“[…] Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não fique à mostra como as molas que saltam de um sofá. […]”
– Andrei Tarkóvski, Esculpir o Tempo, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 56.
Obs. por Fernando Graça: …Marx? Ou terá sido Engels, que, em suas correspondências a escritores (veremos trechos mais abaixo), as quais me valho vez ou outra como referência para marxismo e estética, tratou da tendência na arte?
Em cerca de 2016-2017, utilizando o extinto endereço eletrônico www.fernandograca.xyz, escrevi texto que não consigo encontrar em meus arquivos. Porém, o recordo quase inteiro.
Hoje mais amadurecido, volto ao seu pensamento aqui.
Tratava acerca de um valioso ensinamento artístico em Esculpir o Tempo (1985), livro do cineasta russo/soviético Andrei Tarkóvski (1932-1986), uma de minhas obsessões naquela fase adolescente e pós-adolescente. Nesse livro, que depois descobri estar disponível para alugar na Biblioteca Pública Municipal Sérgio Milliet do Centro Cultural São Paulo, Tarkóvski critica fortemente o famoso quadro Madona Sistina (1512), de Rafael Sanzio (1483-1520), embora não deixe de chamá-lo de “o gênio de Urbino”, e, em contraposição, apresentava-me um pintor extraordinário, o veneziano Vittore Carpaccio (1465-1525/1526), contemporâneo de Rafael, e que eu não conhecia (que, de fato, é pouco conhecido). Suponho, inclusive, que o cineasta provavelmente soube dele em seu triste período de exílio (por motivos sórdidos de sicofantas politiqueiros, entre os quais o de ser preterido por cineastas menores) da União Soviética na Itália. O meu texto referido aludia jocosamente ao fato de que de carpaccio eu conhecia apenas o prato culinário italiano…
Este ensaio que ora escrevo se deve ao fato de, recentemente, eu ter espiado exposição multimídia no Museu de Arte Brasileira da FAAP, intitulada Magister Raffaello – “Uma viagem maravilhosa para o Renascimento italiano”. (Fui especialmente para ver outra exposição, brasileira, “Um Celereiro de Artistas“, em especial um quadro de tamanho grande que fotografei, Camisa Verde, do meu conterrâneo, o grandioso artista e comunista Mário Gruber, e não me arrependi de observar minuciosamente o seu talento em fazer lantejoulas tão realistas, mas isto e outras coisas mais são assunto para outro ensaio…)
A crítica de Tarkóvski, de adjetivos ásperos, é convincente, mesmo que só até certo ponto:
“[…] Quem ainda não escreveu sobre Rafael e a sua Madona Sistina? A idéia do homem, que finalmente conquistou sua própria personalidade, em carne e osso, que descobriu o mundo e Deus em si mesmo e ao seu redor depois de séculos de adoração do Deus medieval, cuja contemplação o privara da sua força moral — diz-se que tudo isso encontrou concretização perfeita, coerente e definitiva nessa tela do gênio de Urbino. De certo modo, é possível que assim tenha sido. Pois, a Virgem Maria, na configuração do artista é, de fato, uma cidadã comum, cujo estado psicológico, tal como o vemos refletido na tela, tem sua base na vida real: ela está temerosa pelo destino do filho, oferecido em sacrifício aos homens. Embora tudo se dê em nome da salvação destes últimos, ele próprio está capitulando na luta contra a tentação de defender-se deles.
“Tudo isso está, de fato, vivamente “escrito” no quadro — em minha opinião, com uma clareza excessiva, pois as idéias do artista oferecem-se ali à leitura: tudo por demais inequívoco e definido. Irrita-nos a tendenciosidade doentiamente alegórica do pintor, que paira sobre a forma e ofusca todas as qualidades puramente pictóricas do quadro. O artista concentrou sua vontade na clareza das idéias e na conceituação intelectual da obra; para isso, porém, pagou seu preço, pois a pintura é débil e insípida. […]” (ibidem, p. 54)
(Escrevi “até certo ponto”, porque é preciso considerar que todo movimento seminal possui a tendência inicial de estabelecer seus manifestos e intenções pela necessidade de anunciar-se e marcar presença… Neste aspecto, a Madona Sistina de Rafael, cuja protagonista, pobre, despojada e simples, que parece saltar dum filme de Pasolini, tem, sim, importante destaque histórico! Não se pode também esquecer que o próprio Tarkóvski, dentro da sua tentativa de transplantar o espírito observacional, gestáltico dos haicais para o cinema, tampouco escapou de forçar, em certas cenas, intenções explícitas, sobretudo as excessivamente religiosas-ortodoxas ou até misticistas, que representam enorme retrocesso com relação à história de seu país e o fazem hoje ser deturpado por conservalóides do cristianismo, outras intenções até pretenciosas demais e pseudointelectuais, quando bota frases supostamente filosóficas em certas personagens, que não convencem, contudo toda essa problemática seria tema para outro ensaio…)
O zeitgeist do Renascimento, conforme Tarkóvski supracitado descreveu em linhas gerais, anunciou a imanência material no lugar da transcendência. Engels, em Dialética da Natureza (1883; cf. São Paulo: Boitempo, 2020, Introdução), um livro deixado por terminar e muito hesitante pelas polêmicas suscitadas entre sociedade e ciências naturais, mostrou que a Renascença — “a época que precisou de gigantes e produziu gigantes“, segundo ele — possibilitou polímatas admiráveis (como Leonardo da Vinci), porque, malgrado o feudalismo caduco de então (isto sou eu quem faço questão de frisar), o artista-cientista-erudito não havia ainda sido escravizado pela divisão capitalista do trabalho, uma vez que o capitalismo engatinhava e começava a ascender (recordo a frase de Marx no capítulo IV do primeiro livro de O Capital, que está aqui próximo de mim entre meus livros: “O comércio e o mercado mundiais inauguram no século XVI a moderna história do capital“); ou seja, com a hegemonia e a implementação em larga escala da divisão do trabalho, que serviram para otimizar a produção industrial e acelerar a moderna acumulação, os sucessores dos polímatas — incluindo nós — foram submetidos a um sistema limitante e unilateral. Essa importante tese estrutural de Engels será retomada por Lukács na década de 1930 para a seção “Tragédia e tragicomédia do artista no capitalismo” do ensaio “Tribuno do povo ou burocrata?” (presente nas edições brasileiras Marx e Engels como historiadores da literatura e também em Marxismo e teoria da literatura). Igualmente merece nota que, já em A Ideologia Alemã (cf. São Paulo: Boitempo, 2007, págs. 378-382, “Organização do trabalho”), série de escritos inovadores de 1845-1846, publicados só em 1932, Marx e Engels, em brainstorming mútuo, desmascaram os resquícios burgueses/individualistas da mentalidade de Stirner sobre a propriedade e o gênio (o “Único”, para se referir justamente a um Rafael), não só fazendo ver que tais indivíduos (da Vinci, Rafael, Mozart, que teve seu Réquiem terminado postumamente por outro músico, etc.) não criavam apenas solitariamente e distanciados da sociedade, dependiam, inclusive para os materiais concretos necessários às suas atividades práticas, da organização socioeconômica de sua época, do intercâmbio disponível e de muitos outros homens interligados à rede social produtiva, como também sugerem que, superada a divisão capitalista do trabalho, “Numa sociedade comunista não há nenhum pintor, mas no máximo, homens que, entre outras atividades, também pintam” (ibidem).
Voltemos ao nosso tema principal… Para reivindicar a “vontade e energia” duma “lei de intensidade que me parece constituir uma condição fundamental da pintura” (Esculpir o Tempo, ibidem, p. 54), Tarkóvski nos apresenta Carpaccio em contraposição a Rafael:
“Em sua pintura, [Carpaccio] resolve os problemas morais que assediavam o homem do Renascimento, fascinado por uma realidade repleta de objetos, pessoas e matéria. Ele os resolve através de meios verdadeiramente pictóricos, muito diversos daquele tratamento quase literário que confere à Madona Sistina seu tom de alegoria, de sermão. A nova relação entre o indivíduo e a realidade exterior é por ele expressa com coragem e nobreza — sem nunca cair no excesso de sentimentalismo, sabendo como ocultar as suas inclinações, a sua vibrante alegria frente à emancipação. […]” (ibidem, págs. 54-55)
Tarkóvski tem razão aqui. Em matéria de conjunto da obra (muito além da Madona Sistina, porém), Carpaccio espelha (para usar termo da estética lukácsiana) os novos tempos da Renascença de maneira mais fidedigna do que Rafael por pulverizar pelas telas os elementos modernos (ou proto-modernos) de seu tempo, quando a cidade ia sendo mais habitada do que o campo. São quadros (conferir as imagens que coloquei ao final deste texto com frases de Tarkóvski que pincei deliberadamente) de acontecimentos histórico-sociais (que dissipam o sagrado da religiosidade dos temas cristãos), viagens materiais (não à toa, época das grandes navegações), retomada integral e adaptação ao seu tempo de mitos pré-cristãos, pagãos, e inúmeras ações e relações humanas cotidianas em dezenas e centenas de tipos e classes sociais estratificadas em ampla composição. A sociedade em movimento e fluxo. Vontade e energia da tal “lei de intensidade” desejada! Ao sopesar as obras de ambos, não seria incorreto afirmar que Carpaccio é muito mais “materialista” e coletivista: está interessado e mergulhado nos assuntos terrenos, enquanto que em Rafael, em que pesem a Madona Sistina ou mesmo A Escola de Atenas, notamos os pés flutuando acima do chão, os resquícios transcendentais da religião, mesmo que sob novas formas e olhares mundanos. Além do mais, arrisco a dizer que Rafael, que tanto influenciou o século 18, é o clássico/classicista por excelência, a buscar o ideal harmônico da serenidade e da beleza, enquanto que em Carpaccio o moderno se antecipa diante de nossos olhos.
Guardadas as devidas diferenças, faz lembrar a crítica do amoroso modernista Mário de Andrade ao grande Machado de Assis, na ocasião do centenário de seu nascimento, comemorado em 1939 (v. Mário de Andrade, “Machado de Assis” In: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins, 1974, p. 103). O autor de Macunaíma e pesquisador popular reconhece a inquestionável grandeza de Machado em diversos níveis e sentidos (só faltaria aos modernistas de 1922, que nos levaram a uma “segunda independência”, estudo cavado do surpreendente pioneirismo experimental da prosa machadiana, conforme Décio Pignatari, Haroldo de Campos e outros fizeram décadas depois noutro grande momento cultural do Brasil…), e que escrevera “apaixonante obra e do mais alto valor artístico, prazer estético de magnífica intensidade que me apaixona e que cultuo sem cessar”, “deixou, em qualquer dos gêneros em que escreveu, obras-primas perfeitíssimas de forma e fundo”, porém argui que era escritor encastelado, que Lima Barreto, João do Rio, França Júnior conseguiram muito mais reter o burburinho da vida do Rio de Janeiro, tendo também falhado em captar a “alma brasileira” como o fizeram Gonçalves Dias, Castro Alves, Aleijadinho, Almeida Júnior, Farias Brito e outros. Isto tudo é fato, ainda que Machado de Assis tenha sido cronista profícuo, e foram justamente o universal e a influência eurocentrista agentes de sua consagração estrangeira; por outro lado, ainda bem que nos deixou em literatura, sobretudo nos contos e romances, o retrato das nossas classes médias e dominantes indolentes, servindo para entendermos melhor (reforçados pelos estudos sociais machadianos de Alfredo Bosi, Roberto Schwarz, Antonio Candido, Helen Caldwell, John Gledson et al) as causas dos problemas do Brasil sob este ângulo alto e direto, mas jamais conivente, sempre crítico e mordaz, que nenhum outro autor do século 19 nos deixou.
Carpaccio captou o burburinho e a “alma” de seu tempo renascentista bem mais do que grande parte de seus contemporâneos. Embora Tarkóvski não cite qualquer exemplo de quadro do elogiado que possa nos fazer vislumbrar suas palavras, rápida pesquisa havia me levado, à época, a uma galeria de quadros citadinos com turbas, eventos e movimentações, construções, etc., que de fato fascinam qualquer cineasta autêntico diante de grandes cenários e elencos. De repente, um quadro em específico chamou minha atenção, e, desde então, logo converteu-se numa das minhas pinturas preferidas (impossível não citar, nesta lista em construção, também Ovídio entre os citas, de Delacroix, e vários outros, obviamente muitos brasileiros):
Não seria, também este quadro, um panfleto ou cartaz?!… O cadáver dessacralizado de um eurocêntrico Jesus (e sem auréola!), entre ossos e esqueletos, “espera” que os coveiros preparem sua tumba. Um velho, apoiando uma das mãos no rosto, o olha com indiferença (faz lembrar os anjos-crianças da Madona Sistina, que também direcionam nosso olhar à figura principal), afinal, é mais um que morre dentre tantos outros. A dor e a desolação das duas mulheres no canto, cenicamente unidas, uma de cabeça para cima, a outra com a cabeça para baixo, parecem ser o único eixo a lembrar da gravidade do ocorrido. Isto ocorre nos primeiros planos. No fundo, com exceção do caminho à esquerda que nosso olhar percorre até chegar às tortuosas cruzes de madeira na parte superior, a vida continua com variadas ações de variados tipos sociais em meio à despojada paisagem: alguém toca um instrumento de sopro, há outras tumbas, cenas pastorais, transeuntes, etc. Por fim, cabe dizer que esse quadro guarda cordão umbilical com outro quadro ainda mais impressionante, O Corpo do Cristo Morto na Tumba (1520-22), de Hans Holbein, o jovem, que, séculos depois, no século 19 foi gatilho para Doistoiévski, ex-revolucionário e cristofrênico convertido, ter sério ataque de epilepsia quando diante dele esteve… (Para uma próxima contraposição: Tchernichévski versus Dostoiévski, só que mais aprofundada.)
Entanto, pelas descrições oferecidas por Tarkóvski, é certo que este pensava em gama de outras pinturas, as quais reuni de acordo com meu gosto e agora elenco abaixo, após reproduzir suas argutas palavras finais acerca da obra de Carpaccio. Observem a variedade de acontecimentos e ações e figuras no primeiro e segundo e demais planos das pinturas do mestre veneziano. Será injusto não fazer o mesmo com Rafael, porém de outro modo penso que expor mais obras suas não advogaria em seu favor nesta contraposição, e comparações tendem à superficialidade e ao desrespeito à singularidade de um artista.
“[…] As composições cheias de figuras de Carpaccio têm uma beleza surpreendente e misteriosa. Talvez seja até mesmo possível chamá-la ‘a Beleza da Idéia’. Diante delas, tem-se a perturbadora sensação de que o inexplicável está prestes a ser explicado. Momentaneamente, é impossível compreender o que cria campo psicológico em que nos encontramos, ou fugir ao fascínio que se apodera de nós diante da pintura e nos põe num estado muito próximo do medo.
“[…] Podem se passar horas antes que comecemos a perceber o princípio da harmonia que rege a pintura de Carpaccio. No entanto, assim que o apreendemos, permanecemos para sempre sob o encanto da sua beleza e do nosso arrebatamento inicial.
“Quando o analisamos, descobrimos que o princípio é extraordinariamente simples e expressa, no mais alto sentido, a base essencialmente humana da arte renascentista, em minha opinião, com muito mais intensidade do que Rafael. A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem “incidental”. O círculo se fecha, e ao olharmos para a tela de Carpaccio, nossa vontade acompanha, dócil e involuntariamente, o fluxo lógico de sentimentos pretendido pelo artista, voltando-se primeiro para uma figura aparentemente perdida na multidão, e depois para outra. […]” (Esculpir o Tempo, ibidem, págs. 55-56)
Tarkóvski, recordando Marx (fica a dúvida se a afirmação não seria de Engels), fecha a contraposição ressaltando a cautela de suas posições:
“[…] Não tenho a menor intenção de convencer os leitores da superioridade dos meus pontos de vista sobre dois grandes artistas, nem de estimular a admiração por Carpaccio em detrimento de Rafael. Tudo o que pretendo dizer é que, embora em última instância toda arte seja tendenciosa, que até mesmo o estilo seja comprometido, uma mesma tendência tanto pode ser absorvida pelas camadas insondáveis das imagens artísticas que lhe dão forma, quanto pode ser exageradamente afirmada, corno num cartaz, como é o caso da Madona Sulina de Rafael. Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não fique à mostra como as molas que saltam de um sofá. […]” (ibidem, p. 56)
Só mais um parágrafo final, que completa a questão da tendência na arte. Não se sabe até que ponto Tarkóvski era familiarizado com a obra marxiana, entretanto é possível que tenha havido um equívoco ao citar (sem rigor ou fonte) Marx, ao invés de Engels. Sabemos que a dupla não deixou um tratado estético, e sim escritos esparsos e laterais, formativos, mas, por exemplo, este último, em seus anos finais, já sem o companheiro de luta, ao estreitar correspondências com artistas, escritores socialistas e revolucionários, inclusive escritoras, cravou explicitamente: “Quanto mais permanecerem ocultas as opiniões do autor, melhor para a obra de arte. O realismo a que me refiro pode manifestar-se até mesmo a despeito das opiniões do autor” (trecho de carta a Margaret Harkness em abril de 1888, tradução minha). No seguinte trecho de outra carta, para Minna Kautsky, em 26 de novembro de 1885, colhida do Marx & Engels Collected Works Vol 47, Engels, comentando o romance Die Alten und die Neuen escrito pela destinatária, e que, a despeito de Balzac ser simpático à burguesia, confessando que o admirava como escritor pela criação realista de tipos sociais, explica melhor tal posicionamento: “[…] The source of this failing, however, may be discovered in the novel itself. In this book you obviously felt impelled to take sides openly, to testify to your convictions before the whole world. Now that you have done so, it is something you can put behind you and have no need to repeat again in the same form. I am not at all opposed to tendentious poetry as such. The father of tragedy, Aeschylus, and the father of comedy, Aristophanes, were both strongly tendentious poets, as were Dante and Cervantes, and the best thing about Schiller’s Kabale und Liebe is that it was the first politically tendentious drama in Germany. The Russians and Norwegians of today, who are producing first-rate novels, are all tendentious writers. But I believe that the tendency should spring from the situation and action as such, without its being expressly alluded to, nor is there any need for the writer to present the reader with the future historical solution to the social conflicts he describes. Furthermore, in present circumstances, the novel is mainly directed at readers in bourgeois — i.e. not our own immediate — circles and, such being the case, it is my belief that the novel of socialist tendency wholly fulfils its mission if, by providing a faithful account of actual conditions, it destroys the prevailing conventional illusions on the subject, shakes the optimism of the bourgeois world and inexorably calls in question the permanent validity of things as they are, even though it may not proffer a solution or, indeed, in certain circumstances, appear to take sides. Your detailed knowledge and your wonderfully true-to-life descriptions, both of the Austrian peasantry and of Viennese ‘society’, provide ample material for this, and you have already shown in Stefan that you are also capable of handling your protagonists with a nice irony which testifies to the command an author has over his creatures. But now I must desist, otherwise you’ll think me altogether too prolix. […]” Mas tal escolha artística delineada por Engels contra a tendência (que suscitará, no século posterior, outra contraposição, desta vez no interior do próprio marxismo: Brecht x Lukács), depende muito do público-alvo (da classe) a que o artista se dirige, conforme disse-me Mauricio Puls, certa vez, em longa troca de mensagens que tivemos: assim, neste complexo século 21, embora devamos abalar as certezas da axiomática capitalista sem necessariamente apresentarmos a solução inequívoca (ou até panfletária, portanto ingênua ou oportunista) dos conflitos histórico-sociais espelhados na arte, tomando lados tendenciosos que suplantam a força própria das situações, figuras e personagens, ainda que importantes aos escritos políticos de não-ficção, ainda que devamos frustrar o falso otimismo da ordem da manipulação e da alienação diárias, dos desvios de foco, e mostrar a decadência tardia da sociedade burguesa às classes dominantes e seus representantes, penso que um público consciente, despossuído da propriedade privada dos meios de produção, trabalhador e nada burguês demanda um Brecht, um Plínio Marcos (outro conterrâneo meu) e correlatos, sob pena da revolta transformadora vinda debaixo, do nosso caldo cultural à lá Gramsci, da agitação cultural, da ameaça ao status quo, da denúncia, da conscientização revolucionária e de outras categorias que nos são imprescindíveis à arte não serem potencializadas.
Lukács (Conversando com Lukács, Instituto Lukács, São Paulo, 2014, p. 51), em seus anos finais, disse ser “apaixonante problema técnico de atelier investigar que coisa pode produzir um poeta de hoje com a linguagem de Gôngora”. Trocar por Sá de Miranda ou Camões.
Na propositiva acima, obviamente influem ressignificação e inovação, que se inserem numa tradição sem a ela obedecer integralmente ou fazer catequese: revolucionar.
…Descoberta que nas mãos de outro vira outra coisa, ambas originais em sua época, e de preferência “perenes”…
O “perene” na arte – lembrar dos apontamentos inconclusos de Marx (nos Grundrisse, escritos de gênio) sobre o fascínio “perene” da arte grega em nós e Shakespeare (até onde se sabe, infelizmente, ele não chegou a escrever essa parte ou se perdeu ou ainda não foi descoberta, apenas a anuncia, embora todo marxista saiba da sua paixão pela impactante peça Titus Andronicus e a cena sobre o poder do ouro/dinheiro, citada nos Manuscritos Econômico-Filosóficos e, décadas depois, no próprio livro primeiro de O Capital).
…Influi também o tema já superado entre forma e conteúdo (ou forma-conteúdo, ou ainda conteúdo-forma), que o próprio Lukács, admitindo que via o conteúdo como principal, em detrimento da técnica (quando seria mais correto encarar a dialética de ambos os termos), trata de tratar. Falsa dicotomia; relação dialética. Resgatar o que a semiótica (um dos capítulos de Semiótica e Literatura, de Décio Pignatari, exatamente acerca) pode contribuir para isso. E o pensamento certeiro de Maiakóvski a respeito.
O conflito entre Brecht e Lukács hoje, século 21, já que o segundo dos dois pensava numa continuação do realismo do século 19 para o 20, enquanto o primeiro enxergava defasagem no 19 e novas inserções no 20. A solução: diferentes públicos para diferentes apetites.
A contribuição dialética de Gramsci, a partir de Hegel (não sem Marx): dupla operação/estratégia: é preciso criar uma nova culturarte, seja como agitação ou antecipando a nova sociabilidade, e que só é plenamente possível a um status revolucionário se criticar a cultura vigente e extrair/conservar pontos positivos dela, por consequência, superando-a (= “síntese”).
Estética enquanto múltiplas determinações dos homens encarnados na arte…
Estética: menos legislação, mais observação/apresentação da estrutura interna duma obra artística…
Trata-se, antes, de decidir se é possível uma “estética” (ou Estética) hoje. E se o sinônimo de tal decisão/empreitada é legislar sobre arte. Não que não seja impossível, mas instigantes autores por vezes preferem outro termo — certamente mais aristotélico –, imediatamente ligado a uma ação ou relação bem mais concreta de fazer e práxis: ao invés de estética(s) — palavra de filósofos e não necessariamente de artistas –, poética(s)…
Certa passagem de A Ideologia Alemã (Marx e Engels), refutando Max Stirner e seus equívocos acerca da propriedade privada, alerta sobre a mentalidade burguesa no tocante ao individualismo corriqueiro a respeito do artista criador (o exemplo dado é Rafael), costumeiramente tido como gênio solitário que leva todos os créditos, e lembra da enorme cadeia ou rede socioeconômica de pessoas — que antecede ou está presente no processo ou depois — de uma obra artística, sem a qual ela não existiria. Tal como a comida em nossa mesa, que não brotou do nada tampouco nela, muito menos no supermercado ou na feira. Outra passagem desse livro seminal, marxiano-engelsiano, trata, ainda que de maneira lateral, o fazer artístico por todos numa sociedade comunista em que a divisão/o antagonismo de classes foi devidamente abolida.
