Ruy Castro não compreendeu a renovação modernista da Semana de 22 de São Paulo

Ruy Castro confunde modernismo com modernidade, e associa o primeiro a quem teve prédio alto e eletricidade antes… É a superficialidade carioca. Acrescida à superficialidade do jornalismo. Acostumado a questões culturais de costumes, falta-lhe conhecimento avançado em estética e em estrutura interna da obra de arte. Assim, demonstra nada saber sobre a renovação estrutural nas artes e no pensamento brasileiros promovida pela seminal Semana de Arte Moderna de 1922 de São Paulo, que neste 2022 completa 100 anos. A Semana foi “alguma coisa de inesquecível, que sacudiu os meios artísticos de todo o país”, nas palavras de Anita Malfatti décadas depois, “porque era impossível tolerar-se o academismo, a inércia, o mau gosto da época”. Ou seja, antes do inovador modernismo paulista(no), toda a arte brasileira era incontestavelmente pré-moderna, inclusive a feita no Rio de Janeiro (com exceção de Lima Barreto ou mesmo dos pioneirismos da “segunda fase” de Machado de Assis, dois grandiosos casos solitários e mal compreendidos em seus próprios meios), cidade com resquícios políticos (República militar, quando em SP surgiu a mais moderna República civil), socioeconômicos e mentalidade de corte decadente. Romances, contos e poemas eram pré-modernos; poemas não tinham ainda superado totalmente a forma fixa do soneto, da métrica e da rima com a força que precisavam, quando Oswald (ele e seus poemas-minutos, de reinvenção da nossa história, cujo teatro também foi duma extraordinária e ainda hoje espantosa inovação ímpar, décadas e décadas antes de Nelson Rodrigues) e Mário (grande poeta e contista, grande pesquisador cultural) trouxeram inovações na prosa e versos mais do que livres e dum coloquialismo absoluto e sem precedentes, para ficarmos apenas em um exemplo concreto, determinante, literário (pois seria necessário também citar que a moderna pintura brasileira nasce com duas mulheres paulistas, Anita e Tarsila). Graças à Semana, o Brasil é dos poucos países no mundo que pode se gabar de ter tido um modernismo… A Semana de ’22, ocorrendo um século depois de outro momento histórico importante, foi, no plano cultural das artes, a segunda independência do Brasil, porém de vanguarda e anti-elitista, em contraposição a modelos enclausurados classicistas e de comportamento burguês (cf. a “Ode ao Burguês”)… Tanto que Antonio Candido, em texto e em simpósios, fazia questão de lembrar que o modernismo carioca (geração de Cecília Meirelles et al), atrasado, e que só veio muito depois ao de São Paulo, foi muito mais contido e conservador em comparação ao despojamento, à ousadia e às liberações da Semana de 22… Não é à toa que uma renovação modernista daquele impacto só pudesse surgir numa cidade que, de casebres e ruelas de chão batido no século 19, logo se industrializaria aceleradamente mais do que qualquer outra do país no 20, tornando-se metrópole por excelência, ponto de convergência do Brasil, “Paulicéia” unicamente moderna e modernista em meio aos provincianismos e paradigmas imperialistas do resto do país e de grande parte do mundo.

11 de fevereiro de 2022