileiros dependentes dos plutocratas estrangeiros não deixaram; eu seria o primeiro a louvar a implementação, mas, por ser marxista, não nutriria qualquer ingenuidade caso não fosse apenas através de um “Estado operário” (em transição para o definhamento desse “Estado”) ou de Conselhos Nacionais de professores e estudantes (na Educação) e de médicos e enfermeiros (na Saúde).
Repito que há, na Coréia do Norte, uma classe dominante do tipo Clódio que detém os “meios de produção” e que é proprietária de grandes reservas e depósitos minerais com minérios que valem trilhões de dólares, além de metais raros usados na produção capitalista de smartphones na China e na Coreia do Sul. (Essa classe dominante não é uma burguesia clássica com seus CEOs, presidentes, conselhos dirigentes autocráticos, etc. engordando e acumulando em torno da mais-valia dos trabalhadores, mas a apopriação do produto do trabalho na Coréia do Norte não deixa de ser um componente do mais-valor, e tal classe dominante circunda o Estado, que tal como Gramsci nos ensina, é/era tudo no Oriente, enquanto que a “sociedade civil”, que no Ocidente é bem mais constituída, era no Oriente mais ou menos amorfa.)
Recentemente, pode-se procurar nos noticiários que as empresas da China (como a Baoyuanhengchang) entraram num acordo com a Comissão de Investimento e Parcerias da Coréia do Norte, que é encarregada de atrair investimentos estrangeiros, para desenvolver minas de ferro norte-coreanas. Deve haver uma chamada pelo alto a partir da qual os trabalhadores norte-coreanos se dispõem a cumprir.
Sabemos que a economia da Coréia do Norte é operada sob sigilo pelo aparato militar. Há um mercado clandestino (ou “mercado negro”, conforme alguns dizem) muito ativo. Todos sabem que a Coréia do Norte usa a sua moeda (o won) e também o yuan chinês e até mesmo o dólar dos EUA (o atrelamento da moeda norte-coreana ao dólar foi um dos esforços de Kim Jon Un desde que tornou-se chefe de Estado em 2011 e, segundo um site do mercado dos EUA, fez com que a inflação na Coréia do Norte caísse de 926% em 2010 para apenas alguns por cento hoje).
Até onde se sabe, há duas “economias” na Coréia do Norte – a estatal, que emprega funcionários do Estado e uma economia subterrânea. O preço varia entre o preço estatal e o preço de mercado. Já no informe de Marx “Salário, Preço e Lucro”, como também no Anti-Dühring de Engels, ou mesmo décadas antes, no próprio Manifesto Comunista (!!!) inovador, no capítulo II – Proletários e Comunistas, o trabalho assalariado é visto como a exploração moderna, depois da vassalagem e da escravidão, que deve ser abolida no processo revolucionário pela tomada dos meios de produção. Uma afirmação dessas (trabalho assalariado enquanto exploração) faz a esquerda média e social-democrata ou social-liberal ficar confusa (sobretudo numa época de informalidade e uberização), mas só pode ser explicada através da teoria do valor, que promove a compreensão de que o salário é apenas parte, migalha do “lucro” tomado da própria classe trabalhadora pela classe capitalista. Isto é o beabá do marxismo. Esse salário, na Coréia do Norte, vai variar de acordo com qual parte das duas economias o trabalhador atua – a estatal, concentrada, ou a do fluxo de capitais, embora uma e outra não deixem de confluir.
A partir disso, conclui-se que: 1) Da frase de Engels, “[…] o lucro do capital, bem como todas as demais formas de apropriação do produto do trabalho alheio, não remunerado, como mero componente desse mais-valor descoberto por Marx”, que há um valor a mais, um excedente do trabalho também na Coréia do Norte; 2) Não se pode esquecer da frase de David Ricardo que “marcou época” (segundo o mesmo Engel), dando consistência à Economia Política e a partir da qual Marx em seu gênio aprofundou-se: “O valor de uma mercadoria depende da quantidade de trabalho necessário para sua produção, e não da maior ou menor remuneração que é paga por esse trabalho” (Princípios de Economia Política e Tributação, Capítulo I, “Sobre o valor”, Seção I).
Mas não está ainda cristalino, pois é estranho comparar a espoliação da Coréia do Norte com a espoliação que vemos em “economias de mercado” explícitas. Aqui, portanto, é importante uma analogia, ainda que anacrônica, mas elementar dentro do movimento comunista e para o marxismo.
Lembremos que o rendimento das classes dominantes da burocracia da URSS (muitas vezes chamada de “capitalismo de Estado”, denominação que o próprio Lênin já utilizava em brochura de 1918 e posteriormente em 1921 para tratar da NEP) passou a ser constituído em larga escala de mais-valia (ou excedente, se preferirem, para diferenciar dos modelos capitalistas de mercado hegemônico) a partir do Primeiro Plano Quinquenal iniciado em 1928. Assim como na Coréia do Norte, ainda que fosse impossível identificar, de maneira isoladamente, a regulação da economia soviética pela lei do valor (característica básica do capitalismo), a regulação acaba sendo imposta pelas relações econômicas, ora atribuladas, ora arrefecidas, com o sistema capitalista mundial hegemônico. Marxistas da época e nos últimos anos (cf. Luis Fernandes, O Enigma do Socialismo Real: um balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais, Rio de Janeiro: Mauad, 2000) identificaram que havia, na URSS, e isso é notório hoje na Coréia do Norte (os próprios oficiais fazem questão de mostrar imagens ao planeta), uma “economia armamentista permanente“, que não deixa de ser uma forma específica assumida pela lei do valor do sistema capitalista mundial na economia soviética e, agora, na norte-coreana.