O ato de escrever e sua angústia, que não é de hoje, mas acrescenta-se à tal angústia-base a angústia da derrocada das ideologias (inclusive estéticas!) e a sensação (ao menos para aqueles que, como eu, seguem um percurso histórico) de que tudo já foi escrito (em forma-conteúdo): a insistência da inovação em face de um beco sem saída, e que tal inovação não vire solipsismo, mas, ao invés, arranque do branco do papel (ou de qualquer outra superfície) a exata palavra que possa nos “salvar” (?)…
A problemática do “romance” hoje, com ou sem proesia. Trata-se de decidir em minha obra se, neste caso, vale também a propositiva inicial do sangue novo introjetado num corpo (ou cadáver) antigo. (Sangue, ao invés de “roupagem nova”.)
Identificar, evitar, denunciar, extirpar, saber usar, pôr no lugar etc. os elementos fascistóides da linguagem. Ao contrário do que muito se pensa, o elemento fascistóide não é apenas militarismo, não são só palavras de ordem e comando, é, muitas vezes, bem mais sinuoso/ardiloso/corruptor do que isso. (E em que medida, na verdade, eram as simples palavras de ordem ou comando, bem antes disso, ancestrais?…) Diferenciação entre autoritarismo (que sabe onde pisa com o coturno) e fascismo (que, tal como disse Deleuze, é uma linha de morte de si e do outro).
Eu sou capaz de escrever linhas lindíssimas, de seivas que são entendidas antes de qualquer explicação junto ao pleno domínio da língua (eis o caráter significativo e enriquecedor duma proesia), porém os fantasmas vanguardistas me atordoam; súbito, no entanto, o treino em face de uma estética marxista exorciza de mim o abstracionismo (não é meio conservador?) ou a pura técnica (que não alcança o realismo), já datados também.
O realismo de cada tempo, inclusive deste, a partir do espelhamento do real através das obras de arte. Um pé atrás diante de tudo o que se afasta do real (irracionalismo).
Por que todo direitismo se afasta do real?!
Proesia não só em termos subjetivos, mas concretos – Galáxias, de Haroldo de Campos, teve “sacada” ainda hoje rara, já que escritores e poetas (não assim com os concretistas) geralmente nem preocupam com a materialidade da obra-livro: versos longos e edição com página obrigatoriamente pensada a partir do espaço de tais versos longos, de modo que quase pareçam, mesmo, linhas duma prosa (sem o ser).
A Poesia é resolvida com a inspiração, sobretudo quando se é poeta cultivado, e não qualquer escrivinhador; não assim com a prosa, que é como costurar (por isso devo muito à minha mãe costureira caseira meu ofício literário): na prosa, cose-se hoje e amanhã é preciso continuar de onde se parou, mesmo que não seja de onde se parou ontem.
Poetas são pest-sellers, enquanto há prosadores best-sellers, aliás, tais mais-vendidos são sempre em prosa. Entre outros motivos, porque a poesia corta o logos e não tem fim (quando se chega ao final, recomeça outra vez), enquanto a prosa, por sua própria estrutura interna, nos leva sempre a conclusões – assinale-se que a moldura ocidental não admite facilmente o que não tem explicação ou conclusão.
Proesia: poderosa indeterminação entre prosa e poesia, implosão de gêneros num jorro estilístico de signos carregados de significados ao máximo.
Proesia – que não seja mera masturbação, e sim sexo bom para as partes bissexuais homoeróticas.
Após muitas perguntas sobre esse termo que eu devo ter inventado, cumpre-me apresentá-lo, sobretudo neste momento de tantos desvios e deturpações com relação à teoria revolucionária. O termo é meu, mas não é nada de original ou de novo; trata-se da tese das “três fontes” e “três partes” do marxismo, ora criticada, ora reivindicada.
O marxismo não é monolítico; é, muitas vezes, oscilante, até contraditório e com divergências ferrenhas na própria luta ideopolítica. Porém, a teoria marxiana revolucionária é constituída por alguns princípios socioeconômicos, científicos, filosóficos e políticos básicos sem os quais não há marxismo de fato, porque tratam-se de descobertas seminais e próprias. (Por exemplo, sem a teoria do valor não se identifica a exploração do capitalismo; sem a concepção materialista da história, não se explica a estrutura e a superestrutura, etc.)
Engels
“Exposição mais ou menos coerente do método dialético e da ideologia comunista defendida por Marx e por mim, numa série de domínios bastante vastos“, segundo escreve o próprio Friedrich Engels, a obra Anti-Dühring (1877 – recomendo a edição da Boitempo), que formou a primeira geração de “marxistas”, já visava se opor às deturpações do que seria o socialismo; livro “contemporâneo” a Marx, que, mesmo estando ocupado com O Capital, revisou e ajudou sobretudo a parte de Economia Política. A ideologia marxiana é dividida por Engels (ainda que interdependentes entre si) em Filosofia, Economia Política e Socialismo. Abaixo, o índice do livro (a parte da Filosofia será posteriormente criticada por Lukács, na medida em que a dialética engelsiana, com enfoque demasiado na natureza, desconsideraria o homem, o que compromete a práxis revolucionária):
Seção I – Filosofia
111. Subdivisão. Apriorismo
IV. Esquematismo do mundo
V. Filosofia da natureza: tempo e espaço
VI. Filosofia da natureza: cosmogonia, física, química
VII. Filosofia da natureza: mundo orgânico
VIII. Filosofia da natureza: mundo orgânico. Conclusão
IX. Moral e direito: verdades eternas
X. Moral e direito: igualdade
XI. Moral e direito: liberdade e necessidade
XII. Dialética: quantidade e qualidade
XIII. Dialética: negação da negação
XIV. Conclusão
Seção II – Economia política
111. Teoria do poder. Continuação
IV. Teoria do poder. Conclusão
V. Teoria do valor
VI. Trabalho simples e trabalho composto
VII. Capital e mais-valor
VIII. Capital e mais-valor. Conclusão
IX. Leis naturais da economia. Renda fundiária
X. Da História crítica
Seção III – Socialismo
Seção 111 – Socialismo
I. Aspectos históricos
11. Aspectos teóricos
111. Produção
IV. Distribuição
V. Estado, família, educação
Kautsky
As três fontes do marxismo (1908), livrinho de Karl Kautsky, teórico importante para o marxismo e que tivera contato com Marx e Engels no século 19, mas que logo no século 20 será chamado por Lênin de “o renegado Kautsky” por lamentavelmente ter apoiado a guerra imperialista de 1914, já expunha as três fontes a partir do que fora organizado por Engels em Anti-Dühring, porém de maneira mais acessível. Kautsky expõe as três explícitas influências: a economia política inglesa (Adam Smith e David Ricardo), a filosofia alemã (sobretudo Hegel e Feuerbach) e o socialismo francês (que Engels, em seu célebre ensaio Do socialismo utópico ao socialismo científico, opúsculo retirado do Anti-Dühring, chamará de “utópico”, isto é, o socialismo de Saint Simon, Charlie Fourier, Robert Owen, mas no qual Marx, antes de fundar o socialismo científico, entra em contato teórico-prático em sua experiência com a classe trabalhadora francesa revolucionária).
Lênin
As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo (março de 1913), de Lênin, além do “Karl Marx (Breve Esboço Biográfico Seguido de uma Exposição do Marxismo)” de novembro 1914 são dois textos que estão nos meus 3 tomos calhamaços das Obras Escolhidas de Lênin, que, ao menos em termos teóricos, foi fiel a Marx, embora de maneira apressada e, portanto, um tanto quanto reducionista, mas trata-se do beabá: Lênin divide seu breve texto em materialismo e dialética (a partir de Hegel e Feuerbach), economia (Smith e Ricardo, mas sobretudo a teoria da mais-valia de Marx) e o socialismo enquanto lutas de classes. Para Lênin, enfim, há a concepção materialista da história, a teoria da mais-valia e as lutas de classes. Lênin cita duas obras importantes de Engels, Anti-Dühring e Ludwig Feuerbach, afirmando que são livros de cabeceira de “todo operário consciente”. O seu esboço biográfico de Marx seguido de uma exposição do marxismo é um tanto mais explicativo, inclusive sobre o valor.
Gramsci
(Aqui, temos um dos pontos em que Gramsci supera Lênin; há outros, e pretendo enumerar todos ou os principais em outro ensaio.)
Antonio Gramsci, que, nos Cadernos do Cárcere, dispõe de um laboratório terminológico e criptográfico original, refere-se (em parte para escapar da censura fascista, em parte para dialogar com outros autores que usavam tal termo) ao marxismo como filosofia da práxis. Defensor de uma filosofia de base historicista, Gramsci refutou todo e qualquer vestígio de metafísica, mecanicismo, economicismo vulgar e idealismo no tratamento do pensamento de Marx.
No § 33 (“Questões gerais”) e no § 46 do Caderno 11, Gramsci se contrapõe ao ensaio supracitado de Lênin (com quem militou enquanto membro do comitê executivo da Internacional Comunista e a quem define, nos Cadernos, como o “maior teórico moderno da filosofia da práxis”). Ele não descaracteriza as formulações expostas ali por Lênin, mas em Gramsci o tratamento do marxismo surge de maneira bem mais crítica, problematizada e complexa, porque suas condições são outras, enquanto que as preposições leninianas reforçaram a vulgata russa (promovendo parte considerável da vulgata marxista ocidental). Para Gramsci:
“Um estudo acurado da cultura filosófica de Marx […] é certamente necessário, mas como premissa ao estudo bem mais importante de sua própria e ‘original’ filosofia que não pode ser esgotada em algumas ‘fontes’” (Q 11, 70, 1.508 [CC, 1, 223]).
Gramsci parece se referir diretamente ao opúsculo de Lênin:
“Uma concepção muito difundida é a de que a filosofia da práxis é uma
pura filosofia, a ciência da dialética, e as outras partes são a economia e a política; daí se afirmar que a doutrina é formada por três partes constitutivas, que são ao mesmo tempo o coroamento e a superação do mais elevado nível que, por volta de 1848 [data das revoluções de 1848 e do Manifesto Comunista], tinha atingido a ciência das nações mais desenvolvidas da Europa: a filosofia clássica alemã, a economia clássica inglesa e a atividade e a ciência política francesa. Essa concepção – que é mais uma investigação genérica das fontes históricas do que uma classificação nascida do interior da doutrina – não pode se contrapor, como esquema definitivo, a qualquer outra organização da doutrina que seja mais adequada à realidade” (Q 11, 33, 1.448)
Essa “outra organização” é exatamente a filosofia da práxis.
Voltando à “cultura filosófica de Marx” citada por Gramsci, (Caderno 11, § 25):
“A filosofia da práxis nasceu sob a forma de aforismos e de critérios práticos por um mero acaso, a saber, porque o seu fundador dedicou
sistematicamente as suas forças intelectuais a outros problemas, notadamente econômicos; nestes critérios práticos e nestes aforismos,
contudo, está implícita toda uma concepção do mundo, uma filosofia.”
Segundo a filosofia da práxis, política, filosofia e economia são reciprocamente traduzíveis (Q 4, 46, 472-3). Além disso, para Gramsci, não se pode deixar de tratar dos aspectos pertinentes à arte, economia, ética e até mesmo das teorias das ciências naturais, elementos que não aparecem nem de modo implícito no texto de Lênin.
No Caderno 11, Gramsci pergunta-se várias vezes sobre a tradutibilidade recíproca de várias linguagens filosóficas e científicas; a indagação tem como objetivo compreender a “integração” entre filosofia clássica alemã, literatura e prática política francesa e economia clássica inglesa na filosofia da práxis. Para Gramsci, a vulgata russa exposta por Lênin e que remontava a Plekhanov do materialismo marxismo promovia uma justaposição das três fontes, mas a justaposição dos três grandes movimentos culturais do século 19 foi fruto, na crítica de Gramsci e até em estudos de Labriola, da sociologia positivista (v. Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci (1926-1937), tradução de Luiz Sérgio Henriques, Brasília: Fundação Astrojildo Pereira: Rio de Janeiro: Contraponto, 2012; cf. Paolo Nosella, A escola de Gramsci, São Paulo: Cortez Editora, 2018).
Para resolver a problemática da “integração” que preserve a originalidade da filosofia da práxis, Gramsci aposta no conceito de imanência (Caderno 10 § 9):
“O momento sintético unitário, creio, deve ser identificado no novo conceito de imanência, que da sua forma especulativa, tal como era apresentada pela filosofia clássica alemã, foi traduzido em forma historicista graças à ajuda da política francesa e da economia clássica inglesa”
Giancarlo Schirru, em “La categoria di hegemonia e il pensiero linguístico di Antonio Gramsci” (In: Egemonie, coordenador Angelo d’Orsi com a colaboração de Francesca Chiarotto, Ed. Libreria Dante & Descartes, Napoli. 2008, pp. 397-444, 2008), observa que as notas dos Cadernos detêm-se longamente, e não sem oscilações, sobre as modalidades de como descrever essa conexão [entre filosofia, política e economia], ou seja, de “como a filosofia da práxis chegou à síntese dessas três correntes vivas na nova concepção de imanência, depurada de qualquer vestígio de transcendência e de teologia” (p. 421). Vale dizer que para Gramsci a filosofia da práxis deve criticar e superar a religião – “ópio do povo” para o Marx da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – para um progresso intelectual da massa e da classe trabalhadora!
Gramsci, que havia entrado no curso de Letras da melhor universidade de seu país através de uma bolsa (era pobre), ainda que não o tenha concluído devido a vida política atribulada, sabia por meio da Ciência Linguística o reconhecimento da autonomia de cada linguagem. Segundo Paolo Nosella (A escola de Gramsci, 2018), quando esboça o conceito de “tradutibilidade”, Gramsci “rechaça as tentativas do bolchevismo de reduzir o marxismo a instrumento político contingencialmente útil que identificava, mecânica e interesseiramente, política, filosofia e economia, e, até mesmo poesia, música e arte em geral“.
A “unidade” pode ser entendida e até praticada dialeticamente se (Caderno 11, 22)
“[…] a filosofia da práxis for concebida como uma filosofia integral e
original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e, superando, integra em si os seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicional, expressões das velhas sociedades. Se a filosofia da práxis é pensada apenas como subordinada a uma outra filosofia, é impossível conceber a nova dialética, na qual, precisamente, aquela superação se efetua e se expressa.”
Portanto, Gramsci posiciona-se como contrário a reducionismos explicativos do “marxismo vulgar”. Atenta que o tratamento sistemático da filosofia da práxis não pode se dar de maneira reducionista para não se negligenciar nenhuma das partes constitutivas, caso contrário as explicações fáceis levam a noções mecânicas e até idealistas no interior do próprio marxismo, sobretudo quando este penetra no seio da classe trabalhadora.
Gramsci rascunha (Caderno 7, § 18; 1, 236-237):
“A unidade [do marxismo] é dada pelo desenvolvimento dialético das contradições entre o homem e a matéria (natureza – forças materiais de produção). Na economia, o centro unitário é o valor, ou seja, a relação entre o trabalhador e as forças industriais de produção (os que negam a teoria do valor caem no crasso materialismo vulgar, colocando as máquinas em si – como capital constante e técnico – como produtoras do valor, independentemente do homem que as manipula). Na filosofia, é a práxis, isto é, a relação entre a vontade humana (superestrutura) e a estrutura econômica. Na política, é a relação entre o Estado e a sociedade civil, isto é, intervenção do Estado (vontade centralizada) para educar o educador, o ambiente social em geral. (Deve ser aprofundado e posto em termos mais exatos.)”
Ainda sobre o materialismo vulgar, Gramsci atesta no § 16 do Caderno 11:
“[…] É notório, por outro lado, que o fundador da filosofia da práxis [Marx] jamais chamou sua concepção de ‘materialismo’ e que, falando do materialismo francês, criticou-o, afirmando que a crítica deveria ser mais exaustiva. Assim, jamais usou a fórmula ‘dialética materialista’, mas sim ‘racional’, em contraposição a ‘mística’, o que dá ao termo racional uma significação bastante precisa”
Gramsci, acima, me parece se referir ao posfácio à segunda edição de O Capital, em que Marx explica como seu método dialético é oposto ao de Hegel – pondo este “de pé”, mitiga seu invólucro místico e procura o que há ali de racional.
Para Gramsci, a influência de David Ricardo é particularmente significativa tanto na economia quanto na filosofia, porque a teoria do valor e a lei da tendência em Marx deriva dele (Q 7, 42 e Q 10 II, 31, 1.275), além da noção de homo oeconomicus, uma descoberta a que também se deve a Ricardo, implicando no marxismo “uma nova ‘imanência’, uma nova concepção da ‘necessidade’ e da liberdade etc.” (Q 10 II, 9, 1.247) que levou Marx e Engels à superação da filosofia hegeliana e à construção dum novo historicismo sem traços de lógica especulativa (Cartas, II, 205).
Por fim, é impossível compreender totalmente Gramsci se não se compreender outras fontes e autores extrínsicos ao marxismo nos quais ele se debruçou, como Benedetto Croce, George Sorel (e seu neoidealismo e bergsonismo), Giovanni Gentile, depois, Maquiavel (para Gramsci, o “Príncipe moderno” é o Partido Comunista). Ou seja, assim como Marx teria procedido com Hegel, Smith, Ricardo, Gramsci empreende uma assimilação-superação, uma fusão de socialismo deglutindo outras correntes intelectuais para uma formulação revolucionária marxista original. É de Sorel, por exemplo, que Gramsci tomará emprestado o termo “bloco histórico”, mas sob outro ponto de vista, marxista, gramsciano, ou seja, “bloco histórico” enquanto a unidade dialética entre a superestrutura e a estrutura e, a partir de tal superação, o estímulo à criação revolucionária de um novo bloco histórico.
“Contudo, se as fontes são discutíveis, constituem para G. três caracteres inseparáveis do marxismo: filosofia, economia e política“, escreve Giuseppe Prestipino no Dicionário Gramsciano.
Chasin
Investigando os textos marxianos, o Prof. brasileiro José Chasin concluiu que neles não haveria comprovação textual da ideia do “tríplice amálgama” ou da incorporação da herança hegeliana e que a própria colocação da questão em termos de três fontes seria enviesada, porque toma elementos alheios ao novo padrão reflexivo instituído por Marx. (Cf. Chasin, “Ad Hominem – Rota e prospectiva de um projeto marxista”, Revista Ensaios Ad Hominem, São Paulo, n. 1, t. I pp. 37-40.) É o caso de sopesar o quanto tal argumentação é pertinente em termos de práxis e de renovação do marxismo, o quanto é ou não academicista, como encarar as citações explícitas nos textos marxianos a partir de tal afirmação polêmica, etc.
Dois parágrafos sobre Aristóteles e Adam Smith em Marx
Aristóteles opunha economia (valores de uso indispensáveis à vida) à crematística (ligada à incessante produção e busca pela riqueza) e já condenava, em sua Política, o dinheiro que é usado para um fim em si mesmo, para a acumulação, ao invés de ser a justa medida na sociedade para que não haja carência de um lado nem excesso do outro. “A troca não pode existir sem a igualdade, nem a igualdade, sem a comensurabilidade”, escreveu Aristóteles citado por Marx em O Capital. O legado de Adam Smith em Marx é bastante “simples”: o autor de Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, mais conhecida simplesmente como A Riqueza das Nações (1776), trabalha a partir das ideias de Aristóteles em sua Política (que já distinguia duas dimensões da mercadoria: o valor de uso e o valor de troca) e na Ética a Nicômaco (que lega à época moderna a compreensão da teoria do valor-trabalho e do valor-utilidade), assim como Marx fará no século posterior (Aristóteles é citado várias vezes no primeiro livro de O Capital); desde a economia mercantil a que se referia Aristóteles, já que as mercadorias devem ser equiparadas ao serem trocadas umas pelas outras, devem conter algo igual quantitativa e qualitativamente, e este “algo igual” é o valor.
Em finais do capitalismo manufatureiro e nos primórdios do capitalismo industrial do século 18, Smith procura explicar o valor de troca pelo trabalho empregado na produção da mercadoria (Marx partirá deste ponto), não pela utilidade, argumentando que coisas vitais como água possuem valor baixo de troca, enquanto coisas menos úteis como jóias têm alto valor de troca. Mas o que é o valor? Há dois significados da palavra valor para Smith – valor enquanto utilidade de um determinado objeto e valor enquanto poder de compra que o referido objeto possui em relação a outras mercadorias. “O primeiro”, conclui Smith, “pode se chamar valor de uso e o segundo, valor de troca”. Eis precisamente o ponto de partida de Marx para O Capital, além de muitos outros autores e até mesmo Shakespeare.
Fiquei sabendo da resposta de Jones Manoel acima em parte por camaradas próximos, em parte porque militantes ferrenhos e seus fãs vieram me linchar após sua resposta, já que eu não o acompanho.
Minha tréplica abaixo estendeu-se muito mais do que deveria, porque precisei fazer apontamentos teóricos fundamentais a militantes, alunos, estudantes, seguidores e camaradas próximos e vindouros, que vão me ler e que me pedem explicações que de nenhuma outra forma podem ser dadas senão com base em economia, história, filosofia, etc. Já que se estendeu, fica sendo o meu ponto final sobre a questão. Além do mais, abaixo, faço também inédita análise econômica revolucionária sobre a Coréia do Norte, que eu não vejo ninguém fazendo.
A Guerra das Coréias e contra os EUA é a “Guerra Fria” de muitos camaradas das novas gerações, o Paralelo 38 é o seu “Muro de Berlim”, a Coréia do Norte, a sua “União Soviética”. É degradante ter de escrever o óbvio, que a Coréia do Norte é também uma sociedade de classes e que, portanto, há uma sociedade dominante que explora economicamente as outras, a trabalhadora. Ou seja, trata-se dum novo fenômeno interimperialista (termo leniniano), só que, hoje, sem o “socialismo real”, num caráter ainda mais desvantajoso e claustrofóbico. As analogias históricas generalizam condições especiais, mas fatos conhecidos se repetem em certas situações. Já vimos como tudo isso termina, em desilusões, em crises, e sabemos de suas consequências para o fôlego de qualquer movimento comunista, restando ao marxismo fazer antecipadamente uma crítica radical (“Ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e a raiz para o homem é o próprio homem“) e de baixo com relação ao monopólio do poder, em favor da teoria revolucionária original do valor e pela tomada do Estado e dos meios de produção pela classe trabalhadora.
Comunismo sem marxismo (sem o tripé marxiano) é manco, apologético e não tange a resolução dos problemas sociais na prática.
A diferença entre opinião e burrice.
Não trata-se de “opinião”. Trata-se de Crítica, como é de praxe no marxismo. “Opinião” reside no senso comum. Essa tentativa de desqualificação serve somente para uma militância acrítica e pouco letrada, não acostumada a debate de alto nível, que, infelizmente, está trocando o “conhecimento mais profundo […] em função da tática do agir” (eis a definição de Lukács para o “stalinismo”, como veremos mais adiante). Defesa apologética que sacrifica a construção revolucionária, e que espero que seja conscientizada a tempo. Me admira que Jones Manoel não tenha dito que sou um “propagandista do imperialismo” ou “Quinta Coluna”, como outros da gangue, ou seja, ao menos reconhece que sou marxista.
