Eleições municipais de 2020 – apontamentos conjunturais e estruturais:
– Antes de mais nada, as eleições, tal como estão postas, ou seja, sob o capital, com regras eleitorais antidemocráticas e poderio econômico (fazendo com que a esquerda tenha que encontrar alternativas – assim como Guilherme Boulos, mais de 1 milhão de votos na cidade de São Paulo!, o fez com as redes sociais), não passam de pleitos para a administração do Estado burguês. Nada mais do que isso. Um candidato, por mais orgânico e unido à base social, deixa de fazer parte de sua classe ao entrar na burocracia estatal. É claro que as políticas de um governo nos afetam, é claro que um governo pode ser benéfico ou prejudicial e que as candidaturas se diferem, mas é a superestrutura institucional que se mantém intacta, que captura e terceiriza nossa autonomia e que deve ser alterada: só a construção de uma vanguarda popular e revolucionária será capaz de dar o real sentido “democrático” e orgânico das eleições, para que o governo sobre pessoas seja substituído pelos Conselhos sobre coisas e condução dos processos de produção (tal como escrevia Engels), superando a política pública, o assistencialismo e mesmo o reformismo. (Ainda sobre Engels, é preciso ler o importante prefácio que ele escreveu em seu ano final de vida, em 1895, no As Lutas de Classes na França, em que retoma toda sua luta com Marx – já morto há décadas – desde 1848, ano do Manifesto, avaliando que muita coisa tinha mudado e que tanto o direito ao voto universal quanto a campanha eleitoral eram importantes armas para a classe trabalhadora e para os socialistas, desde que não fossem fins.)
– Jair Bolsonaro não é “líder” de coisa alguma, Jair Bolsonaro não é nem mesmo um fenômeno de massas, conforme os resultados nos mostraram explicitamente. Foi dizimado. Ele perdeu feio, como, aliás, já perdeu em todos os seus apoios internacionais. Todos os seus candidatos derreteram, não arrancaram, perderam, quiseram escondê-lo da campanha, evitaram seu tom estúpido e boçal de extrema-direitalha. Um vexame. Tornou-se o tóxico dos tóxicos, o maior pé-frio do país. Envergonhado, teve de apagar uma postagem em que recomendava uma lista de candidatos. (Em SP, ele perdeu definitivamente, qualquer que seja o resultado do segundo turno para a prefeitura. O RJ é um caso à parte, deplorável, e merece uma profunda refundação que mitigue o evangelofascismo e o milicianato.)
– Além do continuísmo comedido, o grande vencedor quantitativo destas eleições foi o Centrão – DEM (26 cidades)/MDB (23 cidades)/PP (7 cidades) -, sobretudo na figura do DEM. O que é o Centrão? É uma direita sem ideologia, sem convicção, boa parte da qual apoiou – principalmente no Congresso – FHC, Lula, Dilma, Temer e agora Bolsonaro, sempre à procura de cargos e emendas, por isso é chamado de “fisiologista”, e só busca se manter na burocracia. Já domina a maior fatia da política brasileira e é decisivo para um governo continuar ou não. É um problema presente e para os próximos anos a ser resolvido para quem reivindica a grande política e deseja grandes transformações.
