A hora e a vez de Gramsci

 

Fernando Graça e Antonio Gramsci.

Gramscistas, pelo seu próprio leque de repertórios, sempre estiveram entre os mais inteligentes do marxismo, mas, até agora, infelizmente, desagregados: um ou outro aqui, outro acolá; a maioria, ou os principais (a memória mais óbvia lembrará com justiça do importante trabalho de divulgação e organização gramscianas de Carlos Nelson Coutinho, ainda que incompletas, e de Marcos del Roio, com quem tive ótimo contato), não são orgânicos nos partidos nem “núcleos duros” como os leninistas e trotskistas, são confinados na academia tanto quanto os agudos “lukacsianos”. Dos governantes latino-americanos, somente o brilhante Chávez conhecia e ensinava Gramsci em comícios populares (https://youtu.be/xxnWoR61z30). Não há ainda um partido ou organização política gramscista; nem o próprio Partido Comunista Italiano de Togliatti chegou a ser o “Príncipe moderno” de Gramsci… No Brasil, a International Gramsci Society tem participantes simpáticos ou filiados ao PT, PCdoB (PelegodoB, segundo camaradas), PSOL, PCB sem que Gramsci predomine em nenhum desses partidos (que, aliás, não são organizações revolucionárias, com exceção histórica do PCB, que é simpático a Gramsci, um ou outro camarada vê com bons olhos meu projeto, sua sede em SP possui um quadro do italiano, mas só; nenhum deles senão o PT, que teve um ou outro intelectual gramscista e que passou pela experiência do poder político, poderia ter usado Gramsci lá atrás na comunicação e organização para se salvar, mas a cúpula eleitoreira, jurídica, e a enorme ojeriza do partido a qualquer teoria revolucionária impediriam o básico).

Isto precisará ser mudado!

Tal realidade, somada à defasagem ou má vontade dos próprios camaradas (pelos quais tenho afeto e/ou relação intelectual), todos excelentes marxistas, leninistas e trotskistas, em relação a Gramsci (para não citar certos preconceitos, de que Gramsci seria meramente “culturalista”, “revisionista”, “maquiavélico” – maquiaveliano, talvez, porque maquiavélico foi o Mussolini -, ou, em tom de admiração dispensável do ponto de vista praticista, “a perfumaria do marxismo” – e outros preconceitos, que se devem também à caricatura que a direitalha xucra fez e faz desse gênio aprisionado – “essa cabeça tem de ficar sem se pronunciar por uns 20 anos!”, disse o promotor fascista do seu caso – e deixado para morrer precocemente, sem contar certas leituras pequeno-burguesas, reformistas e “pop”s de Gramsci), tal realidade e defasagem é parte determinante da nossa crise de direção revolucionária dos trabalhadores!

Porque, se Marx e Engels são os formativos e se Lênin ou mesmo Trótski (que não construiu uma filosofia da práxis como Gramsci, e do qual ele, apesar do respeito intelectual, tinha enormes críticas) nos dizem quase tudo o que é necessário para a luta comunista e revolucionária, é a partir das estratégias teóricas e dos conceitos de Gramsci que resolveremos tal crise, mas de maneira integrada e orgânica, para usar um termo tão caro a ele. Por isso, é preciso estudar, ensinar e formar militância crítica em Gramsci. O meu empenho dos próximos meses e anos será o de defender esta visão.

O meu desejo dos últimos meses, e desde que ano passado desenvolvi grupos de estudos de Gramsci, tem sido o de estudar criar uma vanguarda a partir de Gramsci – sem esquecer Lênin (grande parte de Gramsci é uma “tradução” de alto nível ou tentativa de “traduzir” Lênin para seu tempo e espaço, mas Gramsci supera dialeticamente Lênin em assuntos primordiais), Rosa Luxemburgo, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, outros autores brasileiros e, INTRANSIGENTEMENTE, a defesa do tripé da obra marxiana e de Engels, tão esvaziada ou ignorada por (pseudo)marxistas e (pseudo)comunistas (a saber, a teoria do valor, a dialética e a perspectiva revolucionária, ou a crítica da Economia Política, a Filosofia materialista dialética e o socialismo).

A prática é o critério da verdade da teoria. O fato é que, enquanto teoria do partido, arrisco dizer que o marxismo-leninismo (mesmo o marxismo-leninismo-trotskismo, sendo vários camaradas deste rótulo do qual sou muito crítico, porque vejo como datado, bastante solidários e solícitos a mim) tem sido, não em sua totalidade, mas por si só, insuficiente, num impasse crítico – e, em certos pontos do nosso tempo histórico e espacial, mas não em sua totalidade!, anacrônico. Por muitos motivos que pretendo expor nos próximos meses e anos, sabemos que levam à burocratização e à centralização, ao invés da insistência na organicidade entre base e partido. Isso se deve ao pensamento dos russos (ou soviéticos) a partir de uma diferença basilar, que Gramsci viu bem, a respeito da teoria da revolução no Ocidente e mesmo a concepção de Estado entre os dois pólos. Gramsci elaborou uma inovadora e revolucionária teoria do partido enquanto centralismo orgânico, a partir da qual precisamos formar as novas gerações. Será difícil convencer os camaradas que já estão na luta e na militância desse fato, mas a minha argumentação, diante da realidade atual de conquistas e fracassos dos partidos de vanguarda, não é nem um pouco fraca.