Esse sujeito, meio famoso em redes sociais, publicou esse comentário fazendo referência a uma publicação da UJC.
Aqui, cabe uma recapitulação. Há poucas semanas, a mesma UJC – União da Juventude Comunista publicou o mesmo tipo de homenagem a Josef Stálin, mas logo apagou. Foi muito criticada. Militantes da UJC aplaudiram. Eu soube disso através de um camarada que chegou a ser da UJC, mas que justamente se afastou devido ao incômodo diante da apologia de caracteres estranhos ao marxismo estimulada por certos quadros. Minha posição torna-se ainda mais necessária para mim porque toda a querela envolve jovens em formação uma base de militância crítica que precisa ser constituída para, digamos, 2030!
Não pretendo fazer de Stálin ou de Kim Jon Un espantalhos para liberalóides (são muito mais representações de construções histórico-sociais complexas), mas é fundamental voltarmos, durante todo este texto, a Stálin, pois, primeiro, a ideologia apologética da qual critico e desmistifico foi urdida durante o período de Stálin (não à toa, os mesmos o resgatam com revisionismo idealista) e, segundo, sem ele, em sua postura interimperialista junto aos Aliados liberais e anticomunistas, talvez nem mesmo a Coréia do Norte existisse.
Cumpre informar apenas que Mauro Iasi, figura importante do PCB e que faz parte dos melhores quadros do partido, teve de intervir, após a atitude da UJC, com um texto contra o stalinismo intitulado “Dois métodos e uma decisão: a poesia do futuro ou os fantasmas do passado?”. (Podemos observar o termômetro desse velho racha sempre iminente no PCB aqui, na área de comentários deste post, em que Iasi conclama “Stalinismo nunca mais”.) A gangue fanática e aborrecente, movida pelo revisionismo histórico de Jones Manoel (Domenico Losurdo é bom autor, mas não para tratar de Stálin) e outros marmanjos, chegou a pedir a expulsão de Iasi (um homem que chegou a ser candidato à presidência da República pelo PCB!), quando, na verdade, falta pulso firme e um núcleo duro de intelectuais orgânicos (José Paulo Netto e Marcos del Roio não são mais orgânicos no partido, e muitos inteligentes já se afastaram) para expulsar a gangue anacrônica de Jones Manoel, porque não adianta simplesmente mostrar teoria a quem é basista, a quem apenas pretende aquecer e cultivar as bases.
Poderíamos colocar boa parte da responsabilidade desse conteúdo e forma no capitalismo financeiro e seus correlatos, “de vigilância”, do Vale do Silício, isto é, nas redes antissociais, que tomam de assalto a atenção e superficializam o debate, mas não se pode eximir da responsabilidade aqueles que pretendem usar para si os termos “comunismo”, “comunista”, “marxismo”, “marxista”, e essa querela já é velha no marxismo e no comunismo antes mesmo da Internet.
A linha desse setor do PCB e da UCJ é muito clara: qualquer “socialismo real” foi/é melhor do que o capitalismo, estimulando uma defesa intransigente dos modelos do “socialismo real”; serve para o embate ideológico e só, porque a prática é morta, já que as condições hoje não são mais as mesmas; assim, olham para o passado e muitos deles pretendem copiar modelo – quem copia modelo é conservador; essa visão é particularmente falsa, porque, embora eu concorde em parte com a afirmação de que o “socialismo real” teve fins mais grandiosos e, em diversos momentos, humanitários do que o capitalismo, que hoje se reduz à barbárie e números financeiros, uma crítica marxista revolucionária ao “socialismo real” não significa adesão ou defesa do capitalismo, ao contrário, significa uma dialética do continuum histórico da luta e aponta para o futuro na superação do passado pela transformação do presente.
Noto uma defasagem com relação ao que eu chamo de “tripé marxista” (no Anti-Dühring, ainda que de maneira demasiadamente sistemática, é dividido em Economia Política, sobretudo a teoria do valor, Filosofia, que envolve a dialética, e Socialismo, que abarca as lutas de classes, a distribuição e a perspectiva revolucionária). Jones Manoel e outros desconsideram a teoria do valor (já não é marxismo, então, porque sem compreender a lei do valor não se identifica a exploração capitalista e da apropriação do trabalho alheio), usam as lutas de classes com excelência na agitação, mas ainda de modo afunilado (não sei como ficará após a aproximação eleitoral do PCB com o PSOL pequeno-burguês) e nem passa pela cabeça deles o que seja dialética. “Concepção materialista da História” (frase frequente em Engels, nas obras e em cartas), então, é pretexto para revisionismo histórico. Nada de estrutura e superestrutura. De fato, para uma militância acrítica ou para um projetinho de poderio (não de poder), não se precisa da dialética, da teoria do valor, da visão abrangente das lutas de classes nem da concepção materialista da história. É importante deixar claro que não sou acadêmico, nem estou vinculado a qualquer academia neste momento, aliás, academia não possui práxis nem ensina marxismo a vero; marxismo aprende-se na marra, na luta, na teoria, na prática, de forma autodidática mas dialógica, e nunca antes a bibliografia clássica e contemporânea foi tão acessível.
No âmbito da filosofia da práxis, estamos diante de um grupo que, ao entrar na luta anti-colonial, anti-imperialista e anticapitalista, troca a teoria revolucionária pela prática propagandista do agir, privilegiando a tática em detrimento da teoria, que apenas é usada em suas generalizações a partir da tática; um grupo de comunistas que, mergulhado na categoria da universalidade vazia (interesse como universal), esquece-se da categoria da particularidade (interesses de classe). Essa inversão que não aprofunda o conhecimento histórico – certamente um legado do período stalinista -, provoca muitos desastres, ainda que as intenções sejam boas ou até sinceras (excluindo os oportunistas e arrivistas). Todo o problema entre os apologéticos e os verdadeiros marxistas se encontra no fato de que os primeiros perdem-se na categoria vazia do universal, e não consideram a categoria da particularidade. Para explicar melhor essa questão, é necessário um aprofundamento teórico e filosófico, no qual me é impossível neste momento, porque, para isso, seria preciso voltar (com o Marx da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e da Ideologia Alemã) a Hegel, mas exerço esta tarefa em outras oportunidades.
Todo o meu incômodo reside no fato de que a UJC não está ensinando à juventude em formação – cuja militância deve ser decisiva para a construção revolucionária internacionalista no Brasil – as teorias marxiana e engelsiana do poder e do Estado. (Tampouco a teoria do valor – sem a qual não se identifica a exploração no capitalismo -, no caso das empresas da China, que está voltando a ter o maior PIB do mundo, como teve no século XVIII.) Resultado: análise rasa de conjuntura, defesa meramente apologética do poder e do Estado, caráter “basista” e idólatra, nenhuma construção realmente revolucionária debaixo, nenhuma apuração classista. A síntese de tais teorias encontra-se sobretudo no Anti-Dühring de Engels, que formou a primeira geração de marxistas. Sem esse leque de teorias, indissociáveis da prática revolucionária, não teremos excelentes quadros e lideranças. Estes se afastam. Os que ficam, estão apostando todas as fichas no fracasso de formas mais ou menos reacionárias e conservadoras. Vez ou outra, temos de agitar a proposta revolucionária original, que ainda está em processo de construção, junto à proposta de Antonio Gramsci de formação de intelectuais orgânicos que sejam soldados junto à direção partidária e da vanguarda.
(A) O que a China e suas empresas e o que a Coréia do Norte e seu aparato militar farão diante de um processo revolucionário brasileiro e latino-americano? Como ajudarão? Quais serão suas condições? Lembrem-se que a União Soviética respeitou diplomaticamente as delimitações terríveis dos EUA nas ditaduras militares-empresariais que ajudaram a implantar em nosso continente. Lembrem-se que, quando Angola quis se emancipar pela via do socialismo, Cuba foi ajudá-la, não a União Soviética, que já havia deixado de ser uma superestrutura revolucionária há tempos… (B) O que faremos, extirpados os elementos do “Estado profundo” brasileiro, ou seja, aquele que sempre se mantém, na ditadura, na redemocratização, com Collor, FHC, Dilma, Lula, Bolsonaro, e extirpados capitalistas brasileiros importantes, ou seja, o que faremos quando tomarmos gradativamente o poder diante de uma nova diplomacia perante China e Coréia do Norte com nosso novo Estado? É isto o que deve ser debatido, escrito, estudado, planejado, ensinado! Todo o resto é lobotomização…
Todos os membros da “gangue” que vieram tirar satisfações comigo (não vou considerar aqueles que simplesmente são fãs de Jones Manoel, que sequer são marxistas, o que achei um absurdo, e que só prova que a teoria não está sendo disseminada), desviavam-se da minha renitência à teoria da revolução, do poder e do Estado presente em Marx e Engels. Os piores momentos do movimento comunista são aqueles em que se desconsidera Marx e Engels, que se desconsidera a teoria para uma militância de simples ação propagandista. A quem interesse isso? Aos parasitários do Estado, assim como interessa à burguesia? Ficou claro que não leem nada de teoria, porque não houve qualquer ponderação ou contrargumentação entre o nosso objeto de discussão e a teoria!
Definitivamente, não estamos falando no mesmo nível!
Enquanto eu insisto na teoria a partir da qual se configura uma práxis coerente de acordo com a nossa realidade nacional e internacional, para eles é vital – com oportunismo de uns e ingenuidade de outros ainda em formação (tive alguns “pupilos”, que se interessavam por minhas recomendações, mas que logo rompemos, porque lhes incomodava minhas críticas a Jones Manoel) – realizar uma prática sem teoria, de agitação, de “militância” (em sentido comum), de apologia ao aparato, ainda que isso nada diga respeito direto à classe trabalhadora norte-coreana ou chinesa, quanto mais à classe trabalhadora brasileira e seus anseios e desafios. Excluem as particularidades de classes, defendem o tempo todo, não sem dogmatismo xucro, a particularidade da universalidade, que, por si só, é vazia… Veremos também, mais adiante, como isso é fruto dum absurdo hiperracionalismo, expressão que Lukács usava para o “stalinismo” enquanto ação política que não sabe manejar estratégia e tática, teoria e ação. Nem preciso dizer que são os mesmos que, com revisionismo e idealismo, também defendem o período de Stálin.
Todo ser humano é livre para ter a opinião que quiser sobre a Coreia Popular e Kim Jong-Un. Essa não é a questão central. Via de regra, essa opinião é desinformada e carente de estudos quando o tema é a Coreia, mas tudo bem.
Quero falar de algo mais importante: burrice.
Para Jones Manoel, a “burrice” é “mais importante” do que a Crítica revolucionária (que ele desqualifica como “opinião”)!
A Coréia do Norte é fruto dos interesses das classes dominantes após a sangrenta Segunda Guerra Mundial, que, por sua vez, foi um ponto de chega de diversas causas estruturais, notadamente as crises capitalistas; como sempre na história, após a conflagração monumental, essas classes acertaram de se encontrar para dividir o quinhão às custas do povo. O nascimento da Coréia do Norte está relacionado a uma “revolução passiva”, em termos de Antonio Gramsci (para um apanhado de escritos gramscianos do cárcere sobre a revolução passiva, cf. O Leitor de Gramsci. Escritos escolhidos: 1916-1935, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, da página 315 à 317), ou seja, um “transformismo pelo alto” entre as classes dominantes, em que se exclui as outras classes subalternas (fenômeno muito comum na história do Brasil, mas não com tal agudeza geopolítica). Mesmo que tenha contado com mobilização de massa (que não deixa de ser comum nas “revoluções passivas”), não houve uma revolução autêntica, orgânica, popular como em Cuba ou em Angola ou mesmo na Rússia.
É claro que, no caso das Coréias (e também na Coréia do Norte!), outros elementos das classes subalternas – praticamente escravizadas pelo domínio imperialista do Japão – também influíram na “revolução” (por exemplo, a invasão da Manchúria pelos japoneses mobilizou enormes forças anti-imperialistas na Coréia e na China), mas os interesses de classes dominantes logo suplantaram-nas e as acoplaram a seus aparatos estrangeiros no momento de pegar o mapa e traçar a divisão e estabelecer quem dominaria o que. Pelo suporte direto da União Soviética, que, no período do pós-guerra, só dispunha economicamente para valer de sua indústria bélico-militar (v. Eric Hobsbawm, Era dos Extremos, de 1994), não restara à Coréia do Norte outra saída senão investir em fábricas de materiais pesados e armamentos, já com Kim Il-Sung, “produção” essa que se arrasta até os dias de hoje. Essa produção, que não deixa de ocorrer com a espoliação do trabalho dos norte-coreanos, sempre estará associada à defesa territorialista, já que trata-se de um país teluricamente fraturado e ameaçado por todos os lados, “produção” bélico-militar acentuada após o desmanche do bloco soviético e o abandono do marxismo (abertura ao capital nos negócios) pela China. Baluarte final da resistência comunista, para alguns…
Note-se que o termo “revolução coreana”, porém, não é usado em consenso na historiografia (usa-se “Guerra da Coreia”), mas não deixa de fazer sentido quando se pensa na guerrilha anti-imperialista e na tomada de poder (que, porém, foi estimulada por agentes do alto escalão do monopólio de poder da URSS e mesmo da China). Assim, Kim il-sung, em seu ímpeto anticolonial, já estava ligado desde sua juventude militante ao alto aparato de URSS e China, e logo foi reconhecido como líder de toda a península. (Stálin enviou Lavrenti Beria, uma das figuras mais polêmicas do “período stalinista”, para tratar da implementação do regime.) É preciso admitir, portanto, que o povo e os trabalhadores da Coréia do Norte não estavam inteiramente emancipados. Quem realmente governava o país não era Kim Il Sung, mas sim o todo-poderoso embaixador soviético Terenty Shtykov. O próprio Kim Il Sung não tinha muitas escolhas no jogo interimperialista e não fez como um Che Guevara em Cuba, que se indispôs com o alto escalão da União Soviética em determinado momento, porque tinha ideias socialistas próprias (cf. o percuciente livro de Luiz Bernardo Pericás, Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba, São Paulo: Editora Boitempo, 2018, que venceu o Prêmio Jabuti de 2017).
Reforço que a classe dominante da União Soviética, entre outros nichos, vivia de “economia bélico-militar permanente” a partir do excedente de trabalhadores e camponeses desde a sua acelerada industrialização forçada em 1929, que o próprio Stálin chamava de “revolução pelo alto”, ou seja, uma atitude coercitiva que levou milhares de camponeses à morte (sobre esse trágico período da história soviética, cf. o documentado livro de Fabio Bettanin, A coletivização da terra na URSS. Stálin e a “revolução pelo alto” (1929-1933), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981) – tal fato é determinante na história da Coréia do Norte. A definição “Estado satélite” (o jornalismo prefere “Estado fantoche”), em que um governo depende da classe dominante (e da classe trabalhadora) de uma potência estrangeira para sua própria existência, sem a qual não pode existir, não é nenhuma novidade para diversas regiões correlacionadas à antiga União Soviética, tanto que o desmanche do domínio central de Moscou em meados dos anos 1990 – de maneira vendida e ridícula, é verdade – desmanchou também o restante do bloco – com exceção da Coréia do Norte, que teve de enfrentar o seu conhecido e violento período de fome (prova da dependência em relação à URSS), mas que permaneceu por ter logrado aspectos próprios de identidade e de economia, não sem carregar até hoje a sina da guerra soldada à essa identidade e “economia industrial-militar” (os trabalhadores não têm outra escolha, precisam obedecer com suas forças produtivas a indústria bélico-militar para a sua própria sobrevivência imediata e enquanto país).
No Brasil, o termo “revolução coreana” remete a um livro considerável. Li, há alguns meses, o livro de Paulo Visentini (com apoio de Helena Melchionna e Analúcia Pereira), A Revolução Coreana. O desconhecido socialismo Zuche (2015), pela editora UNESP. Sua abordagem não é totalmente pelo método marxista. O livro erra em não tratar da “revolução passiva”. Completamente favorável à Coréia do Norte (os autores a visitaram) e debruçado em ampla documentação e registros de diversos países (mesmo os Estados Unidos) envolvidos no contexto histórico, o livro explica o suficiente para os ocidentais. Pretende desfazer a forma caricatural com que o Ocidente vê a CN e mostrar “tanto […] a real configuração do regime norte-coreano, de impressionantes conquistas socioeconômicas, quanto as complexidades que caracterizaram todo o processo revolucionário e continuam a tensionar o sudeste asiático“.
A grosso modo, para quem não sabe, a região do Sul foi logo objeto de interesse dos capitalistas dos Estados Unidos e Europa, enquanto que a União Soviética sob Stálin e o Politiburo dominou a região do Norte, o que arrefeceu os conflitos.
Ou seja, a Coréia do Norte é fruto das tortuosidades do percurso do movimento comunista em período pós-revolucionário e até contarrevolucionário, de um lado, e do capitalismo imperialista, do outro. (Não à toa, como justificativa para desenvolver o seu arsenal nuclear, tem sido importante na Coréia do Norte manter acesa a memória dos terríveis ataques aéreos dos Estados Unidos sobre sua região e a trágica morte de milhões de civis durante a guerra.)
É fundamental esse entendimento histórico sobre a correlação de forças! Sem ele, qualquer defesa é rala e apologética e acrítica em relação ao aparato, e mesmo em relação à reação imperialista do capitalismo.
A prova de que a Coréia é fruto das formas interimperialistas de ambos os lados (o Stálin que aperta as mãos de Harry Truman e Churchill, na Conferência de Potsdam, é um Stálin de postura interimperialista) é que a organização do líder Kim II-Sung, conforme mostra o livro de Visentini, possuía muitas frações, com membros do Exército Vermelho (ele próprio fez parte do Exército) ou que lutaram com Mao Tsé-Tung. Ou seja, as disputas de poder na URSS e o abandono do marxismo, como também, posteriormente, na abertura econômica da China, forjaram o que a Coréia do Norte é hoje, além de definições internas próprias. (O desmanche do bloco soviético acentua sua crise, que logo é abrandada com a dolarização décadas depois.) Esse amálgama formou o que seria o “socialismo” para a Coréia do Norte hoje, ou seja, quando ela surge, o marxismo e o próprio movimento comunista, por diversos motivos, estão emperrados no gargalo do monopólio de poder pelo alto. O seu caráter nacionalista foi a grande sacada para não terminar como a Alemanha Oriental. O fato inconteste é que a Coréia do Norte amarga aquelas querelas, como se fosse um resquício final delas frente à globalização do planeta.
O Paralelo 38 é fruto do desprezível controle das classes dominantes dos quatro cantos do globo para segregar e dividir fisicamente a classe trabalhadora mundial, mas é também – para o bem, para o mal – o “Muro de Berlim” do futuro…
E, justamente por isso é que cabe a nós, marxistas, nos adiantarmos, termos um discurso radical, uma prática radical e totalizante em torno do valor, do poder e do Estado, calcada na teoria original formativa, ainda que esta tenha de ser, aqui e ali, atualizada de acordo com as condições.
Sei que é um vespeiro sem tamanho tomar qualquer posição no caso da Coréia do Norte. É notório que lá se pratica o maior e mais longo jogo de truco do mundo moderno. Não tem santinho e nem legado importante a se defender. O máximo que se pode apoiar é a integridade da população. Defendo que é prioritário olhar com crítica marxista a respeito da classe trabalhadora norte-coreana, já que lá, como aqui, cada um a seu modo, há a apropriação do produto do trabalho alheio (componente do mais-valor descoberto por Marx, segundo o Engels do Anti-Dühring, p. 222), e já que norte-coreanos trabalham (com consentimento ou coercitivamente ou sem qualquer outra escolha em nome da sobrevivência perante as forças imperialistas externas) sobretudo para produzir rendimentos à classe dominante cleptocrática do tipo Clódio da economia nacional, do aparato de Defesa e seus filigranas (afinal, só restava aos “padrinhos” soviéticos uma “economia armamentista permanente“), que, em troca, lhes garante a segurança nacional contra um mundo hostil (a pilhagem existente em todo Estado e capital), constantemente ameaçando levar o mundo inteiro junto consigo, caso tenha de capitular ou acabar.
Esse caráter distópico (um povo que movimenta suas forças produtivas para a própria sobrevivência imediata elementar e a serviço de uma classe dominante que circunda a indústria bélico-militar, que produz o armamento nuclear que, paradoxalmente, o protege e evitaria o seu suicídio) só pode ser fruto de um choque conflitivo entre o aceleramento e o desaleceramento da História, entre o fluxo de capitais que tudo contamina e o fechamento regulador… Mostrarei no decorrer deste texto que, mais ou menos equidistante da economia de mercado, da ditadura do capital e da inserção nos ditames do comércio internacional, os meios de produção da Coréia do Norte são concentrados por uma família que se pretende “monárquica”, pela elite, altos oficiais, pelo Exército e pelo aparato do Partido dos Trabalhadores, que praticamente se confunde com o Estado.
Cabe introduzir uma diferenciação básica do Estado no marxismo entre Oriente e Ocidente, tal como mostrada brilhantemente por Gramsci, que aduz (Caderno 7, § 16, escrito entre 1930-1931):
“[…] No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma relação apropriada e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento de caráter nacional. […]”
Esta é parte de importante frase em que, segundo o gramscista brasileiro Carlos Nelson Coutinho, Gramsci resume sua posição que define a novidade de seus conceitos de Estado e revolução em relação à experiência dos bolcheviques (Coutinho, Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios, 2. ed. São Paulo: Cortez, 1996, p. 58). Desta observação, surge em Gramsci a reivindicação de que, enquanto as revoluções socialistas no Oriente, partindo da velha ordem, precisavam diretamente conquistar o Estado, porque assim conquistavam todo o resto, no Ocidente tal revolução é mais complexa (tal como o Lênin de Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo já considerava), precisa considerar uma guerra de posições na sociedade civil (arena das lutas de classes e principal espaço do setor privado), que é tão forte ou mais do que o Estado, e que pode-se e deve-se conquistar a hegemonia antes de se conquistar o poder, mas isso é assunto para outros textos…
Nesse sentido, só para fechar, há duas propostas do dirigente do PCI que nos interessa (Cadernos do Cárcere, 8, S 130; 3, 279-280) a respeito de Coréia do Norte: primeiro, a “estatolatria” não deve “ser abandonada a si mesma, não deve, especialmente, tornar-se fanatismo teórico e ser concebida como ‘perpétua’: deve ser criticada, exatamente para que se desenvolvam e se produzam novas formas de vida estatal, em que a iniciativa dos indivíduos e dos grupos seja ‘estatal’, ainda que não se deva ao ‘governo dos funcionários’ (fazer com que a vida estatal se torne ‘espontânea’)“.
Deriva de tal formulação temática uma segunda, a ideia de “iniciativa individual” em Gramsci (8, s 142; 282-283), que em nada deve ser confundida com iniciativa privada, individualismo, liberalismo, nada dessas farsas, porque se dá pela “identidade-distinção entre sociedade civil e sociedade política [lembre-se que Gramsci divide a superestrutura nesses dois campos de sociedade] e, portanto, identificação orgânica entre indivíduos (de um determinado grupo) e Estado, de modo que ‘todo indivíduo é funcionário’, não na medida em que é empregado pago pelo Estado e submetido ao controle ‘hierárquico’ da burocracia estatal, mas na medida em que, ‘agindo espontaneamente’, sua ação se identifica com os fins do Estado (ou seja, do grupo social determinado ou sociedade civil)“. Aqui, considerando a censura do cárcere fascista, podemos até substituir o termo “grupo social determinado” por classe trabalhadora.
