Comento em determinada notícia que a ideologia neoliberal tem feito chamarem trabalhadores de “colaboradores” para escamotear o controle autocrático dos espaços capitalistas de trabalho e o roubo econômico da mais-valia (ou mais-valor).
Entre as respostas, fiz questão de anotar duas, por conta do nível de comicidade:
Um sujeito que começa a desferir ataques pessoais e a defender o capitalismo. Entro no perfil. Parece que é locatário de um galpãozinho numa cidade onde Judas perdeu as meias. O ignorante de si deve ter aberto um pequeno negócio, ter alguns funcionários e, sem ser dono do galpão nem do terreno, acha-se pertencente à classe dominante…
Uma mulher de meia idade a digitar: “Mais valia? Atualiza a bibliografia, colega!” (sic) Antes de minha réplica de que, sim, horas trabalhadas não remuneradas continuam vigentes sob o capital contemporâneo e que a diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o valor pago pela burguesia faz parte da própria essência capitalista, entro no perfil da caricata da piada pronta que pede atualização bibliográfica e vejo várias fotos suas numa igreja católica neogótica, falando num púlpito com uma bíblia gigante! Enquanto trato de teoria econômica moderna, a “colega” do compêndio misógino sem exegese crítica está atrasada pelo menos uns dois mil anos.
“O Irã se une com a Arábia Saudita através da China. E a China, ouvi algumas pessoas dizerem: ‘Bem, o nosso dólar nunca perderá o padrão’. Eles estão brincando? A China quer mudar o padrão, o padrão monetário. E se isso acontecer, é como perder uma guerra mundial. Seremos um país de segunda linha. Se isso acontecer, seremos literalmente um país de segunda linha.
“Estamos perdendo o Brasil, estamos perdendo a Colômbia, a América do Sul, estamos perdendo o Irã, eles já o perderam, nós perdemos a Rússia e se ainda não os perdemos, eles vão. A China está ganhando. Então, a China se foi. Então, vemos a França caindo fora. O que está acontecendo? Estamos perdendo. Se perdermos nossa moeda, isso equivale a perder uma guerra mundial. Nossa moeda é o que nos torna poderosos e fortes.” – Donald Trump
O Brasil, econômica e estrategicamente importante, continua a ser um país de “terceiro mundo”, de capitalismo dependente (em termos marxistas de Florestan Fernandes, Caio Prado Jr. et al), no sentido de que há outros dois países poderosos de capitalismo próprio que disputam nas lutas de classes internacionais, comprando empresas brasileiras, sediando multinacionais aqui, pinçando nossos trabalhadores para lucrarem acionistas estrangeiros. Não mais a União Soviética, que nem chegou a tanto, nos “perdeu” para o golpe de 1964 da ditadura empresarial-militar ou nem teve interesse e não nos fez satélite; agora, é o capitalismo da China, um bebê da produção em larga escala, enquanto que os EUA tornaram-se já há décadas um decadente império do consumo, não mais da produção. Há ainda o poderio bélico envolvido… Alertei, anos atrás, em ensaio sobre caso exemplar, que envolve os trabalhadores brasileiros precarizados entre as atrozes Uber (EUA) e 99 (antes brasileira, comprada por uma gigante bilionária chinesa).
Verídico. Realmente aconteceu. Este santista ingênuo, mais ou menos manjado de morar em vários bairros da capital paulistana, estava atravessando uma rua no centro de São Paulo quando notou um garoto bonitinho de bicicleta me olhando fixamente pela lateral. Gostei tanto do rosto dele, imberbe, tão sério, me encarando tão fixo e com oblíqua volúpia, mas, leonino exibido, segui o caminho, achando que era mais um flerte cotidiano. Nada. Passou na minha frente feito águia ligeira e tomou o celular da minha mão (eu só estava vendo o mapa). Súbito e sem raciocinar, dei uma leve corrida atrás dele e, com uma voz grossa de comando, ordenei para voltar. Por incrível que pareça, o lek da “gangue da bike” largou meu celular no chão e se mandou, não sem ficar me olhando para trás, o que me deixou completamente orgulhoso de mim mesmo, porém com uma dúvida: devolveu por medo ou porque também gostou de mim ou por ambos?! São coisas mágicas que acontecem comigo: sempre desistem de me roubar, muito provavelmente porque eu não demonstro pânico ou desespero (emoções que são transmitidas a quem rouba), mas uma inabalável segurança…
Para os mandatários da justiça do país, não é interessante que o amigão do Queiroz, o contrabandista de joias e armas, o idólatra de torturador, o corrupto familiar, o arremedo de genocida seja preso, pois isso poderia criar caos, marketing politiqueiro e mais demonstrações de fanatismo.
Ficará inelegível, pelo menos.
Sugiro aos puritanos da Flórida, que pressionaram uma professora a se demitir por mostrar o ‘Davi’ a seus alunos, que defendam também a raspagem do teto da Capela Sistina (profusão de corpus nus) no Vaticano, a começar por este trecho de ‘A Queda e a Expulsão do Paraíso’ a mostrar Eva praticando felação (chupando, mamando, fazendo boquete) em Adão, mas interrompida pela serpente entremeada à Árvore do Conhecimento. Se o homoerótico ‘Davi’ não é pornografia, isto sem dúvidas é proto-pornografia (heterossexual, porém, o que talvez os faça hesitar no plano)… Não fosse assim, aquela que inacreditavelmente surgiu das costelas do homem não estaria agachada e com o corpo virado para o membro do parceiro, que está de pé, virando o rosto apenas num relance de hiato. Amor natural. Só será preciso questionar se, para gerarem Caim e Abel e nós todos, não seria necessário tão somente a penetração, mas é que o artista era homossexual, e sabemos bem que estes só fazem sexo por prazer, ao contrário dos heteronormativos procriadores, que sabem que o prazer deve ser tratado como “pecado” a ser controlado e se escandalizam assim diante dos que nos forçam a sair dos bitolados medievos: “Como ousa sentir prazer e realizar desejos, quando eu sou obrigado a reprimir os meus?!”
O Livro do Gênesis (e grande parte da bíblia) é historinha infantil, diria Einstein, cientista da Física: concordo… Segundo Borges, o inferno é uma ameaça; o céu, um suborno: eu subscrevo e concordo… Minha saudosa mãe me levou em todas as religiões — espírito crítico… Não existe “Deus” (e nunca escrevo assim) — só escrevo dEU$, sobretudo neste século em que, ainda bem, a secularização já atingiu a Igreja Católica e atingirá lentamente os “neo”pentecostai$ iconoclastas. Obs.: Michelângelo, renacentista típico na sondagem do belo do corpo depois de séculos de castração medieval, foi também autor de sonetos homoeróticos.
Um dos maiores desafios (se não for o maior) de uma construção revolucionária socialista consiste no fato de que precisa aglutinar, articular e unir, em solidariedade de classe, os mais diversos tipos culturais de pessoas (de trabalhadores): desde o jovem descolado e urbano que trabalha numa empresa de telemarketing com o camponês laborando numa terra, estereotipado num Jeca Tatu; um funcionário de terno e gravata em sua rotina num arranha-céu da Faria Lima com o entregador de chinelos em sua bicicleta entregando no dia a dia comida de aplicativo pelas ruas etc. etc. etc. A solidariedade e a devida organização nascem primeiramente da consciência de classe, mas também em momentos históricos mais graves do ponto de vista econômico. São os tipos mais diversos possíveis, presos, porém, em suas classes, que consiste exatamente em vender a força produtiva de trabalho para poder subsistir (com uma migalha que chamam de salário, considerando a riqueza produzida) aos detentores ilegítimos dos meios de produção, que lucram com o trabalho alheio — o capitalismo dividiu historicamente os trabalhadores com maestria, inclusive em termos de renda, porém é justamente aquilo que os une e os torna em comum, acrescido, por conseguinte, do poder que tais forças produtivas tem de simplesmente parar, sucumbindo todo um sistema baseado no capital, que não é o Leviatã, que simplesmente persiste através de comando por um trabalho e obediência/resposta de trabalho que gera (mais) valor…
Não se pode deixar de afirmar e insistir que os EUA, o “big and better, wiser and perfect brother of the North”, são uma distopia escancarada, sem precisarmos adentrar no submundo do background, a começar pelo que haveria de mais superficial e explícito nessa discussão a respeito de uma típica “sociedade do espetáculo”, que deixou de ser “império da produção” para tornar-se um “império do consumo” no momento histórico mesmo em que a China é um bebê da produção capitalista: o seu próprio sistema político encabeçado por apenas dois partidos, partidos de magnatas dinásticos que, cada um a seu modo, servem ao complexo industrial-militar (cf. Gore Vidal). Partidos demais fazem mal à promessa de democracia, também servem a politiqueiros sem princípios ideológicos e à alienação eleitoreira (vide o caso do famigerado “Centrão”), porém o bipartidarismo impede qualquer pulverização de forças políticas reais e populares. Socialistas no Partido Democrata foram extirpados já nos intensos anos 1960s e 1970s, restando um velho Bernie Sander, que é sensacional na retórica contra Wall Street, mas que não passa de retórica; o partido comunista dos Panteras Negras sequer vingou… E a desgraça consiste justamente no fato de que o hegemonismo capitalista dos EUA respingou a distopia da especulação e dos espaços laborais antidemocráticos e autocráticos para o resto do mundo, ao que eu pergunto a um belo garoto, delicado e feminino, em São Paulo, trabalhando no McDonald’s (fora do estabelecimento, em outra circunstância, pois não entro mais e não como isopor maquinado), quem são os donos, e ele (que sequer “chuta” falar o nome do CEO que está em holofote na mídia ou a Board of Directors que se encontra num arranha-céu dos EUA) me dizer o nome de sua gerente, que ele avista todo dia, ou seja, mal sabe de acionistas anônimos, milionários e bilionários, lucrando alhures com o suor precarizado de milhares de jovens como ele a partir das franquias multinacionais de milhares de gerentes nos quatro cantos do planeta sem precisarem sequer chegar perto da porcaria venenosa que chamam de comida rápida. Mais distópico do que isso, nem a Coreia do Norte!
Como a vida é inesperada, irônica, indescritível!…
Marcar encontro, esperando um “algo a mais” além do físico: o amor natural, o sexo foi muito bom, porém a conversa antes foi esquecível…
Aceitar marcar amor físico e nada mais, sem esperar “algo a mais” com outro alguém, e de repente, antes de qualquer aproximação mais íntima, por timidez da outra parte, haver uma conversa inesperada, em que o outro, uns dez anos mais jovem, relata que lê ‘Angústia’, estoicismo, Machado de Assis, J. D. Salinger etc., e tenho de lhe mostrar meus livros, inclusive todos esses, incluindo toda uma bibliografia marxista, livros que tomam conta de um dos quartos e se esparramam na minha cama, e de repente adivinha que um dos livros da minha adolescência foi ‘O Retrato de Dorian Gray’ (sem, suponho, ter lido isso em algum lugar, ou talvez por ser eu um personagem explícito a quem é mais ou menos culto), falou que pensa em fazer teatro, prometi levá-lo a pertinentes peças em São Paulo, confessei meu bloqueio de escritor…
Como a vida é indescritível, irônica, inesperada! O sexo talvez não tenha sido do bom como no anterior, mas, mas reticente fico… Não acordo esta hora, muito menos às segundas-feiras: pegando na minha mão e sorrindo de pé ao lado da cama, acabou de me acordar para eu abrir a porta e se despedir, pois tem que ir trabalhar (dormimos juntos).
Certo dia, quando eu estava entre a pré-adolescência e a adolescência, meu afetuoso pai (quando eu nasci, eu, filho caçula, “raspa do tacho” e “não planejado, mas que mudou a mãe totalmente” — parentes distantes sempre me definiram assim –, eu, nascido de uma recidiva entre eles e da traição da traição — gosto disso –, ele já estava aposentado e separado da minha mãe, mas nem por isso não presente) me apareceu com filmes do Pasolini (os quais guardo até hoje); depois, com ‘Traídos Pelo Desejo’, filme cult (para quem não viu, o espião da IRA – Irish Republican Army, apaixonado, descobre que a personagem é trans, é uma travesti, perdoem o spoiler, e meu pai adorava essa reviravolta), sem contar os vários livros que me presenteou com dedicatória e os quais ainda hoje guardo, desde que minha mãe lhe disse que o filho queria ser escritor; dele herdei também ouvir muito samba bom, muita “MPB”… Morreu em 2011. Sem saber, me “estragou”, e o agradeço por isso, porque o clichê, o padrão e o quadradismo são execráveis. Na verdade, deu-se conta, mas já era tarde, em seu ano derradeiro, insistindo para um amigo dele me arranjar um emprego, quando eu o ajudava; já disfuncional, no dia a dia, em seu apartamento de “classe média”, junto à enfermeira e minha madrasta, mas já era tarde… Só pude avaliar recentemente o impacto paterno a me forjar, agora beirando os 30, criando analogia entre isso e quem sou hoje, meus referenciais artísticos e estilo de vida não-ortodoxo. Em seu leito no hospital, em 2022, também minha mãe, que me criou solteira e na raça, viu o seu “estrago” quanto à minha formação, mas também já era tarde; em nosso último diálogo, ela, entre a consciência e a inconsciência, e sob a morfina, enquanto eu lhe dizia gentilmente coisas amenas de resolução final, como “Você me criou muito bem, foi uma ótima mãe”, ao que ela respondeu, com dificuldade, mas não sem comicidade: “Será?!”, e eu: “Sim, todos elogiam o seu filho”, para então ela arrematar: “Fui liberal demais…” Somam-se a eles minhas professoras de português, história e filosofia das escolas públicas que frequentei, sempre elogiosas às minhas redações, e uma prima de segundo grau, professora, que me deu várias coleções de livros basilares da literatura, que suas sobrinhas usaram apenas para vestibulares e logo dispensaram.