– O PT – que tem maioria de deputados federais -, mesmo sendo o partido com maior número de candidatos para o segundo turno (disputa 15 de 57 cidades, e venceu 178 cidades), desapareceu bastante do cenário municipal geral se compararmos com eleições anteriores a 2018 e 2016, ao mesmo tempo em que o PSOL se projetou em capitais e ganhou fôlego nas demais cidades de médio e grande porte. Na minha cidade natal, Santos, o candidato do PSOL passou o Partido “Velho” e outras velharias, até o MDB, isto é, com uma campanha mísera, ultrapassou empresários que colocaram muito dinheiro em suas campanhas. Em Santos, o PT – cuja geração é mais de esquerda e mais próxima da base social do que o PT de outras regiões do país – também surpreendeu e, mesmo diante do antipetismo, conseguiu o terceiro lugar com um candidato negro. Em São Paulo, porém, diante da chapa Boulos/Erundina, o PT foi fim de festa. Ainda é um partido forte, mas só tem conquistado os grotões. O que explica o desaparecimento generalizado do PT e a projeção populacional do PSOL? Não cabe apenas a justificativa da insistência midiática da “polarização” entre Lula e Bolsonaro, embora ela também conte. O resultado parece contraditório, já que o PSOL é ainda excessivamente pequeno-burguês, enquanto o PT tinha logrado ser um partido de massas. Não preciso citar os traumas pelos quais o partido passou nos últimos anos, que foram decisivos para alguma derrocada e declínio de projeto nacional. Trata-se da necessidade de uma radicalização diante de sistemas falidos e insatisfatórios – e de saber quem melhor desempenhará tal radicalidade, não uma radicalidade vulgar (extrema-direita), mas consistente e o mais orgânica possível de acordo com os anseios de transformação da população. É que, na ideologia, nos discursos e no programa partidário, a realidade se inverte: o PT desempenhou nos últimos anos um falseamento da representação cidadã, possui uma cúpula eleitoreira (que deveria ser expulsa pela militância socialista, fosse esta consciente e alfabetizada na teoria), se acoplou ou formou resquícios do “coronelismo” no Nordeste, possui no sudeste uma forte ala jurídica, excessivamente entranhada no sistema de Brasília, e só os seus nomes mais orgânicos e próximos da base social, que não se deixaram levar por alianças e conchavos, é que ganharam alguma confiança, enquanto o PSOL recupera a “pureza” do início do PT e construiu a imagem de partido “combativo”, “coeso” na hora de votar no parlamento, “raiz”, que não se dobra à direita e nem dá as mãos para a centro-direita, é tido pela mídia como “radical” , ainda que, na verdade, preserve a propriedade privada dos meios de produção e, pelo que tenho notado, em nada tem mostrado que irá se diferenciar estruturalmente do PT para além de política pública e programas sociais. Outro motivo, dessa vez geracional: o PSOL é constituído por uma juventude – que cresceu nos governos do PT – disposta a mudar séculos de status quo, enquanto os “caciques” do PT são ainda a geração que, tendo derrotado a ditadura, manteve-se conciliatória e ingênua em relação à Constituição liberal de 1988.
– Houve uma explosão bem-sucedida para a vereança e prefeitura de negros, feministas, indígenas (ao menos 10 cidades), LGBTQIs, etc. É reflexo da sociedade brasileira, que começa amplamente a incluir a maioria, que paradoxalmente são os excluídos. É preciso, no entanto, senso crítico: incluí-los onde e como? O debate sobre o “identitarismo” é menos importante do que o debate sobre os limites institucionais e sobre a igualdade socioeconômica, o verdadeiro objetivo comunista. A representatividade por si só envolve uma cooptação do mercado, e nada mais. A revolução pode estar no gênero e no sexo e na cor de pele e na etnia, mas está sobretudo na classe social, na contradição das lutas de classes e na organização e solidariedade de classe. Eis um dos grandes legados do marxismo: a centralidade da categoria trabalho, que envolve todo o povo pela emancipação. Trata-se de elucidar que o capitalista é que continua sendo o heteronormativo, eurocêntrico ou estadounidocêntrico, branco, monoteísta, etc., que é do capital que surge a reprodução das mazelas estruturais e ideológicas, daí a necessidade de soldagem e unidade de classes em torno da teoria revolucionária.
– O número de brancos, nulos e de abstenções (este último por conta dos cuidados da pandemia), que tem sido crescente ao longo dos anos, foi expressivo em todo o país, tendo ultrapassado, em diversas cidades, a quantidade dos eleitos, e merece – merecem sobretudo os votos brancos e nulos, em que as pessoas, ao contrário das abstenções, saem de casa só para apertar tais teclas – uma pesquisa própria, séria, aprofundada, para que saibamos os motivos principais desse fenômeno, os matizes, as faixas etárias e as classes sociais. Existem alguns motivos já muito falados – a insatisfação com a política estrito senso, justificável por causa do excesso da “pequena política” de que falava Gramsci, e também por conta do acúmulo excessivo de notícias negativas, o niilismo antipolítico, etc. etc. etc. Trata-se de saber como resgatar esses cidadãos para uma construção transformadora, fora do “mais do mesmo”.