Voltando à Coréia do Norte, o conflito sanguinário de proporções mundiais da Segunda Grande Guerra produziu um país que, na ausência de uma economia vigorosa, vive em certo grau de distopia e permanente produção bélic para barganhar acordos, ou seja, como necessidade de sua própria sobrevivência, sua única alternativa é desenvolver tecnologia nuclear para sobreviver, mergulhando na indústria bélico-militar (legado da União Soviética, que, tendo saído mais pobre de 1945 do que de 1917, dispunha principalmente de tal indústria como “economia permanente”), uma das mais caras do mundo: sob o paradigma do complexo industrial-militar dos EUA, ou seja, a partir da pressão do capitalismo de reação imperialista (mas não só), os trabalhadores norte-coreanos trabalham principalmente para a sobrevivência paranoica de si mesmos em nome da Defesa das Forças Armadas, entregue a uma classe dominante cleptocrática do tipo Clódio, que se apropria do produto do trabalho alheio, ainda que seja estranho compará-los com a classe capitalista corrupta e podre. Guardadas as devidas proporções, os EUA não parecem, de longe, muito diferentes (talvez outros “imperadores” que se revesem nos tipos entre Neros e Adrianos sejam mais adequados enquanto encarnações dos comandantes-fantoches desse país, ornem mais com a arquitetura fake de Washington – simulacro como quase tudo nos EUA – justamente replicada a partir da arquitetura do Império Romano), mas, na Coréia do Norte, o caso é ainda mais agudo e sufocado, sem domínio expansivo pelo mundo e num nível de absurdidade e despojamento de qualquer fantasia.
É uma “super-superestrutura”…rs
O fato de Kim Il-sung (1912-1994), lá atrás, a partir de sua luta de guerrilha antijaponesa, ter lutado no Exército Vermelho da URSS – que se urdiu sob a égide de uma revolução comunista -, ter entrado num partido chamado Partido Comunista Chinês e adaptado tal comunismo em seu país, não muda a realidade da observação científica. Não há marxismo que se resigne a essa realidade, não há autonomia da classe trabalhadora (talvez haja soberania, isso, sim, e uma soberania exemplar, invejável para a “América Latina” cuja elite e povo tudo aceita dos EUA), nem há o intuito de uma sociedade comunista sem classe, caso a Coréia do Norte vencesse os EUA.
Por trás das classes dominantes ligadas ao aparato e da cortina de mentiras que caricaturiza o país há uma nação habitada por cerca de 24 milhões de pessoas dignas que merecem nosso olhar humano e revolucionário.
Sim, não tem outra forma de caracterizar o comentário do sujeito sobre Trump e Kim Jong-Un.
Preciso, primeiro, externar toda a ojeriza deste sujeito aqui que vos escreve a qualquer forma monárquica (fruto da sociedade de classes), que sempre faço questão de dizer aos ingleses, por exemplo. Tenho horror a linhagens sanguíneas! O desenvolvimento histórico-social sempre pôs a pessoa de um soberano em confronto com a Revolução. E o marxismo possui postura equidistante com relação a isso. Não à toa, o Manifesto Comunista já estabelecia o fim da herança…
O grego Hesíodo, antecipando a modernidade não sei quantos mil anos atrás, quando escreveu O Trabalho e Os Dias, nos legou um pensamento divisor na história da humanidade: a grandiosidade do ser humano está no trabalho, não em ter “sangue azul”…
Estou ao lado da classe trabalhadora, não do herdeiro sanguíneo Kim Jon Un. Nesse particular, quando a Coréia do Norte retoma a tradição monárquica das Coréias através da Dinastia Kim ou Linhagem do Monte Paektu (ao invés da sucessão de membros do alto escalão político, tal como ocorria na URSS e na China), ela aposta numa enorme regressão, pior do que qualquer representação cidadã, e que hoje se adequa ao antigo modelo que lembra a vassalagem e o feudalismo. A implementação desse modelo “monárquico” ajudou a “nacionalizar” o comunismo na Coréia ao fundi-lo com uma tradição antiga, torná-lo mais popular e entendível? É possível, mas ele apenas levou a um culto à personalidade (que logo foi expurgado na União Soviética pelos sucessores de Stálin), bastante superado para o marxismo, porque personifica metafisicamente a vocação histórica da classe trabalhadora e escamoteia essa vocação da classe produtora em si para si. Um aspecto político e cultural desse tipo hereditário só interessa a classes dominantes espoliativas em qualquer canto.
Tenho gigantesco horror da carcomida família real britânica, que não passa de um “bibelô” diante do parlamentarismo inglês e da burguesia, o que piora ainda mais a justificativa de sua existência ainda hoje. Há direitistas que alegam que a família real britânica, com seus palácios, ao menos garante rendimento turístico – guardadas as enormes proporções e diferenças, é também o que ocorre com o turismo na Coréia do Norte, que procura zelar por sua imagem, construções oficiais do governo e espaços limpos e bem ordenados…
Uma vez, um sujeito, contra o meu ímpeto antimonárquico, disse-me que visitou a Holanda ou a Suécia, ou viu em algum lugar, já não lembro, viu lá o “povo feliz diante do seu Rei”. Isto me dá náuseas, assim como certos direitistas têm nojo do vídeo que compartilhei em meu perfil no Instagram de Chávez ensinando Gramsci brilhantemente num comício popular na Venezuela. Ora, vemos, neste vídeo, uma boa parcela do povo inglês feliz diante do criminoso de guerra e imperialista Winston Churchill… E daí? Mas, definitivamente, não estamos falando da mesma coisa quando falamos em realeza e um líder mais orgânico vindo do povo (ainda que do seio militar) feito Chávez, comprometido com o marxismo e com a revolução, ainda que tenha implantado amplas reformas.
Tanto pior nos exemplos ocidentais, porque aí a monarquia é atrelada à religião cristã e a dEU$, enquanto que a Coréia do Norte ao menos tem forte caráter irreligioso na sociedade e como política de governo, ainda que o cheondoísmo tenha ganhado popularidade (tendo até um partido próprio entre os três únicos partidos legalizados do país, o Partido Chondoísta, junto ao Partido dos Trabalhadores oficial e ao “Partido Social-Democrata”).
De qualquer forma, desde a “revolução burguesa” e a criação dos Estados-nacionais contra a aristocracia, já não existe monarquia nem clero em parte alguma, porque a estrutura já não é feudal, então tais países vivem de “bibelôs”, enquanto as verdadeiras decisões estão em outros domínios. Perto deles, Kim Jon Un é certamente mais ativo e mais engajado, mas a forma de “casta” não muda.
O Príncipe Charles vive apenas para viver dos rendimentos de seus súditos, assim como Kim Jong-il. Em termos de simpatia, tenho muito mais horror ao conservador Charles, que, não sei por que, me faz lembrar da oligarquia Sarney.
Um dos membros apologéticos, Rafael Caixeta, que, para minha surpresa, me acompanhava e estava em minha lista de contatos do Facebook, escreveu para mim, depois do linchamento virtual que fez questão de empreender após o post de Jones Manoel (“Fernando Graça puta merda em bixo, tu falando da RPDC só mostra que enfiou a boca na propaganda imperialista, vergonhoso ler uma merda dessas, pior ainda vindo de tu.“); disse-me que Kim Jon Un “visita cada fábrica e fazenda diariamente”… Ora, isso é de um ridículo… A um marxista interessa saber sobre condições de trabalho e para onde vai a mais-valia roubada da classe trabalhadora pelas fábricas de toda a parte do mundo! Qualquer “gado” eleitoreiro é capaz de bater palma para visitas oficiais sobre seu “político de estimação”, até mesmo os de direita… Ele as visita para ver se tudo está conforme a ordem. Qualquer político ou chefe de Estado visita fábricas e fazendas, assim como proprietários fundiários e capitalistas visitam suas propriedades privadas de meios de produção. Isso nada agrega ao marxismo, só à apologia do culto à personalidade, que personifica em termos idealistas, não materialistas, a vocação comunista e rapta a sabedoria histórico-universal da classe trabalhadora para um chefe… É o lado reverso da moeda da ideologia neoliberal, que personifica nos autocráticos Jeff Bezos ou Elon Musk o sucesso, a meta, a perfeita administração, a indissociabilidade de nossas vidas com relação a esses superiores e outras besteiras incentivas pela mídia hegemônica que só camuflam a exploração de trabalhadores e despossuídos dos meios de produção… Que ele é “muito amado pelo povo, que está sempre junto ao povo”… Já escrevi, acima, do meu horror a formas monárquicas. Também falam isso da Rainha Elizabeth II… Os “neomonarquistas” (sic) inventam sobre Dom Pedro II, símbolo da elite brasileira atrasada e escravista, nos mesmos termos… Sempre guardando as devidas diferenças e proporções, tais analogias apenas servem para que eu mostre o conteúdo da forma ideológica (outro conceito fundamental no marxismo e polissêmico), que toma o falso pelo verdadeiro.
É horrível, portanto, que um herdeiro desse tipo veja uma amizade de “força mágica” num capitalista falido e megalomaníaco da extrema-direitalha dos EUA feito Donald Trump, conforme revelam as correspondências de ambos. Os apologéticos dirão que Kim Jon Un apenas vê Trump como aquele que melhor evitou um conflito bélico para o seu país e população, mas, dessa forma, novamente estão trazendo a categoria da universalidade e desconsiderando os interesses de classe (particular) no contexto da indústria bélico-militar, sobre o qual escreverei mais abaixo.
Para finalizar, ele me citou a Assembleia Popular Suprema da Coréia do Norte, mas a APS é o mais alto cargo do Estado, segundo a própria Constituição da Coreia do Norte; a APS está abaixo dos marechais e políticos do Presidium do Politiburo (um de seus membros é o Presidente da APS) e subordinada ao Politburo. Há Comitês Populares locais, além das autoridades centrais. Sim, aqui também há os CONSEGs do PSDB e afins… Não é a APS uma organização da classe trabalhadora. Não é ali que encontraremos o espírito revolucionário – assim como também não o encontramos na institucionalização do Congresso Federal do Brasil. Ou seja, os apologéticos residem todos eles no nível superestrutural voltado ao aparato ou ao simbolismo retórico descolado da realidade…
O domínio se concentra nas mãos do semi-monarca e do chefe militar (pouco conhecido, mas que está em quase todas as fotos públicas com Kim Jon Un).
Quando Trump e Kin Jon Un – ambos de linhas dinásticas e sem organicidade a não ser em comportamento cultural – dão as mãos, são dois representantes de classes dominantes (plutocratas, burocratas, capitalistas), uma em vantagem econômica, a outra em aparente vantagem militar, jogando com o mundo entre a destruição em massa e as negociatas decididas pelo alto, excluindo as classes subalternas, sem o consentimento das classes despossuídas que lhes sustenta na base da pirâmide social.
A Coreia é um país que formalmente, pelo direito internacional, está em guerra com os Estados Unidos. Há décadas uma das prioridades da política externa dos EUA é a “mudança de regime” na Coreia e o país é cercado por mais de 30 mil soldados dos EUA e armas atômicas. Aliado a isso, na prática, a Coreia do Sul é um estado cliente na dimensão militar dos EUA.
Não custa lembrar que Bush chamava a Coreia de um dos países do “eixo do mal” e o Governo Obama, a partir da assassina Hillary Clinton, colocou a “mudança de regime” na Coreia como prioridade no seu governo.
Aí, depois de anos, aparece um governo nos EUA que muda de abordagem em relação a Coreia. O Governo Trump viu na Coreia a sua grande oportunidade de ganhar um Nobel da Paz e deixar sua marca na política externa.
JM chama Hillary de “assassina”, mas nada diz de Trump. Ao contrário, quase o vê de forma positiva. Faz parecer, inclusive, que ansiava o Prêmio Nobel da Paz àquele cara…
Aliado a isso, o Governo Trump, de forma bem inteligente, se aproxima de Rússia e Coreia como forma de quebrar a unidade de parceiros estratégicos da China. Trump, seguindo um preceito clássico da diplomacia dos EUA, sabe que é necessário manter Rússia e China separados e a Coreia é uma peça importante nesse xadrez.
O Governo da Coreia, é óbvio, aproveitou essa abertura diplomática para tentar negociar um alívio das pressões diplomáticas, econômicas e militares e reduzir a força dos EUA na Coreia do Sul – a influência dos EUA na Coreia do Sul, impede qualquer tentativa de reunificação.
O governo democrata de Joe Biden já deixou que vai acabar com a política de Trump para Coreia, e retomar a linha anterior do Governo Obama: máxima pressão e agressão.
A exposição acima mal se esforça para ser marxista.
Não vai “retomar a linha do Governo Obama” coisa nenhuma, vai “retomar” a linha de sempre (que teve mesmo sob o início do Governo Trump) do paradigma complexo industrial-militar (aconselho que se estude a respeito), que possui sua própria lógica independentemente da cara dos governos, Democrata ou Republicano, e da qual a classe dominante da Coréia do Norte também participa, por causa do legado “econômico-bélico” da União Soviética (é a forma específica da lei do valor do sistema capitalista mundial na economia norte-coreana).
Não se iludam: esse encontro pode ocorrer também com o liberal do establishment Joe Biden, recém eleito, sempre após um período de ataques mútuos e ameaças.
Lembrem-se vocês que, antes dos encontros e troca de afagos entre Trump e Kim Jon Un, houve contundente período de tensões em 2017 (lembro que os mais exagerados falavam em destruição total do mundo como na época das crises dos mísseis em Cuba nos anos 1960 durante a “Guerra Fria”, já que estava em questão uma ameaça nuclear), só arrefecido em 2018: Trump, divulgando novas sanções econômicas, chamou Kim Jon Un de “pequeno homem foguete” e, diantes das ameaças nucleares da Coréia do Norte, afirmou que atacaria o país asiático com “fogo e fúria” (“fire and fury”) nunca antes vistos, enquanto Kim Jon Un falou em bombardear Guam, território ultramarino dos EUA no Oceano Pacífico, havendo exercícios militares e envio de submarinos nucleares dos EUA.
Foi uma tensão explícita, mas, na verdade, apenas a nível aparente.
Naquela época, o NYTimes teve de redigir guia para acalmar seus leitores sobre o possível conflito Coreia do Norte/EUA – tratou os perigos como “reais”, mas “exagerados”: informaram que as ameaças da Coréia do Norte existem desde seu primeiro teste nuclear, há mais de 20 anos, mas que não são ameaças reais, segundo o guia, enquanto que as ameaças verbais de Trump também eram vazias e desmentidas pela sua própria equipe de gabinete.
A lógica do paradigma do complexo-industrial o retroalimenta, daí as constantes guerras; e ele precisa do Estado, enquanto espaço de domínio da classe dominante sobre as outras classes e como ente que faz a guerra.
Dois efeitos da trama: (1) favorecimento da “lucrativa” indústria bélico-militar, tanto da parte dos EUA quanto da Coréia do Norte; (2) as tensões criam expectativas na Bolsa de Valores, há uma leve queda, além de medo na população e aquecimento das bases extremistas nos países; quando, finalmente, há o encontro e o pacto (momentâneo ou não) de paz, as ações voltam a subir e os golpistas do mercado se lambuzam.
A simples contextualização de Jones Manoel, acima, desconsidera completamente todos esses fatos, o encadeamento do acontecimento e já parte para a suposta tentativa do governo Trump de ganhar o Prêmio Nobel da Paz!
Não há dúvidas, para mim, de que o capitalismo hegemônico dos EUA tenha de ser esmagado de vez, que, se preciso for, países como o Brasil formem um bloco para este intento, e que ele não fará qualquer falta – o problema é o agora e o depois.
É, mesmo, trágico saber que o fim da Coréia do Norte, no contexto atual, significa as forças capitalísticas da Coréia do Sul se apropriando da redoma, significa um aliado militar a mais dos EUA passando a fazer fronteira com a China – e com a Rússia.
A História, porém, já mostrou que não é seguro nos pendurarmos na tecnocracia estrangeira sem despender um violento e autônomo trabalho de construção revolucionária interna, a História já mostrou que isso não leva a futuro concreto algum, que o movimento comunista perde-se quando regimes dos quais eles se penduram caem.
Quando Stálin dissolveu a Internacional para agradar os Aliados liberais e anticomunistas, instaurou-se, em nome da luta contra o imperialismo capitalista, a defesa apologética da União Soviética (mesmo antes, já nos anos 1930 como consequência do Grande Expurgo) em detrimento da construção revolucionária nos PCs pelo mundo, mesmo no Brasil, até o regime ser desmantelado e amargarmos décadas de contarrevolução e tapinhas nas costas entre os chefes de Estado do Kremlin junto aos presidentes do capitalismo hegemônico, respeitando diplomaticamente todos os descalabros que o capitalismo hegemônio dos EUA (ou o “imperialismo”) nos lançava com o beneplácito da elite nacional do capitalismo dependente.
Portanto, o detalhamento acima de Jones Manoel não consegue nem ao menos ser marxista, porque é totalmente superestrutural e “jornalístico”, no mau sentido, ou melhor, panfletário. Fornece o básico do teatro de marionetes entre os chefes de Estado, mas não chega na estrutura. Interessa apenas para agitação momentânea, é tática pura, sem teoria e práxis. E não apenas porque é uma simples resposta a mim – toda a análise da Coréia do Norte, em qualquer texto ou fala sua, gira em torno da mesma tática limitada e alheia.
No entanto, é justamente esse o cerne do escamoteamento jonesmanoelesco que torna a sua plateia deficitária: no hiperracionalismo em favor da luta anti-colonial e anti-imperialista, ao esconder as lutas de classes entre ambos os países em questão e dar enfoque nas representações políticas superestruturais, leva-se jovens em formação e militância acrítica à defesa ou à defenestração de símbolos que camuflam as lutas de classes, o verdadeiro terreno do marxismo. A quem interessa esconder o caráter classista da questão? A quem interessa mera defesa apologética do aparato, que conforme ensina a dialética, não é eterno? A parasitas do Estado e de aparato partidário?
Nem sequer explicita – nem na resposta a mim tampouco em qualquer texto ou fala sua sobre a Coréia do Norte, e tenho certeza disso mesmo sem o acompanhar – a contradição entre as decisões das classes dominantes: há alguns anos, não apoiar a Coréia do Norte implicaria em apoiar a Coréia do Sul e os EUA, mas, de lá para cá, as Coréias estreitaram mais ou menos a relação, para o bem de seus povos, e a Coréia do Norte teve uma aproximação com os EUA. Essas contradições só podem ser ensinadas partindo-se da estrutura.
No âmbito geopolítico, é indiferente o mandatário dos EUA, quando o governo é controlado pelo complexo industrial-militar e precisa gerar guerras para perpetuar o capitalismo hegemônico de Wall Street (com seus bancos e companhias de petróleo), conforme Eisenhower já alertou no começo dos anos 50.
Isso significa que as classes dominantes dos países, mesmo quando erguem a bandeira do comunismo e do marxismo, é marcada por interesses particulares de classes.
Vou partir, agora, para uma exposição estrutural e marxista, que é o que está faltando quando pseudomarxistas tratam desses assuntos:
Visentini, em seu livro supracitado, mostra que, apesar das montanhas e das pedras que dificultam a agricultura e apesar de ter metade da população da Coréia do Sul, a região da Coréia do Norte era a mais industrializada, através de minérios e hidroelétricas e parte siderúrgica, do que a região do Sul, que era mais pobre e dominada basicamente por proprietários de terras, tendo que ser “socorrida” durante a Guerra pelas potências ocidentais e seus interesses de classes. Há uma virada nos anos 1960 e 1970, em que o PIB se inverte e o Sul torna-se mais rico (com seus conglomerados familiares) do que o Norte, configuração que permanece hoje. A história da Coréia do Norte, assim, nasce em contraposição a esse Sul. (Quem assistiu ao instigante filme sul-coreano Parasitas, de 2019, sabe que, dado o seu espelhamento das guerras de classes contemporâneas, poderia ter sido gravado em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Recife de Kléber Mendonça Filho, em Nova Iorque, daí o seu súbito sucesso e identificação mundiais…)
Veremos que, após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, a União Soviética só dispunha de sua indústria bélica; não à toa, a Coréia do Norte, através dessa influência direta, devastada pela guerra, só poderá investir para valer em fábricas estatais de produção de armas e maquinários pesados.
Todo marxista deve se perguntar: quem detém os meios de produção daquela industrialização? Outro dia, Ciro Gomes, com seu “trabalhismo” charlatão, disse que a Petrobrás pertence ao “povo brasileiro”; isto é certo apenas em termos retóricos, porque o lucro dessa empresa, que é uma sociedade mista, é administrado não pela classe trabalhadora, mas por burocratas do Estado e do governo federal do momento, além de outros domínios privados influírem. Assim, as plataformas submersíveis da Petrobrás e outros exemplos, a priori, não têm dono privado, mas são fruto de matérias-primas privadas da classe dominante e da redistribuição do sistema capitalista, e a ele servem, porque o Estado é a forma política do capital. Assim, Dilma, em determinado momento, quis destinar grandes porcentagens dos royalities do pré-sal à Educação e Saúde públicas, os plutocratas brasileiros dependentes dos plutocratas estrangeiros não deixaram; eu seria o primeiro a louvar a implementação, mas, por ser marxista, não nutriria qualquer ingenuidade caso não fosse apenas através de um “Estado operário” (em transição para o definhamento desse “Estado”) ou de Conselhos Nacionais de professores e estudantes (na Educação) e de médicos e enfermeiros (na Saúde).
Repito que há, na Coréia do Norte, uma classe dominante do tipo Clódio que detém os “meios de produção” e que é proprietária de grandes reservas e depósitos minerais com minérios que valem trilhões de dólares, além de metais raros usados na produção capitalista de smartphones na China e na Coreia do Sul. (Essa classe dominante não é uma burguesia clássica com seus CEOs, presidentes, conselhos dirigentes autocráticos, etc. engordando e acumulando em torno da mais-valia dos trabalhadores, mas a apopriação do produto do trabalho na Coréia do Norte não deixa de ser um componente do mais-valor, e tal classe dominante circunda o Estado, que tal como Gramsci nos ensina, é/era tudo no Oriente, enquanto que a “sociedade civil”, que no Ocidente é bem mais constituída, era no Oriente mais ou menos amorfa.)
Recentemente, pode-se procurar nos noticiários que as empresas da China (como a Baoyuanhengchang) entraram num acordo com a Comissão de Investimento e Parcerias da Coréia do Norte, que é encarregada de atrair investimentos estrangeiros, para desenvolver minas de ferro norte-coreanas. Deve haver uma chamada pelo alto a partir da qual os trabalhadores norte-coreanos se dispõem a cumprir.
Sabemos que a economia da Coréia do Norte é operada sob sigilo pelo aparato militar. Há um mercado clandestino (ou “mercado negro”, conforme alguns dizem) muito ativo. Todos sabem que a Coréia do Norte usa a sua moeda (o won) e também o yuan chinês e até mesmo o dólar dos EUA (o atrelamento da moeda norte-coreana ao dólar foi um dos esforços de Kim Jon Un desde que tornou-se chefe de Estado em 2011 e, segundo um site do mercado dos EUA, fez com que a inflação na Coréia do Norte caísse de 926% em 2010 para apenas alguns por cento hoje).