O fetiche da mercadoria, na Coréia do Norte, pode ser visto a cada novo super-míssel, a cada novo tanque, a cada novo teste de arma nuclear exibidos em paradas militares e festejados por Kim Jon Un e equipe militar sempre circundante. Tal como na maior parte do mundo contemporâneo, o fetiche da mercadoria, hoje, é encontrado a cada nova inovação tecnológica. (Não só no capitalismo japonês ou sob a Apple, que rouba invenção criada em laboratórios científicos como o Instituto de Massachusetts e militares com “dinheiro público” dos contribuintes dos EUA; até mesmo na China, que, enquanto bebê da produção, possui, de um lado, um capitalismo de exploração explícita do trabalho e horas compulsórias para sustentar o seu status recente de potência, e, do outro, um capitalismo de alta tecnologia – Huawei).
Porém, o mais importante não é o fetichismo em torno da bomba, mas seu caráter dissuasivo. Ela não é feita necessariamente para ser usada, mas para evitar quem a possui (Coréia do Norte e outros países que investem pesado na indústria bélico-militar) de ser atacado.
A competição militar dos países interimperialistas torna os “valores de uso” na meta principal da produção capitalista (cf. Ibidem), desnudando completamente a barbárie do capital – em seu centro e franjas ou nas intersecções, nas redomas e nas barreiras.
Podemos, enfim, dizer que grande parte da economia da Coréia do Norte se concentra nessa espécie de “economia armamentista permanente”, ainda que em configurações diferentes com relação ao que ocorreu na União Soviética, mas é fundamental fornecer esse achado para uma crítica marxista da exploração do trabalho e da sociedade de classes.
De acordo com o famoso historiador marxista Eric Hobsbawm (1917-2012), em seu livro Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994), a União Soviética saiu da Segunda Guerra em 1945 economicamente pior do que quando saiu da Revolução Russa de 1917, e os EUA emergiram como potência (Plano Marshall e outros motivos), mas, por sua vez, saíram da guerra preocupados com uma nova crise mundial nos moldes de 1929, ao passo que, vencido o nazifascismo pelo Exército Vermelho e pela luta comunista civil na Resistência dos países europeus, os EUA, tendo se tornado a grande nação da reação imperialista, incentivaram o anticomunismo. O que tinham os russos? Nada além de sua indústria bélica. Não é necessário ser um gênio para entender que a Guerra Fria e seus conceitos de direita e esquerda não passaram muitas vezes de retórica vazia e requentada que maquiou verdadeiros e robustos lucros econômicos para as classes dominantes por trás das marionetes, enquanto os efeitos eram drásticos nas lutas de classes nacionais que levaram a ditaduras militares na nossa “América Latina”, por exemplo.
(Trívia pessoal: lá pelos idos de 2013, durante minhas ambições cinematográficas em São Paulo – cheguei a cursar um semestre de Cinema e Audiovisual em Santos -, adquiri uma câmera de cinema soviética de 16 mm que era o meu xodó, fabricada na União Soviética pela Zenith, mas que vendi quando adquiri uma câmera analógica, porque é difícil hoje em dia trabalhar manualmente com filme e conseguir película, que eu tinha de arranjar no boca-a-boca: enfim, a Krasnogorsk-3 soviética, mesmo sendo pequena e de mão, era particularmente pesada e visivelmente composta por material bélico!…)
Ainda assim, é fato que a guerra entre EUA e URSS nunca foi apenas aparente. Durante a Guerra da Coreia, pilotos americanos e soviéticos entraram em combate. A crise dos mísseis em Cuba em meados dos anos 1960, da qual muito já se falou e escreveu, quase levou a uma guerra nuclear e pânico no mundo todo. As duas potências sempre estiveram em guerra: da Coreia ao Afeganistão. Vide o conceito de guerra by proxis.
De qualquer forma, a indústria do petróleo e o complexo industrial-militar se conjuminam e estão entre os mais ricos do mundo, têm os maiores financiamentos.
E durante o século XX o que não faltou foram conflitos armados. Hobsbawm menciona esse grande arranjo em seu livro.
Portanto, apesar dos projetos conjuntos com a “capitalista” Coréia do Sul em áreas de energia e outras, tudo o que a Coréia do Norte possui é a indústria bélio-militar para barganhar acordos e dissuadir.
Sua única alternativa é desenvolver tecnologia nuclear para sobreviver, daí o caráter distópico da Coréia do Norte, caso contrário há um suicídio muito mais terrível do que o desmanche da Alemanha Oriental, cujos traumas logo cicatrizaram. (A Alemanha Oriental, definiu Heiner Müller, não deixou de ser uma vingança da geração anterior, comunista ou não, contra os nazistas. Também a Alemanha Oriental era dominada pelo aparato de tipo soviético-tecnocrático, e conseguiu produzir pertinente cultura.)
Gastos com defesa são importantes em regiões de conflito, ou que tenham iminência de conflitos. Infelizmente, capitalistas e chefes de Estado lucram com guerras.
Voltemos à classe trabalhadora, raiz da sociedade, já que detém as forças produtivas, e que é a base mesmo da indústria bélico-militar com seus especialistas e técnicos mais ao alto. Um trabalhador têxtil de empresa estatal em Pyongyang está produzindo valor para a classe dominante tecnocrática e, em troca, recebe do “Estado” uma migalha em forma de salário. Se a irmã deste trabalhador trabalha em uma fábrica afiliada à China ou à Coréia do Sul na Coréia do Norte, ela recebe um salário-migalha de quantia maior (pois o lucro excedente e a mais-valia roubada pelos capitalistas desses dois países são maiores) e irá produzir valor para a classe capitalista da Coréia do Sul ou da China e, em parte, para a classe dominante da Coréia do Norte. Esse desarranjo torna o sistema norte-coreano bastante desestabilizado e instável, mas vacinado contra a economia de mercado autorregulado (nome jornalístico: neoliberalismo), que não deixa de ser também tirano, autocrático, exponencialmente hierarquizado. Uma coisa, porém, não justifica a outra.