É Gramsci — experiência revolucionária dos conselhos de fábrica; partido enquanto parte da classe, ao invés de cabide de cargos ou burocracia distante da base; intelectuais orgânicos; diferenciação entre marxismo ocidental / marxismo oriental; Estado ampliado e sociedade civil; guerra de movimento e guerra de posição; construção do nosso novo bloco histórico, (superestrutura-estrutura); estudo popular da filosofia da práxis (marxismo), que criará um novo senso comum e, criticando e superando a religião dominante, um progresso intelectual da massa; soldagem dos intelectuais marxistas e revolucionários com o povo-nação, etc. — o autor que pode resolver a crise de direção revolucionária que se arrasta há décadas e encontrará seu ponto decisivo nos próximos anos do “capitalismo tardio”, da extrema-direitalha e da esquerda insatisfatória, fraca e até liberalóide.

Vários partidos, legalizados ou não, do centralismo democrático ou de frentes, são simpáticos a este projeto de formação em Gramsci e de criação de intelectuais orgânicos. Obviamente, só até certo ponto, porque tal projeto ameaça cúpulas e a “pequena política“, tal como escrevia Gramsci. Entre os desafios, saber até onde a teoria do partido de Gramsci, bastante particular e ainda não testada na prática (eis outro motivo fundamental e positivo), seria tolerada ou aceita por eles. Um teste teórico-prático progressivamente, gradual… Entre os desafios, resolver a desagregação dos marxistas-gramscistas através da criação de marxistas-gramscistas integrados, mas não confinados na academia. Resta saber como e até onde irá minha/nossa práxis.

A atualidade de Gramsci

  • Atualidade de Gramsci” (1997), texto fundamental de Carlos Nelson Coutinho. É totalmente possível – e necessário – escrevermos um texto mais de 20 anos depois reforçando os pontos e adicionando outros mais que se fizeram evidentes a respeito da atualidade de Gramsci ao Brasil e mundo nessas últimas décadas.

Como começar a ler Gramsci?

Através de O Leitor de Gramsci, livro com escritos gramscianos pré-cárcere e no cárcere (divididos por temas), organizado por Carlos Nelson pela editora Civilização Brasileira. Também é muito importante adquirir o volumoso Dicionário Gramsciano da Editora Boitempo para consulta permanente! Os Cadernos do Cárcere não estão ainda completos no Brasil, mas Carlos Nelson e equipe fizeram amplo trabalho de tradução – são 12 volumes pela Civilização Brasileira. Todos estes estão na nossa pasta virtual do grupo! Um bom livro biográfico: Antonio Gramsci, o homem filósofo: uma biografia intelectual, de Gianni Fresu (radicado no Brasil), novo, lançado ano passado (2020). Os Prismas de Gramsci: a fórmula política da frente única (1919-1926), de Marcos del Roio, lançado em 2005 e com nova edição em 2019 (contra a direitalha e a extrema-direitalha?), serve (1) para pensarmos a fórmula política da frente única como uma estratégia revolucionária de fôlego ainda hoje e (2) apresentar o Gramsci corporificado, enquanto pensamento e ação, sem o abstracionismo costumeiro, pois é livro denso e histórico-político que trata concretamente de um período decisivo na vida de Gramsci e do movimento comunista – dos conselhos de fábricas à liderança no PCI, às voltas com a Internacional, até ser preso, período pouco explorado, ainda mais com profundidade e historicidade.

Como se sabe, Gramsci, apesar de talento para as Letras (cursou isto, inclusive), não publicou nenhum livro em vida – não teve tempo, pois, além da vida engajada atribulada de militante e depois de dirigente do Partido Comunista Italiano, logo foi preso pelos fascistas e morreu prematuramente. Escrevia textos para os jornais proletários. Na prisão, depois de muito pedir – sentiu a necessidade de deixar um legado – e sempre com o olho da censura sobre seus ombros, pôde escrever em 33 cadernos-brochura que hoje são chamados de Cadernos do Cárcere. Saiba mais neste relato importante aqui (“Antônio Gramsci, Chefe da Classe Operária Italiana”), escrito por Palmiro Togliatti, dirigente histórico do PCI e camarada de Gramsci.