Até onde se sabe, há duas “economias” na Coréia do Norte – a estatal, que emprega funcionários do Estado e uma economia subterrânea. O preço varia entre o preço estatal e o preço de mercado. Já no informe de Marx “Salário, Preço e Lucro”, como também no Anti-Dühring de Engels, ou mesmo décadas antes, no próprio Manifesto Comunista (!!!) inovador, no capítulo II – Proletários e Comunistas, o trabalho assalariado é visto como a exploração moderna, depois da vassalagem e da escravidão, que deve ser abolida no processo revolucionário pela tomada dos meios de produção. Uma afirmação dessas (trabalho assalariado enquanto exploração) faz a esquerda média e social-democrata ou social-liberal ficar confusa (sobretudo numa época de informalidade e uberização), mas só pode ser explicada através da teoria do valor, que promove a compreensão de que o salário é apenas parte, migalha do “lucro” tomado da própria classe trabalhadora pela classe capitalista. Isto é o beabá do marxismo. Esse salário, na Coréia do Norte, vai variar de acordo com qual parte das duas economias o trabalhador atua – a estatal, concentrada, ou a do fluxo de capitais, embora uma e outra não deixem de confluir.
A partir disso, conclui-se que: 1) Da frase de Engels, “[…] o lucro do capital, bem como todas as demais formas de apropriação do produto do trabalho alheio, não remunerado, como mero componente desse mais-valor descoberto por Marx”, que há um valor a mais, um excedente do trabalho também na Coréia do Norte; 2) Não se pode esquecer da frase de David Ricardo que “marcou época” (segundo o mesmo Engel), dando consistência à Economia Política e a partir da qual Marx em seu gênio aprofundou-se: “O valor de uma mercadoria depende da quantidade de trabalho necessário para sua produção, e não da maior ou menor remuneração que é paga por esse trabalho” (Princípios de Economia Política e Tributação, Capítulo I, “Sobre o valor”, Seção I).
Mas não está ainda cristalino, pois é estranho comparar a espoliação da Coréia do Norte com a espoliação que vemos em “economias de mercado” explícitas. Aqui, portanto, é importante uma analogia, ainda que anacrônica, mas elementar dentro do movimento comunista e para o marxismo.
Lembremos que o rendimento das classes dominantes da burocracia da URSS (muitas vezes chamada de “capitalismo de Estado”, denominação que o próprio Lênin já utilizava em brochura de 1918 e posteriormente em 1921 para tratar da NEP) passou a ser constituído em larga escala de mais-valia (ou excedente, se preferirem, para diferenciar dos modelos capitalistas de mercado hegemônico) a partir do Primeiro Plano Quinquenal iniciado em 1928. Assim como na Coréia do Norte, ainda que fosse impossível identificar, de maneira isoladamente, a regulação da economia soviética pela lei do valor (característica básica do capitalismo), a regulação acaba sendo imposta pelas relações econômicas, ora atribuladas, ora arrefecidas, com o sistema capitalista mundial hegemônico. Marxistas da época e nos últimos anos (cf. Luis Fernandes, O Enigma do Socialismo Real: um balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais, Rio de Janeiro: Mauad, 2000) identificaram que havia, na URSS, e isso é notório hoje na Coréia do Norte (os próprios oficiais fazem questão de mostrar imagens ao planeta), uma “economia armamentista permanente“, que não deixa de ser uma forma específica assumida pela lei do valor do sistema capitalista mundial na economia soviética e, agora, na norte-coreana.
O fetiche da mercadoria, na Coréia do Norte, pode ser visto a cada novo super-míssel, a cada novo tanque, a cada novo teste de arma nuclear exibidos em paradas militares e festejados por Kim Jon Un e equipe militar sempre circundante. Tal como na maior parte do mundo contemporâneo, o fetiche da mercadoria, hoje, é encontrado a cada nova inovação tecnológica. (Não só no capitalismo japonês ou sob a Apple, que rouba invenção criada em laboratórios científicos como o Instituto de Massachusetts e militares com “dinheiro público” dos contribuintes dos EUA; até mesmo na China, que, enquanto bebê da produção, possui, de um lado, um capitalismo de exploração explícita do trabalho e horas compulsórias para sustentar o seu status recente de potência, e, do outro, um capitalismo de alta tecnologia – Huawei).
Porém, o mais importante não é o fetichismo em torno da bomba, mas seu caráter dissuasivo. Ela não é feita necessariamente para ser usada, mas para evitar quem a possui (Coréia do Norte e outros países que investem pesado na indústria bélico-militar) de ser atacado.
A competição militar dos países interimperialistas torna os “valores de uso” na meta principal da produção capitalista (cf. Ibidem), desnudando completamente a barbárie do capital – em seu centro e franjas ou nas intersecções, nas redomas e nas barreiras.
Podemos, enfim, dizer que grande parte da economia da Coréia do Norte se concentra nessa espécie de “economia armamentista permanente”, ainda que em configurações diferentes com relação ao que ocorreu na União Soviética, mas é fundamental fornecer esse achado para uma crítica marxista da exploração do trabalho e da sociedade de classes.
De acordo com o famoso historiador marxista Eric Hobsbawm (1917-2012), em seu livro Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994), a União Soviética saiu da Segunda Guerra em 1945 economicamente pior do que quando saiu da Revolução Russa de 1917, e os EUA emergiram como potência (Plano Marshall e outros motivos), mas, por sua vez, saíram da guerra preocupados com uma nova crise mundial nos moldes de 1929, ao passo que, vencido o nazifascismo pelo Exército Vermelho e pela luta comunista civil na Resistência dos países europeus, os EUA, tendo se tornado a grande nação da reação imperialista, incentivaram o anticomunismo. O que tinham os russos? Nada além de sua indústria bélica. Não é necessário ser um gênio para entender que a Guerra Fria e seus conceitos de direita e esquerda não passaram muitas vezes de retórica vazia e requentada que maquiou verdadeiros e robustos lucros econômicos para as classes dominantes por trás das marionetes, enquanto os efeitos eram drásticos nas lutas de classes nacionais que levaram a ditaduras militares na nossa “América Latina”, por exemplo.
(Trívia pessoal: lá pelos idos de 2013, durante minhas ambições cinematográficas em São Paulo – cheguei a cursar um semestre de Cinema e Audiovisual em Santos -, adquiri uma câmera de cinema soviética de 16 mm que era o meu xodó, fabricada na União Soviética pela Zenith, mas que vendi quando adquiri uma câmera analógica, porque é difícil hoje em dia trabalhar manualmente com filme e conseguir película, que eu tinha de arranjar no boca-a-boca: enfim, a Krasnogorsk-3 soviética, mesmo sendo pequena e de mão, era particularmente pesada e visivelmente composta por material bélico!…)
Ainda assim, é fato que a guerra entre EUA e URSS nunca foi apenas aparente. Durante a Guerra da Coreia, pilotos americanos e soviéticos entraram em combate. A crise dos mísseis em Cuba em meados dos anos 1960, da qual muito já se falou e escreveu, quase levou a uma guerra nuclear e pânico no mundo todo. As duas potências sempre estiveram em guerra: da Coreia ao Afeganistão. Vide o conceito de guerra by proxis.
De qualquer forma, a indústria do petróleo e o complexo industrial-militar se conjuminam e estão entre os mais ricos do mundo, têm os maiores financiamentos.
E durante o século XX o que não faltou foram conflitos armados. Hobsbawm menciona esse grande arranjo em seu livro.
Portanto, apesar dos projetos conjuntos com a “capitalista” Coréia do Sul em áreas de energia e outras, tudo o que a Coréia do Norte possui é a indústria bélio-militar para barganhar acordos e dissuadir.
Sua única alternativa é desenvolver tecnologia nuclear para sobreviver, daí o caráter distópico da Coréia do Norte, caso contrário há um suicídio muito mais terrível do que o desmanche da Alemanha Oriental, cujos traumas logo cicatrizaram. (A Alemanha Oriental, definiu Heiner Müller, não deixou de ser uma vingança da geração anterior, comunista ou não, contra os nazistas. Também a Alemanha Oriental era dominada pelo aparato de tipo soviético-tecnocrático, e conseguiu produzir pertinente cultura.)
Gastos com defesa são importantes em regiões de conflito, ou que tenham iminência de conflitos. Infelizmente, capitalistas e chefes de Estado lucram com guerras.
Voltemos à classe trabalhadora, raiz da sociedade, já que detém as forças produtivas, e que é a base mesmo da indústria bélico-militar com seus especialistas e técnicos mais ao alto. Um trabalhador têxtil de empresa estatal em Pyongyang está produzindo valor para a classe dominante tecnocrática e, em troca, recebe do “Estado” uma migalha em forma de salário. Se a irmã deste trabalhador trabalha em uma fábrica afiliada à China ou à Coréia do Sul na Coréia do Norte, ela recebe um salário-migalha de quantia maior (pois o lucro excedente e a mais-valia roubada pelos capitalistas desses dois países são maiores) e irá produzir valor para a classe capitalista da Coréia do Sul ou da China e, em parte, para a classe dominante da Coréia do Norte. Esse desarranjo torna o sistema norte-coreano bastante desestabilizado e instável, mas vacinado contra a economia de mercado autorregulado (nome jornalístico: neoliberalismo), que não deixa de ser também tirano, autocrático, exponencialmente hierarquizado. Uma coisa, porém, não justifica a outra.
Ainda assim, a Coréia do Norte parece ter pequenos empresários e estimula o conhecimento do empreendedorismo, da tecnologia e do capital de risco de certos membros de elite através do Choson Exchange. Li que há um site de comércio eletrônico (Manmulsang, em oposição à Amazon do bilionário semiescravagista Jeff Bezos), um serviço de compras pelo celular (Okryu, ainda que o acesso à internet e a celulares seja muito restrito) e um aplicativo de navegação (Gildongmu), sendo que fundadores desse tipo precisam superar obstáculos incomuns.
Um liberal defende a “liberdade de expressão”, sem jamais alcançar a necessidade da igualdade econômica dessa liberdade de expressão, que o capitalismo, por seu próprio funcionamento, nunca oferece. Um marxista vai mais fundo e se interessa pelo caráter econômico das relações. Nesse sentido, sabemos que do lado de cá nossa expressão é, hoje, mercantilizada pelo monopólio das redes antissociais para meia dúzia de bilionários tão infantilizados quanto Kim Jon Un (penso num Mark Zuckeberg, um adolescente marmanjo), nossos dados são vendidos ou fornecidos de bandeja para aparatos governamentais na velha relação incestuosa entre empresariado e corporativistas. Vivemos um mundo de louco: o tripudiador Trump é banido do Twitter, uma plataforma privada, e é como se o presidente dos EUA (!) perdesse a voz… Países como a Coréia do Norte também cerceiam a expressão e também aglutinam a produção do trabalho para uma meia dúzia.
O que mais podemos saber sobre as classes na Coréia do Norte? Andray Abrahamian, da George Mason University Korea, em Seul, que já trabalhou em cooperação estreita com empresas norte-coreanas (ele escreveu em 2020 o livro Being in North Korea), informou em 2020, no contexto da pandemia de COVID-19, que o Estado norte-coreano vai “coagir a comunidade empresarial” a comprar títulos de divisas cada vez mais caros para lidar com suas recentes crises, mas que haverá uma suposta “negociação” dos valores dos mesmos:
“Estamos falando de alguém que tem uma pequena empresa com dez empregados, cuja família ganha alguns milhares de dólares por ano e têm condições de viver numa casa boa, com alguns eletrodomésticos? Ou das pessoas que comandam estatais e ganham vários milhões de dólares por ano individualmente?”
Temos aqui um aspecto explícito das lutas de classes, ainda que não venha a público! Que empresários são esses? Parte da mais-valia desses empregados (privados?) vai também para o governo? Pode-se chamar tais empresários de burguesia, sendo que possivelmente não possuem os meios de produção principais e estão subordinados às matérias-primas detidas pelo aparato? São “pequena-burguesia”?
Abrahamian comentou ainda que é provável que a emissão de títulos de divisa crie tensões no interior da liderança norte-coreana:
“Haverá elementos no governo que vão querer se certificar de não estarem sufocando as empresas. Haverá outros que se preocupam muito menos com isso e se interessam no acúmulo de capital no curto prazo para os órgãos do Estado central.”
Prova tácita da correlação de forças das lutas de classes. Um país não é um bloco monolítico, é sempre muito mais complexo do que parece. Os interesses de classe, que formam diferentes ideias e ações no campo da superestruturra política, precisam sempre ser descobertos quando vamos ensinar ou aprender sobre determinada situação histórica.
Assim, além dessa franja empresarial, o excedente do trabalho na Coréia do Norte vai todo para uma espécie de cleptocracia (surgida como sintoma da guerra interimperialista), que centraliza poder militar e meios de produção enquanto propriedade dos membros do poder central.
Também na Coréia do Norte há uma espécie de “anarquia da produção“, ainda que do avesso se comparada com a nossa, de economia de mercado capitalista, sob outras configurações de caráter oriental (novamente a diferenciação gramsciana se faz presente). A contradição da sociedade burguesa em que o processo do trabalho no capitalismo é uma atividade coletiva, mas sua posse e usos não o são é chamada por Marx e Engels de “anarquia da produção”, que gera as crises periódicas típicas do capitalismo por conta da contradição entre as forças produtivas (detidas pelos trabalhadores) e as relações de produção da classe dominante capitalista.
Nem mesmo a pressionada Coréia do Norte, como já vimos, aboliu tal contradição entre atividade coletivizada e posse e uso “privados”. Em Engels (no célebre ensaio “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, opúsculo retirado do Anti-Dühring), é explícito que a classe trabalhadora é que irá pôr fim à anarquia social da produção através da revolução. (Trata-se de um elevado ponto de chegada da conscientização na história humana ocidental e que nos remete ao clássico Rousseau, para quem a origem da desigualdade entre os homens reside na propriedade – Discurso Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens.)
Ainda em Engels, em etapa avançada do comunismo, “Na medida em que desaparece a anarquia da produção social, a autoridade política do Estado também desaparece”. O que Engels diria da Coréia do Norte e do mundo hoje?
Não é a classe trabalhadora que está no domínio, mas meia dúzia de tecnocratas que não fazem parte da classe trabalhadora. De fato, esses tecnocratas possuem mais ou menos um papel de liderança. Não quero me aprofundar neste aspecto, porque periga cairmos na mera fenomenologia do poder, que é superficial, quando, na realidade, nos interessa estudar a mais-valia e a exploração econômica, a partir das quais surge qualquer elemento ditatorial ou liderança orgânica.
“O trabalhador produz não para si, mas para o capital”, mostrou Marx no livro I de O Capital. Como se fosse o avesso frio das zonas quentes do fluxo de capitais, o trabalhador norte-coreano produz não para si, mas para a classe do aparato do Estado, que promete defendê-lo de um mundo hosti. Que isso retorne em bens públicos já são outros quinhentos, porque é algo que países “desenvolvidos” de economia de mercado e governos social-democratas também o fazem, mantendo a sociedade de classes e a exploração econômica do trabalho, ainda que com direitos trabalhistas (ou não).
O capital, através do valor excedente (mais-valia), acumula, forma capital constante, remunera juros e recolhe tributos. O nosso setor público dos países de economia de mercado possuem orçamento que, em determinado momento de execução, independe do valor de troca do trabalho e de valor excedente. O limite de gastos com pessoal é determinado em lei. O setor público, a priori, tem função social e não mercantil, ou seja, teoricamente não vende os serviços baseado em valor de troca. Mas está conjuminado ao sistema capitalista. Aliás, foi construído pela burguesia para isto na forma de um Estado burguês e de um Direito burguês, que garantem a troca de mercadorias na legislação e a defesa da propriedade privada em termos policiais, militares, coercitivos, tal como Engels mostrou em apanhado histórico no Anti-Dühring, a partir do qual Pachukanis se debruçará décadas depois em sua obra Teoria Geral do Direito e o Marxismo. (Revolucionário empenhado na superação da burocracia soviética, intelectual comprometido com Lênin e com o marxismo, ele será executado no Grande Expurgo.)
A resposta para desfazer o nó entre “público” e “privado” só pode partir de uma etapa anterior, está num estudo sobre o trabalho, que funda o ser social, conforme Marx e posteriormente Lukács, na sua ontologia, nos legaram.
Esta pesquisa bibliográfica, de Janaína Lopes do Nascimento Duarte, explica a partir de Marx e de autores marxistas brasileiros contemporâneos, o que é trabalho produtivo e trabalho improdutivo na sociedade burguesa; o trabalho produtivo, produzindo um bem material ou imaterial, uma necessidade do estômago ou do desejo, está diretamente no processo imediato de produção e é comprado pelo capitalista para produzir valor maior, enquanto que o trabalho improdutivo é comprado pelo consumidor para consumir seu valor de uso.
Ainda que os assalariados do comércio não estejam diretamente no processo imediato de produção, são produtivos interiores à produção capitalista e à circulação de capital, são funcionais ao modo de produção capitalista e estão inseridos como classe despossuída no seu processo global de produção; os funcionários públicos, por sua vez, que são classe média/pequena-burguesia, também encontram-se de fora do processo direto de produção de mais-valia, não vendem força de trabalho diretamente ao capital, mas estão ligados ao Estado, instituição absolutamente necessária ao sistema capitalista, pois seus salários provêm de fundo constituído pela redistribuição dos rendimentos do sistema capitalista através dos impostos, que correspondem a uma parte dos rendimentos (salários, lucros e renda da terra) apropriada pelo Estado. (Como parte do sistema, os docentes, de uma forma geral, tanto público ou privado, ou seja, tanto o improdutivo quanto o produtivo, a partir de reformas educacionais acríticas e de ideologia neoliberal, acabam formando cabeças para o mercado de trabalho…) Mas o trabalhador de uma fábrica norte-coreana não pode ser comparado com um funcionário estatal brasileiro, pois o primeiro produz como um trabalhador do setor privado capitalista… Os empregados domésticos, por sua vez, ou os empregados temporários de escritórios, também são improdutivos, porque sua força de trabalho é comprada para o valor de uso particular de servir as famílias, ou seja, é um trabalho que se troca por rendimento e não por capital. Mas esse rendimento só pode provir do valor criado pelo processo de produção. Um trabalhador que contrata um empregado doméstico lhe dará parte de seu salário; contratado por um empresário, terá parte da mais-valia dos possuidores; contratado por um proprietário de terra, terá parte da renda fundiária do proprietário. Os serviços temporários de atores, músicos, prostitutas, auxiliares de escritório vendem trabalho improdutivo para o lucro, sendo que estes serviços foram certamente pagos com a renda ou derivam do trabalho produtivo, podendo estar subordinada à produção de mais-valia ou escapar de tal processo, dependendo do caso. O trabalhador autônomo, também exterior à produção, não gera sobre-valor, porque sua força de trabalho é utilizada por seu valor de uso próprio, mas está preso ao sistema capitalista através da redistribuição dos rendimentos.
Mesmo com tantas formas de trabalho improdutivo, explicadas rapidamente acima, toda a produção é produção do trabalho produtivo, porque, mesmo afastados dos muros das empresas capitalistas, só podemos produzir mercadorias com as matérias-primas e os instrumentos de trabalho produzidos pelas grandes empresas, por causa da brutal axiomática sistêmica do capital ou da forma mercadoria.
Disso podemos apreender que o trabalho, na Coréia do Norte, mesmo sendo assalariado a partir do “Estado”, não deixa de ser produtivo no contexto da indústria bélico-militar e de outras “economias” que por ali passam, mas, em grande parte, é um funcionamento heterodoxo ao modelo ocidental – seria errôneo dizer que todos os funcionários de lá são classe média/pequeno-burguesia (que, aqui, fazem parte da burocracia estatal), quando, na realidade, parecem muito mais com o operariado produtivo, dada a configuração do trabalho e o produto do trabalho.
O recente caso ocorrido na Região Industrial de Kaesong ilustra bem meu ponto. Como se sabe, apesar da planificação, cresce o comércio em vários pontos e há áreas industriais na Coréia do Norte, ou seja, passa ali algum fluxo de capitais; o complexo militar de Kaesong significou uma aproximação com a Coréia do Sul, que forneceu eletricidade, água tratada, petróleo e material de construção para a manufatura, enquanto a Coréia do Norte fornecia a região e os trabalhadores; a Região Industrial foi temporariamente pausada em 2016 quando se soube que os militares da Coréia do Norte estavam realizando um teste de bomba de hidrogênio.
Ou seja, a classe dominante norte-coreana usa a maior parte dos recursos para a Defesa, além de serviços básicos públicos, obras faraônicas e propinas para a elite. As fazendas e fábricas são povoadas de trabalhadores que não parecem ter real autonomia revolucionária, assim como os daqui; o rendimento geral é detido, as próprias fazendas e fábricas não são da classe trabalhadora, mas de uma classe dominante nacional, ainda que possa se dizer que são do “Estado”, logo seriam “propriedade pública”, entretanto não é novidade nenhuma, para quem leu Engels (ver a foto de trecho do Anti-Dühring lá em cima), que o Estado é o Estado da classe a ser tornado supérfluo “no momento em que não houver mais classe social para manter em opressão”. A Coréia do Norte é melhor do que o luxo da nossa burguesia (há relatos de que Kim Jom Un e seu pai sempre se aproveitaram de prazeres exagerados) e do que Wall Street sustentando o complexo industrial-militar dos EUA, e vice-versa? É o avesso? O outro lado da moeda? Não me parece melhor, mas, para responder, seria preciso não uma opinião, e sim um estudo antropológico, da qual não é plenamente possível por causa do fechamento do regime… As conclusões a partir da exploração econômica por meio da teoria do valor podem ser suficientes.
Agora, vamos problematizar novamente o caráter heterodoxo da Coréia do Norte a respeito do trabalho.
No Tomo II dos Grundrisse, tratando do papel do Estado na relação das condições gerais da produção, Marx assinala: “Pode fazer trabalho ou investimentos que sejam necessários, sem serem produtivos no sentido do capital, isto é, sem que o sobre-trabalho contido neles se realize como mais-valor por meio da circulação, do intercâmbio”.
Um operário estatal da sociedade burguesa, exemplifica Marx, que constrói uma estrada deixa modelado seu sobre-trabalho que, a priori, não se pode vender, por ser estatal; é pago pelo custo de sua força de trabalho, despende um sobre-trabalho não retribuído que não se pode concretizar em mais-valia, pois não se troca no mercado. Os empregados públicos são pagos com o rendimento (impostos), não com o capital variável. Conclui Marx: “Por conseguinte, todas as condições gerais, coletivas da produção – enquanto não possa ocorrer sua criação pelo capital enquanto tal, sob suas condições – se cobrem com uma parte do rendimento nacional, do erário público, e os operários não se apresentam como trabalhadores produtivos, ainda que aumentem a força produtiva do capital”.
No entanto, expandindo o pensamento para além do capital, Marx ensina:
“Onde reina o capital (tal como ali onde há escravidão, servidão ou trabalho compulsório de qualquer tipo), o tempo de trabalho absoluto do trabalhador é posto como condição para que ele possa trabalhar o necessário, i.e., para que possa realizar o tempo de trabalho necessário à conservação de sua capacidade de trabalho em valores de uso para si. Em qualquer tipo de trabalho, a concorrência faz com que o trabalhador tenha de trabalhar o tempo completo – portanto, o tempo de trabalho excedente. Pode acontecer, entretanto, que esse tempo de trabalho excedente, apesar de contido no produto, não seja trocável. Para o próprio trabalhador – comparado aos outros trabalhadores assalariados –, é trabalho excedente. Para aquele que utiliza o trabalho, é certamente trabalho que tem um valor de uso para ele, como, p. ex., seu cozinheiro, mas não tem nenhum valor de troca, de modo que toda distinção entre tempo de trabalho necessário e excedente não existe. O trabalho pode ser necessário sem ser produtivo. Todas as condições gerais, coletivas, da produção – enquanto sua produção ainda não pode se realizar pelo capital enquanto tal, sob suas condições – serão custeadas, por conseguinte, por uma parte da renda do país, pelo erário público, e os trabalhadores aparecem não como trabalhadores produtivos, muito embora aumentem a força produtiva do capital.” (Grundrisse, p. 712)
O emprego público ou estatal, mesmo sendo assalariado como outro qualquer, está, do ponto de vista econômico, “em outra relação, se não de capital, enquanto capital”.