Alguém (uma seguidora) me chamou de “assustador” (sic) pelo fato de ter lançado luz a um garoto (provavelmente ele não viverá outra chance invulgar feito essa), quando me disse que trabalha no McDonald’s, mas não soube me responder quem eram seus patrões, fornecendo apenas o nome da gerente, ao que respondi, não com a esperança de mudar o sistema (este, sim, assustador!) num simples chat feito para terceiras intenções, talvez, sim, por que não?, a “militar” ali a ponto de despertar consciências de classes na juventude ingênua, mas sobretudo com doses de cansaço (em meio à futilidade), conformado pedantismo, picardia à lá Lorde Henry e inconformismo (anotei o que enviei, e ora reproduzo abaixo, para utilizar posteriormente num romance revolucionário):
“Como não sabe?! É a empresa que você trabalha! Há um “CEO” identificável, com fotos e entrevistas e holofotes na mídia, há uma Board of Directors com engravatados num arranha-céu dos EUA, o qual você e demais jovens do precariado jamais conhecerão, mas tampouco estes são os verdadeiros donos: fantoches. Os proprietários são acionistas anônimos da “bolsa de valores”. Aliás, a própria gerente, que você trata feito patroa, é meramente dona de uma franquia vinculada a um oligopólio multinacional (que sequer paga taxas decentes ao Brasil, se é que paga alguma), portanto não se trata de negócio próprio dela, o que a faz também classe trabalhadora como você, apesar da diferença de aparência, renda e bens, que, por si só, não constituem critérios definitivos para definir classe social. Também ela produz capital para acionistas anônimos, também ela é despossuída dos meios de produção, embora deva se sentir da “classe média” (pequena-burguesia) ou até “elite” (burguesia). Não é, e o mecanismo foi hábil ao longo dos séculos em separar e criar divisões dentro duma mesma classe, impedindo a solidariedade de classe entre vocês. Imagine, então, milhares de jovens como você e milhares de gerentes e responsáveis de franquias como ela espalhados pelos quatro cantos do globo, trabalhando duro e ganhando pouco para lucrar e enriquecer especuladores anônimos, milionários, bilionários, que, por sua vez, a fim de manter suas fortunas criminosas, sequer precisam chegar perto de vocês com ordens, pois vocês já as automatizaram e normalizaram em seus cérebros e ideologias, durante o tempo que gastam, por falta de melhor opção socioeconômica, em seus ambientes autocráticos de trabalho, tampouco eles precisam chegar perto das máquinas de fazer isopor, que vocês chamam de comida… Distópico, e ainda chamam isso de trabalho, emprego, democracia.”
Ezra Pound, que em muitos de seus versos presentifica e critica ipsis litteris a usura (um de seus autores referenciais em economia foi Henry George, que acreditava que o sistema financeiro devia estar a serviço do bem comum e da justiça social), em estilo poético que combina classicismo, experimentalismo e militância, sabidamente aderiu ao fascismo, entre outros motivos de irracionalismo (para evocar Lukács) e subversivismo reacionário (termo de Gramsci), pelo fato principal de que, no início, na esteira dos eventos anteriores e subsequentes à Crise de 1929, fascistas roubaram do marxismo (para ludibriar incautos populares) a noção real da exploração econômica e roubo (de mais-valia) capitalistas do trabalho… Pena, parece que o poeta não leu Marx.
Wladyslaw Moes (1900-1986), polonês de família aristocrata, foi a inspiração para a novela filosófica Morte em Veneza (1912).
Em entrevista de agosto de 1965 a Andrzej Dołegowski, tradutor polonês das obras de Thomas Mann, publicada na revista alemã Twen, o próprio admitiu que passou as férias com a família na cidade italiana:
“Eu sou aquele garoto! Sim, embora em Veneza eu fosse chamado Adzio ou, às vezes, Wladzio… Mas na história sou chamado de Tadzio… É assim que o Mestre entendeu… Na história, eu achei tudo descrito com exatidão, até as minhas roupas, o meu comportamento – bom ou mau – e as brincadeiras rudes que eu tinha com o meu amigo na areia.”
“Eu era considerado uma criança muito bonita e as mulheres me admiravam e beijavam quando eu andava na calçada. Algumas me desenhavam e pintavam. Mas nas minhas memórias tudo isso me parecia insignificante. Eu tinha aquelas negligentes maneiras infantis que as crianças mimadas mostram. Em Morte em Veneza esse enredo é muito melhor narrado do que eu jamais poderia fazer. O escritor deve ter ficado altamente impressionado pelas minhas roupas pouco convencionais e as descreveu sem perder um detalhe: o traje listrado e uma gravata vermelha, assim como a jaqueta azul com botões dourados, minha favorita.”
Foi no verão de 1911; Mann visitava Veneza na companhia de sua esposa Katia, que mais tarde também relataria o seguinte, em Minhas Memórias Inescritas (1974), a respeito da estadia no Grand Hotel des Bains:
“Todos os detalhes da história vieram com a experiência. Na sala de jantar, no nosso primeiro dia, vimos a família polonesa, que se parecia exatamente com a forma com a qual o meu marido os descreveu: as garotas estavam vestidas bastante rígida e severamente, e o garoto muito charmoso e belo, de uns 13 anos, estava vestido com uma roupa de marinheiro com um colarinho aberto e um laço muito bonito. Ele chamou a atenção do meu marido imediatamente. O menino era tremendamente atraente, e o meu marido sempre ficava o observando com seus amigos na praia. Ele não o perseguiu por toda Veneza – isso ele não fez -, mas o garoto realmente o fascinou, ele frequentemente pensava nele…”
Recordo que, em determinado trecho, Gustav von Aschenbach, alter ego, sente-se inspirado, “[…] almejava era trabalhar em presença de Tadzio, tomar como modelo ao escrever a figura do menino, deixar seu estilo seguir as linhas desse corpo que lhe parecia divino, transportar sua beleza ao espiritual, tal como outrora a águia carregara o pastor troiano ao éter” (aqui, misturo as traduções de Maria Delimg e Eloísa Ferreira Araújo Silva – tenho as duas próximas da minha cama e as releio constantemente; destaque para o referencial homoerótico do rapto mitológico do jovem Ganímedes por Zeus, que Drummond certa vez definiu em poema como “outra forma de amar no acerbo amor”). Mann, num ensaio a respeito das diferenças entre o comportamento homossexual, fundamentalmente estético e artístico, e os deveres do casamento e do que hoje chamamos de heteronormatividade, confessa, en passant:
“[…] A liberdade orgiástica do individualismo que uma vez descrevi em ‘Morte em Veneza’ na forma de pederastia. […]”
Tal confissão pessoal, a meu ver, não refuta o caráter filosófico da ficção acerca do artista e o belo, preenchido, inclusive, com referência direta à instrução de Sócrates a Fedro sobre o desejo e a virtude; na realidade, o nível puro e metafórico não exclui o outro, erótico, pois os desejos da carne toldam o sentimento do imponderável e também o pensamento intelectual, presentificam-se amalgamados de maneira a remontar os séculos de elevado homoerotismo entre um homem mais velho, carregado, e um jovem com beleza e alegria pela vida, na esteira de Platão, Michelângelo, Shakespeare, Wilde, Pasolini et al… O escritor transformou o garoto num dos ícones mais emblemáticos do século passado, a fascinar ainda hoje.
(Embora, nesse caso verídico, Moses fosse criança ainda e sequer adolescente, o que seria para mim muito mais adequado, porém é preciso considerar contexto: tal mudança de paradigma acerca de fases infantil e adulta só ocorreria sobretudo na segunda metade do século passado, em que a chamada adolescência “surge” pra valer como fase intermediária.)
Num livro de 2003, The Real Tadzio: Thomas Mann’s Death in Venice and the Boy Who Inspired It, Gilbert Adair registra a reação de Moes com relação ao texto de Mann e também à adaptação cinematográfica de Visconti, em 1972, que tornou-se “cult”, justapondo a vida do personagem real com a de seu gêmeo mítico: um homem imortalizado na Arte e esquecido pela História. Analogia reversa pode ser feita, finalmente, à vida degradante do ator Björn Andrésen, o outro Tadzio, das telas, traumatizado para sempre pela fama e pelo assédio, conforme mostra documentário sueco de 2021, O Garoto Mais Bonito do Mundo…
O Brasil nunca deixou de viver grandes mobilizações, protestos decisivos, insurreições populares e correlatos em sua história, porém as grandes viradas transformadoras (da colonização para a Independência, da monarquia para a República, das oligarquias da República Velha para a República Nova, da ditadura para a redemocratização etc.), ainda que com a participação de movimentos civis, se deram pelo alto, fenômeno que Gramsci (o mesmo ocorreu no percurso italiano) cunhou de “revolução passiva”, em que as classes dominantes é que, gladiando-se, são protagonistas e excluem as outras subalternas. Não foram poucos os países que, diferentemente, para “progredirem”, precisaram passar por revoluções e guerras civis muito mais violentas, integralmente nacionais e debaixo para cima, e isso se deu por causa da necessidade de combater e vencer as forças do atraso (por exemplo, o Ancien Régime na França, os escravistas do sul na Guerra da Secessão nos EUA, o czarismo na Rússia): o mundo nunca mais foi o mesmo…
Não padeço de “crise de inspiração” – não me faltam ideias e muitas anotações despendidas em dezenas de blocos de notas… Sofro do horror mallarmaico da página em branco… Termo algo clínico e menos romântico: bloqueio. Li que Salman Rushdie, após o ataque que sofreu, está em dificuldade semelhante por causa de “estresse pós-traumático” (“Sento para escrever e nada acontece”, revelou): sob bloqueio há anos e tanta distração a prejudicar disciplina, não precisei de atentado nenhum a não ser o conflito teórico-prático mal resolvido entre realismo e modernismo… Preciso me apaixonar por alguém, e do vinho e do conhaque, porém prosa (diferentemente de poesia) requer difícil e contínua prática de costura depois, sempre depois do estado de inspiração arrefecido… A escritura é uma benção, mas começar a escrever é limitar infinitas possibilidades (exemplo imagético e concreto de infinitude: o triângulo matemático de Pascal, um triângulo lindo e infinito)… Não a balela de autoajuda motivacional, mas “O Artista Inconfessável” (João Cabral de Melo Neto) me serve de bom poema-lenitivo nessas horas!… Borges (só escrevia contos, e afirmou no prefácio de Ficciones que compor longos romances é um “desvario laborioso”) escreveu que só se publica um livro para se livrar dele: livro livra! Devo juntar todas as ideias num só livro, ou não escreverei. Medo, porém, de ser deixado em esgotamento e vaziez…
Os bolcheviques só tomaram o Palácio de Inverno com a ajuda de oficiais militares fiéis a Lênin (e a Trótski, que já comandava o Exército Vermelho, urdido a partir de forças militares desgostosas do czarismo e com o governo provisório — por exemplo, o ex-czarista e então leninista Vladimir Antonov-Ovseyenko, que liderou os Guardas Vermelhos no dia fatídico), embora camponês e operário estivessem ali em peso… Maduro só não levou golpe recente de Guaidó, EUA e Europa porque o chavismo dominou as forças militares (aliás, o grande Chávez era militar), além de militância social organizada, e ele fez questão de mostrar pelas redes em vários vídeos que estavam armados dos pés à cabeça e às suas ordens… Fidel, o Che e outros triunfaram em Cuba ao fazer uma limpa teórica e material, de fora para dentro, no Exército contra a ditadura imperialista de Fulgêncio Batista… Allende morreu suicidado após acreditar nas instituições, tendo sido golpeado por Pinochet… No Brasil, as Forças Armadas tiveram um Prestes e sua Coluna, um Lamarca ensinando grupos de luta armada, um intelectual marxista feito Nelson Wenerck Sodré, mas limitados, porque foram expulsos, perseguidos, presos — houve cedo a implantação de um anticomunismo barato no militar brasileiro (que, historicamente, é um sujeito semianalfabeto), já com Vargas e a ala militar pró-nazismo, mas sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, em que a outra aula, ideologicamente controlada pelo complexo industrial-militar dos EUA e sua “Política da Boa Vizinhança”, tornou-se dominante, levando à capitulação e ao golpe empresarial-militar de 1964. Não houve, na redemocratização, interesse em profunda reforma militar por aqui. É tarefa urgente para a esquerda que queira realmente mudar o país estruturalmente. E é um desafio que continua a ser global, acaso como está a situação militar na Rússia conservadora?… E os núcleos nazistas na Alemanha, núcleos supremacistas nos EUA, resquícios das ditaduras militares nas forças de segurança deste continente etc. etc. etc.?…
É uma lástima que a extrema-direitalha tenha se apropriado, com toda a espécie de deturpações, do ímpeto revolucionário comunista no período mesmo em que a esquerda agarrou-se na manipulação institucional liberal, por conta da derrocada ideológica do final do século passado com o fim do “socialismo real”. Lembrem-se da tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques, por exemplo, não sem a ajuda decisiva de generais fiéis a Lênin e que estavam desgostosos do czarismo e do governo transitório…
Não sei bem por que, mas domingo é o dia em que eu mais lembro da minha mãe e choro de saudade; nos demais dias, estou distraído ou é como se eu estivesse em São Paulo e ela, em Santos, e a qualquer momento eu fosse vê-la…
Fomos pegos de surpresa, mas ícone, lenda não morre e nem combina. Gal plural: a musa, a sofisticada, a sensual, a transgressora, das grandes cantoras-damas-referências da “MPB”!…
Os bloqueios dos derrotados em algumas avenidas e rodovias não são uma iniciativa de caminhoneiros. A arruaça golpista de extrema-direita foi organizada com antecedência por empresários bolsonarentos, obrigando capangas, empregados e terceirizados. É/seria apenas um primeiro passo: a intenção é estimular um golpe militar supostamente pedido pela população como se o covarde e isolado Bolsonaro — que só chegou até aqui por não ter sido punido lá atrás junto aos viúvos da ditadura — não tivesse nada com isso. O script farsesco segue 1964. Já que não possui mais apoio político, esta é a única alternativa, ainda que minguada, mas para pressionar conchavos ou pactos com o STF e/ou outros, que Bolsonaro tem para escapar da cadeia por tantos processos e crimes, agora que pela primeira vez não dispõe de foro privilegiado. Se (e somente se) os bloqueios continuarem por mais um dia, não podemos esperar tudo somente das instituições judiciais conservadoras e da polícia que prevarica – é preciso que militantes dos movimentos sociais de esquerda e trabalhadores das centrais sindicais (controladas sobretudo pelo PT) botem os poucos arruaceiros restantes pra correr, mostrando também a força popular do novo governo eleito de Lula.