Ainda assim, a Coréia do Norte parece ter pequenos empresários e estimula o conhecimento do empreendedorismo, da tecnologia e do capital de risco de certos membros de elite através do Choson Exchange. Li que há um site de comércio eletrônico (Manmulsang, em oposição à Amazon do bilionário semiescravagista Jeff Bezos), um serviço de compras pelo celular (Okryu, ainda que o acesso à internet e a celulares seja muito restrito) e um aplicativo de navegação (Gildongmu), sendo que fundadores desse tipo precisam superar obstáculos incomuns.
Um liberal defende a “liberdade de expressão”, sem jamais alcançar a necessidade da igualdade econômica dessa liberdade de expressão, que o capitalismo, por seu próprio funcionamento, nunca oferece. Um marxista vai mais fundo e se interessa pelo caráter econômico das relações. Nesse sentido, sabemos que do lado de cá nossa expressão é, hoje, mercantilizada pelo monopólio das redes antissociais para meia dúzia de bilionários tão infantilizados quanto Kim Jon Un (penso num Mark Zuckeberg, um adolescente marmanjo), nossos dados são vendidos ou fornecidos de bandeja para aparatos governamentais na velha relação incestuosa entre empresariado e corporativistas. Vivemos um mundo de louco: o tripudiador Trump é banido do Twitter, uma plataforma privada, e é como se o presidente dos EUA (!) perdesse a voz… Países como a Coréia do Norte também cerceiam a expressão e também aglutinam a produção do trabalho para uma meia dúzia.
O que mais podemos saber sobre as classes na Coréia do Norte? Andray Abrahamian, da George Mason University Korea, em Seul, que já trabalhou em cooperação estreita com empresas norte-coreanas (ele escreveu em 2020 o livro Being in North Korea), informou em 2020, no contexto da pandemia de COVID-19, que o Estado norte-coreano vai “coagir a comunidade empresarial” a comprar títulos de divisas cada vez mais caros para lidar com suas recentes crises, mas que haverá uma suposta “negociação” dos valores dos mesmos:
“Estamos falando de alguém que tem uma pequena empresa com dez empregados, cuja família ganha alguns milhares de dólares por ano e têm condições de viver numa casa boa, com alguns eletrodomésticos? Ou das pessoas que comandam estatais e ganham vários milhões de dólares por ano individualmente?”
Temos aqui um aspecto explícito das lutas de classes, ainda que não venha a público! Que empresários são esses? Parte da mais-valia desses empregados (privados?) vai também para o governo? Pode-se chamar tais empresários de burguesia, sendo que possivelmente não possuem os meios de produção principais e estão subordinados às matérias-primas detidas pelo aparato? São “pequena-burguesia”?
Abrahamian comentou ainda que é provável que a emissão de títulos de divisa crie tensões no interior da liderança norte-coreana:
“Haverá elementos no governo que vão querer se certificar de não estarem sufocando as empresas. Haverá outros que se preocupam muito menos com isso e se interessam no acúmulo de capital no curto prazo para os órgãos do Estado central.”
Prova tácita da correlação de forças das lutas de classes. Um país não é um bloco monolítico, é sempre muito mais complexo do que parece. Os interesses de classe, que formam diferentes ideias e ações no campo da superestruturra política, precisam sempre ser descobertos quando vamos ensinar ou aprender sobre determinada situação histórica.
Assim, além dessa franja empresarial, o excedente do trabalho na Coréia do Norte vai todo para uma espécie de cleptocracia (surgida como sintoma da guerra interimperialista), que centraliza poder militar e meios de produção enquanto propriedade dos membros do poder central.
Também na Coréia do Norte há uma espécie de “anarquia da produção“, ainda que do avesso se comparada com a nossa, de economia de mercado capitalista, sob outras configurações de caráter oriental (novamente a diferenciação gramsciana se faz presente). A contradição da sociedade burguesa em que o processo do trabalho no capitalismo é uma atividade coletiva, mas sua posse e usos não o são é chamada por Marx e Engels de “anarquia da produção”, que gera as crises periódicas típicas do capitalismo por conta da contradição entre as forças produtivas (detidas pelos trabalhadores) e as relações de produção da classe dominante capitalista.
Nem mesmo a pressionada Coréia do Norte, como já vimos, aboliu tal contradição entre atividade coletivizada e posse e uso “privados”. Em Engels (no célebre ensaio “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, opúsculo retirado do Anti-Dühring), é explícito que a classe trabalhadora é que irá pôr fim à anarquia social da produção através da revolução. (Trata-se de um elevado ponto de chegada da conscientização na história humana ocidental e que nos remete ao clássico Rousseau, para quem a origem da desigualdade entre os homens reside na propriedade – Discurso Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens.)
Ainda em Engels, em etapa avançada do comunismo, “Na medida em que desaparece a anarquia da produção social, a autoridade política do Estado também desaparece”. O que Engels diria da Coréia do Norte e do mundo hoje?
Não é a classe trabalhadora que está no domínio, mas meia dúzia de tecnocratas que não fazem parte da classe trabalhadora. De fato, esses tecnocratas possuem mais ou menos um papel de liderança. Não quero me aprofundar neste aspecto, porque periga cairmos na mera fenomenologia do poder, que é superficial, quando, na realidade, nos interessa estudar a mais-valia e a exploração econômica, a partir das quais surge qualquer elemento ditatorial ou liderança orgânica.
“O trabalhador produz não para si, mas para o capital”, mostrou Marx no livro I de O Capital. Como se fosse o avesso frio das zonas quentes do fluxo de capitais, o trabalhador norte-coreano produz não para si, mas para a classe do aparato do Estado, que promete defendê-lo de um mundo hosti. Que isso retorne em bens públicos já são outros quinhentos, porque é algo que países “desenvolvidos” de economia de mercado e governos social-democratas também o fazem, mantendo a sociedade de classes e a exploração econômica do trabalho, ainda que com direitos trabalhistas (ou não).