O beneficiário imediato deste sobre-trabalho não é diretamente o capital privado, mas as finanças da empresa e do Estado. Acontece que não existem “capital privado” e “Estado” sem classe dominante por trás, ou seria como tratá-los de maneira abstrata e pouco concreta.
É de se assinalar que geralmente as empresas estatais ocidentais são implantadas em áreas de baixa rentabilidade ou alto risco, ainda que necessárias para o funcionamento social. É exatamente por isso que o capital privado prefere que o Estado burguês o brinde com os ganhos indiretos pelo capital, descartando intervir de forma direta na sua exploração; obtém a baixo lucro e incorpora a seu processo produtivo, transferindo esses ganhos ao produto final que sai de suas empresas privadas e aumentando os lucros capitalistas ao reduzir o custo de financiamento.
A partir de informações das alfândegas internacionais (a Coréia do Norte não publica estatísticas sobre seu comércio externo), sabe-se que o país exporta mais (intercâmbios que ultrapassaram 6,5 bilhões de dólares, cerca de 20 bilhões de reais) do que países como Malta, Senegal, Líbano, Cuba ou Afeganistão, e que 85% dos produtos que entram na Coréia do Norte advêm da China (o resto, Pyongyang compra da Índia, Rússia e Tailândia). A China, por sua vez, compra 82% das exportações norte-coreanas, além de Índia, Paquistão e Angola também contribuírem nas negociações com a Coréia do Norte. Assim, é muito claro que a Coréia do Norte participa da “economia mundial de mercado”, isto é, do fluxo de capitais. É impossível imaginar um país descolado do resto da circulação mundial, sobretudo em décadas de globalização.
A Coréia do Norte exporta carvão (35% no total, segundo a matéria supracitada), quase totalmente comprado por Pequim; o comércio de carvão mineral (hulha) gera receita em torno de bilhão de dólares, ainda de acordo com a matéria acima. As sanções e embargos, portanto, muito comuns nessas áreas, impactam sobremaneira a classe trabalhadora da Coréia do Norte. A Coréia do Norte também exporta produtos têxteis (camisetas de malha, casacos, jaquetas, ternos e calças) que ultrapassam os 100 milhões de dólares. O segundo comprador destes produtos, em 2015, foi a Espanha (361.000 dólares). A França, ainda segundo os dados da matéria, comprou moluscos norte-coreanos pelo valor de 703.000 dólares. É o jogo das altas classes dominantes, em que o grande montante, gerado pelas forças produtivas, não é administrado pelos de baixo.
Pyongyang importa uma vasta gama de produtos: tecidos sintéticos, aparelhos de televisão, telefones, automóveis, pneus, computadores, óleo de soja, peixe congelado, mas a Coréia do Norte procura, como todo país que se preze, petróleo, e nisso, ainda de acordo com a matéria supracitada, seus principais fornecedores em 2015 foram China (62,5% do total), México (24,3%), Rússia (10%) e Turquia (2,5%).
O desequilíbrio estrutural gerado pelo fato de comprar muito mais do que vender é suprido em parte pelo investimento chinês no país, pelo superávit turístico (sobretudo de cidadãos chineses), pelas remessas enviadas pelos 50.000 trabalhadores norte-coreanos de vários setores do exterior, ajuda humanitária e empréstimos sem juros de seus aliados, além do contrabando.
A Coréia do Norte é, infelizmente, repito, uma distopia (uso esta expressão sem qualquer intenção pejorativa ou caricata), é uma sociedade em permanente estado militar de paranoia produzida pelo mortífero combate das classes dominantes durante a Segunda Guerra Mundial e a traumática fratura geográfica; a sociedade dos EUA vive também a sua particular paranoia em defesa de seus privilégios, primeiro contra “o comunismo”, depois “contra o terrorismo”, e a sua prosperidade não é mais do que uma conquista bélica, ainda que seja uma sociedade muito mais complexa, multiétcnica, multicultural, por conta da história e da abertura (mesmo com protecionismo).
Assim, os apologéticos não estão defendendo a classe trabalhadora norte-coreana. Defender o povo contra uma guerra nuclear até a Organização das Nações Unidas o faz, e qualquer liberal… Isso é, de fato, o mínimo, em termos humanistas.
Em âmbito filosófico, é ainda mais simples: pode-se dizer que se está em favor e a serviço da classe trabalhadora (o universal), mas as ações são de acordo com os interesses e condições de classe (o particular), então a primeira categoria, com ganhos e equívocos, não é totalmente cumprida no nível prático.
Os trabalhadores norte-coreanos mantém, com seu trabalho, a máquina estatal, mas não detém os meios de produção através de organizações autônomas da classe trabalhadora, tal como elaborou Marx na Crítica do Programa de Gotha. Arrisco a dizer que, uma vez que o Estado não é tudo no Ocidente, tal como Gramsci ensinou, uma vez que a sociedade civil ocidental tem maior capilaridade do que no Oriente, em que o Estado era tudo, é possível que do lado de cá do mundo haja mais organizações classistas de trabalhadores independentes do que na Coréia do Norte. (Recentemente, conforme foi noticiado, uma fábrica de alfajor e de doces na Argentina faliu; os próprios trabalhadores, que iriam para a rua, tomaram conta da fábrica e a transformaram em cooperativa, sem excedente, sem lucro, sem patrão, sem mais-valia. Infelizmente, essa tomada dos meios de produção é um mísero exemplo, que deveria se espraiar em áreas fundamentais da economia, fosse o governo peronista realmente revolucionário… Além do mais, se deu não por um processo revolucionário, mas pela falência da fábrica – e possivelmente do capitalista, que com certeza não é o dono do terreno, sendo este dono um proprietário fundiário que dele devia cobrar aluguel. Não faltaram brasileiros, aqui e aqui, um pouquinho mais lúcidos, afirmando que, finalmente, essa tomada do meio de produção pela classe trabalhadora é um exemplo comunista no qual Marx e Engels se orgulhariam. Ninguém pode dizer, se utilizando dum eurocentrismo marxista etapista – que o próprio Marx tratou de mitigar na Carta a Sigfrid Meyer e August Vogt e na Carta à redação da Otechestvenye Zapiski – que a Argentina é “rica” e “suficientemente desenvolvida” para aquela movimentação operária; ao contrário, está numa crise violenta. A Coréia do Norte é país subdesenvolvido ou em desenvolvimento, mas era mais rica que a do Sul, conforme já supracitado, tem um campo industrial, fabril, fazendas, e, se hoje dizem que é comunista, precisava ser comunista de fato, radicalmente comunista.)
Essa máquina, como toda máquina estatal, é controlada por uma classe dominante sobre as outras, no nível superestrutural: toda máquina totalitária precisa de um forte esquema burocrático, militar, policial, propagandístico, educacional, etc.
O excedente, na Coréia, é usado para manter essa máquina, que não gera valor. Há propriedade privada dos meios de produção detida pelos altos oficiais da classe dominante.
Nesse sentido, a única coisa que os trabalhadores norte-coreanos podem fazer é vender para o Estado (que se confunde com o burocrático Partido dos Trabalhadores) a sua força de trabalho, uma vez que os trabalhadores não são os detentores dos meios de produção. Esta é a condição da classe trabalhadora por lá, assim como para a classe trabalhadora aqui – embora, do lado de cá do mundo, os meios de produção são detidos por uma explícita classe capitalista e pelos donos do PIB, que escolhem seus representantes políticos para gerir o Estado burguês. Nos EUA, o que nasce de ciência através de volumosos investimentos públicos em laboratórios militares e meios acadêmicos, logo é vendido e monopolizado para bilionários da Apple. Na Coréia do Norte, é administrado pela classe dominante tecnocrática.
Os apologéticos dirão que o aparato está à serviço da população e dos trabalhadores contra as pressões do Ocidente e do imperialismo (capitalismo hegemônico reacionário) das potências dos EUA e da Europa. Ninguém nega que o regime não se abre por conta da pressão do Ocidente sobre o país. Anos e anos de isolamento contribuíram para o fechamento do regime.
Os apologistas, entretanto, precisam de uma antropologia política para afirmar aquilo, mas eles não a têm. Uma forma de se romper as amarras dogmáticas de um certo comunismo e marxismo é a análise antropológica: como os atores se representam, como agem, pensam no cotidiano, em suas mais variadas formas, aliado à concepção materialista da História. Marx e Engels, em vida, faziam questão de coletar dados e entrar em correspondência com organizações de trabalhadores pelo mundo que não conheciam… Não existe, porém, aprofundada e ampla pesquisa empírica na Coréia do Norte, que não esteja vinculada ao governo (que, lá, se confunde com o próprio Estado), muito menos as de caráter antropológico.
Resta a eles, então, uma prática propagandista e ideológica de acordo com o aparato extrínseco, nada mais.
Um colega meu distante visitou, anos atrás, Pyongyang, a capital da Coréia do Norte. Pedi breve relato a ele para este texto. Seu relato foi o seguinte (ipsis litteris):
“O país consegue garantir habitação, saúde e educação gratuita pra maioria da população. Pyongyang é uma cidade interessante, com ruas amplas e arborizadas, tudo muito limpo e bem cuidado, há uma boa estrutura de lazer, cinemas, teatros, pistas de patinação/skate, clubes aquáticos etc. O interior é mais pobre, mas não miserável. Segundo o embaixador brasileiro na época, sr. Roberto Collin, a grave crise alimentar da década 90 já havia sido superada. Longe de ser o país perfeito, mas também distante do que nos é noticiado corriqueiramente.”
E daí? Nos países “nórdicos”, que são “a maravilha” para a esquerda reformista, também há parecidas características em relação à vida cotidiana (às custas dos trabalhadores dos países subdesenvolvidos, vários deles imigrantes desempenhando serviços e trabalhos que a classe trabalhadora europeia já não mais exerce).
Isso é positivo em si mesmo?
Em termos de marxismo, não.
Para a teleologia marxiana e marxista, isso é o básico e isso é pouco.
É a proposta econômica da social-democracia e dos “pelegos” do liberalismo social.
Quando a vida da classe trabalhadora parecia melhorar em fins do século 19 através das conquistas sociais e trabalhistas e por melhores direitos, Engels ; “melhores salários” e “jornada de trabalho” , Marx “Salário, Preço e Lucro”. Eles continuam sendo a vanguarda.
Como, então, essa crítica pode se dar em um país que não tem uma classe capitalista explícita, e cuja economia de mercado é subterrânea, de contrabando e clandestina?
Há os detentores dos meios de produção, que definitivamente não são os trabalhadores norte-coreanos.
Rafael Albuquerque, em seu recente livrinho Por que não houve socialismo na experiência soviética? (São Paulo: Instituto Lukács, 2020), em que, a partir de Marx, Engels e Mézsaros, se utiliza de três argumentações …
“1) A permanência da cisão antagônica entre classe produtora e classe dominante;
“2) O fortalecimento do Estado;
3) A permanência do sistema do capital” (Ibidem, p. 12)
… nos fornece logo na introdução o substrato teórico-prático do pensamento revolucionário e emancipatório de Marx a respeito do trabalho nos diferentes tipos de sociedades de classes:
O encontro entre força de trabalho e meios de produção, cuja finalidade é produzir valores de uso, não tem, em princípio, um caráter capitalista, uma vez que tal relação é condição perene da humanidade para produzir sua vida em qualquer forma societal. (A capitalização, sabemos, virá num processo bem avançado do desenvolvimento da história humana, sobretudo a partir do século 16, tendo encontrado o seu ápice no 19.) Por esta razão, de início, Marx dá um tratamento genérico aos meios de produção no interior do processo de trabalho, já que, per se, eles não têm uma natureza capitalista e só adquirem este conteúdo histórico quando o trabalho, a força de trabalho que os utiliza se transformou numa mercadoria, ou seja, quando se estabelece a relação especificamente capitalista, cuja condição essencial é a conversão da força de trabalho em mercadoria.
Essa relação capital-trabalho pode ser vista na Coreia do Norte: o trabalho, lá, é mercadoria.
E, assim como na Coréia do Sul, os marxistas revolucionários desejamos a tomada de empresas como Kia, Samsung, LG ou Hyndai (inclusive, as três instaladas enquanto multinacionais aqui no Brasil) para os trabalhadores livremente associados, assim também enxergamos o problema social na Coréia do Norte à tomada dos meios de produção pela classe trabalhadora, não por uma família e seus cupinchas militares, que só se justificam enquanto Defesa contra o capitalismo imperialista, mas mesmo essa justifica é meio verdade, meio falsa, porque pressupõe desviar o foco e não encarar o problema.
Frente a esse xadrez geopolítico, o rapaz, como bom imbecil, resume as coisas a “amizade”.
Frente a esse xadrez das lutas de classes, o rapaz, como bom imbecil, resume as coisas a “xadrez geopolítico”.
Em nenhum momento resumi à “amizade”! Apontei o fato inconteste da aliança entre classes dominantes ou suas representações, ao invés de tratar a Coréia do Norte como um todo abstrato, enquanto os Estados Unidos aparecem aí em cima representados com seus governos momentâneos, o que também é uma definição prematura que mal considera o paradigma do complexo industrial-militar.
A palavra “amizade”, que jamais usei, é usada pelos próprios protagonistas, que, depois de se ameaçarem superficialmente de morte e destruição, agitando seus “gados”, dão-se as mãos. O recente livro Rage, de Bob Woodward, revela 25 correspondências trocadas entre Kim Jong-un e Donald Trump. Em uma delas, o próprio Kim fala em amizade com “força mágica”. Ou seja, o “líder supremo” dos pseudomarxistas tem uma amizade do tipo “força mágica” com um capitalista falido da extrema-direitalha dos EUA!
Criticar isto não é criticar o “povo” norte-coreano.
Leu tanto Lukács e nunca aprendeu o que é “análise concreta de situação concreta”.
A definição do marxismo enquanto “análise concreta de situação concreta” não é de Lukács, mas de Lênin (em seu texto “Kommunizm” de 1920, publicado no Jornal da Internacional Comunista Para Países do Sudeste Europeu), cujas reclamações e preocupações finais em relação às falhas do burocratismo são ainda válidas e pertinentes, conforme podemos ver no texto “Sobre o significado do materialismo militante” (em que cita dois burocratismos sobrepostos a serem mitigados: o burocratismo russo, mais antigo, legado pelo czarismo despótico e que os bolcheviques não conseguiram superar, e o burocratismo novo, soviético). A degeneração dos Sovietes com a industrialização acelerada, a militarização do trabalho e a expropriação de camponeses (proposta deplorável de Trótski que Stálin implantará) se dá em grande parte por uma maior acomodação da nova classe ao burocratismo – faltaram afirmação e legitimação do poder dos Sovietes. Lênin, antes, teve de se defrontar com muitas contradições; é preciso lembrar que o autor de O Estado e a Revolução, enquanto revolucionário clandestino, segue à risca as preposições do Engels do Anti-Dühring a respeito do definhamento do Estado a partir do momento em que a classe trabalhadora revolucionária o toma e socializa os meios de produção para a sociedade, mas, no plano do real, diante de capitalismo atrasado, do isolamento, da fome, da revolução alemã fracassada e outros problemas, o Estado não superou totalmente resquícios da velha ordem.
Ademais, quando Lênin trata da “análise concreta de situação concreta”, obviamente ele tem um horizonte revolucionário a partir de táticas de acordo com as necessidades e condições.
Mas, aqui, “análise concreta de situação concreta” é reduzida a pura tática conjuntural a serviço do aparato. Não se exerce qualquer ação calcada no marxismo.
E atenção com a palavra “concreto”!
“Quando exagero os caracteres abstratos deste concreto, chego a um ponto onde a racionalidade do nexo racional anterior cessa” (Lukács, Pensamento Vivido: Autobiografia em Diálogo, Instituto Lukács, São Paulo, 2017, p. 136)!
Finalmente, já que Lukács foi citado, é ele quem nos fornece cirurgicamente a chave para explicar esse fenômeno da “nova linha” do PCB – tratam-se de resquícios “stalinistas” na ação política. Vejamos o que o próprio Lukács ensina, e como casa perfeitamente (Ibidem, grifos meus):
Isto explica por que não estamos tratando da questão no mesmo nível. Eles estão na simbologia, na retórica e na particularidade da universalidade vazia, ainda que a intenção possa ser boa – excluindo os oportunistas. Considerando a categoria da particularidade, eu estou na crítica revolucionária marxista.
Esse tipo de “marxismo” é impotente e incapaz de qualquer ação política. Fala em materialismo, mas é idealista, desinformado e perdido no mundo.
Esse tipo de marxismo é a própria bibliografia marxiana! É inacreditável como simplesmente se despreza a teoria em nome da supervalorização da conjuntura!
Não há ação política alguma – há militância acrítica, pseudomarxista em favor do aparato, não da autonomia da classe trabalhadora em favor da construção de uma sociedade comunista sem antagonismo de classes.
“Esse tipo de ‘marxismo'”, que negligencia a teoria do valor (defendendo o trabalho assalariado, exploração do capitalismo), a teoria do poder e do Estado e outras mais possui uma potência apenas basista, mas que é incapaz de qualquer ação política transformadora que não seja a parasitagem no Estado, em detrimento de CONSELHOS e COOPERATIVAS colocados no topo, acima e diretamente envolvidas na produção da sociedade.
Já não é mais marxismo, nem em sua análise social nem como práxis de uma construção revolucionária. Não à toa, Kim Jon Un não é nenhum grande elaborador marxista; o Juche e o Kimilsungism serviram para a “norte-coreianização” do comunismo, mas não servem à luta revolucionária a não ser em termos simbólicos, ideológicos e retóricos; a mera apologia emperra a construção revolucionária e despreza o marxismo. Repercute, afronta jornalistas neoliberalóides brasileiros e ocidentais que propagam a falsa dicotomia-armadilha de ditadura versus democracia, serviçais da burguesia, mas nada diz à realidade brasileira, por exemplo. É comunismo? Mas um comunismo cujo referencial é a classe dominante da burocracia, não a organicidade tal como ensinou Antonio Gramsci contra o centralismo burocrático, em nome do centralismo democrático e orgânico, em que sujeitos do mais profundo da massa, transformando-se em intelectuais orgânicos, sejam a direção do partido, mas não como “funcionários”.
É idealista, porque insiste no modelo do aparato tecnocrático pairando acima da classe trabalhadora e no culto à figura do “líder supremo” com todas suas simbologias míticas subsequentes; é desinformado, porque não esclarece as lutas de classes e a mais-valia ou o excedente dos trabalhadores; é perdido no mundo, porque luta para classes dominantes que estão pouco se lixando para nós, e tampouco consegue esboçar uma nova diplomacia mais digna.
Na melhor das intenções, esse “comunismo” ou “marxismo” pretende ser a defesa de uma luta anti-colonial, anti-imperialista, anticapitalista, mas, por sua própria defasagem teórico-prática interna, descamba para uma defesa de classes dominantes que estão longe de ser trabalhadoras; ao invés de construção revolucionária, conduz à parasitagem cleptocrática do Estado.
Que os coreanos, do Sul e do Norte, encontrem seu próprio caminho de paz. Eles não precisam da China ou dos Estados Unidos para isso, pelo contrário.
Que o Brasil e a “América Latina” trabalhem por uma radical construção revolucionária na ótica das lutas de classes através da teoria do poder, do Estado e do valor, senão a prática e a militância continuarão a desejar.
– Trata-se de uma “antologia” em construção. Veremos, através da própria vida-obra de diversas autoras proeminentes do marxismo, que, nem do ponto de vista teórico, muito menos do ponto de vista prático e histórico factual, no fundo, quando o assunto é Crítica e Emancipação, o marxismo não é oposto ao feminismo (há feminismos, e aqui, é claro, entende-se o método e o conteúdo do feminismo enquanto crítica classista da exploração da mulher e pela transformação socioeconômica estrutural da sociedade, menos quando o feminismo se reduz a um movimento sóciopolítico arrivista de classe média, o que o faz adequar-se à retaguarda do liberalismo), embora tal intersecção entre feminismo e marxismo, tanto no método quanto no conteúdo, seja mais complexa e problemática do que pareça (ou, talvez, falsa, não havendo, para algumas autoras, separação entre as lutas e teorias). Hoje, já existe um feminismo marxista; também existem marxistas mulheres que não fazem questão de usar o termo feminismo ou que o tornam indissociável do marxismo, sem contar as feministas ecléticas que se utilizam, vez ou outra ou sempre, do método marxista para determinados fins teóricos e práticos. Não faltam ainda hoje e não faltaram marxistas e comunistas mulheres que exerceram críticas ferrenhas ao ecletismo e ao feminismo liberal pequeno-burguês das próprias mulheres… É consenso, entre elas, que esse feminismo não é alternativa superior ao marxismo nem pode lhes oferecer plena emancipação e crítica.
– A conclusão que podemos estabelecer através das autoras logo citadas (que escreveram e pensaram a partir de uma prática pela transformação da realidade e do status quo) é que, sem o marxismo, o feminismo, assim como todas as outras fileiras e campos ideopolíticas novas e antigas, torna-se meramente representativo e desejo de ascenção e inclusão efêmeras, manco, ingênuo, até politiqueiro, superficial e arrivista, incapaz de compreender as raízes dos seus problemas e resoluções, cooptável pela própria estrutura que pensa combater e não a supera; sem as contribuições teóricas e de luta específicas das mulheres, o marxismo, por sua vez, que desde o início esteve conjuminado a elas, seria distante, possui lacunas teóricas e problemas básicos de práxis diante dos desafios do nosso tempo. Vale lembrar que, mesmo estatisticamente, as mulheres estão em peso na massa e na classe trabalhadora, no arcabouço fundador e mantenedor de nossas sociedades e cada vez mais a ocupar espaços intelectuais, tornando-se impossível não vislumbrá-las no topo das lutas e dos debates, assim também com negros e miscigenados.
– Antes de qualquer coisa, “marxismo” refere-se, é claro, ao gênio Karl Marx (1818-1883), um revolucionário cuja obra, basilar, seminal, a grosso modo – simplificando muito para não sairmos do objetivo específico desta pequena antologia – expõe e estuda, através da concepção materialista da história (expressão frequente de Friedrich Engels, seu parceiro intelectual e de militância) e de um novo método dialético, a sociedade de classes burguesa e a estrutura capitalista exploratória, defendendo para a sua superação a construção do comunismo pela classe trabalhadora, tal como os capitalistas modernos tomaram o poder político e econômico da aristocracia no curso do desenvolvimento da história humana. Traçamos o marxismo em três partes que se intercalam num tripé, tal como propõe o Anti-Dühring: a teoria do valor (a partir da crítica da Economia Política), que identifica a exploração do capital; a filosofia dialética e a concepção materialista da história, cujo “elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real“; o socialismo enquanto lutas de classes e teoria do poder, da revolução e do Estado. É impossível, aqui, nos aprofundarmos nestas três partes, coisa que faço sempre que posso em outras oportunidades. O importante, por enquanto, é sabermos que não há marxismo (ou há um pseudomarxismo) quando se esquece ou se negligencia uma das partes supracitadas.