Elogios ao ditador pedófilo Stroessner e ao ditador sanguinário Pinochet, exaltação ao torturador de mulheres Ustra, cópias de lemas do nazifascismo de Hitler e Mussolini…
Entre os apoiadores, os assassinos Guilherme de Pádua, goleiro Bruno, Flordelis, milicianos sicários… Um líder da Ku Klux Klan. Um pouco acima desse esgoto todo que não é de agora: pseudocantores sertanojos e jogadores que buscam proteção por suas corrupções, sonegações, estupros coletivos…
Na bíblia bolsonarenta, Jesus ceava com César e Herodes, crucificava a mando de Pôncio Pilatos e dos fanáticos ensandecidos, reverenciou de braços abertos os vendilhões do templo, transava escondido com as prostitutas, que depois ajudava a apedrejar publicamente, e apreciava combates sanguinolentos no Coliseu.
(Eu, que sou ateu, sei que, segundo o Livro do Apocalipse, o chamado Anticristo surge na própria igreja, não fora…)
Estou muito preocupado com o segundo turno para governador de estado aqui em SP. Não vejo, ainda, atuação vigorosa de amplos setores para o quadro eleitoral ser alterado, mas dá tempo de acordar. É de uma gravidade atroz imaginar a intelligentsia e as universidades paulistas ameaçadas de caírem nas mãos de bolsonarentos; classe trabalhadora, professores do estado, profissionais da Saúde, áreas culturais e institutos de pesquisa e ciência terem vidas e conquistas atacadas de forma sem precedentes; a Polícia Militar controlada ainda mais à extrema-direita; SP, RJ e RS serem oposição direta e desestabilizadora a um governo federal Lula (neste ponto, a eleição estadual tem imprescindível importância nacional), entre outros descalabros e horrores. Seriam anos de greves, repressão, incompetência, caos, desgastante resistência contra retrocessos e regressões. Considerando a tecnocracia tucana (a grande derrotada e (ir)responsável), é de uma piora enorme. O forasteiro Tarcísio de Freitas, que “perdeu” para brancos e nulos no primeiro turno, definitivamente não pode ganhar. Fernando Haddad tem de vencer, mas, começando o segundo turno atrás, precisará de uma estratégia extraordinária, até mesmo hercúlea, talvez de uma dose de populismo social, mais vontade organizada, outro tipo de atuação em massa nas redes e menos apatia habitual; já ganhou na capital, precisa conquistar votos no interior; sobretudo, a depender das pesquisas nos próximos dias e semanas, a candidatura do forasteiro deve ser inviabilizada de alguma forma.
Acabo de ver o Presidente de Portugal atrás de mim, aqui na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, Avenida Paulista. Senhor aparentemente simples e com alguma simpatia, tirou fotos com quem lhe pedia respeitosamente, feito uma celebridade “low profile”. Parece que veio para a Bienal do Livro de SP e que hoje almoçou com Lula, enquanto o presidemente cancelou encontro com ele.
Quem terá tido a ideia de inscrever o inovador poema “Comigo me Desavim”, de Sá de Miranda, sem contar outros de poetas concretistas, nas paredes da estação de metrô Vila Madalena, em São Paulo, há anos?!… Esta(s) pessoa(s) motiva(m) a existência citadina.
Sinto que minha mãe só tem dias ou poucas semanas de vida: mesmo com a memória espantosamente intacta, cada vez mais precisa fazer esforço para falar, come praticamente nada do hospital, dificuldade de mastigar, sem apetite, olhos a maior parte do tempo vidrados, definhando. Câncer terminal. As duas únicas formas atuais mais fortes de combater o câncer, quimio (ela fez 4 sessões antes da internação) e radioterapia, só lhe trariam mais reações sem resultados de reversão do quadro; enquanto isso, os tumores continuam marchando, espalhando-se e não param. Estamos lhe dando conforto, cuidando, realizando possíveis desejos, etc.
Alivia lembrar que ela sempre me dizia que preferia morrer a ficar dependente numa cama… Também é inacreditável a sua força de resistência e lucidez – o oncologista achou semana retrasada que ela viria logo a óbito, e se surpreendeu ela ter durado muito mais; outra oncologista disse que, no estágio em que ela está sob cuidados paliativos, não é comum manter a memória que ela mantém, sobre situações e coisas recentes, depois desse tempo todo e ainda responder normalmente às pessoas. Classificou isso como “milagre” (palavra rara na fria e realista oncologia). Há quem diga que são as orações e correntes que centenas de pessoas mandam. Atribuo isso à sua força de vontade de querer retomar sua rotina, levantar da cama, ir para casa, não se entregar. Informo a todos que, embora eu chore e preveja sentir incomensurável falta da minha mamãe (por exemplo, sou novo e fico pensando quanta coisa de valor farei e ela não verá ou não poderei compartilhar com ela), sempre tive conversas muito francas com ela sobre a vida e a morte, e no leito confirmei que ela quer ser cremada. Tudo isso me prepara bastante neste processo de luto, assim como o espiritualismo dela mais o meu materialismo.
Além do fator genético (pai que teve tuberculose), os mais próximos sabem que ela era tabagista de marca maior desde os 14 anos de idade (hoje tem 61), fumava muito (só parou em dezembro, determinada, e por insistência minha ao vê-la indo fumar quando tinha crises de tosse — este foi o primeiro sintoma significativo, que ela negligenciou, mesmo com meus pedidos para ir ver do que se tratava a tosse anormal, mas também por conta das dificuldades de atendimento durante a pandemia, depois o emagrecimento absurdo, tudo isso em questão de meses ou um ano –, e colei até o último adesivo de tratamento de nicotina nela, já internada, dando-lhe os parabéns).
Considero importante dizer que, se antes eu achava exagerada a (recente) campanha de conscientização dos malefícios do cigarro, depois de ver o que as toxinas fizeram com minha mãe, vibro que se intensifique, sem ares de moralismo ou de culpabilidade, mas por questão de saúde pública, sem deixar de notar que há muita hipocrisia com relação ao álcool, muito mais aceito, porém tão ou mais destrutivo a si e aos outros, se em excesso e vício.
Aos fumantes, vale a máxima “é melhor prevenir do que remediar”: que não só parem ou diminuem, tratando a ansiedade e outros motivos subjacentes ao vício ou hábito, mas principalmente que façam exames periódicos, sobretudo de pulmão, e espero que a oncologia, no geral, avance nas próximas décadas a ponto de reverter quadros avançados dessa mortífera doença, cada vez mais comum no mundo todo e em todas as classes sociais, que começa silenciosa e, quando descoberta, já encontra-se implacável e veloz.
Faleceu hoje o eminente professor, advogado e filósofo Sérgio Sérvulo da Cunha, meu conterrâneo (chegou a ser vice-prefeito de Santos), aos 86 anos. É, agora, homenageado e elogiado por nomes consideráveis de amplos setores públicos. Não bastasse ter presidido a Comissão pela Autonomia de Santos contra a ditadura civil-militar, ter atuado na Constituinte e, depois, ter sido advogado de acusação no processo de impeachment contra o então presidente Fernando Collor, continuou, nos últimos anos, conforme pode-se ver em textos seus no perfil do Facebook e em outros locais, de exercer a crítica a respeito do estado atual das coisas, sempre do lado certo da História. Também escrevia versos sobre seus passeios à nossa praia santista. Nunca o conheci pessoalmente; porém, há poucos meses, conhecendo sua biografia e sabendo de seus posicionamentos políticos corretos, condizentes com seu caráter, enviei para ele a seguinte mensagem, que, entanto, ele sequer deve ter visto:
Sou privilegiado: morar em Sampa megalópole, desfrutar de sua vida cultural invejável, trabalhos e possibilidades cosmopolitas, e em pouco tempo descer a serra e poder ser arrebatado pelo mar/pôr do sol da minha ilha de Santos natal…Sou privilegiado: morar em Sampa, megalópole industrializada de concreto, desfrutar de sua vida cultural invejável, trabalhos e possibilidades cosmopolitas, e em pouco tempo descer a serra da estrada em curvas e ser arrebatado pelo mar/pôr do sol litorâneo da minha ilha de Santos natal… Rara ambivalência geográfica em qualquer canto do mundo. Amores, memórias, experiências, problemas socioeconômicos a resolver, vislumbres. Poético, mas também cinematográfico, como tem sido o filme político que comecei a gravar em ambas as cidades que somente juntas completam-me.
The International Criminal Court, which can be likened to the “conscience” of the international community, has opted not to investigate US war crimes during its 20-year military adventure in Afghanistan.
This is the same ICC that will not prosecute Israel for it’s crimes against humanity.
Em 11 de setembro de 2013, Vicente Cascione, defendendo o Mais Médicos, programa extraordinário que foi alvo de ataques baixos de estratos médios e da extrema-direitalha, rasgou muitos elogios e enalteceu Cuba e seus índices sociais, educacionais e de saúde no seguinte texto em perfil de sua rede social:
É de espantar que, recentemente, tenha criado vídeo em seu canal no YouTube e página no Facebook em que fala da “cubanização” (sic) do Brasil. Engana-se quem pensa que ele estivesse se referindo aos arroubos ditatoriais do amigão do Queiroz, conforme liberalóides incorrem com a pseudoteoria anticomunista da ferradura. Na verdade, para ele, seriam os tribunais superiores como o STF e o TSE a impedir o amigão do Queiroz — e seus cupinchas que faturam com monetização de fakenews — de desgovernar ainda mais.
Não irei divulgar nem compartilhar tal disparate, que inclusive o coloca em situação de vergonha alheia… Aliás, não pretendo, aqui, divulgar vídeos das sandices deste outro Cascione torpe, apenas denunciá-las textualmente.
Há ainda postagem de 2012, que redirecionaria para um texto em seu site, já retirado do ar por conta do tempo, em que defende Chávez da Venezuela de comentaristas e jornalistas obtusos e repetitivos, “canarinhos Psitacideos”, que o chamam de ditador:
(O mais surpreendente, e que tem a ver com a virada e mudança que ocorre no Brasil nestes últimos 10 anos: na área de comentários dessa mesma postagem supracitada, uma usuária emula a falácia direitista de que, se a Venezuela é tão boa assim, porque há tantos venezuelanos fugindo, sem considerar os embargos. No entanto, se entrarmos em seu perfil, veremos fotos com estampas Mulheres Contra Bolsonaro, e a favor da ciência, do SUS, etc. Ou seja, de 2012 a 2021, ela deve ter mudado de ponto de vista sobre diversos assuntos, mas definitivamente não é uma fascistóide ou direitista. Ela respondia a outro usuário, que concorda piamente com o texto de Cascione, ainda que deixe claro que o texto, porém, não defende o chavismo, comentando que o povo venezuelano adora Chávez e que a Venezuela tem bons índices de IDH; este mesmo sujeito traz em seu perfil, anos depois, foto ao lado do próprio amigão do Queiroz…)
Viralizou, há poucos anos, vídeo em que o mesmo Cascione defende Lula contra os abusos de Sergio Moro. Ali, encarnara espírito crítico, mas técnico, lúcido.
Agora, o quase octogenário vira piada nas redes ao defender o indefensável.
É certo que o mesmo Cascione aceitou, anos atrás, ser advogado do coronel Ubiratan, partícipe do massacre do Carandiru, tendo escrito e pronunciado que não havia se tratado de um “massacre”, e sim de “ação inevitável”.
Acrescenta-se a este “ovo da serpente” outro: numa de suas lives, Cascione desconversou sobre o racismo diante de notícia chocante do assassinato de um negro num supermercado…
O que faz, ainda assim, um sujeito trabalhar e estudar a vida toda, construir alguma trajetória para, no fim da vida, já idoso e indo embora, arriscar a própria reputação ou até jogá-la no lixo em nome de um perverso como Jair Bolsonaro, cujos crimes antes e durante a pandemia chegam até mesmo ao Tribunal Penal Internacional em Haia e que acumula recorde de pedidos de impeachment no Congresso Federal?! (Vale lembrar que seus cúmplices e cupinchas inconsequentes e toscos também entram nesse enquadramento.)
É o que se deve perguntar diante de figuras como Sérgio Reis (pseudocantor agropecuarista), o sinistro da Saúde Marcelo Queiroga, até então médico cardiologista mais ou menos respeitado, etc. Quais os interesses sórdidos desses “tiozões” de estratos médios e de vida resolvida, a ponto de caírem no ridículo e nem sequer se importarem?
Na verdade, conforme muitos sabem, havia já sempre uma semente de preconceito, sordidez e de interesses de classe.
Nos perguntamos se tudo não passa também de oportunismo.
Tendo perdido feio eleições recentes para prefeito (contou com apoio do senador morto de COVID-19 Major Olímpio, ex-aliado de Bolsonaro!) e até para vereador (tamanha a sua incapacidade de agregar prestígio), além do espaço que tinha em A Tribuna, em que escrevia croniquetas inexpressivas, vazias, que não fediam nem cheiravam, há meses se debandou para a defesa da bandidagem de Bolsonaro e caterva, deixando incrédulos aqueles que o viam como um eixo de racionalidade básica.
É o dinheiro que compra a honra para se fazer propaganda ridícula nas redes de um sujeito como o amigão do Queiroz? Pois nem mesmo veio a público explicar sua guinada ou identificação, que o fez perder seguidores e dizimar a própria reputação, aproximando-se de um grupelho que a cada dia fica menor, como toda a extrema-direita. Qualquer nome considerável que um dia sequer tenha apoiado algo do DESgoverno atual já rompeu há tempos, sobretudo diante das crueldades na pandemia..
Profunda afinidade ideológica e índole criminosa explicam. Pois nem mesmo se trata de um presidente com ampla aprovação popular, com reeleição garantida ou que esteja em bom momento político, ao contrário: acuado por seus crimes comuns e de responsabilidade, insistente na sanha pessoal farsesca e incompetente, tendo que recuar de maneira humilhante dos seus arroubos, para não minar investigações graves contra si e seus filhos bandidos, lhe restou fazer hora extra liberando verbas fartas e muita corrupção para o Centrão oportunista. Todo brasileiro de bem sabe que, se não fosse isso, já estaria no chão.
Não é, portanto, um bom capital político para se apostar. Qualquer sujeito inteligente sabe que o momento é de falar em avanço da vacinação, gasolina cara, gás de cozinha em preço absurdo, volta da fome, da inflação, saídas e soluções para as reais urgências socioeconômicas do país, etc., não choramingos de quem está acuado pela justiça.
No entanto, Vicente Cascione, que sempre fez campanhas nebulosas sem projeto e muita empáfia, de cara sempre amarrada e carisma zero, se agarra agora no que há de pior na política, que é a familícia Bolsonaro, o bandido preso Roberto Jefferson e caterva, em ataques não ao que a grande imprensa faz de criticável, mas o que faz em seu dever, que é noticiar as bandidagens da quadrilha, além de ataques aos pontos positivos das instituições jurídicas conservadoras, que é o de garantir que a extrema-direita e seus sicofantas não façam do Brasil um país tiranizado por defensores de torturadores.