O capital, através do valor excedente (mais-valia), acumula, forma capital constante, remunera juros e recolhe tributos. O nosso setor público dos países de economia de mercado possuem orçamento que, em determinado momento de execução, independe do valor de troca do trabalho e de valor excedente. O limite de gastos com pessoal é determinado em lei. O setor público, a priori, tem função social e não mercantil, ou seja, teoricamente não vende os serviços baseado em valor de troca. Mas está conjuminado ao sistema capitalista. Aliás, foi construído pela burguesia para isto na forma de um Estado burguês e de um Direito burguês, que garantem a troca de mercadorias na legislação e a defesa da propriedade privada em termos policiais, militares, coercitivos, tal como Engels mostrou em apanhado histórico no Anti-Dühring, a partir do qual Pachukanis se debruçará décadas depois em sua obra Teoria Geral do Direito e o Marxismo. (Revolucionário empenhado na superação da burocracia soviética, intelectual comprometido com Lênin e com o marxismo, ele será executado no Grande Expurgo.)
A resposta para desfazer o nó entre “público” e “privado” só pode partir de uma etapa anterior, está num estudo sobre o trabalho, que funda o ser social, conforme Marx e posteriormente Lukács, na sua ontologia, nos legaram.
Esta pesquisa bibliográfica, de Janaína Lopes do Nascimento Duarte, explica a partir de Marx e de autores marxistas brasileiros contemporâneos, o que é trabalho produtivo e trabalho improdutivo na sociedade burguesa; o trabalho produtivo, produzindo um bem material ou imaterial, uma necessidade do estômago ou do desejo, está diretamente no processo imediato de produção e é comprado pelo capitalista para produzir valor maior, enquanto que o trabalho improdutivo é comprado pelo consumidor para consumir seu valor de uso.
Ainda que os assalariados do comércio não estejam diretamente no processo imediato de produção, são produtivos interiores à produção capitalista e à circulação de capital, são funcionais ao modo de produção capitalista e estão inseridos como classe despossuída no seu processo global de produção; os funcionários públicos, por sua vez, que são classe média/pequena-burguesia, também encontram-se de fora do processo direto de produção de mais-valia, não vendem força de trabalho diretamente ao capital, mas estão ligados ao Estado, instituição absolutamente necessária ao sistema capitalista, pois seus salários provêm de fundo constituído pela redistribuição dos rendimentos do sistema capitalista através dos impostos, que correspondem a uma parte dos rendimentos (salários, lucros e renda da terra) apropriada pelo Estado. (Como parte do sistema, os docentes, de uma forma geral, tanto público ou privado, ou seja, tanto o improdutivo quanto o produtivo, a partir de reformas educacionais acríticas e de ideologia neoliberal, acabam formando cabeças para o mercado de trabalho…) Mas o trabalhador de uma fábrica norte-coreana não pode ser comparado com um funcionário estatal brasileiro, pois o primeiro produz como um trabalhador do setor privado capitalista… Os empregados domésticos, por sua vez, ou os empregados temporários de escritórios, também são improdutivos, porque sua força de trabalho é comprada para o valor de uso particular de servir as famílias, ou seja, é um trabalho que se troca por rendimento e não por capital. Mas esse rendimento só pode provir do valor criado pelo processo de produção. Um trabalhador que contrata um empregado doméstico lhe dará parte de seu salário; contratado por um empresário, terá parte da mais-valia dos possuidores; contratado por um proprietário de terra, terá parte da renda fundiária do proprietário. Os serviços temporários de atores, músicos, prostitutas, auxiliares de escritório vendem trabalho improdutivo para o lucro, sendo que estes serviços foram certamente pagos com a renda ou derivam do trabalho produtivo, podendo estar subordinada à produção de mais-valia ou escapar de tal processo, dependendo do caso. O trabalhador autônomo, também exterior à produção, não gera sobre-valor, porque sua força de trabalho é utilizada por seu valor de uso próprio, mas está preso ao sistema capitalista através da redistribuição dos rendimentos.
Mesmo com tantas formas de trabalho improdutivo, explicadas rapidamente acima, toda a produção é produção do trabalho produtivo, porque, mesmo afastados dos muros das empresas capitalistas, só podemos produzir mercadorias com as matérias-primas e os instrumentos de trabalho produzidos pelas grandes empresas, por causa da brutal axiomática sistêmica do capital ou da forma mercadoria.
Disso podemos apreender que o trabalho, na Coréia do Norte, mesmo sendo assalariado a partir do “Estado”, não deixa de ser produtivo no contexto da indústria bélico-militar e de outras “economias” que por ali passam, mas, em grande parte, é um funcionamento heterodoxo ao modelo ocidental – seria errôneo dizer que todos os funcionários de lá são classe média/pequeno-burguesia (que, aqui, fazem parte da burocracia estatal), quando, na realidade, parecem muito mais com o operariado produtivo, dada a configuração do trabalho e o produto do trabalho.
O recente caso ocorrido na Região Industrial de Kaesong ilustra bem meu ponto. Como se sabe, apesar da planificação, cresce o comércio em vários pontos e há áreas industriais na Coréia do Norte, ou seja, passa ali algum fluxo de capitais; o complexo militar de Kaesong significou uma aproximação com a Coréia do Sul, que forneceu eletricidade, água tratada, petróleo e material de construção para a manufatura, enquanto a Coréia do Norte fornecia a região e os trabalhadores; a Região Industrial foi temporariamente pausada em 2016 quando se soube que os militares da Coréia do Norte estavam realizando um teste de bomba de hidrogênio.