– Na obra de Marx, não há identidade sexo/gênero, nem mesmo em cartas ou notas (a menos que descubra-se algo inédito para o MEGA) de maneira aprofundada, apenas algumas colocações muito pertinentes e por si só fundamentais, conforme veremos. O Manifesto (1848) da Liga Comunista (que contava com a participação de mulheres) já trazia a necessidade da “comunidade de mulheres” independente contra a dominação burguesa, antecipando de maneira impressionante as lutas feministas e propondo uma via revolucionária. Somente podemos acusar Engels de homofóbico (em um ou outro episódio, como no caso do pioneiro gay e socialista Karl H. Ulrich, ou para tratar da pederastia grega antiga), mas de uma maneira tão pueril e sarcástica que, naquela sociedade vitoriana hipócrita, fundamentalista e puritana de então, que aprisionava, condenava e cerceava os destoantes, é algo que torna-se quase batido e nada criminoso. É certo que o miolo da obra de Marx é eurocêntrico (vale lembrar que, saindo do atraso político e econômico da Alemanha de então, por forças maiores ele se exila na Inglaterra, onde o capitalismo industrial estava muito mais desenvolvido, com todas as agruras sociais provenientes desse desenvolvimento – a elite inglesa foi catapultada a partir do ouro brasileiro, vale dizer), mas em cartas e em trechos de várias obras Marx não deixou de mostrar interesse, até o fim da vida, e sobretudo nos anos finais, em muitos outros países e nas regiões periféricas do capital.
– Como se sabe, não são poucos os conceitos nem pobres as teorias implicadas a partir de tal simplificação do que é o marxismo, mas há um termo marxiano que nos importa, por enquanto: Marx nos fala no “ser social” – até então, não se aprofunda em gênero, raça, sexo, identidade ou outro componente deste “ser social” e jamais tomaria qualquer uma dessas categorias como central do ser social, porque o que funda este ser é o trabalho, esta, sim, uma categoria (ou até mesmo ação) fundante. O caráter fundador do trabalho no ser social unifica toda a raça humana, mas, sem as particularidades (inclusive de classes sociais!) do ser social, essa afirmação seria puramente idealista, abstrata e fora da realidade concreta. Dito isto, é importante também afirmar que, uma vez dispostos os termos “marxiano”, “teoria marxiana”, “obra marxiana” e afins (para identificar as próprias obras de Karl Marx), todos sabem que o termo “marxismo”, por si só, e já ampliado a partir do homem que lhe deu o nome, apesar de calcado em fundamentos contrários a ecletismos, dogmatismos, deturpações e deformações, nunca foi inteiramente monolítico nem em táticas e estratégicas nem no método e na teoria (“Tudo o que eu sei é que não sou marxista”, teria dito ironicamente o próprio Marx, mas a respeito de pseudomarxistas franceses já do seu tempo, conforme registra Engels numa carta).
– No marxismo (ou na própria obra marxiana), a relação sujeito – objeto não é prejudicada por um suposto predomínio do sujeito econômico (da sujeita econômica) em detrimento do sujeito histórico (da sujeita histórica); nem há objeto sem sujeit@ ou sujeit@ sem objeto. Marx frisa, nas Teorias da Mais-Valia (Theorien über den Mehrwert), que há uma conexão entre a produção intelectual e a produção material e que esta última não deve ser considerada “[…] como categoria geral, mas em forma histórica determinada. […] Se não se concebe a própria produção material em sua forma histórica específica, é, então, impossível compreender o que é determinado em sua produção espiritual correspondente e a ação recíproca entre ambas”. E, embora Marx nada tenha escrito especificadamente sobre subjetividade, pululam em sua obra passagens que fornecem bases para uma construção teórica da subjetividade (Eduardo F. Chagas, “O pensamento de Marx sobre a subjetividade”, Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 2, p. 63-84, Maio/Ago., 2013, p. 66), que jamais é autônoma ou pura muito menos simplesmente natural e imediatamente dada, mas construída socialmente, estando em movimento, produzida numa dada formação social e em determinado tempo histórico. Em consequência, tal subjetividade se constitui na relação com a sociedade (hoje, capitalista – e que estágio e tipo de capitalismo?!) que a forja e a mantém.
– É consenso contemporâneo no marxismo, sobretudo em suas fileiras mais radicais, que o direito ao voto às mulheres e a proibição da discriminação de gênero ou raça, além de outros direitos individuais conquistados no curso do século 19 e 20, não significaram, por si só (e isto é explícito no século 21), “a plena igualdade social da mulher ou do negro, mas sim, instrumentos melhores para a reprodução do patriarcalismo e do racismo em condições mais estáveis e menos conflituosas” (Alysson Mascaro, “Direitos humanos: uma crítica marxista”, Lua Nova, São Paulo, págs. 109-137, 2017, p. 132; cf. também I. M. Wallerstein, “The ideological tensions of capitalism: universalism versus racism and sexism”, 1991, In: BALIBAR, E.; WALLERSTEIN, I. M. Race, nation, class: ambiguous identities, London: Verso, pp. 29-36., p. 34). Talvez possamos discutir se tudo não passa de uma questão de tempo: a curto e médio prazo, a elevação social dos status de amplas camadas sociais; a longo, a construção revolucionária, mas por que entrar pela janela, quando há a porta, não raro invadida pelo genócidio negro (fruto da colonização/escravização/capitalismo) ou pela violência contra a mulher (fruto da propriedade privada nas mãos do homem)? E é possível chegar a um objetivo histórico transformador tomando outro rumo sem a perspectiva desse objetivo? Em que medida as lutas fracionárias “identitárias” se acomodam a um arrivismo de mentalidade pequeno-burguesa e fazem com que a esquerda se distancie dos estratos da base da pirâmidade, cooptados então por formas direitistas e até fundamentalistas? Etc.
– Também há um consenso no marxismo, neste nosso tempo contemporâneo, de que não são a ecologia “pura”, o pós-modernismo, o individualismo metodológico, o desconstrucionismo e afins as alternativas superiores ao marxismo para perceber a realidade e propor radicalidade emancipadora (Michael Lowy, A Teoria da Revolução no Jovem Marx, São Paulo, Boitempo, 2012 [1997], p. 21-22), mas que eventuais lacunas e até insuficiências no marxismo podem ser corrigidas por um procedimento aberto do marxismo não apenas aos movimentos sociais “clássicos” dos operários e camponeses, mas também “dos novos como a ecologia, o feminismo, os movimentos em defesa dos direitos humanos ou pela libertação dos povos oprimidos, o apoio aos índios da América Latina, a Teologia da Libertação” (Ibidem, p. 22), desde que (acrescento eu) isso não se torne um ecletismo vago, difuso, como, no geral, ocorre, desde que possamos trazê-los, em suas específicas seções, para as lutas de classes reais, verdadeiro terreno da construção revolucionária totalizadora.
– Algumas questões frequentemente levantadas quando se encara o feminismo marxista, conforme veremos em várias autoras e militantes: as questões que tangem a relação entre desigualdade (ou diferença) dita “natural” (etnia/gênero) e desigualdade social, questões da dupla jornada na mulher, trabalho produtivo e improdutivo, donas de casa e proletárias, o valor na especificidade feminina, etc.
– Sobre a categoria gênero, veremos que trata-se de termo incontornável para toda marxista feminista, mas cabe aqui um preâmbulo: havendo desconsideração intencional ou inconsciente dos fenômenos estruturais como dialeticamente determinantes da superestrutura (teoria social básica no marxismo e da concepção materialista), a tendência da abordagem de gênero torna-se o chamado “identitarismo”, desvinculação da luta antissistema, cooptação, arrivismo, mero desejo de adequação, inclusão e ascensão, epifenomenologia, etc. Arrisco a dizer que todo “identitarismo” é fruto de uma defasagem teórica.
– Notamos que o capital, nas últimas décadas, tem incorporado LGBTTIQA+s e o movimento negro como backlash de maneira mais ou menos análoga ao que se iniciou na segunda onda do feminismo. O cenário torna-se ainda mais difícil quando há uma extrema-direitalha regressiva abertamente racista, homofóbica e misógina, em sua defesa ultrapassada, moribunda e decadente de família tradicional, porque, diante desse confronto, a crítica marxista radical não ganha capilaridade para agregar as fileiras “identitárias”, ávidas por serem aceitas e incluídas no sistema representativo, simbólico, econômico, ingressar no trabalho assalariado exploratório, a lutar contra o capital. Mas, ao menos do ponto de vista ideopolítico, não é difícil elaborar essa construção, se for mostrada a raiz do preconceito, tal como as marxistas feministas de peso já o fizeram e ainda o fazem, conforme veremos.
– Estendendo a reflexão à ética marxista lukacsiana, não há ética no modo de produção capitalista; no limite, resta uma moral bem estreita vinculada à reprodução de mercadorias e mão de obra pauperizada, enfim, não há possibilidade de “liberdade” ou plena emancipação no capitalismo, na ordem capitalista… Aqui, cai por terra mesmo todo reformismo, embora tenha sido a grande revolucionária Rosa Luxemburgo quem escreveu, com boa dose de realismo, que reformas (obviamente, reformas estruturais e não de arranjamento ou manutenção do capital) só fazem sentido no interior de uma estratégia que tem por norte uma revolução anticapitalista, comunista.
– Progressismo não é a mesma coisa que revolução. “Forças progressistas” não são necessariamente “forças revolucionárias”… Marx, no informe “Salário, Preço e Lucro”, diante de uma epidemia de greves por melhores salários e melhores jornadas de trabalho, caracteriza tais reivindicações como “divisas conservadoras” e defende a bandeira da abolição do trabalho assalariado (pela tomada do Estado e dos meios de produção a serem socializados a todos)…
– Na ampla construção do socialismo, vamos precisar de todo mundo; somente um reacionário vislumbraria um socialismo só de homens cis-heteronormativos ou só de brancos ou só de estadounidenses ou só de europeus etc. etc. etc… (Não faria sentido, já que o capital engloba e domina tudo e todos – o capital é totalizante, e assim deve ser o socialismo, inclusive em suas táticas e estratégias revolucionárias.) Por outro lado, abdicar das lutas de classes e centralizar uma especificidade é brigar entre si, pulverizar a luta e fazer o jogo do sistema vigente de classes. O objetivo principal do marxismo é destruir com o antagonismo de classes e a exploração de uma classe pela outra. Quando o assunto é “identitarismo” e luta da mulher, negros, LGBTTIQA+, etc., costumo lembrar que Marx e Engels mostraram, em A Ideologia Alemã e em outros textos, que a classe dominante, ao deter os meios de produção da sociedade (e, por conseguinte, diremos também os meios de comunicação), domina por tabela a ideologia dominante que se encontra na superestrutra dessa sociedade. Em nosso tempo histórico moderno, tal classe dominante é constituída pelos capitalistas (detentores dos meios de produção – fábricas, empresas, terras, matérias-primas, ferramentas, commodities, etc.) e proprietários fundiários (que detêm os terrenos onde estão os meios de produção). Eis o que chamamos de burguesia (cf. nota de Engels à edição do Manifesto Comunista de 1888). Ora, pode-se identificar uma burguesa mulher (vide Luiza Trajano, bilionária dona da rede de lojas Magazine Luiza), mas é exceção que confirma a regra: a (i)lógica é patriarcal, a burguesia é o homem, macho, heternormativo, branco, eurocêntrico ou estadounidense das cidades e, por deter os meios de produção e a ideologia dominante, acaba essa classe reproduzindo na sociedade todas as formas de violência, exploração e preconceitos aos que fogem do modelo majoritário, sexismo, LGBTfobia, racismo, etc. Esta explicação, ainda que ligeira (seria preciso incrementar apontamentos dialéticos, impossível agora), é fundamental para a solidariedade de classes dos despossuídos com todas suas diversidades em torno de uma emancipação estrutural anticapitalista, processos revolucionários, construção revolucionária.
Feminismo e Marxismo: autoras, autores e livros
– A primeira referência a respeito de feminismo e marxismo que eu recomendo é o fervoroso texto de 10 páginas de Loreta Valadares (1943-2004), militante nos anos 1960 do Movimento Estudantil da Ação Popular (AP), quando o PCdoB não era PelegodoB (e tinha quadros realmente comunistas e revolucionários, ao invés de uma Manuela d’Ávila), bravamente participante da luta contra a ditadura militar, presa e torturada, o que lhe afetou a saúde para o resto da vida, posteriormente destacada professora de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, “A ‘controvérsia’ feminismo x marxismo” (Revista Princípios, N. 18, jun/jul/ago, 1990, páginas 44- 49), texto arguto, mas não sem uma boa dose de ferocidade militante. É muito bonito constatar a postura implacável de uma militante veterana, que não “virou a casaca” como tantas outras e outros, intrépida em sua luta, apesar dos pesares. Primeiramente, Valarades é taxativa: “É falsa a polêmica feminismo X marxismo”. Alguns apontamentos a se fazer a partir desse texto: (1) Ao contrário de muitas autoras feministas, Valadares entende que o materialismo histórico não se opõe ao feminismo enquanto concepção sobre a específica opressão da mulher na sociedade. Valadares denuncia os feminismos que pretendem que o marxismo negue a si mesmo, denuncia o ecletismo no socialismo, que sai do terreno da realidade e deixa de ser ciência. Escreve ela, combativa: “São as correntes feministas que se têm colocado em oposição ao materialismo histórico e à sua visão científica e metodológica das questões mais gerais da ciência social, sem cujo esclarecimento se torna impossível a explicação do desenvolvimento da vida social em seu conjunto. Consequentemente, fica-lhes difícil – se não impossível, dentro de sua visão estreita do problema específico – admitir o ponto de vista do materialismo histórica sobre a opressão da mulher e os caminhos de luta para sua emancipação; isto porque buscam a explicação sobre as origens e as formas de opressão da mulher fora das leis objetivas do desenvolvimento social e independente das causas últimas que originam as relações de dominação das sociedades antagônicas” (página 6). (2) Conhecedora da estrutura e da superestrutura, critica – citando as obras, e não de forma leviana – autoras feministas como Simone de Beauvoir, Juliet Michell e Schulamith Firestone, que viam no marxismo (mesmo em Marx e Engels) uma “redução” de tudo ao econômico e ao “homo aeconomicus”, e as ataca exemplarmente. Ela usa a obrigatória carta de Friedrich Engels a Joseph Bloch para afirmar que tais correntes feministas (na verdade, trata-se de um equívoco não só de certas feministas, mas geral) não compreenderam o marxismo, tomando-o como um economicismo vulgar. Acrescento que não falta apenas conhecimento da concepção materialista, mas da própria Dialética. (3) Não é errado concluir que, para Loreta Valadares, assim como para as mais brilhantes marxistas que veremos no decorrer desta antologia (limitada, mas incontornável), é através da própria luta anticapitalista, estrutural, classista e marxista que ocorrerá consequentemente a emancipação feminina, sem que se desconsidere os elementos específicos e próprios de tal emancipação.
– Aliás, o catatau de mais de 570 páginas Mulheres Na Luta Armada – Protagonismo Feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional), de Maria Cláudia Badan Ribeiro, recentemente lançado, pode jogar outras luzes à intersecção marxismo – feminismo, mesmo que, a priori, tenha um significado mais associado ao comunismo militante do que ao marxismo, e mais histórico do que teórico. Ora, qualquer lacuna nesses dois eixos podem ser resolvidos hoje a partir dos fatos expostos no livro. De qualquer forma, documenta sobre as próprias mulheres à extrema-esquerda inseridas numa orientação revolucionária. A ler.
– Jamais esquecer do caráter vanguardista, inovador e pioneiro do próprio Manifesto Comunista (1848) da Liga Comunista (que contava com a participação de mulheres militantes) e seu longo trecho a respeito da condição das mulheres, encaradas pela burguesia como meras reprodutoras da classe a ser perpetuada, enfim, mera propriedade do burguês. Havia, naquele momento, conforme o próprio Manifesto expõe, todo um planejamento comunista em torno da construção da “comunidade de mulheres” independentes para resolver a necessidade de eliminação da posição da mulher enquanto instrumento de produção, sendo essa uma das pautas na luta contra a sociedade burguesa.
– Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, explicam que a opressão específica tem íntima relação como processo de surgimento de propriedade privada, transformando a própria mulher em propriedade do homem.
– É Engels, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1883), que coloca a gênese da opressão específica da mulher e seu processo de formação com o aparecimento da sociedade de classes, “com elas se entrelaçando e refletindo seu antagonismo e sua luta ao longo da história, nas diversas etapas e em diferentes formações econômico-sociais” (conforme explica Loreta Valadares em seu texto supracitado). É preciso notar, porém, que a análise engelsiana sobre a origem do patriarcado é muito criticada aqui e ali, não só por feministas. Mesmo entre marxistas é entendível que Engels, tendo se debruçado no que havia de mais novo à época naqueles finais do século 19 em matéria de antropologia e naquele que hoje é considerado um dos fundadores da antropologia moderna, isto é, Lewis Henry Morgan (que, em seu Ancient Society, divide a história humana em três estágios fundamentais de desenvolvimento social: selvageria, barbárie e civilização, cada um destes caracterizado por formas materiais distintas), muito citado em todo o livro de Engels, pode ter caído em alguns equívocos e limitações de Morgan, de acordo com a antropologia mais avançada.
– Não é menor lembrar que as três filhas de Marx tiveram finais trágicos. O desejo de emancipação feminina chocou-se à realidade do status quo patriarcal. Os primeiros homens marxistas, por sua vez, viram a derrota da revolução comunista e o recrudescimento de um novo tipo de capital. No fundo, na raiz, a luta era/é a mesma!
– Permitam-me citar só mais um homem (muito citado pelas próprias mulheres, aliás), à guisa de contextualizar o tema feminista no marxismo. Embora encontremos trechos sobre a opressão das mulheres em Marx e Engels, é o livro A Mulher e o Socialismo (1879), de August Bebel, que representa “a primeira produção teórica de particular importância para um enfoque marxista da questão feminina, justamente por sua grande difusão e abordagem específica do problema” (tal como escreve, ipsis litteris, Joana El-Jaick Andrade em artigo acadêmico sobre esse livro). Loreta Valadares, no texto primeiramente citado, afirma: “(…) A opressão específica da mulher caminha e se desenvolve “pari passu” com a opressão social, de classes, caracterizando, assim, a mulher como oprimida enquanto ser sexual e ser social (Bebel, in A Mulher e o Socialismo), com seus correspondentes reflexos e formas na superestrutura (…)”. Bebel via a necessidade de atrair as mulheres para o movimento e de difundir os princípios do socialismo para as amplas massas trabalhadoras. A obra é dividida em três partes: a situação das mulheres no passado (antes e depois do cristianismo), as condições das mulheres no presente e a projeção das transformações operadas dentro de uma futura sociedade socialista. O livro discute a construção da nova sociedade socialista e o livre exercício da sexualidade, o Programa Socialista e a igualdade entre os sexos, etc. Conforme Joana El-Jaick Andrade escreve (página 11): “A saída apontada por Bebel para a questão feminina, com vistas à “redenção e emancipação” de todas as mulheres, residiria na compreensão de seu verdadeiro lugar no movimento socialista e sua participação na(s) luta(s) de classes”.
– Eleanor Marx (1855-1898), filha de Karl Marx e Jenny von Westphalen, militante, autora, tradutora, pioneira do feminismo socialista. Escreveu, com seu parceiro Edward Aveling, o tratado “A questão da mulher: de um ponto de vista socialista” (1886). Trata-se, segundo Luiz Bernardo Pericás (Professor do Departamento de História da USP), de um texto “que deveria figurar em importância ao lado de Reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels e de Um teto todo seu, de Virginia Woolf”. De acordo com Pericás, “Seu “feminismo” era bastante distinto daquele defendido pelo pensamento mainstream da segunda metade do século XIX. Ainda que muitas de suas amigas fossem sufragistas, a campanha pelo voto, na visão de Eleanor, mesmo que importante, seria um objetivo limitado. A reforma eleitoral para as senhoras de classe média dentro da sociedade capitalista não dava conta de resolver o debate social mais amplo, já que, segundo ela, “a dita questão do ‘direito das mulheres’… é uma ideia burguesa. Eu propus lidar com a Questão Sexual do ponto de vista da classe trabalhadora e do conflito de classe”. Ou seja, os direitos das mulheres e do proletariado eram parte da mesma luta.”
– Nadejda Krupskaia (1859-1939) não foi apenas “esposa de Lênin”, porque desempenhou um papel destacado e próprio como pedagoga revolucionária; escreveu sobre a construção de uma nova pedagogia socialista que nos interessa até hoje (a prova é que o livro encontra-se esgotado), tendo sido vice-ministra da Educação da União Soviética por mais de dez anos, responsável pela criação de um novo sistema educacional e pela construção de inúmeras bibliotecas no período soviético nos primeiros anos da Revolução. Mas não para aí. Tudo indica que foi Nadezhda quem escreveu o primeiro texto feminista significativo sobre a situação das mulheres na Rússia: o panfleto “A Mulher Trabalhadora” (para ler em inglês, clique aqui – no original em russo, aqui, inclusive com uma nota da própria autora relatando as circunstâncias clandestinas em que o texto foi escrito e divulgado em 1899 sob o pseudônimo Sablina e publicado dois anos depois através da imprensa clandestina Iskri, “Faísca” em russo). O texto foi banido, devido a sanguinária repressão czarista durante a Revolução de 1905. O próprio Lênin nunca ignorou uma das reivindicações mais importantes da Revolução Soviética, a das camponesas e mulheres trabalhadoras em busca de pão, paz e terra, tendo escrito em vários momentos a respeito, como se pode conferir neste texto explicativo aqui. A própria Nadejda escreveria, em 1933, o texto “A Emancipação da Mulher segundo Lênin“, dez anos após a morte do companheiro. Vale lembrar, por fim, de um volume brasileiro de 1956 intitulado O Socialismo e a Emancipação da Mulher com 14 textos significativos de Lênin sobre o trabalho na mulher da fábrica e na agricultura no regime capitalista, sobre o aborto, a classe operária e o neomalthusianismo, a luta contra a prostituição, o direito ao divórcio, discurso no Primeiro Congresso Pan-Russo das Operárias, a contribuição da mulher na construção do socialismo, as tarefas do movimento operário feminino na República dos Sovietes, a situação da mulher no poder soviético, divórcio diante da família, dois textos (em 1920 e em 1921) sobre o Dia Internacional da Mulher, além de um texto de 1920 por Clara Zetknin, “Lênin e o movimento feminino” (“o movimento feminino era para ele parte integrante e, em certas ocasiões, parte decisiva do movimento de massas. É desnecessário dizer que ele considerava a plena igualdade social da mulher como um princípio indiscutível do comunismo”).