Em seu perfil no Facebook, em que é zombado, ou no YouTube, Vicente Cascione exibe um fim melancólico. Basta muita paciência para atravessar seu caótico raciocínio, em que mistura, como um senil, fatos históricos díspares (por exemplo, chegou ao ápice ridículo de equiparar o golpismo do grupelho do amigão do Queiroz com a Revolução Constitucionalista!), sua deficiência cognitiva e muita falastronice para, então, testemunhar o negacionismo antivacina, o racismo, ataques a quem noticia a bandidagem do DESgoverno, a defesa de um golpinho militaresco, tudo isso de uma figura que sempre se pôs como defensor do Direito.
Deveria rasgar seu diploma.
Que ele também seja, agora, investigado e denunciado, pois não se tolera mais conteúdos desse tipo e causa estranhamento tal comportamento, cujos partidários ou foram derrubados, desmascarados ou até foram parar na cadeia. Quais os interesses por trás de insistir, a essa altura do campeonato, na defesa de uma quadrilha minúscula, mas que provocou tantos crimes?
Trata-se de um irrelevante em termos políticos, um fracasso eleitoral e de público, mas fica o registro para detonar qualquer tentativa de encará-lo como sério, honrável ou respeitável no presente e no futuro.
Para a minha grata surpresa e até emoção, justo nesta fase de minha vida em que estou às avessas com uma crise pessoal e bloqueio criativo, ao pesquisar o meu nome completo no Google, descobri uma pergunta que escrevi quando tinha 12 anos de idade (!) para o roteirista, diretor e montador Giba Assis Brasil, e a sua respectiva resposta (que não poderia ter sido melhor!), publicada abaixo em 2016:
“Para um escritor de 12 anos” (no caso, eu ou era/fui eu, embora algo, não tudo, daquele menino de 12 anos ainda esteja em mim, mesmo tendo eu mudado tanto já nestes suicidários 27 anos)
Obs.: Eu não preferia literatura infanto-juvenil, conforme supôs Giba em sua bela resposta. Ao contrário, eu justamente já pendia para as referências literárias que ele sabiamente aconselhou! Não muito tempo depois, ainda na adolescência, eu nunca mais fui o mesmo quando Ficções de Borges veio parar em minha mão por conta dos livros que minha prima-tia dava a partir das sobrinhas dela, estudantes de vestibulares, e também tornei-me especialista em Machado de Assis.
A famosa expressão materialismo histórico e dialético, ou materialismo dialético e histórico, embora se deva principalmente ao pensamento sistematizado por Friedrich Engels (1820-1895) em finais do século 19, não se encontra literalmente nem em Karl Marx (1818-1883) nem em Engels, mas surge depois, com Josef Stálin (1878-1953), nas revistas e livros de filosofia da URSS (vide o compêndio Materialismo Dialético de 1922 da Academia de Ciências da URSS, Instituto de Filosofia) e no “Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico” de 1938, assinado pelo próprio Stálin (publicado no Brasil pela edições Horizonte, Rio de Janeiro, em 1945), em que este afirma que esta é a concepção do partido marxista-leninista. Um parágrafo que evidencia o caráter persecutório e direitista do Politiburo contrarrevolucionário sob Stálin foi excluído do volume das edições Horizonte, mas está presente na edição “Sobre os Fundamentos do Leninismo” da Editorial Calvino Ltda., Rio de Janeiro, 1945: “[…] Por aí se vê que extraordinária riqueza teórica era defendida para o Partido de Lenine, contra os ataques dos revisionistas e dos degenerados [grifos meus], e quão grande foi a importância da publicação de sua obra Materialismo e Empiro-Criticismo para o progresso do Partido Bolchevique.” Fazendo questão de nomear Stálin, um certo M. A. Leonov intitula o texto “O Materialismo Dialético e Histórico, Fundamento Teórico do Comunismo” (1955), em que também traz a mesma junção…
Lênin (1870-1924), duas ou três décadas antes de Stálin, sempre a partir de Marx e Engels, falava em materialismo filosófico, materialismo dialético e materialismo histórico (cf., por exemplo, “As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo“, de 1913, em que se afirma que “A filosofia do marxismo é o materialismo”). A expressão Materialismo dialético também aparece já em seu Materialismo e Empirocriticismo de 1909. Lênin já contrapunha materialismo contra idealismo, dialética contra metafísica, etc., mas para fins mais intelectuais do que deturpatórios. É notável, por exemplo, que em seu instigante texto “Sobre o significado do materialismo militante” (1922), para a revista filosófica e socioeconômica Pod Známeniem Marksizma (“Sob a Bandeira do Marxismo”), Lênin tenha conseguido equilibrar uma crítica lúcida ao sectarismo (“Um dos maiores e mais perigosos erros dos comunistas […] é imaginarem que a revolução pode ser levada a cabo só pelos revolucionários”) com a importância de educar trabalhadores com textos materialistas franceses do século 18 (algo que já era sugerido por Engels no Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna) e duma militância materialista contra o obscurantismo e a ignorância religiosas, que se apoiasse na ciência (ele chega a citar Einstein, o nome mais famoso da ciência mais avançada da época). Apresentei este texto leniniano para um jovem que havia sido evangélico; ele me contou que, a partir de então, virou materialista…
Um pioneiro dessa contraposição dicotômica oficial é Paul Lafargue (1841-1911), genro de Marx (escreveu reminiscências importantes sobre o sogro, anos depois de sua morte), um dos principais membros do movimento socialista francês, tendo desempenhado papel importante no desenvolvimento do movimento socialista espanhol, amigo próximo de Engels em seus últimos anos, tendo tratado de uma variedade de tópicos – direitos das mulheres, antropologia, etnologia, reformismo, mileranderismo, economia – sob uma perspectiva marxista bastante ortodoxa. Escreveu, por exemplo, o livro O Materialismo Econômico de Karl Marx, que Engels chegou a conhecer e cita em cartas; em 1895, ano da morte de Engels, profere palestra ao Grupo de estudantes Coletivistas de Paris, intitulada “Idealismo e Materialismo na concepção da história” , documento pioneiro numa contraposição mais explícita da dicotomia, frente à popularização do desenvolvimento das ciências na época. Nessa palestra, Lafargue alude ao “ambiente natural”, deixando claro que não se referia a uma idealização da Natureza enquanto “entidade metafísica”, “como fizeram os filósofos do século 18”, afirmando que “é o ambiente natural que forma o cérebro e os outros órgãos”.
György Lukács (1885-1971), como veremos no final deste breve apanhado que ora escrevo, se distanciará da dicotomia materialismo e idealismo, que, à época, eram identificada por ele como sectária e dogmática, recebendo a alcunha de “revisionista” por certos círculos identificados com o pensamento da burocracia soviética.
O marxista e marxilógo José Paulo Netto (1947-), Professor Emérito da UFRJ, em exposição na UnB em abril de 2016 sobre o método em Marx, rechaça com força tais dicotomias – dialética x metafísica, materialismo x idealismo -, e, em influência explicitamente luckásiana, certamente lhe transmitida por seu amigo, o conhecido marxista Leandro Konder, declara em determinado momento:
“[…] Em Marx, a concepção de teoria e a concepção de categoria é ontológica. Escutem, não tenham medo da palavra ontologia nem façam dela algo misterioso. Ontologia significa teoria do ser. É isto o que teoria significa. […] Em Aristóteles, que não é um velho da antiguidade, mas um companheiro nosso, um incômodo companheiro, na obra de Aristóteles a discussão da teoria do ser estava na parte além da física, estava na meta-física. A ontologia é aquilo que a filosofia clássica chamou de metafísica. Mas, como entre os ilustrados e entre os marxistas, metafísica virou xingamento, não é?… Porque vocês aprenderam nos cursinhos de Serviço Social, e não só nos de Serviço Social, que a dialética se opõe à metafísica. Quem sou eu para lutar contra essa tolice, que teve o aval de Engels?! Mas eu não leio as obras de Marx e Engels como as escrituras sagradas. Se eu não creio na Bíblia, vou crer em Marx e Engels?! Mas eles são teóricos, nem sempre acertaram. Ontologia é teoria do ser. Quando Lukács recupera essa palavra, que ele abominou, que ele teve medo de usar, quando ele recupera a expressão, a palavra ontologia, ele vai dizer que ‘em Marx eu tenho uma ontologia do ser social, eu tenho uma teoria do ser social’. Marx tem uma preocupação ontológica, seus enunciados se referem ao ser, ao modo de ser. Ontologia do ser social é o estudo do modo de ser e reproduzir-se o ser social. Ponto. É isso. Claro que se contrapõe a uma tradição muito forte e dominante no pensamento ocidental desde o Renascimento, e com forte ênfase no Iluminismo, pensem em Kant, que se preocupou em como conhecer. Marx se preocupou em como conhecer algo preciso, determinado. É claro que há em Marx uma epistemologia, uma teoria do conhecimento, mas, em Marx, não é a epistemologia que se subordina à ontologia, e sim o contrário. Mais-valia não é uma categoria intelectiva, criada aqui [na cabeça], ela é um modo de ser da realização do capital em face do trabalho. […]”
É válido atribuir à renitência implacável dos soviéticos em relação a materialismo x idealismo e dialética x metafísica não apenas como matéria intelectual e filosófica, mas como uma nova política para varrer o poderio contra a Igreja e a religião ortodoxa dos russos diante do marxismo? Sim, e este é um caráter que tem uma parcela positiva, em termos de transformação de valores e ideológicos. Lembremos das charges e pôsters do período.
Dessa forma, não se pode , sem considerar os aspectos sociais e culturais da União Soviética; basta considerar que mesmo décadas e décadas de concepção materialista não apagaram os resquícios misticistas e religiosos daquela região, e notamos isso dando uma olhada na Rússia atual. O problema seria reduzir o embate filosófico a tais dicotomias; isto talvez seja necessário em um estágio inicial e introdutório, que deve amadurecer para outras oposições filosóficas no curso do próprio progresso intelectual do povo.
Politzer entre o marxismo e a deturpação “stalinista”
é, entretanto, apelativo, no bom sentido da palavra, isto é, incita um movimento revolucionário contra ordens estabelecidas, mesmo das religiões dominantes; motiva a militância jovem e a consciência crítica dos trabalhadores contra crendices. O perigo consiste no fato deste movimento, abandonando a dialética revolucionária, tornar-se ele próprio uma ordem estabelecida contra movimentos transformadores.
e pertinente para uma introdução ao marxismo, em que ; até chegarmos em uma amadurecimento filosófico com Lukács… Devo a Politizer nos anos 1930,
pretende estudar primeiro o materialismo, depois o materialismo dialético e, por fim, o materialismo histórico, estabelecendo as relações entre o materialismo e o marxismo.
ataca bastante a concepção metafísica do mundo e das coisas, difere as acusações de que a mais-valia da França seria a mesma da União Soviética (defendendo-a excedente para o Estado socialista, para os trabalhadores), mas
O termo materialismo dialético aparece mais de 50 vezes. Materialismo histórico, quase 20. Há uma página “sectarismo”, algo que jamais estaria nos textos do período de Stálin. Da política soviética, este livro resume-se a citar Lênin, e em uma das páginas lemos: ” Porque nenhuma sociedade fica imóvel, a socialista, edificada na União Soviética, está destinada, também ela, a desaparecer.”
Neste livrinho, os alunos de Politzer, a partir de suas aulas,
1) Por seu caráter de militância , não é mal começar formação (o livro de Politzer é uma boa introdução, acrescido dos textos eventuais de Lênin), porque fornece o básico;
1b) Para , em caráter de transição, Teologia da Libertação de cunho marxista e a pesquisa de Rosa Luxemburgo sobre o cristianismo e o comunismo primitivos;
2) Deve-se amadurecer a formação com Lukács e sua contraposição entre racionalismo e irracionalismo;
3) Outros elementos bibliográficos da própria obra marxiana e de Gramsci, etc.
E, nesse particular, é preciso um alerta pouco divulgado, mas que faço questão de empreender em meu grupo: não confundir com o , que mostra como os correligionários de Stálin e do Politiburo contrarrevolucionário, mesmo antes da dissolução da III Internacional, feita para agradar as potências liberais dos Aliados, sobretudo EUA e Inglaterra, cooptaram praticamente todos os Partidos Comunistas, e fizeram dos PCs , décadas e décadas , que se prolongaram mesmo com os sucessores de Stálin, que, orgulhosos de terem mostrado seus crimes, também estavam cada vez mais distantes do marxismo.)
Engels, o grande historiador e iniciador da concepção dicotômica
Voltemos às “origens”. Nos debrucemos rapidamente na obra engelsiana. É nela que está a semente de Politzer e Lênin e outros.
Engels usa várias vezes, em livros, artigos de jornal e cartas (por exemplo, Carta a Laura Lafargue, 15 de julho de 1887 e Carta a Conrad Schmidt, 12 de abril de 1890) , a expressão materialistische Geschichtsanschauung (“concepção marxista da história”), ora referindo-se a Marx ou à influência de Engels em algum conhecido (por exemplo, o jovem Dr. Conrad Schmidt of Königsberg teria descoberto a materialistische Geschichtsanschauung na obra do escritor Zola, o representante mais expressivo do Naturalismo). Deve-se salientar que Engels, LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ (Obras Escolhidas de Karl Marx e Friedrich Engels. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, s/d. Vol. 3, pp. 171-207), e afirma:
“[..] revestia para a Igreja a seguinte forma aguda: o mundo foi criado por Deus, ou existe de toda a eternidade?
Segundo a resposta que dessem a esta pergunta, os filósofos dividiam-se em dois grandes campos. Os que afirmavam o caráter primordial do espírito em relação à natureza e admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de uma ou de outra forma (e para muitos filósofos, como para Hegel, por exemplo, a gênese é bastante mais complicado e inverossímil que na religião cristã), firmavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a natureza como o elemento primordial, pertencem às diferentes escolas do materialismo.
As expressões idealismo e materialismo não tiveram, de início, outro significado, e aqui jamais as empregaremos com outro sentido. Veremos, mais adiante, a confusão que se origina quando se lhes atribui outra acepção. […]”
Enquanto materialismo do século passado, ou seja, do século 18, mecânico, : “A segunda limitação específica deste materialismo consistia em sua incapacidade de conceber o mundo como um processo, como uma matéria sujeita a desenvolvimento histórico. Isto correspondia ao estado das ciências naturais naquela época e ao modo metafísico, isto é, antidialético [grifo meu] de filosofar, que lhe correspondia. Sabia-se que a natureza estava sujeita a movimento eterno.”