Ou seja, a classe dominante norte-coreana usa a maior parte dos recursos para a Defesa, além de serviços básicos públicos, obras faraônicas e propinas para a elite. As fazendas e fábricas são povoadas de trabalhadores que não parecem ter real autonomia revolucionária, assim como os daqui; o rendimento geral é detido, as próprias fazendas e fábricas não são da classe trabalhadora, mas de uma classe dominante nacional, ainda que possa se dizer que são do “Estado”, logo seriam “propriedade pública”, entretanto não é novidade nenhuma, para quem leu Engels (ver a foto de trecho do Anti-Dühring lá em cima), que o Estado é o Estado da classe a ser tornado supérfluo “no momento em que não houver mais classe social para manter em opressão”. A Coréia do Norte é melhor do que o luxo da nossa burguesia (há relatos de que Kim Jom Un e seu pai sempre se aproveitaram de prazeres exagerados) e do que Wall Street sustentando o complexo industrial-militar dos EUA, e vice-versa? É o avesso? O outro lado da moeda? Não me parece melhor, mas, para responder, seria preciso não uma opinião, e sim um estudo antropológico, da qual não é plenamente possível por causa do fechamento do regime… As conclusões a partir da exploração econômica por meio da teoria do valor podem ser suficientes.
Agora, vamos problematizar novamente o caráter heterodoxo da Coréia do Norte a respeito do trabalho.
No Tomo II dos Grundrisse, tratando do papel do Estado na relação das condições gerais da produção, Marx assinala: “Pode fazer trabalho ou investimentos que sejam necessários, sem serem produtivos no sentido do capital, isto é, sem que o sobre-trabalho contido neles se realize como mais-valor por meio da circulação, do intercâmbio”.
Um operário estatal da sociedade burguesa, exemplifica Marx, que constrói uma estrada deixa modelado seu sobre-trabalho que, a priori, não se pode vender, por ser estatal; é pago pelo custo de sua força de trabalho, despende um sobre-trabalho não retribuído que não se pode concretizar em mais-valia, pois não se troca no mercado. Os empregados públicos são pagos com o rendimento (impostos), não com o capital variável. Conclui Marx: “Por conseguinte, todas as condições gerais, coletivas da produção – enquanto não possa ocorrer sua criação pelo capital enquanto tal, sob suas condições – se cobrem com uma parte do rendimento nacional, do erário público, e os operários não se apresentam como trabalhadores produtivos, ainda que aumentem a força produtiva do capital”.
No entanto, expandindo o pensamento para além do capital, Marx ensina:
“Onde reina o capital (tal como ali onde há escravidão, servidão ou trabalho compulsório de qualquer tipo), o tempo de trabalho absoluto do trabalhador é posto como condição para que ele possa trabalhar o necessário, i.e., para que possa realizar o tempo de trabalho necessário à conservação de sua capacidade de trabalho em valores de uso para si. Em qualquer tipo de trabalho, a concorrência faz com que o trabalhador tenha de trabalhar o tempo completo – portanto, o tempo de trabalho excedente. Pode acontecer, entretanto, que esse tempo de trabalho excedente, apesar de contido no produto, não seja trocável. Para o próprio trabalhador – comparado aos outros trabalhadores assalariados –, é trabalho excedente. Para aquele que utiliza o trabalho, é certamente trabalho que tem um valor de uso para ele, como, p. ex., seu cozinheiro, mas não tem nenhum valor de troca, de modo que toda distinção entre tempo de trabalho necessário e excedente não existe. O trabalho pode ser necessário sem ser produtivo. Todas as condições gerais, coletivas, da produção – enquanto sua produção ainda não pode se realizar pelo capital enquanto tal, sob suas condições – serão custeadas, por conseguinte, por uma parte da renda do país, pelo erário público, e os trabalhadores aparecem não como trabalhadores produtivos, muito embora aumentem a força produtiva do capital.” (Grundrisse, p. 712)
O emprego público ou estatal, mesmo sendo assalariado como outro qualquer, está, do ponto de vista econômico, “em outra relação, se não de capital, enquanto capital”.
O beneficiário imediato deste sobre-trabalho não é diretamente o capital privado, mas as finanças da empresa e do Estado. Acontece que não existem “capital privado” e “Estado” sem classe dominante por trás, ou seria como tratá-los de maneira abstrata e pouco concreta.
É de se assinalar que geralmente as empresas estatais ocidentais são implantadas em áreas de baixa rentabilidade ou alto risco, ainda que necessárias para o funcionamento social. É exatamente por isso que o capital privado prefere que o Estado burguês o brinde com os ganhos indiretos pelo capital, descartando intervir de forma direta na sua exploração; obtém a baixo lucro e incorpora a seu processo produtivo, transferindo esses ganhos ao produto final que sai de suas empresas privadas e aumentando os lucros capitalistas ao reduzir o custo de financiamento.
A partir de informações das alfândegas internacionais (a Coréia do Norte não publica estatísticas sobre seu comércio externo), sabe-se que o país exporta mais (intercâmbios que ultrapassaram 6,5 bilhões de dólares, cerca de 20 bilhões de reais) do que países como Malta, Senegal, Líbano, Cuba ou Afeganistão, e que 85% dos produtos que entram na Coréia do Norte advêm da China (o resto, Pyongyang compra da Índia, Rússia e Tailândia). A China, por sua vez, compra 82% das exportações norte-coreanas, além de Índia, Paquistão e Angola também contribuírem nas negociações com a Coréia do Norte. Assim, é muito claro que a Coréia do Norte participa da “economia mundial de mercado”, isto é, do fluxo de capitais. É impossível imaginar um país descolado do resto da circulação mundial, sobretudo em décadas de globalização.
A Coréia do Norte exporta carvão (35% no total, segundo a matéria supracitada), quase totalmente comprado por Pequim; o comércio de carvão mineral (hulha) gera receita em torno de bilhão de dólares, ainda de acordo com a matéria acima. As sanções e embargos, portanto, muito comuns nessas áreas, impactam sobremaneira a classe trabalhadora da Coréia do Norte. A Coréia do Norte também exporta produtos têxteis (camisetas de malha, casacos, jaquetas, ternos e calças) que ultrapassam os 100 milhões de dólares. O segundo comprador destes produtos, em 2015, foi a Espanha (361.000 dólares). A França, ainda segundo os dados da matéria, comprou moluscos norte-coreanos pelo valor de 703.000 dólares. É o jogo das altas classes dominantes, em que o grande montante, gerado pelas forças produtivas, não é administrado pelos de baixo.
Pyongyang importa uma vasta gama de produtos: tecidos sintéticos, aparelhos de televisão, telefones, automóveis, pneus, computadores, óleo de soja, peixe congelado, mas a Coréia do Norte procura, como todo país que se preze, petróleo, e nisso, ainda de acordo com a matéria supracitada, seus principais fornecedores em 2015 foram China (62,5% do total), México (24,3%), Rússia (10%) e Turquia (2,5%).
O desequilíbrio estrutural gerado pelo fato de comprar muito mais do que vender é suprido em parte pelo investimento chinês no país, pelo superávit turístico (sobretudo de cidadãos chineses), pelas remessas enviadas pelos 50.000 trabalhadores norte-coreanos de vários setores do exterior, ajuda humanitária e empréstimos sem juros de seus aliados, além do contrabando.
A Coréia do Norte é, infelizmente, repito, uma distopia (uso esta expressão sem qualquer intenção pejorativa ou caricata), é uma sociedade em permanente estado militar de paranoia produzida pelo mortífero combate das classes dominantes durante a Segunda Guerra Mundial e a traumática fratura geográfica; a sociedade dos EUA vive também a sua particular paranoia em defesa de seus privilégios, primeiro contra “o comunismo”, depois “contra o terrorismo”, e a sua prosperidade não é mais do que uma conquista bélica, ainda que seja uma sociedade muito mais complexa, multiétcnica, multicultural, por conta da história e da abertura (mesmo com protecionismo).
Assim, os apologéticos não estão defendendo a classe trabalhadora norte-coreana. Defender o povo contra uma guerra nuclear até a Organização das Nações Unidas o faz, e qualquer liberal… Isso é, de fato, o mínimo, em termos humanistas.
Em âmbito filosófico, é ainda mais simples: pode-se dizer que se está em favor e a serviço da classe trabalhadora (o universal), mas as ações são de acordo com os interesses e condições de classe (o particular), então a primeira categoria, com ganhos e equívocos, não é totalmente cumprida no nível prático.
Os trabalhadores norte-coreanos mantém, com seu trabalho, a máquina estatal, mas não detém os meios de produção através de organizações autônomas da classe trabalhadora, tal como elaborou Marx na Crítica do Programa de Gotha. Arrisco a dizer que, uma vez que o Estado não é tudo no Ocidente, tal como Gramsci ensinou, uma vez que a sociedade civil ocidental tem maior capilaridade do que no Oriente, em que o Estado era tudo, é possível que do lado de cá do mundo haja mais organizações classistas de trabalhadores independentes do que na Coréia do Norte. (Recentemente, conforme foi noticiado, uma fábrica de alfajor e de doces na Argentina faliu; os próprios trabalhadores, que iriam para a rua, tomaram conta da fábrica e a transformaram em cooperativa, sem excedente, sem lucro, sem patrão, sem mais-valia. Infelizmente, essa tomada dos meios de produção é um mísero exemplo, que deveria se espraiar em áreas fundamentais da economia, fosse o governo peronista realmente revolucionário… Além do mais, se deu não por um processo revolucionário, mas pela falência da fábrica – e possivelmente do capitalista, que com certeza não é o dono do terreno, sendo este dono um proprietário fundiário que dele devia cobrar aluguel. Não faltaram brasileiros, aqui e aqui, um pouquinho mais lúcidos, afirmando que, finalmente, essa tomada do meio de produção pela classe trabalhadora é um exemplo comunista no qual Marx e Engels se orgulhariam. Ninguém pode dizer, se utilizando dum eurocentrismo marxista etapista – que o próprio Marx tratou de mitigar na Carta a Sigfrid Meyer e August Vogt e na Carta à redação da Otechestvenye Zapiski – que a Argentina é “rica” e “suficientemente desenvolvida” para aquela movimentação operária; ao contrário, está numa crise violenta. A Coréia do Norte é país subdesenvolvido ou em desenvolvimento, mas era mais rica que a do Sul, conforme já supracitado, tem um campo industrial, fabril, fazendas, e, se hoje dizem que é comunista, precisava ser comunista de fato, radicalmente comunista.)
Essa máquina, como toda máquina estatal, é controlada por uma classe dominante sobre as outras, no nível superestrutural: toda máquina totalitária precisa de um forte esquema burocrático, militar, policial, propagandístico, educacional, etc.
O excedente, na Coréia, é usado para manter essa máquina, que não gera valor. Há propriedade privada dos meios de produção detida pelos altos oficiais da classe dominante.
Nesse sentido, a única coisa que os trabalhadores norte-coreanos podem fazer é vender para o Estado (que se confunde com o burocrático Partido dos Trabalhadores) a sua força de trabalho, uma vez que os trabalhadores não são os detentores dos meios de produção. Esta é a condição da classe trabalhadora por lá, assim como para a classe trabalhadora aqui – embora, do lado de cá do mundo, os meios de produção são detidos por uma explícita classe capitalista e pelos donos do PIB, que escolhem seus representantes políticos para gerir o Estado burguês. Nos EUA, o que nasce de ciência através de volumosos investimentos públicos em laboratórios militares e meios acadêmicos, logo é vendido e monopolizado para bilionários da Apple. Na Coréia do Norte, é administrado pela classe dominante tecnocrática.
Os apologéticos dirão que o aparato está à serviço da população e dos trabalhadores contra as pressões do Ocidente e do imperialismo (capitalismo hegemônico reacionário) das potências dos EUA e da Europa. Ninguém nega que o regime não se abre por conta da pressão do Ocidente sobre o país. Anos e anos de isolamento contribuíram para o fechamento do regime.