, no importante Anti-Dühring (1878), que formou a primeira geração de marxistas ao apresentar a sua ideologia comunista e a de Marx (anos depois da morte deste), e na elucidativa carta para Joseph Bloch, fala em materialismo moderno e concepção materialista da história e da natureza. A Dialética é citada sempre à parte, embora seja complementar. No artigo para jornal Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna, Engels escreve que, para os operários sociais-democratas alemães, o ateísmo “já fez a sua época”, que essa “palavra puramente negativa já não tem para eles qualquer aplicação, uma vez que eles já não estão mais numa oposição teórica à fé em deus, mas numa oposição prática: eles desembaraçaram-se simplesmente de deus, pensam e vivem no mundo real e são, portanto, materialistas”. Linhas seguintes, escreve que “[…] O conselho dos trinta e três adopta agora este programa com toda a sua visão materialista da história […]” (itálico meu). Porém, no célebre ensaio “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, lemos a seguinte explicação:
A consciência da total inversão em que incorria o Idealismo alemão levou necessariamente ao materialismo; mas não, veja-se bem, àquele materialismo puramente metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII. Em oposição à simples repulsa, ingenuamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo moderno vê na história o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas leis dinâmicas é missão sua descobrir. Contrariamente à idéia da natureza que imperava entre os franceses do século XVIII, assim como em Hegel, em que esta era concebida como um todo permanente e invariável, que se movia dentro de ciclos estreitos, com corpos celestes eternos, tal como Newton os representava, e com espécies invariáveis de seres orgânicos, como ensinara Linneu, o materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, revestem dimensões infinitamente mais grandiosas. Tanto em um como em outro caso, o materialismo moderno é substancialmente dialético e já não precisa de uma filosofia superior às demais ciências. Desde o momento em que cada ciência tem que prestar contas da posição que ocupa no quadro universal das coisas e do conhecimento dessas coisas, já não há margem para uma ciência especialmente consagrada ao estudo das concatenações universais. Da filosofia anterior, com existência própria, só permanece de pé a teoria do pensar e de suas leis: a lógica formal e a dialética. O demais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história.
Este parágrafo foi, sem dúvida, a base para as aulas de Politzer e para certas linhas decisivas de Lênin.
Houve também uma discussão no Volks-Tribüne acerca da distribuição dos produtos na sociedade futura, sobre se ela deverá acontecer segundo o quanto de trabalho [Arbeitsquantum] ou de outra maneira. Abordou-se a coisa também muito «materialistamente» contra certos fraseados idealistas sobre a justiça.
Já em seu tempo, entretanto, Engels tinha de exaustivamente desfazer equívocos. Intensos debates já se davam nos anos finais do século 19, após a morte de Marx e sobre a sua obra; Engels era o companheiro mais próximo de Marx que estava vivo, servindo de guardião ou paladino de seu pensamento. Da mesma carta, não sem falta de paciência:
A palavra «materialista» [materialistisch], na Alemanha, serve, em geral, a muitos escritores jovens de simples frase com que etiquetam, sem ulterior estudo, tudo e mais alguma coisa, isto é, colam esta etiqueta e, então, crêem ter resolvido a coisa. A nossa concepção da história, porém, é, antes de tudo, uma diretiva [Anleitung] para o estudo, [não é] nenhuma alavanca de construções à la hegelianos [Hegelianertum]. A história toda tem de ser estudada de novo, as condições de existência [Daseinsbedingungen] das diversas formações sociais [Gesellschaftsformationen] têm que ser investigadas em pormenor, antes de se tentar deduzir a partir delas os modos de ver [Anschauungsweise] políticos, de direito privado, estéticos, filosóficos, religiosos, etc., que lhes correspondem. Relativamente a isto, até agora, só pouco aconteceu, porque só poucos se puseram seriamente a isso. Relativamente a isso, precisamos de ajuda em massa, o domínio é infinitamente grande e quem quiser trabalhar seriamente pode conseguir muito e distinguir-se. Em vez disto, porém, as frases do materialismo histórico ([e], precisamente, de tudo se pode fazer uma frase) servem a muitos jovens alemães apenas para construir ordenada e sistematicamente [systematisch zurechtzukonstruiren], o mais rapidamente possível, os seus próprios conhecimentos históricos relativamente parcos — a história económica ainda anda de cueiros! — e para parecerem então muito formidáveis. E então pode, pois, vir um [Paul] Barth [que havia escrito o livro A Filosofia da História de Hegel e dos Hegelianos até Marx e Hartmann] e atacar a coisa mesma que, pelo menos no seu meio [Umgebung], fora degradada a mera frase.
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Marx, a grande base
Marx, por sua vez, torna-se “materialista” a partir de 1843, sob a influência de Feuerbach (computado como “a fundação do verdadeiro materialismo e da ciência real, na qual Feuerbach faz da relação entre ‘homem e homem’ o princípio fundamental de sua teoria”, tal como lemos nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, que, na realidade, estão mais além de Feuerbach do que se percebe ou declara, porque, conforme conclui Ernest Bloch em O Princípio Esperança, a relação “homem e homem” desses manuscritos não é antropologia abstrata, como o é em Feuerbach, mas, ao invés, “a crítica da autoalienação humana (transferida da religião para o Estado) já penetra [no texto] no coração econômico do processo de alienação”.)
Assim, nas 11 teses (sobre ou contra Feuerbach, dependendo da tradução) de , Marx alude ao novo materialismo (que pode ser associado ao materialismo moderno citado por seu companheiro Engels), para se contrapor ao materialismo de Feuerbach e ao idealismo. Leiamos o início da primeira tese:
“A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias [ou seja, até – o de Feuerbach incluído – é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto [des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal. […]”
Marx tateia e , não contextualiza de maneira aprofundada – esta tarefa seria de Engels, sobretudo após a morte do companheiro. O materialismo retorna nas teses 9 e 10: “O máximo que o materialismo contemplativo [der anschauende Materialismus] consegue, isto é, o materialismo que não compreende o mundo sensível como atividade prática, é a visão [Anschauung] dos indivíduos isolados na “sociedade civil”.” e “O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade “civil”; o ponto de vista do novo [materialismo é] a sociedade humana, ou a humanidade socializada.”
Em A Sagrada Família, escrito com Engels, Marx explica a gênese e o conteúdo de seu pensamento. Ernest Bloch afirma, em O Princípio Esperança, que é nesta obra que nasce a interpretação materialista da história em 1844, e com ela o socialismo científico. Conforme retoma Antonio Gramsci, do cárcere fascista: “No trecho sobre o ‘materialismo francês no século XVIII’, (A Ideologia Alemã) refere-se com bastante clareza à gênese da filosofia da práxis: é o ‘materialismo aperfeiçoado’ pelo trabalho da própria filosofia especulativa e fundido com o humanismo. É verdade que com esses aperfeiçoamentos do velho materialismo permanece apenas o realismo filosófico” (CC, 1, 320).
No esclarecedor posfácio à segunda edição do livro primeiro de O Capital – Crítica da Economia Política, Marx fala em materialismo (sem qualquer outra junção) e em método dialético (para contrapor o seu método ao de Hegel, “não apenas diferente, mas seu oposto direto”). Nesse posfácio, Marx usa as seguintes palavras, sem “ismo”s: Idee (“Ideia”), wirklichen (“real”), Ideelle (“ideal”), Materielle (“material”) ao afirmar que, para Hegel, o processo do pensamento é o “criador do real” e o “real”, apenas sua “manifestação externa, enquanto que para Marx, ao contrário, o “ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado” (tradução de Reginaldo Sant’Anna, Difusão Editorial S.A). E termina com estes parágrafos que constituem uma ácida provocação:
[…] Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional do invólucro místico.
A dialética mistificada tornou-se moda na Alemanha, porque parecia sublimar a situação existente. Mas, na sua forma racional, causa escândalo e horror à burguesia e aos porta-vozes de sua doutrina, porque sua concepção do existente, afirmando-o, encerra, ao mesmo tempo, o reconhecimento da negação e da necessária destruição dele; porque apreende, de acordo com seu caráter transitório, as formas em que se configura o devir; porque, enfim, por nada se deixa impor, e é, na sua essência, crítica e revolucionária.
Para o burguês prático, as contradições inerentes à sociedade capitalista patenteiam-se, de maneira mais contundente, nos vaivéns do ciclo periódico, experimentados pela indústria moderna e que atingem seu ponto culminante com a crise geral. Esta, de novo, se aproxima, embora ainda se encontre nos primeiros estágios; mas, quando tiver o mundo por palco e produzir efeitos mais intensos, fará entrar a dialética mesmo na cabeça daqueles que o bambúrrio transformou em eminentes figuras do novo sacro império prussiano-alemão.
Londres, 24 de janeiro de 1873
Karl Marx
A contribuição de Gramsci
Décadas depois, já no curso da primeira metade do século 20, o marxismo, para Gramsci, “supera (e, superando, integra em si seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicionais” (Cadernos do Cárcere, Civilização Brasileira, 6, 373). A teoria marxista é denominada ‘materialismo histórico‘, ou seja, atividade do homem (história) no concreto, aplicada a uma certa ‘matéria’ organizada (forças materiais de produção), à ‘natureza’ transformada pelo homem. Mas Gramsci alerta: “Deu-se maior peso à primeira parte da expressão ‘materialismo histórico’, quando deveria ter sido dada à segunda: Marx é essencialmente um ‘historicista’ etc.” (CC, 6, 359), ou seja, além de tratar da Economia, foi um autor de livros políticos e históricos.
Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci polemiza e diverge várias vezes do Ensaio Popular do prolífico revolucionário Nikolai Bukharin. (Um bom apanhado que serve como síntese para o assunto é encontrado no verbete “Materialismo e materialismo vulgar” do Dicionário Gramsciano.) No Manual de Bukarin, sobre o qual Gramsci se debruça e dedica-se em linhas inteiras nos Cadernos, o materialismo histórico é identificado com a pesquisa da causa última e única, problema esse, entretanto, que Gramsci vê como eliminado pela dialética de Marx (Q 4, 26, 445). Ainda que preserve de Engels de que a economia é, em última instância, o agente principal da história, Gramsci chama de “infantilismo primitivo” (CC, 1, 238) associar toda a flutuação da política e da ideologia (ou seja, toda a superestrutura) como expressão imediata da estrutura (a partir de tal conclusão, Gramsci desenvolve o conceito de bloco histórico, que recupera a visão marxiana do sentido dialético, mas com particularidades originais do próprio Gramsci).
O comunista sardo via resíduos de mecanicismo mesmo no materialismo histórico, como na unidade entre a teoria e a prática, em que a teoria se torna mero acessório da prática (CC, 1, 104). Para ele, os progressos das ciências modernas afirmaram o método “que verdadeiramente separa dois mundos da história e inicia a dissolução da teologia e da metafísica e o nascimento do pensamento moderno, cuja última e aperfeiçoada expressão filosófica é o materialismo histórico” (CC, 6, 366). O materialismo histórico, em Gramsci, é “uma reforma e um desenvolvimento do hegelianismo, é uma filosofia liberada de qualquer elemento ideológico unilateral e fanático, é a consciência plena das contradições, na qual o próprio filósofo […] não somente compreende as contradições, mas coloca a si mesmo como elemento da contradição” (CC, 6, 364). Trata-se de uma perspectiva em devir, em que a dialética já está contida. Diante de uma máquina, o materialismo histórico não estabeleceria sua estrutura físico-químico-mecânica (papel das ciências modernas), mas a máquina enquanto objeto de produção e de propriedade ligada a uma relação social de determinado período histórico.
Gramsci teve alguma notícia sobre História e Consciência de Classe, livro de Lukács; entra numa suposição a respeito de que se a dialética pode tratar apenas dos homens, não da natureza, afirmando que, caso tenha sido esse o tratamento do livro: “Penso que Lukács, insatisfeito com as teorias do Ensaio Popular, caiu no erro contrário: toda conversão e identificação do materialismo histórico com o materialismo vulgar só pode determinar o erro oposto, a conversão do materialismo histórico em idealismo ou até mesmo em religião” (CC, 1, 166).
Lukács e a grande mudança
No período revolucionário que se seguiu à Revolução Russa, Lukács e — em medida menor — Korsch introduziram a primeira fenda entre as ideias de Marx e as de Engels. Numa crítica deferente mas venenosa ao Anti-Düring, Lukács reprovou Engels — de um ponto de vista radicalmente hegeliano — por sua busca de uma dialética uniforme que ligasse a história humana e a história natural e, particularmente, por sua distinção entre ciência “metafísica” ciência “dialética”, sustentando que desse modo se obnubilava a dialética autenticamente revolucionária de Marx: a do sujeito e do objeto no âmbito da história do homem. Essa crítica não partia de um terreno puramente epistemológico. Com efeito, aos olhos de Lukács, o prestígio de que desfrutaram Darwin e a ciência evolucionista junto à II Internacional ligava-se intimamente a uma distinção adialética entre teoria e prática, e daí se derivavam o imobilismo e o reformismo da sua política. Embora a crítica de Lukács não tenha tido efeito imediato — ele próprio mais tarde se retratou — tratava-se de uma prefiguração da forma que assumiriam muitas outras críticas posteriores. (JONES, G. S. “Retrato de Engels.”. In: HOBSBAWM, E. (org). História do marxismo. Vol. I – “O marxismo no tempo de Marx”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 377-421).
“Zdanov apresenta, com Stalin, toda a história da filosofia como a luta entre materialismo e idealismo. A Destruição da Razão, ao contrário, que, no geral, foi escrita durante a guerra, põe no centro da reflexão uma oposição totalmente diversa, isto é, a luta entre filosofia racional e irracional. É verdade que os irracionalistas eram todos idealistas, mas eles também tinham antagonistas racionalistas-idealistas. Portanto, a oposição que exponho em A Destruição da Razão é totalmente incompatível com a teoria zdanoviana” (Lukács, Pensamento Vivido, página 132).