Os apologistas, entretanto, precisam de uma antropologia política para afirmar aquilo, mas eles não a têm. Uma forma de se romper as amarras dogmáticas de um certo comunismo e marxismo é a análise antropológica: como os atores se representam, como agem, pensam no cotidiano, em suas mais variadas formas, aliado à concepção materialista da História. Marx e Engels, em vida, faziam questão de coletar dados e entrar em correspondência com organizações de trabalhadores pelo mundo que não conheciam… Não existe, porém, aprofundada e ampla pesquisa empírica na Coréia do Norte, que não esteja vinculada ao governo (que, lá, se confunde com o próprio Estado), muito menos as de caráter antropológico.
Resta a eles, então, uma prática propagandista e ideológica de acordo com o aparato extrínseco, nada mais.
Um colega meu distante visitou, anos atrás, Pyongyang, a capital da Coréia do Norte. Pedi breve relato a ele para este texto. Seu relato foi o seguinte (ipsis litteris):
“O país consegue garantir habitação, saúde e educação gratuita pra maioria da população. Pyongyang é uma cidade interessante, com ruas amplas e arborizadas, tudo muito limpo e bem cuidado, há uma boa estrutura de lazer, cinemas, teatros, pistas de patinação/skate, clubes aquáticos etc. O interior é mais pobre, mas não miserável. Segundo o embaixador brasileiro na época, sr. Roberto Collin, a grave crise alimentar da década 90 já havia sido superada. Longe de ser o país perfeito, mas também distante do que nos é noticiado corriqueiramente.”
E daí? Nos países “nórdicos”, que são “a maravilha” para a esquerda reformista, também há parecidas características em relação à vida cotidiana (às custas dos trabalhadores dos países subdesenvolvidos, vários deles imigrantes desempenhando serviços e trabalhos que a classe trabalhadora europeia já não mais exerce).
Isso é positivo em si mesmo?
Em termos de marxismo, não.
Para a teleologia marxiana e marxista, isso é o básico e isso é pouco.
É a proposta econômica da social-democracia e dos “pelegos” do liberalismo social.
Quando a vida da classe trabalhadora parecia melhorar em fins do século 19 através das conquistas sociais e trabalhistas e por melhores direitos, Engels ; “melhores salários” e “jornada de trabalho” , Marx “Salário, Preço e Lucro”. Eles continuam sendo a vanguarda.
Como, então, essa crítica pode se dar em um país que não tem uma classe capitalista explícita, e cuja economia de mercado é subterrânea, de contrabando e clandestina?
Há os detentores dos meios de produção, que definitivamente não são os trabalhadores norte-coreanos.
Rafael Albuquerque, em seu recente livrinho Por que não houve socialismo na experiência soviética? (São Paulo: Instituto Lukács, 2020), em que, a partir de Marx, Engels e Mézsaros, se utiliza de três argumentações …
“1) A permanência da cisão antagônica entre classe produtora e classe dominante;
“2) O fortalecimento do Estado;
3) A permanência do sistema do capital” (Ibidem, p. 12)
… nos fornece logo na introdução o substrato teórico-prático do pensamento revolucionário e emancipatório de Marx a respeito do trabalho nos diferentes tipos de sociedades de classes:
O encontro entre força de trabalho e meios de produção, cuja finalidade é produzir valores de uso, não tem, em princípio, um caráter capitalista, uma vez que tal relação é condição perene da humanidade para produzir sua vida em qualquer forma societal. (A capitalização, sabemos, virá num processo bem avançado do desenvolvimento da história humana, sobretudo a partir do século 16, tendo encontrado o seu ápice no 19.) Por esta razão, de início, Marx dá um tratamento genérico aos meios de produção no interior do processo de trabalho, já que, per se, eles não têm uma natureza capitalista e só adquirem este conteúdo histórico quando o trabalho, a força de trabalho que os utiliza se transformou numa mercadoria, ou seja, quando se estabelece a relação especificamente capitalista, cuja condição essencial é a conversão da força de trabalho em mercadoria.
Essa relação capital-trabalho pode ser vista na Coreia do Norte: o trabalho, lá, é mercadoria.
E, assim como na Coréia do Sul, os marxistas revolucionários desejamos a tomada de empresas como Kia, Samsung, LG ou Hyndai (inclusive, as três instaladas enquanto multinacionais aqui no Brasil) para os trabalhadores livremente associados, assim também enxergamos o problema social na Coréia do Norte à tomada dos meios de produção pela classe trabalhadora, não por uma família e seus cupinchas militares, que só se justificam enquanto Defesa contra o capitalismo imperialista, mas mesmo essa justifica é meio verdade, meio falsa, porque pressupõe desviar o foco e não encarar o problema.
Frente a esse xadrez geopolítico, o rapaz, como bom imbecil, resume as coisas a “amizade”.
Frente a esse xadrez das lutas de classes, o rapaz, como bom imbecil, resume as coisas a “xadrez geopolítico”.
Em nenhum momento resumi à “amizade”! Apontei o fato inconteste da aliança entre classes dominantes ou suas representações, ao invés de tratar a Coréia do Norte como um todo abstrato, enquanto os Estados Unidos aparecem aí em cima representados com seus governos momentâneos, o que também é uma definição prematura que mal considera o paradigma do complexo industrial-militar.
A palavra “amizade”, que jamais usei, é usada pelos próprios protagonistas, que, depois de se ameaçarem superficialmente de morte e destruição, agitando seus “gados”, dão-se as mãos. O recente livro Rage, de Bob Woodward, revela 25 correspondências trocadas entre Kim Jong-un e Donald Trump. Em uma delas, o próprio Kim fala em amizade com “força mágica”. Ou seja, o “líder supremo” dos pseudomarxistas tem uma amizade do tipo “força mágica” com um capitalista falido da extrema-direitalha dos EUA!
Criticar isto não é criticar o “povo” norte-coreano.
E aqui reside, em exemplo tácito, a minha enorme crítica à “nova linha” do PCB e à UJC.
Leu tanto Lukács e nunca aprendeu o que é “análise concreta de situação concreta”.
A definição do marxismo enquanto “análise concreta de situação concreta” não é de Lukács, mas de Lênin (em seu texto “Kommunizm” de 1920, publicado no Jornal da Internacional Comunista Para Países do Sudeste Europeu), cujas reclamações e preocupações finais em relação às falhas do burocratismo são ainda válidas e pertinentes, conforme podemos ver no texto “Sobre o significado do materialismo militante” (em que cita dois burocratismos sobrepostos a serem mitigados: o burocratismo russo, mais antigo, legado pelo czarismo despótico e que os bolcheviques não conseguiram superar, e o burocratismo novo, soviético). A degeneração dos Sovietes com a industrialização acelerada, a militarização do trabalho e a expropriação de camponeses (proposta deplorável de Trótski que Stálin implantará) se dá em grande parte por uma maior acomodação da nova classe ao burocratismo – faltaram afirmação e legitimação do poder dos Sovietes. Lênin, antes, teve de se defrontar com muitas contradições; é preciso lembrar que o autor de O Estado e a Revolução, enquanto revolucionário clandestino, segue à risca as preposições do Engels do Anti-Dühring a respeito do definhamento do Estado a partir do momento em que a classe trabalhadora revolucionária o toma e socializa os meios de produção para a sociedade, mas, no plano do real, diante de capitalismo atrasado, do isolamento, da fome, da revolução alemã fracassada e outros problemas, o Estado não superou totalmente resquícios da velha ordem.
Ademais, quando Lênin trata da “análise concreta de situação concreta”, obviamente ele tem um horizonte revolucionário a partir de táticas de acordo com as necessidades e condições.
Mas, aqui, “análise concreta de situação concreta” é reduzida a pura tática conjuntural a serviço do aparato. Não se exerce qualquer ação calcada no marxismo.
E atenção com a palavra “concreto”!
“Quando exagero os caracteres abstratos deste concreto, chego a um ponto onde a racionalidade do nexo racional anterior cessa” (Lukács, Pensamento Vivido: Autobiografia em Diálogo, Instituto Lukács, São Paulo, 2017, p. 136)!
Finalmente, já que Lukács foi citado, é ele quem nos fornece cirurgicamente a chave para explicar esse fenômeno da “nova linha” do PCB – tratam-se de resquícios “stalinistas” na ação política. Vejamos o que o próprio Lukács ensina, e como casa perfeitamente (Ibidem, grifos meus):
Isto explica por que não estamos tratando da questão no mesmo nível. Eles estão na simbologia, na retórica e na particularidade da universalidade vazia, ainda que a intenção possa ser boa – excluindo os oportunistas. Considerando a categoria da particularidade, eu estou na crítica revolucionária marxista.
Esse tipo de “marxismo” é impotente e incapaz de qualquer ação política. Fala em materialismo, mas é idealista, desinformado e perdido no mundo.
Esse tipo de marxismo é a própria bibliografia marxiana! É inacreditável como simplesmente se despreza a teoria em nome da supervalorização da conjuntura!
Não há ação política alguma – há militância acrítica, pseudomarxista em favor do aparato, não da autonomia da classe trabalhadora em favor da construção de uma sociedade comunista sem antagonismo de classes.
“Esse tipo de ‘marxismo'”, que negligencia a teoria do valor (defendendo o trabalho assalariado, exploração do capitalismo), a teoria do poder e do Estado e outras mais possui uma potência apenas basista, mas que é incapaz de qualquer ação política transformadora que não seja a parasitagem no Estado, em detrimento de CONSELHOS e COOPERATIVAS colocados no topo, acima e diretamente envolvidas na produção da sociedade.
Já não é mais marxismo, nem em sua análise social nem como práxis de uma construção revolucionária. Não à toa, Kim Jon Un não é nenhum grande elaborador marxista; o Juche e o Kimilsungism serviram para a “norte-coreianização” do comunismo, mas não servem à luta revolucionária a não ser em termos simbólicos, ideológicos e retóricos; a mera apologia emperra a construção revolucionária e despreza o marxismo. Repercute, afronta jornalistas neoliberalóides brasileiros e ocidentais que propagam a falsa dicotomia-armadilha de ditadura versus democracia, serviçais da burguesia, mas nada diz à realidade brasileira, por exemplo. É comunismo? Mas um comunismo cujo referencial é a classe dominante da burocracia, não a organicidade tal como ensinou Antonio Gramsci contra o centralismo burocrático, em nome do centralismo democrático e orgânico, em que sujeitos do mais profundo da massa, transformando-se em intelectuais orgânicos, sejam a direção do partido, mas não como “funcionários”.
É idealista, porque insiste no modelo do aparato tecnocrático pairando acima da classe trabalhadora e no culto à figura do “líder supremo” com todas suas simbologias míticas subsequentes; é desinformado, porque não esclarece as lutas de classes e a mais-valia ou o excedente dos trabalhadores; é perdido no mundo, porque luta para classes dominantes que estão pouco se lixando para nós, e tampouco consegue esboçar uma nova diplomacia mais digna.
Na melhor das intenções, esse “comunismo” ou “marxismo” pretende ser a defesa de uma luta anti-colonial, anti-imperialista, anticapitalista, mas, por sua própria defasagem teórico-prática interna, descamba para uma defesa de classes dominantes que estão longe de ser trabalhadoras; ao invés de construção revolucionária, conduz à parasitagem cleptocrática do Estado.
Que os coreanos, do Sul e do Norte, encontrem seu próprio caminho de paz. Eles não precisam da China ou dos Estados Unidos para isso, pelo contrário.
Que o Brasil e a “América Latina” trabalhem por uma radical construção revolucionária na ótica das lutas de classes através da teoria do poder, do Estado e do valor, senão a prática e a militância continuarão a desejar.
11 de janeiro de 2021