Importante – a crítica de Lukács não se refere a uma rejeição do materialismo e do idealismo e de seu antagonismo, mesmo na história da filosofia, já que ele usará abundantemente tais termos (inclusive a expressão “deformação idealista”) de maneira correta em obras posteriores (cf., p. ex., “O PARTICULAR À LUZ DO MATERIALISMO DIALÉTICO” em Introdução a uma Estética Marxista, escrito e lançado anos depois de A Destruição da Razão). A crítica lukacsiana é sobretudo à clivagem única de que toda a filosofia e sua história se dividissem entre materialismo e idealismo, entre dialética e metafísica.
Finalmente, por falar em Lukács, entremos na distância que evoquei no início deste texto, distância que este grande intelectual assume em relação ao marxismo-leninismo oficial de sua época. Lukács viveu muito – 86 anos – e em liberdade (ao contrário de um Gramsci, por exemplo, morto prematuramente aos 46 anos e preso), ocupou, hora ou outra, cargos políticos do “socialismo real”, podendo acompanhar mais de uma geração de marxistas e os desdobramentos entre revoluções sociais e o futuro da História.
Stálin, no texto supracitado do primeiro parágrafo, afirmava (há sempre dúvidas de que se era ele mesmo quem escrevia ou se eram seus correligionários ou um ghost writer oficial) que a clivagem principal na história da filosofia se daria entre o “materialismo” e o “idealismo”. Há uma série de deturpações contidas nesse pensamento estreito – não em relação aos vícios baratos da metafísica e do idealismo e da religião cristã, que podem ser combatidos no curso de uma revolução, porque são elementos reacionários a serviço das classes dominantes, mas no fato de que a burocracia contrarrevolucionária pressupunha, de cima para baixo, um esmagar inflexível da vanguarda revolucionária e seus remanescentes, ou seja, era, no plano prático, abertamente contra a própria dialética (a diferenciação que coloquei parágrafos acima entre o Princípios Elementares de Filosofia e o Princípios Fundamentais de Filosofia evidencia.)
Pois bem! Não muito tempo depois, porém, o grande Lukács escreveu um livro enorme e “maldito” – A Destruição da Razão, 2 volumes, de 1955, que o Instituto Lukács lançará em breve em tradução brasileira, como ação final do fim do Instituto -, argumentando que a divisão principal da filosofia, ao contrário de opor materialismo e idealismo, opunha o “racionalismo” ao “irracionalismo”. (Lukács toma como ponto de partida a confrontação Schelling-Hegel para desmascarar Nietzsche, Heidegger, etc. O “racional” – e “irracional” – sobre o qual ele se debruça refere-se principalmente ao famoso prefácio da Fenomenologia do Espírito, em que Hegel tomou posição contra o “formalismo monocromático” da intuição intelectual schellinguiana, mas – intencionalmente ou não, e esta é uma afirmação pessoal minha – Lukács acaba referindo-se também àquele “invólucro racional” que Marx alerta no posfácio de O Capital a respeito de Hegel). Assim, escapando da dicotomia oficial, Lukács abriu um importante flanco para resgatar autores decisivos dos porões da história do pensamento, incluindo alguns de seus antigos mestres (Georg Simmel e Max Weber), mesmo que fosse para criticá-los, romper com eles e superá-los.
Ou seja, ao situar no centro de sua análise o antagonismo racionalismo-irracionalismo, Lukács se posicionava de forma heterodoxa em relação ao marxismo-leninismo oficial da época. Em entrevistas para seu texto autobiográfico, Gelebtes Denken, Lukács lembra que, enquanto Stálin e seu correligionário Andrei Jdanov (este, aliás, chegou ao alto escalão do partido após o assassinato de Serguei Kirov, marcando o início do Grande Expurgo, deplorável em termos de marxismo e revolução!) tinham reduzido essencialmente a história da filosofia à luta entre materialismo e idealismo, sua ideia de escrever uma obra no centro da qual estava colocada a contradição racionalismo-irracionalismo não deixa de lhe atrair os raios (“foudres”) de certos sectários e dogmáticos pertencentes ao establishment socialista: “Os sectários”, afirma Lukács, “se mostraram seguramente muito escandalizados que o dogma de Jdanov sobre a oposição entre materialismo e idealismo como único objeto da história da filosofia – dogma tido por eles com aura de santidade – tenha sido ridicularizado e eles tentaram – através das mais grosseiras falsificações de citações – demonstrar o caráter ‘revisionista’ do livro.” (Lukács referia-se sobretudo ao texto de um certo Balogh, reproduzido em György Lukács e o revisionismo, publicado em 1960 na Alemanha Oriental, e que seguia o mesmo viés de revistas soviéticas. V. “A destruição da razão: 30 anos depois, 1986, de Nicolas Tertulian, tradução de Antônio José Lopes Alves para a Verinotio – revista online de filosofia e ciências humanas, n. 13, Ano VII, abr./2011 – Publicação semestral.)
1 – Os Democratas e sua burocracia empresarial destruíram, há décadas, as tendências de esquerda e até socialistas do partido, sobretudo a partir dos anos 1960 com as lutas civis. Há um documentário com Norman Mailer em que ele conta isso. As pautas sociais – como saúde pública – não emplacam. Demorou para que um nome mais oficial, no caso Bernie Sanders, peitasse o poder econômico de Wall Street, ainda que só no discurso. No mais, há o sorriso falso e supostamente simpático de víboras como os Clinton ou mesmo Biden e Kamala, o liberalismo político e econômico e os objetivos bélicos do complexo industrial-militar, que é o que ainda garante (mas está no fim) o capital hegemônico (“imperialismo”) dos EUA. É muito importante brasileiros e latino-americanos, sobretudo comunistas, terem tal consciência diante de nossa elite dependente, para, então, saber onde é que podem estar os camaradas socialistas e internacionalistas dos EUA. Os desprezíveis Republicanos, por sua vez, que já tiveram um Lincoln, mudaram totalmente no curso do século 20 e resumem-se hoje à extrema-direitalha dos neocons (incitados sobretudo com Reagan e ressuscitados com Trump) e do tea party, ou seja, contra todas as ideias liberais da própria direita, com nacionalismo e supremacismo equivalentes ao nazifascismo europeu (e, de fato, historicamente, um influenciou o outro). Este tem sido o cenário deprimente dos EUA – direita versus extrema-direita, Estado capitalista bélico entre o low profile empresarial defensor de pautas identitárias (mera cooptação capitalista ilusória, que perpetua o homem, branco, heteronormativo e monoteísta no patronato e no poder econômico) ou o obscurantismo medíocre. Da perspectiva das duas revoluções – a da independência contra os colonizadores e a Guerra Civil entre industrialistas do Norte e escravistas do Sul, com os negros no meio, entre a exploração do trabalho assalariado e a exploração escravista,
em suas cooperativas socialistas do movimento abolicionista -, olhamos os muros contra imigrantes, o medo do terrorismo, as guerras provocadas pelo mundo, a prosperidade fruto dessas guerras e da dominação estrangeira em busca de roubar o petróleo ou do assassinato econômico, a megalomania espelhada no Império Romano (o fascista Mussolini prometia recuperar a grandeza do Império Romano aos italianos), o caos social entre o Black Lives Matter e grupos brancos armados, maior população carcerária do planeta, bilionários e trabalhadores com débitos médicos impagáveis, milhares de óbitos por COVID-19, permanente genocídio negro da polícia, etc. etc. etc. e tantos outros sintomas, trata-se dum fracasso retumbante em termos de país e de sociedade e dos sonhos cósmicos de humanismo, liberdade e democracia, fracasso muito maior que o da gloriosa Revolução Soviética, por exemplo.
2 – Nada mais esclarecedor do que o comentário chocante que li hoje mais cedo de uma mulher dos EUA – com a melhor das intenções! – nas redes antissociais, e que resume totalmente o imperialismo decadente da perspectiva deles, resume bem Biden e Trump, Democratas e Republicanos:
“Melhor o Biden, porque ele arranjará problemas em outros países, ao contrário de Trump, que arranja problemas aqui, internos.”
Um aluno me enviou. É um texto com equívocos e ingenuidade. Mais do que isto, é um texto superficial demais. Para tratar de marxismo e arte, não é bem esse o foco e autor adequados, ou pelo menos o são apenas como uma breve introdução ou passagem.
Não sei se terei tempo de intervir ponto a ponto, mas, felizmente, temos um Lukács, no marxismo, que ensina sobre a estética, coisa que Trótski nunca fez. Com Breton, ele caiu no anarquismo, não numa construção comunista nova. A preocupação de Trótski, todo o debate naquele período foi o de se o Estado soviético deveria ou não intervir na produção artística. É uma questão importante, mas meramente estatal. (No Brasil, sobretudo, sempre foi explicitamente a direitalha a perseguir a cultura e os artistas, e o termo “arte de direita” se tornou uma piada, especialmente nos últimos tempos com Alvim, Regina, Bozo.) Isso nada tem a ver com um debate profundo sobre arte e marxismo. Sem esse norte (arte e marxismo), e preso à questão da burocracia ou do stalinismo, o texto cai em diversos equívocos ingênuos – “liberdade”, “autonomia da arte”, etc. É um debate extemporâneo, porque o nazismo também exercia poderio policial contra a cultura e os artistas “degenerados”. Definitivamente, não é nem de longe essa a questão que importa no marxismo. Qualquer pessoa ética sabe que um artista não pode ser reprimido nem a arte e a cultura do povo serem ditadas por uma burocracia tecnocrata de cima para baixo sem a participação dos artistas e desse povo, mas isso não é pretexto para se separar o fazer artístico de princípios marxistas – inclusive estéticos, ou estaremos incorrendo numa ideologia puramente liberalóide, metafísica, burguesa e de profunda inconsciência sobre de onde se parte e para onde se aponta com o fazer artístico. Mesmo o uso de um Adorno não é o totalizante no tema. Até quando o texto supostamente apresenta um exemplo – Mário Pedrosa -, não desenvolve nada sobre arte, seja a forma ou o conteúdo, que, aliás, não são dualistas, um não existe sem o outro. Apenas usa Pedrosa para atacar uma vez mais o stalinismo. Estamos na época do Grande Expurgo?! Isso é fácil. Qualquer um faz e já fez. É um texto ralo, sem conceituação. Marxismo não se resume a política estatal.
Frequentemente, parece que só cabe aos trotskistas chamarem os outros de stalinistas e falarem mal de Stálin. Até já se esqueceram da burguesia e dos burgueses, mal atacam os capitalistas – os principais inimigos parecem ser os stalinistas. Estes, por sua vez, precisam continuar matando Trótski. É uma pobreza para a teoria marxista… Ficam amarrados a picuinha de russos, e russos mortos!… Uma querela mui interessante do ponto de vista histórico, mas não para conceitos e categorias fundamentais no marxismo. Meu intuito foi o sempre de sair dessa prisão, e por isso tive altas discussões com os 2 lados.
Na questão da concepção da arte, Gramsci (no Brasil, vide Waldemar Cordeiro) e Lukács foram os mais instigantes e formativos no marxismo. Da Rússia, a vanguarda revolucionária, nada melhor do que um próprio artista, ou seja, aquele que se empenha e trabalha numa práxis, tendo, portanto, a soberania para tratar da questão: então, o próprio Maiakóvski citado no texto, que escreveu um livro sobre como fazer versos, sobre poesia e marxismo, um livro absolutamente engajado e popular, em que não restam dúvidas do caráter comunista do poeta, afirmando, por exemplo, que o bibliotecário precisa ser um propagandista do livro comunista. Pena que o texto acima só fale do suicídio… Não cita nada sobre a concepção maiakovskiana da arte. Flerta com a fofoca, “triângulo amoroso” … e stalinismo. É pouco, é pobre.
“Sem forma revolucionária não há arte revolucionária” – Maiakóvski.
Arte não é e não pode ser solipsismo. A arte não é voltada a si mesma, porque os instrumentos vêm do modo de produção, a arte muda de acordo com as condições socioeconômicas, e uma obra se abre para o seu tempo com propósitos políticos de agitação, denúncia, emancipação, crítica. Ao menos, tudo o que eu faço e fruo em arte corre nesse sentido… Brecht… Pasolini… João Cabral… Chico Buarque… Todos os grandiosos artistas, de todas as áreas, possuem essa veia. Qualquer um que age no sentido da suposta autonomia está procurando uma desculpa para fazer o que bem entende e se livrar da sua própria responsabilidade social, nada mais.
Todas as tentativas de implantar totalmente o liberalismo e o neoliberalismo no Brasil, ou seja, de desmantelar o fantasma de Getúlio Vargas e seus resquícios por inteiro num país dito “subdesenvolvido” ou “em desenvolvimento” e de capitalismo dependente, fracassaram.
O liberalismo (corrente complexa, mas que em Adam Smith, diante de uma burguesia revolucionária contra o despotismo da aristocracia, significa liberdade de mercado, desde que o Estado cumpra sua função social e organizativa, e que contempla educação e saúde públicas, por exemplo) e o neoliberalismo (nome jornalístico para “mercado autorregulado”, ou seja, uma radicalização do liberalismo) tiveram algumas encarnações no Brasil, mas nenhuma foi duradoura, todas fracassam em sua totalidade no suposto projeto de “modernização” do país. Não fracassaram apenas porque simplesmente o liberalismo e o neoliberalismo são, realmente, concentração e exploração, porque o liberalismo já se mostrou uma farsa em todos seus níveis econômicos, políticos e supostamente filosóficos, porque o neoliberalismo leva sempre à fusão e aquisição de Wall Street, isto também, em qualquer canto do globo, mas porque o próprio empenho dos (neo)liberais de implantar na totalidade do país e do Estado brasileiro o liberalismo e o neoliberalismo se mostrou ineficaz. Quando o liberalismo ou o neoliberalismo – a partir daqui, os termos virão unidos, salvo quando seja citação de outrem ou quando trato do liberalismo historicamente anterior – entram em curso no Brasil, sempre há um momento em que o Estado social – como aquele projetado pela Constituição de 1988 – vem à baila para consertar a sociedade e a economia, frustrando os planos dos (neo)liberais.
Não adianta procurar liberalismo efetivo no Brasil antes da segunda metade do século 20. Serão indivíduos ditos liberais, não agenda de cima para baixo. A afinidade do liberalismo com a escravidão foi mais explícita e profissional na Inglaterra. O clero, no Brasil, foi efetivamente posto de escanteio pela elite militar conservadora (e por setores civis republicanos, mas sem ainda qualquer poder hegemônico). No Brasil, contou sempre univocamente a mão da oligarquia, além de outros fatores nacionais mais complexos; não houve nem mesmo uma revolução liberal, e sim transformismos do alto, “revolução passiva”, para usar um termo de Gramsci. Da colônia para a independência, desta para a monarquia (Dom Pedro II indolente, rodeado de escravistas, falindo o projeto de industrialização do barão de Mauá), desta para a República, etc., as classes dominantes, pouco liberais, ditaram o rumo, inclusive a respeito do capitalismo que engatinhava, desenvolvendo-se não de maneira nacional e homogênea. (As Diretas-Já, movimento amplo, debaixo, popular, pareciam que iam quebrar com a maldição do transformismo pelo alto, mas logo o poder caiu nas mãos da oligarquia e da burguesia.) Enfim, da década de 1950 para trás, apenas observamos o peso da oligarquia ou do Estado desenvolvimentista (Juscelino), mesmo nos períodos das Repúblicas civis. A política do café com leite… E então veio Vargas – o primeiro e o segundo, o ditador e o democrata, muito diferentes entre si, mas com um centro igual: o Estado enquanto Salvador ou Leviatã -, ou seja, veio o Estado Novo, um novo Estado, com resquícios ainda hoje, com todos os seus acertos sociais e vícios burocráticos. Toda tentativa (neo)liberal no Brasil consiste em desmontá-lo por inteiro, o que nunca se realiza. No final dos anos 1990, parecia que finalmente aconteceria, aconteceu aquilo e ali com as privatizações, mas não vingou, não durou nem foi por inteiro. E, quando ele retorna, é claro que não se trata mais de varguismo, e sim dos seus resquícios de acordo com o tempo e com os políticos – de esquerda ou de direita.
Portanto, até agora (2020), as tentativas de implementar o liberalismo e o neoliberalismo no Brasil foram precisamente as seguintes:
Após o golpe de 1964, . Não durou. A partir de 1967 , É verdade que Bob Fields (como passou a ser chamado) , até com o Serra , mas sempre era frustrado, chegando a afirmar: “O “. Quando era criticado pelo fato de ser um por ter apoiado a ditadura, a tal liberdade individual é a “única e implacável liberdade de comércio” (como Marx e Engels escrevem brilhantemente no Manifesto). nunca foi um problema para esse tipo de gente, desde que a economia continue sendo a economia vulgar, . Basta lembrarmos de Hayeck Pinochet: preferível uma ditadura sanguinária com o “mercado autorregulado” (neoliberalismo) do que uma democracia.
Com a vitória de Fernando Collor, em 1990. Collor, além do contra os “vermelhos”, os comunistas, despontava contra os “marajás” ( ) e prometia um golpe de karatê na inflação. A economia piorou, ele não extirpou os marajás da burocracia federal, não modernizou nada e foi exposto em escândalos escabrosos de corrupção. Itamar Franco assume novamente políticos e o Estado intervém na economia para estabilizá-la, o que dará no Plano Real.
Dirão que os dois governos FHC, logo em seguida, foram neoliberais, ou até mesmo o momento mais longevo do neoliberalismo no Brasil. O neoliberalismo na chamada “era FHC” não foi totalizante nem monolítica. É verdade que pró-mercado, subserviente ao FMI e ao capital hegemônico estrangeiro, exclusão social, enfrentou greves enormes de trabalhadores e privatizações criminosas (como a da Vale), mas o PSDB, até então, e basta ver sua gestão incompetente nos governos do estado de SP, sempre alimentou o corporativismo corrupto das estatais, seja SABESP, etc. Mais do que isso, no caso de FHC, tratava-se de um governo fraco, dependente, sem nenhuma grande reforma ou tentativa de “modernização”, como nas outras tentativas. Hoje, uns 20 anos depois, podemos dizer, sem medo de errar, que a dinheirada das privatizações tucanas está em paraísos fiscais. interrompida em 2002.
Do golpeachment de Dilma até o governo ilegítimo de Temer (até o desgoverno Bolsonaro). “neoliberalismo”, sobretudo no segundo governo, e apontam a figura de Henrique Meirelles. A verdade é que tratava-se de uma aliança com a direita, mas o caráter hegemônico da Era Lula era o combate a fome e à pobreza, programas sociais, investimento nos serviços públicos e , no momento mesmo em que continuava a os bancos e, ao invés de pulverizar o mercado, fortaleceu oligopólios. O primeiro governo Dilma, exitoso, viu no segundo, , Levy. Ela tentou manter os programas sociais e o Estado “inchado” (adjetivo da própria direita). O golpeachment – novamente com apoio sistemático do empresariado da FIESP e mesmo da mídia hegemônica – deu no governo ilegítimo e impopular de Michel Temer. Este, sim, marcou um outro rumo, uma outra encarnação do liberalismo e do neoliberalismo, com pitadas de conservadorismo. Nesse período, aprovaram, com lobby midiático e político, para a felicidade dos capitalistas e dos patrões, a reforma trabalhista, a lei das terceirizações e a PEC dos Gastos (para “enxugar a máquina pública”), mas não conseguiram aprovar a reforma da previdência. De qualquer forma, talvez pela primeira vez o liberalismo e o neoliberalismo pareciam ter vindo para ficar, sustentado pela mutação neoliberal do capital mundial, uberização, infotrabalhados e afins, ou seja, com a mudança da sociedade disciplinar para a sociedade de controle. Aquela sensação coletiva de que a direita tinha vindo para ficar com seu projeto conservador e (neo)liberal, assentada na infeliz eleição de 2018, se dá ou se dava por vários motivos, entre os quais: 1) desmobilização histórica, de 13 anos, quando tudo parecia bem, e que precisará urgentemente ser entendida para ; 2) 3) 4) esquerda pós-moderna, que
Não é à neoliberais e outros coloquem FHC e o PSDB no mesmo bolo que Lula e o PT, como se fossem todos social-democratas: não apenas pelo fato de ser uma extrema-direita exótica, mas porque trata-se aqui, da mais radical tentativa de (neo)liberalimo, até mesmo de anarcocapitalismo, no Brasil. Para se ter uma ideia, temos – para a incredulidade de estrangeiros – um núcleo federal com o nome de Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados (!). Chamo a atenção para as inacreditáveis palavras “desinvestimento” e “desestatização”; conseguiram o raro feito de fazer com que a palavra “mercados” se tornasse a mais suave… O desgoverno Bolsonaro (comprova-se isso recordando seus votos enquanto deputado) é uma continuação do período anterior do governo ilegítimo de Temer, e teve – isto fica claro já agora – uma glória fofa, inglória, de Pirro, catapultada pelo antipetismo, não por projetos “neoliberais”, embora tenha influído na ocasião o ódio de classes da inclusão social e dos “brancos” (ou que se acham brancos) e privilegiados renegados. O terraplanista econômico Paulo Guedes, intelectualmente um Bolsonaro com Phd, mas que nunca se sentiu satisfeito com a direção econômica durante a ditadura (“primeiro, os militares estatizaram a economia toda”, “no regime militar, aumentou o grau de intervenção do governo, aumentou o número de empresas estatais, foram criadas todas essas parnafenálias de leis trabalhistas, os braços armados intervencionistas do governo eram justamente as empresas estatais, e havia controle de preços, cartéis no sistema bancário, autoprotecionismo da economia, muito subsídio, e o Brasil foi perdendo rumo”). Agora, quem perde o rumo é o Brasil de Bolsonaro e Guedes, que fracassa em seu projeto (neo)liberal (por ser neoliberal e porque estamos diante de uma pandemia, em que o capital se mostra aquilo que realmente é, lucro e genocídio). Durante a campanha, em debate com os candidatos a ministros da Economia, prometia terra arrasada, vender tudo, como se o lucro obtido, segurado pela , fosse resolver todos os problemas do país. Já em dezembro de 2018, o histórico Pepe Mujica se perguntou: “O ministro da economia, superfavorável a um mercado aberto, superliberal, vai ter que lidar com a burguesia de São Paulo, a mais protecionista que existe na América Latina. Como se resolve uma contradição dessas?” Tratou-se sempre de um desgoverno “conservador nos costumes, (neo)liberal na economia”. Há conservadores que não aceitam o rótulo, extrema-direita; e fica cada vez mais claro que novamente o neoliberalismo na economia sofreu derrota. Após, finalmente, para o aplauso do mercado e dos patrões, foi aprovada a reforma da previdência – pérfida, masCongresso do que do próprio desgoverno, que, aliás , . Essa encarnação, embora seja uma continuação da fase anterior, merece atenção especial, por vários motivos. Primeiro, no nível ideológico, porque que de – é evangelofascistóide, evangelomilitaresco, milicianóide, de extrema-direita, fundamentalista, anacrônico, etc. Algumas declarações a partir da debandada: “Bolsonaro desmoraliza o liberalismo, mais do que qualquer presidente de esquerda“; “DNA do governo Bolsonaro não é verdadeiramente liberal“. Enfim, a própria mídia que cobre economia afirmou: sem Mattar e Uebel, o governo Bolsonaro deixa de ser liberal. Essa não importaria a esses liberais, desde que pudesse distrair a opinião pública e continuassem com seu projeto. Salim Mattar responsabilizou o establishment em não querer o que ele chama de “transformação do Estado” (segundo ele, o establishment é o Judiciário, o Executivo, o Congresso, os servidores públicos, os funcionários das estatais), trazendo a velha ideia de que a corrupção está somente no Estado: “Se tiver privatização, acaba o toma lá dá cá. Acaba o rio de corrupção.” É assim que pensa o (neo)liberal. Esta foi a base da ideologia da Farsa Jato, que pega, de forma sensacionalista, o “aviãozinho” politiqueiro, mas nem sequer toca nos capitalistas e banqueiros do poder econômico. Por fim, Mattar afirmou que os “liberais puro-sangue na Esplanada cabem num micro-ônibus”. Tais declarações evidenciam, uma vez mais, o fracasso do (neo)liberalismo no Brasil, não apenas porque ele significa bruta concentração de riqueza, pauperização e mortes, mas a sua encontra . , a sanha do capital. Mesmo com a debandada, um dia depois, https://brpolitico.com.br/noticias/governo-edita-mp-que-permite-privatizar-partes-da-caixa/ – https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,privatizacoes-dos-correios-telebras-e-eletrobras-devem-ganhar-tracao-apos-saida-de-salim-mattar,70003398116 Ainda assim, chegou-se provavelmente na fase final do desgoverno: perdeu o moralismo anticorrupção de Moro, está entrenhado na corrupção do centrão, perdeu apoio de setores do mercado. Perdendo apoio da classe média e da classe trabalhadora mais desenvolvida, o xenófobo e racista investe agora sua imagem no Nordeste, que sempre odiou. Já quer transformar o Bolsa Família do PT em “Renda Brasil”, para a permanência no governo e para o “voto de cabresto”, mesmo com um passado politiqueiro que contraria todas essas ações. O Congresso aprovou um auxílio emergencial , mas o ministério da Economia não trouxe qualquer projeto de recuperação econômica e de ajuda aos trabalhadores – nem mesmo às empresas e indústrias que fecham. A chamada “ala desenvolvimentista” – não sabia que isso existe no desgoverno – já chama Paulo Guedes de “idiota” e “primário”. Assim, a “agenda liberal” patinou e Guedes perdeu apoio. O próprio pilantra que ocupa o Palácio do Planalto, pedindo “patriotismo” ao mercado, já admite que, diante da pandemia e para outros fins emergenciais, existe “a ideia de furar o teto [da PEC dos Gastos]”, aquela que serviu, na fase anterior, para “enxugar a máquina pública”, nos dizeres dos (neo)liberais. As promessas das esquerdas na eleição eram de revogar essa PEC maldita. À esquerda e à direita, fala-se novamente em renda básica universal e taxação de grandes fortunas.
Diante dessa reorganização global do Estado social em plena pandemia e do oportunismo, populismo e eleitorismo da direitalha, cujo comportamento político na reorganização do Estado estamos monitorando e devemos observar com atenção e cautela, é justamente neste momento histórico que as esquerdas precisam se radicalizar e dar um passo além. Essa radicalização passa pela formação revolucionária, pelo apreço da teoria da revolução e da teoria do Estado, etc. para pautas e ideias mais radicais, de socialização da propriedade privada dos meios de produção, de conselhos nacionais ao invés de ministérios na longíngua Brasília, de democracia direta e de base, etc. etc. etc.
Noutras palavras, o horizonte da esquerda – daí o papel organizativo dos setores de vanguarda – não pode ser mais apenas política pública. A grosso modo, isto tem servido apenas como lenitivo para a crise, empurrando a sujeira para debaixo do tapete até essa crise ser descoberta, ainda mais suja, e revelar seu próprio rosto, o capital. Além da limitação das políticas públicas, o dabete – a sempre pergunta “reforma ou revolução?” – profunda reforma militar, por exemplo, em face da nossa monumental desvantagem em relação ao monopólio da violência.
Comecei citando a “encarnação” do (neo)liberalismo, que teve várias tentativas. O comunismo, não a paranoia direitista (embora ela tenha lá suas razões), mas na forma da organização dos trabalhadores, na forma dos movimentos de base ou mesmo na minoritária luta armada, também teve tentativas de encarnação e reencarnação no mundo inteiro, impedidas pelo nazifascismo, pela burguesia e até pela amorfa social-democracia. As reconstruções do socialismo e do comunismo estão em curso atualmente. Conforme alunos, camaradas, seguidores e outros sabem, tenho estudado e elaborado de maneira teórico-prática a refundação do comunismo no século 21, na sua nova encarnação neste país e continente.
É possível que um novo partido esteja prestes a nascer. Ambicioso, altamente intelectual. Seu objetivo a médio e longo prazo não é outro senão extirpar a elite brasileira e inaugurar um novo capítulo na história deste país. O objetivo a curto prazo é o de formação teórica. Para isso, é preciso um professor.
Um partido seguidor de um professor, para a educação dos quadros de um partido, seus intelectuais, militantes, revolucionários, governantes, agentes das mais diversas áreas diretas e paralelas à política… Gramsci escreve que a relação professor – aluno deveria deixar de ser um fato pessoal, como o é no meio acadêmico, para se tornar uma função orgânica (como, por exemplo, nos seminários).
Tenho observado que, dentre os partidos de esquerda (os de direita são todos pérfidos), vários grandes problemas se apresentam:
1) Os quadros não possuem formação em torno da teoria revolucionária e marxista. A perspectiva de política deles é limitada. Resumem-se a políticas públicas. É pouco. Quando muito, reformas, mas não conseguem maioria para elas; mesmo se conseguissem, a solução não está nas reformas.
2) É pequeno o número de quadros que, mesmo não tendo a formação na teoria, passam a ler teoria na bibliografia marxista; quando o fazem, já é um pouco tarde, não por causa da idade, mas porque já estão no sistema. Problema de origem do partido e dos quadros.
3) Os partidos revolucionários estão numa crise histórica, não consequem se renovar ou crescer. A burocracia os corrompe e empaca. Ademais, suas principais estratégias de organização e conscientização ficaram para trás com o modelo fordista. A esquerda grande só pensa em eleições, tem ojeriza da teoria, suas pautas se mostraram insuficientes contra o capitalismo.
4) O problema central é não conseguir maioria nunca. A partir disso, a única saída das esquerdas tem sido ir apanhar nas ruas. É pouco.
5) A esquerda tem se educado para resistir. Se puder, resiste eternamente, enquanto a direita põe as cartas na mesa. O objetivo precisa ser dedicar-se para governar.
Um partido que possa de fato partir da teoria para a prática e vice-versa. Que leve à implantação do “moderno Príncipe” de que falava Gramsci, e de seus intelectuais orgânicos, Lênin, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior e outros.
O que é a vergonha humana? Eu não conseguiria viver numa cidade em que diversas crianças pretas são assassinadas anualmente na periferia pobre pela polícia militar a mando de politiqueiros direitistas, a mando de uma estratégia inútil, animalesca e atroz, a mando da burguesia, como se tudo estivesse bem ou fosse assim mesmo, porque tais assassinatos de dor tamanha justificariam a nossa história escravocrata. Não se trata de um ou dois casos, mas, ao contrário, eles se acumulam, e isto pode e deve mudar. Perco toda a vontade de voltar a ver turisticamente o Rio. Cariocas, acordem! Não é possível! Vidas estão sendo interrompidas no genocídio negro, vidas que dariam em Marielles! Levantem-se para reconstruir um outro Rio de Janeiro, pois este é terrível e não deu certo, um outro, sem milícia e sem polícia militar, sem prefeito fundamentalista e governador genocida, com menos superficialidade de cartão-postal maravilhoso escondendo uma sociedade terrível, hipócrita, segregada. É hora de acabar com a insensibilidade, com a comodidade, com a segregação. Precisa parar tudo e cair o governador, cair o secretário de “segurança pública” e cair o comandante militar. No mínimo. Isto não resolve estruturalmente o problema, mas já seria alguma coisa. Ou isto só acontecerá quando morrer o filho de alguém da zona sul?!
A direita vive acusando a esquerda de ser perdulária, mas deveria se perguntar por que só elege quadros demagogos, desastrosos, não-orgânicos e irracionais. Como ela jamais entrará nessa discussão, cabe à esquerda encontrar a resposta e apresentar à nação, e uma das respostas fundamentais não será outra senão o fato de que, para a plutocracia implantar medidas econômicas que concentram o capital e o poder num país de brutais desigualdades como o Brasil sem que haja uma violenta recusa da população como um todo, só mesmo se utilizando de espantalhos…
A direita, em qualquer lugar do mundo, será sempre menos inteligente (e a direita ilustrada cai sempre na mistificação), porque precisa conservar privilégios e status quo, ou seja, se mantém fixa e linear, enquanto para a esquerda coube estudar para transformar a realidade… Só deseja transformar a realidade aquele que adota uma posição crítica e investiga as causas da realidade ser o que é.
A direita esconde, despreza ou ignora as causas dos problemas.
No jogo político do Brasil, a direita agrava os problemas.
A direita explícita só causou desastres no Brasil. Não só nas ditaduras – estas levaram o direitismo às raias do absurdo. Falo em âmbito eleitoral sob a democracia liberal burguesa: nos deu o doido do Jânio Quadros, após Vargas e Juscelino, nos anos 1960, “vassourinha contra a corrupção”, que tinha pautas conversadoras contra os costumes e renunciou em menos de 1 ano de governo, atirando o país numa longa crise política e instabilidade que, com vários outros motivos, ajudou o golpe de 64 contra João Goulart; o neoliberal e intransigente Fernando Collor na redemocratização, que em dezembro de 2018 desancou a política externa bolsonarista/olavista, mas que, na época, finais dos anos 1980, início dos 1990, era o “caçador de marajás”, contra os “vermelhos” (sim, igualzinho o Bolsonaro, como seus discursos e o último debate contra Lula atestam – embora Collor trouxesse um quê de “modernidade” comportamental e econômica, não de obscurantismo e fundamentalismo religioso armado, como Bolsonaro), contra a “baderna”, a “bagunça”, ostentando a bandeira verde-e-amarela, mas que piorou muito a economia e trouxe à tona diversos casos escabrosos que o envolviam, (o moderado e democrata de centro-direita Fernando Henrique Cardoso, que colocou o mercado acima de qualquer interesse nacional – este é uma exceção em meio a tanto exotismo e desastre, mas quantos tão polidos assim não estiveram agora com a escritidão criminosa de Bolsonaro?); e, agora, após 2 anos do golpeachment, da ilegitimidade política e da austeridade econômica de Temer, com o perdedor e golpista PSDB de FHC, que destituíram Dilma Rousseff, e a Lava Jato superficial que prendeu Lula (com todos os acertos e erros, a maior liderança da esquerda), o extremista-mor Jair Bolsonaro, patriota de araque, entreguista, manipulador, mentiroso compulsivo, absolutamente sociopático e inconsequente, exibindo diariamente seu comportamento fascistóide, no nível da perseguição de opositores em todos os setores da sociedade, com ministros absurdos, anacrônicos, incompetentes em relação à gestão da máquina pública, às necessidades do povo brasileiro e à política de Estado.
Toda a direita apoiou este lixo, gerando consequências gravíssimas em todos os setores. Mesmo aquela direita que depois tenta se disassociar, e que jamais fará uma autocrítica na mídia hegemônica paga por grandes empresas e bancos, deu apoio integral. De Abílio Diniz, passando pelo CEO do Itaú ou o Paulo Lemann até um desqualificado como o dono da Havan.
Assim como haviam aqueles que preferiam se associar à figura de Sérgio Moro, que diante da máscara indolente é também um extremista judicialesco, a elite se afasta de Bolsonaro e apoia apenas este Bolsonaro com Phd chamado Paulo Guedes, serviçal do capitalismo financeiro… Não se enganem. Assim como em O Retrato de Dorian Gray, em que o retrato demonstra todos os vícios e horrores que a aparência do rosto esconde, Bolsonaro é a cara da desprezível, aporofóbica, ruim, racista elite brasileira sem máscaras.
Treze eleições livres no Brasil, desde 1945. Dez presidentes eleitos (porque 3 foram reeleitos). O campo mais à direita elegeu quatro deles. Todos eles, outsiders. O único que foi até o fim do mandato foi Fernando Henrique Cardoso, que na verdade estava à centro-direita e tinha conseguido, junto com o MDB, convencer a direita de que podia dispensar a ditadura e disputar o jogo político.
Os outros três – Jânio, Collor, Bolsonaro – eram outsiders bem mais out do que FHC. Figuras um tanto exóticas, que somente se elegeram por estarmos em crise, por terem um discurso fortemente populista, por estourarem a política tradicional.
Nunca a direita emplacou um quadro seu, orgânico, na presidência da República, em eleições democráticas.
Só os não orgânicos.
Daí uma fragilidade. Os três de quem falei são ou foram voluntariosos, no limite do arbitrário:
– Jânio, moralista dos costumes, interferindo nas roupas de desfile de miss…
– Collor discursando, na posse, que agora era “vencer ou vencer”, dando um golpe fatal de judô na inflação (conseguiu o oposto, sobretudo saqueando poupança dos trabalhadores).
– Bolsonaro constantemente ameaçando tudo e todos para proteger sua familícia.
Difícil, assim, chegar a um consenso.
Aprendi, primeiro lendo e depois conversando com gente influente, que o governo precisa estar bem com cerca de 100 a 200 personagens importantes, desde os dirigentes do Congresso e de suas principais comissões, os dos tribunais superiores, os das agências reguladoras, os donos do PIB, a grande mídia, talvez sindicatos e movimentos sociais.
O entendimento com todos esses protagonistas é tão importante quanto o “presidencialismo de coalizão”, que na verdade se refere apenas às duas Casas do Congresso. (Não vamos, neste texto, considerar o direitismo no Congresso, centro do poderio oligárquico brasileiro! Deixo isso para outra ocasião.)
Ameaçando uns e cedendo mansamente a outros, não se vai governar o País. (Vejam a importância deste fato até mesmo para nós, de esquerda e extrema-esquerda!)
A direita desgoverna.
Chegamos a um ponto em que não podemos mais chamar a direita de direita, mas de direitalha.
“Eles aceitam as putas, os gays, as lésbicas, mas eles não aceitam os negros, não adianta, eles não aceitam os negros. Quando o negro tem grana, aí eles toleram.”
– Uma senhora na fila. Aí, eu pensei : ora, talvez só tenham aceitado os LGBTs (e até mesmo as mulheres!) quando viram que eles tinham renda e grana também. Money é o que conta. Nessa sociedade, não importa o valor, mas o preço das coisas e das pessoas. Entretanto, mesmo com grana, o negro é menos tratado do que todos esses.
Shakespeare foi tantos homens que mal sabemos alguma coisa de concreto a seu respeito – mas Ricardo III insinua que faz o papel de muitos e Iago diz: “não sou o que sou”. Hermann Hesse escreveu, numa página que já me esqueço, que um único homem abarca a humanidade inteira. Whitman, num de seus versos famosos, afirma que é contraditório, que é imenso, que há multidões dentro de si. O maníaco Charles Manson (que não merecia estar nessa enumeração) responde, encolhendo os ombros num vídeo viral do YouTube, depois de caretas múltiplas diante do ingênuo entrevistador oculto que quer saber “essencialmente” quem ele é: “Nobody, I’m nobody.” Eu, nas horas finais dessa madrugada, sou (ou penso ser) simplesmente Fernando, único, indissociável! Já me bastam os meus próprios fantasmas!… Não quero agora falsear, pensar em princípios budistas nem mesmo entrar nesses desvarios borgeanos… Não quero, como aquele outro, meu xará além-mar, depurar minha veia poética em seres de linguagem, em heterônimos vários desapegados de mim… Não, não neste momento, onde quero ser eu! Entre fascinado e cansado, rindo de mim mesmo ou amargando minha própria angústia, relembro da ilusão do próprio verbo “ser”, que não existe no tupi, nem no japonês, nem no hebraico, e que no russo é oculto… Minha gata se aproxima – “ser” apartado de mim! -, deita em minha perna nua, à mostra por fora do meu roupão, e adormece; apesar de sua personalidade, ela não sabe o que é a morte, não tem passado, não tem futuro, vive unicamente no presente, logo é eterna. Eterna?… Ah! E o que significa ser eterno? E o que significa ser?!… Recordo automaticamente o pensamento de Schopenhauer em seu mundo de vontade e representação, para quem um gato é todos os gatos: “Sei muito bem que qualquer um poderia me acusar de louco se eu seriamente assumisse que aquele gato brincando no gramado neste exato momento é ainda o mesmo que pulava e brincava há trezentos anos atrás, mas também sei que é um absurdo muito maior acreditar que aquele gato de hoje seja um gato inteiramente diferente daquele de trezentos anos atrás.” Chega!… O esforço, entendido por Espinosa numa de suas preposições, de que cada coisa quer perseverar em seu ser, é isso que há em mim, é isso que há em mim agora, entenderam bem?, sou, até onde sei, o Fernando que me coube, me agarro nisso, excessivamente individual, excessivamente individual, concreto; mas Espinosa não foi aquele que intuía e reivindicava o panteísmo?…
Olho a porta. Silhueta encostada no batente. É a Morte? Talvez depois dela eu compreenda tudo isso!… Não – com tantas asas esqueci do que tivemos há poucos minutos. Com voz de canastrão, lanço a pergunta no ar:
– De qual canto da minha alma é que surge a tua presença?
A silhueta dá um passo e acende a luz: configuração excessivamente individual e apartada – outra pessoa que não sou eu. Na escuridão, arquetípica, inconsciente, junguiana, somos todos um só. Debaixo da luz não sou o outro, mesmo que seja humano como eu, mesmo que seja (ou não) do mesmo sexo: diante daquela nudez toda na minha frente, não ligo para minha vasta e prodigiosa memória, onde a frase de John Donne – “Nenhum homem é uma ilha” – ecoa, aparece mas se dissipa, não me atinge neste momento. Sim, diante do outro encontrei eu mesmo, único, indissociável, singular, eu, euuuuuuu!
Mas novamente me confundem horror e maravilha ou simplesmente aceitação absoluta do mistério ou então pleno insight religioso quando minha companhia dá por encerrado o assunto, ao dizer simplesmente, num sussurro em tesão:
– No nosso orgasmo esquecemos de nós: la petite mort…
Aqui no hotel do Rio, de repente me bateu forte angústia. Afinal, o que são os hotéis senão um simulacro da própria vida?! Passagens e deixares constantes sem muitas razões ou motivos… Pensei em escrever, em transmutar em arte ou palavras, mas não saiu nada. Fundo do poço existencial. “Tampa no esforço imaginativo”, escreveu Álvaro de Campos. Súbita, uma tristeza… Foi quando surgiu da rua a voz de um vendedor ambulante absolutamente simpático falando em alto e bom som:
Olha, a minha rosca tá pegando fogo…
Olha, paga três reais pra comer minha rosca…
Gente, a minha rosca é docinha…
Varei a madrugada e fui dormir de manhã, mas meu sono foi interrompido várias vezes pelo grito de um desses moradores de rua que as pessoas chamam de nóia. Aqui na Santa Cecília (e sobretudo onde estou, no Largo de Santa Cecília acessível ao metrô, entre o centrão e Higienópolis), tem de tudo, garotos estilosos, madames, nóias. É um cara que vez ou outra passa por aqui gritando verdades e coisas muito lúcidas, mesmo que seja muito, muito chato e inconveniente. Diz coisas do tipo: Vocês só ligam pra aparência… Vocês não sabem de nada… Eu sou um cara íntegro num mundo corrupto…
Hoje ele passou umas três vezes aqui. Os policiais o conhecem e o ignoram.
Simpatizo com essas figuras que lembram os personagens loucos da literatura russa ou os desviantes dos filmes do Tarkóvski.
Ele não dá impressão de ser bêbado, pode ter problema com drogas, mas com certeza tem problemas mentais.