– Alexandra Kollontai (1872-1952) foi um dos principais nomes da participação feminina no bolchevismo. É, ainda hoje, considerada figura central do “feminismo marxista” (cf. Jinee Lokaneeta, “Alexandra Kollontai and Marxist Feminism”, de 2001, e Andrea Nye, Feminist Theory and the Philosophies of Man, capítulo 3, “A Community of Men: Marxism and Women”, seção “Marxist feminists: Zetkin, Kollontai, Goldman”). Militante ativa nos principais episódios do pré-revolução e mesmo nos anos subsequentes, estando no topo da vanguarda e do novo governo junto a Lênin e outros, tendo sido uma das lideranças do Genotdel (“Seção da Mulher”), o Departamento de Mulheres Trabalhadoras e Mulheres Camponeses criado em 1919 com o objetivo de melhorar as condições das mulheres e as atrair para a causa socialista. Sempre se opôs ao feminismo liberal burguês, que buscava objetivos políticos de sufrágio, mas não a elevação revolucionária da classe trabalhadora. É brilhante a sua posição a respeito do universal e do particular no feminismo em A Base Social da Questão da Mulher (1909), em que ela defende o seguinte: “O instinto de classe – o que quer que as feministas digam – sempre se mostra mais poderoso do que os nobres entusiasmos da política ‘acima da classe’. Enquanto as mulheres burguesas e suas ‘irmãs mais novas’ [proletárias] forem iguais em sua desigualdade, as primeiras podem, com total sinceridade, fazer grandes esforços para defender os interesses gerais das mulheres. Mas uma vez que a barreira é derrubada e as mulheres burguesas têm acesso à atividade política, as recentes defensoras dos ‘direitos de todas as mulheres’ tornam-se defensoras entusiastas dos privilégios de sua classe, satisfeitas em deixar as irmãs mais novas sem nenhum direito. Assim, quando as feministas falam com as mulheres trabalhadoras sobre a necessidade de uma luta comum para realizar alguns princípios das ‘mulheres em geral’, as mulheres da classe trabalhadora ficam naturalmente desconfiadas.” Argumentava que, mesmo adentrando no trabalho assalariado, as mulheres ainda se mantinham na função reprodutora da família. Defendeu, portanto, a socialização do trabalho reprodutivo para acabar com a exploração do trabalho doméstico e a exploração dos homens neste papel. Assim, teve papel de liderança nos debates que criticavam o modelo estabelecido de família. É conhecida por sua defesa arrojada – mantida por toda a vida – do amor livre e do amor camaradagem, expressão última da solidariedade de classe (ler a edição pela editora Expressão Popular, A Nova Mulher e a Moral Sexual). Quando o regime fechou, quase foi expulsa do partido, mas acabou indo exercer funções diplomáticas no exterior. Escreveu “Base social da questão feminina” (1908), “Sociedade e maternidade” (?), “A nova mulher” (1918), “A moral sexual” (1921), Amor Livre (1932), Comunismo e Família (1970), A Autobiografia de uma Comunista Mulher Emancipada Sexualmente (1971), Relações Sexuais e Lutas de Classes: Amor e a Nova Moralidade (1972), A luta das mulheres trabalhadoras por seus direitos (1973), entre outros.
– Clara Zetkin (1857-1933) foi uma das primeiras agitadoras e propagandistas do feminismo socialista, tendo levado o feminismo ao topo da agenda política no primeiro congresso da Segunda Internacional, e demonstrou que o fundamento do feminismo sendo a emancipação das mulheres encontra um limite estrutural: o capitalismo (quem valida tal afirmação histórica é a professora Mirla Cisne em “Feminismo e marxismo: apontamentos teórico-políticos para o enfrentamento das desigualdades sociais“, Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 211-230, maio/ago. 2018, página 220). Em 1889, Clara Zetkin profere a conferência “Pela libertação das mulheres”, considerada a primeira declaração política da classe trabalhadora europeia sobre a questão da mulher (Ana Isabel Álvarez González, As origens e a comemoração do Dia Internacional das Mulheres, São Paulo: SOF/Expressão Popular, 2010, página 61), em que declarou: “As mulheres operárias estão totalmente convencidas de que a questão da emancipação das mulheres não é uma questão isolada. Sabem claramente que esta questão na sociedade atual não pode ser resolvida sem uma transformação básica da sociedade […]. A emancipação das mulheres, assim como de toda a humanidade, só ocorrerá no marco da emancipação do trabalho do capital. Só em uma sociedade socialista as mulheres, assim como os trabalhadores, alcançarão os seus plenos direitos” (ibidem).
– A grande revolucionária Rosa Luxemburgo (1871-1919), ao que se sabe, nunca se definiu como “feminista” e, isto é certo, já que tinha relações próximas com Clara Zetkin e outras da luta comunista, nunca endossou o feminismo liberal de sua época, mas escreveu sobre a condição feminina na sociedade de classes e sobre (e para) a mulher trabalhadora. Presa pelas forças reacionárias, assassinada pela extrema-direita que depois se associaria ao nazismo, são de Rosa Luxemburgo alguns dos postulados mais influentes e algumas das frases mais potentes, memoráveis e contundentes de todo o marxismo, como podemos constatar em Reforma ou Revolução?, “O que quer a Liga Espartaquista?” e no lema de seu grupo revolucionário, “Socialismo ou barbárie!”; para o nosso tema, é sua uma das frases mais fortes dessa intersecção, já em 1902, em “Uma questão tática”: “A emancipação política das mulheres teria que fazer soprar um forte vento fresco inclusive na vida política e espiritual [da social-democracia], que eliminasse o fedor da hipócrita vida familiar atual que, de modo inequívoco, permeia também os membros de nosso partido, tanto trabalhadores como dirigentes”. Dois são os textos de destaques de Luxemburgo sobre a emancipação das mulheres no bojo da revolução comunista e do marxismo: o ainda pertinente “O sufrágio das mulheres e as lutas de classes”, de 1912, e o belíssimo “A Proletária“, de 1914. Neste segundo, em ocasião do Dia Internacional da Mulher (ou melhor, “Dia da Proletária”, segundo Rosa), a “proletária assalariada moderna” é alçada como protagonista da classe trabalhadora. É um toque simbólico e concreto feminino à imagética do proletariado tantas vezes masculinizado (mas não sem razão, inclusive estatística). Rosa contrapõe a defesa burguesa por direitos políticos pelas mulheres (pauta única do chamado “feminismo liberal” e das sufragetes) com o poder efetivo a ser conquistado pela mulher proletária e, se a vida parlamentar nega a participação feminina, o partido revolucionário abre as portas para as mulheres e trabalhadores, onde encontram ali “um campo incalculável de trabalho político e poder político”, etc. Termina esse texto com fortes palavras de ordem: “Proletária, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. (…) Corra para o front, para a trincheira!” Não há dúvidas de que, para Rosa, já no Partido Social-Democrata Alemão, com todas suas querelas internas até o revisionismo crasso, venal, “vira casaca”, como depois na sua Liga Espartaquista (com Karl Liebknecht, Clara Zetkin, Franz Mehring e outros) e no Partido Comunista, o ponto central era a revolução pela classe trabalhadora, mas, ao saber das especificidades da mulher dentro de tal classe, ela defendia, nos títulos citados e também em cartas para Clara Zetkin e Sonia Liebknecht, seções de mulheres em áreas intelectuais, jornalísticas, partidárias, enfim, na luta prática. Rosa Luxemburgo, diga-se de passagem, sempre foi calcada na teoria marxiana e criticava desvios e revisionismos! A prova disso foi a grande querela com o oportunista Eduard Bernstein… Comprometida com a teoria marxiana, em “O sufrágio das mulheres e as lutas de classes”, escreve pontos econômico-teóricos relevantes para os debates correntes entre as feministas de hoje: “Apenas é produtivo aquele trabalho que produz mais-valia e rende lucro capitalista – enquanto o domínio do sistema de capital e de salário se mantiver. Deste ponto de vista, uma dançarina num café, que produz lucro para o seu patrão com as suas pernas, é uma mulher trabalhadora produtiva, enquanto que todas as tarefas das mulheres e mães do proletariado dentro das quatro paredes de casa é considerado trabalho improdutivo. Isto soa cru e louco, mas é a expressão precisa da crueza e da loucura da ordem econômica capitalista de hoje.” Veremos adiante como a brasileira Heleieth Saffioti amplifica a crítica da exploração da mulher para abranger a dupla jornada (trabalho doméstico e produtivo), o que a faz desconsiderar a mais-valia; mas certamente Rosa, mulher de costumes pioneiros, vanguardistas e destoantes para sua época, jamais diria que o trabalho doméstico não é exploratório, apenas diferencia ambos a partir da observação da estrutura… Nancy Holmstrom, professora de Filosofia, editora do The Socialist Feminist Project (Monthly Review Press, antiga revista socialista de Nova Iorque) e co-autora de Capitalism For and Against: A Feminist Debate (Cambridge University Press), entre vários outros artigos e livros, explica o trecho rosaluxemburguiano em “Rosa Luxemburgo: um legado para as feministas?“: “Usei esta citação mais do que uma vez para clarificar o sentido do trabalho (im)produtivo no capitalismo e para distinguir opressão de exploração capitalista. Algumas feministas ficam muito ofendidas pela posição marxista de que o trabalho doméstico é trabalho improdutivo e algumas defendem “salários para o trabalho doméstico”. Mas tal como a citação de Luxemburgo torna claro, designar o trabalho doméstico como improdutivo dificilmente é um insulto, nem é sexista. Um carpinteiro que trabalhe para o governo é igualmente improdutivo no sentido capitalista, apesar de ambos, obviamente – e muito importantemente – serem produtivos num sentido geral. É fundamental entender o que “produtivo” significa em termos capitalistas, especificamente, a produção de mais-valia, porque isto é o que faz o sistema capitalista funcionar.” Rosa discute, naquele texto, o trabalho produtivo e improdutivo, o trabalho operário e doméstico, e denuncia a exploração capitalista do trabalho de homens e mulheres – “milhões de mulheres proletárias […] produzem lucro capitalista tal como os homens – em fábricas, oficinas, agricultura, indústrias domésticas, escritórios e lojas”, escreveu ela. “Proletária, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. (…) Corra para o front, para a trincheira!”
Até onde e até quando pode e deve um(a) artist@ e intelectual, mesmo sem desenvolver teoria, lutar e envolver-se na prática da transformação da sociedade? Patrícia Galvão (1910-1962), mais conhecida como Pagu, foi uma força da natureza; escritora que estreou aos 18 anos na Revista Antropófaga, militante comunista do PCB (das primeiras presas políticas do Brasil, presa duas dezenas de vezes, torturada durante a ditadura Vargas após uma greve dos estivadores na minha Santos, onde, aliás, ela irá morar no fim da vida e onde foi encarcerada na Cadeia Velha De Santos, que hoje se chama Oficina Cultural Pagu), incansável tentadora da revolução brasileira, rompida com o Partido Comunista (que a abandonou e a obrigou a assinar uma retratação em que se apresentava como “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”) em 1940 após exílio e acerto de contas com todo o seu passado, poeta, crítica dos costumes, intimamente próxima dos modernistas de 22 (“nem Anita nem Tarsila eram escritoras, nenhuma assumiu até o fim ideias tão radicais e renovadoras, nenhuma correu os riscos e sofreu o que sofreu por elas, nenhuma defendeu com tanto ardor a arte de vanguarda, nenhuma se pode comparar, em termos de atuação ética e estética, com ela”, conta Augusto de Campos), agitadora cultural, jornalista, desenhista, tradutora, etc. Em 1931, com o companheiro Oswaldo de Andrade (1890-1954), funda o pasquim O Homem do Povo, “um jornal com características agressivas e despudoradas, com fortes nuances ideológicos da esquerda marxista” ( Anselmo Peres Alós, “Parque Industrial: influxos feministas no romance proletário de Patrícia Galvão”, Caligrama: Revista de Estudos Românicos, v. 15, n. 1, 2010, p. 188). As provocações de Oswald contra o atraso geral e o temperamento revolucionário de Pagu produziam uma alquimia sem precedentes na política e na cultura brasileiras, e deve-se sublinhar que ela era absolutamente independente e original. Desenhava charges satíricas e possuía uma coluna fixa intitulada “A Mulher do Povo”, em que criticava o feminismo pequeno-burguês e os valores elitistas das mulheres paulistas (que reproduziam, não sem o provincianismo da época e de capitalismo periférico, o movimento de mulheres sufragistas da Inglaterra do início do século XX). Alguns desses textos estão preservados ainda hoje. Em 1933, Pagu lança o importante Parque Industrial, primeiro romance proletário do país, sob o pseudônimo (exigência do Partido) Mara Lobo, obra de nítida inspiração marxista com influxos feministas que retrata a condição das mulheres proletárias numa São Paulo a se industrializar freneticamente. Ou seja, no panorama literário regionalista de 30 (lembremos de O Quinze, de Raquel de Queiroz, que retrata a seca, ou Menino de Engenho, de José Lins do Rego), Pagu apresenta um Brasil urbano, isto é, mais desenvolvido material e ideologicamente, portanto mais condizente com o anticapitalismo do marxismo; eis outro fato que destaca esse romance. Mas não para aí: a obra conjuga o problema da opressão ao proletariado às reivindicações das mulheres, superando o feminismo da época. Também neste romance já há críticas ao feminismo pequeno-burguês, complacente à estrutura social do capital. No entanto, é interessante que Pagu não dirige sua crítica ao movimento sufragista em si, mas principalmente à despreocupação de tal movimento a questões estruturais e mais amplas, como a condição da mulher proletária e até das mulheres negras (Ibidem). No primeiro caso, a obra encontra associação com o pensamento teórico-prático das comunistas de todo o mundo, inclusive as supracitadas. No segundo aspecto, o enfoque antecipa uma luta ainda hoje continuada e candente – antecipou, focando sua narrativa na realidade das mulheres proletárias, pertencimentos identitários superpostos que feministas particularmente lésbicas e negras levantaram nos EUA a partir das décadas de 1970 e 1980. O convívio de Pagu com operários, a partir de 1931, quando se filiou ao PCB, lhe fez concretizar, no romance, um projeto modernista por excelência: pululam em sua escritura elementos da linguagem coloquial, cotidiana, até mesmo considerada “grosseira”; o texto apenas é prejudicado (anacrônico) por jargão e estereótipos da época (Ibidem, p. 193). “(…) saem para o almoço das onze e meia. Desembrulham depressa os embrulhos. Pão com carne e banana. Algumas esfarelam na boca um ovo duro.” É nos intervalos do tear, quando se consegue mais tempo para conversar, que Rosinha Lituana, operária de aguda consciência de classe, militante do Partido Comunista, dissemina as ideias entre os colegas. Rosinha e Otávia são comprometidas com a revolução e o movimento proletário; Corina é aprendiz de costureira, jovem e miscigenada que acaba engravidando e caindo na prostituição após falsa promessa de casamento, terminando na prisão. Alfredo é o único personagem masculino da narrativa a se comprometer com o ideário revolucionário. “Acorda com o alvoroço de mulheres entrando. São as emancipadas, as intelectuais e as feministas que a burguesia de São Paulo produz.” E segue um diálogo das feministas liberais sobre futilidades: cosméticos, coiffeur, tailleur, namorados, criada que é demitida por se atrasar e esfriar demais o banho da patroa, etc. “- O voto para as mulheres está consequido! É um triunfo!/- E as operárias?/- Essas são analfabetas. Excluídas por natureza.” A acidez faz com que a “denúncia” de Pagu do preconceito presente entre as próprias feministas não caia em panfletagem barata (no máximo, o livro é uma panfletagem arguta, mesmo se considerada “maniqueísta” – trata-se de um retrato cru das lutas de classes!) ou numa crítica simplista, mas, ao invés, continua contundente. Nota-se a influência que Rosa Luxemburgo (“uma militante proletária alemã, que a política matou porque ela atacava a burguesia”) exercia em Patrícia Galvão, já que um dos capítulos do romance é intitulado “Em que se fala de Rosa Luxemburgo”… “- (…) a burguesia é a mesma em toda parte. Em toda parte, manda a polícia matar os operários…/(…) – Matam os operários, mas o proletariado não morre!” Destaca-se, ainda, como a sexualidade dos personagens é retratada e, nesse particular, mesmo sendo obra comunista crítica a uma determinada matriz específica do feminismo, não deixa de tocar em pontos de especificidade feminina: passado no bairro operário do Brás – “Brás do Brasil, Brás de todo o mundo” – , o romance expõe erotismo e sexismo na sociedade capitalista, e denuncia a objetificação das mulheres operárias “reduzidas a objeto de desejo, de reprodução e mão de obra barata pela sociedade capitalista e patriarcal” (Ibidem, páginas 191 e 192). Hoje, entende-se que, “(…) criticando a sociedade burguesa, de um ângulo socialista, [Pagu] é levada a ferroar a aristocracia paulista, ferindo velhos círculos sociais frequentados pelos modernistas de 22. Concentrando-se nas mulheres operárias e lumpemproletáarias, satiriza o feminismo burguês, acompanha moças pobres seduzidas com promessas casamenteiras por conquistadores ricos, seguindo particularmente a trajetória de Corina rumo à prostituição” (Antônio Risério, “Pagu: vida-obra, obravida, vida”, em Augusto de Campos, Pagu: Vida-Obra, São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 21). Assinale-se mais uma vez o caráter vanguardista e pioneiro dessa situação (que encontra paralelo com Raquel de Queiroz, guardadas as enormes diferenças): um romance escrito por uma (jovem) mulher brasileira na década de 30; mais: o primeiro romance realmente engajado escrito por uma mulher na década de 30. Em 1945, de volta ao Brasil após um périplo pelo exterior (vale lembrar das viagens que fez com Tarsila do Amaral e outros vanguardistas décadas antes), ela publica outro romance, em parceria com seu novo companheiro, o jornalista Geraldo Ferraz: A Famosa Revista é importante narrativa ficcional antisstalinista de estilo livre em poesia e prosa que recusa a narrativa tradicional e atua num experimentalismo bastante distinto daquele empreendido dois anos antes pelo livro de estreia de Clarice Lispector – e sem o seu demasiado subjetivismo. É de se questionar por que Pagu acabou sendo relegada dentro dos estudos de literatura brasileira. Talvez tenha sido essa posição marginália que fez com que outro underrated da cena cultural brasileira, o exímio poeta e transtradutor Augusto de Campos, se aproximasse da figura/personagem de Pagu para lançar Pagu Vida-Obra na década de 1980, volume obrigatório, porque a aprofundou (até então, era evocada superficialmente como aquela que teria acabado com o casamento de Oswald e Tarsila), unindo antologia e perfil biográfico: “luminosa agente subversiva de nossa modernidade”, diz a abertura de uma nova edição depois de anos fora do catálogo. Em Santos, onde passou seus anos finais, um pouco mais tranquilos (tudo mudou após a burocracia da URSS, após a Segunda Guerra Mundial, após o período “democrático” do Brasil entre duas ditaduras), continuou sendo jornalista e foi tradutora e agitadora cultural, uma espécie de “mestra”, tendo estimulado e propiciado a carreira teatral do dramaturgo Plínio Marcos, o mais pungente retratista dramatúrgico das nossas mazelas sociais. (Por fim, só mais alguns adendos. O prontuário de Pagu nas dependências da extinta “Ordem Social” e no Deops é extenso, cobrindo duas décadas de atividade, de 1931 a 1950 – “mais de 200 páginas, cheias de interrogatórios, relatos, fotos e textos do próprio punho da escritora”. Ela era considerada comunista de “alta periculosidade”. Pois bem. Vale mencionar, para coroar a intensa participação de Pagu na construção revolucionária brasileira, que sua última prisão foi no auge dos 40 anos de idade, em setembro de 1950: presa em flagrante no centro de São Paulo, quando escrevia “no chão, com tinta branca, lavável, dizeres referentes à propaganda do Partido Socialista Brasileiro”. Ela escreveu: “Contra os imperialismos russo e americano”. Não precisou desenvolver teoria; ela era a própria teoria em carne e osso e em prática.)
– A brasileira Heleieth Saffioti (1934-2010), pioneira da intersecção entre marxismo e feminismo no Brasil, tendo sido orientada em sociologia pelo grande Florestan Fernandes, marxista cultivado, escreveu textos importantes sobre a condição e opressão das mulheres no Brasil, isto é, no capitalismo periférico. É Saffioti quem irá escrever: “Rigorosamente, não existe um só feminismo, pois há diferenças de bandeiras levantadas, de ênfase posta numa ou noutra reinvindicação, de estratégias de luta. Tais distinções decorrem do enfoque político dado por cada grupo ou movimento feminista à questão feminina” (O Poder do Macho, São Paulo: Moderna, 1987, p. 93). Já em seu livro inaugural, A mulher na sociedade de classes: mito e realidade (escrito entre os anos de 1966-1967 e publicado pela primeira vez em 1969), Saffioti combina feminismo com marxismo (ou seja, parte da crítica da sociedade de classes para tratar especificadamente da mulher em tal sociedade a ser superada). Com este livro, em plena ditadura militar (mas antes do AI-5), ela não titubeia: o problema da mulher não é fato isolado da sociedade, portanto para superar a opressão contra as mulheres é preciso destruir o regime capitalista e implantar o socialismo. Ainda que o capital seja maleável e permita mudanças progressistas, não apresenta nem apresentará plena integração social feminina, porque, conforme Saffioti mostra na obra, as características ditas naturais (sexo e raça) são mecanismos em desvantagem no processo competitivo e tornam-se coniventes para a conservação da estrutura de classes (Editora Vozes, 1976, p. 30). O livro não deixa de tratar especificadamente sobre a condição da mulher em tal sociedade de classes. Nos parece também fundamental que, muitas décadas depois, ela tenha destoado da abordagem comum (quiçá dominante) no feminismo de tratar o gênero como central: em seu Gênero, Patriarcado, Violência (2004), a marxista faz forte crítica dos usos da categoria gênero. Saffioti reivindica a importância da categoria “patriarcado” em detrimento de “gênero” ou, ao menos, alerta contra a utilização exclusivista do último. Associa o patriarcado a uma articulação da industrialização do capitalismo. Argumenta que o “gênero”, enquanto categoria central, mesmo sendo útil, até mais rico e vasto, serviria justamente por isso para maquiar o patriarcado. Saffioti parece bastante crítica a certos autores e autores feministas contemporâneos, sobretudo dos EUA. O antropólogo cultural conhecido como ativista e teórico da política de sexo e gênero Gayle Rubin (1949-), segundo ela, teria se utilizado do “gênero” de maneira neutra, sendo que, para Saffioti, e isto certamente deve-se à sua influência marxiana e marxista, o “gênero” “carrega uma dose apreciável de ideologia”: a ideologia patriarcal, que cobre uma estrutura de poder desigual entre mulher e homens, inclusive – eis uma das argumentações mais polêmicas do livro – a partir do exclusivismo da categoria “gênero”, que não ataca o coração da engrenagem da exploração-dominação, mas ao contrário, a alimenta. É uma perspectiva convincente. Retoma Joan Scott (1941-), cujo trabalho é identificado com a história das mulheres a partir da perspectiva de gênero, para apresentar as relações de gênero imbricadas a relações de poder hierarquizantes ao longo da história, mas identifica que Scott não faz ressalvas à concepção foucaultiana de poder – uma noção pós-moderna de “poder” dissolvido na sociedade -, o que compromete um projeto de transformação social. Aqui, novamente temos uma explícita influência marxista. Saffioti, que teve formação marxista, sabia dos vícios pós-modernos e que os tais “micropoderes”, se é que existem, só sobrevivem a partir da estrutura que os reproduz. Dessa forma, não parece que ela se distancie de Rosa Luxemburgo ao abranger a exploração da mulher tanto no caso do trabalho doméstico quanto no caso do trabalho assalariado, ainda que, ao tomar tal postura, acabe por omitir a exploração material da expropriação de mais-valia em O Poder do Macho (ibidem, p. 51): “(…) Tanto a dona-de-casa, que deve trazer a residência segundo o gosto do marido, quanto a trabalhadora assalariada, que acumula duas jornadas de trabalho, são objeto da exploração do homem, no plano da família”. Detalhe para esse final, “no plano da família”, ou seja, num elemento superestrutural. Saffioti, no mesmo texto, apresenta um entendimento coerente do preconceito na sociedade de classes: “o conceito pressupõe a utilização de um instrumental teórico que permita o entendimento do fenômeno, o pré-conceito nasce do jogo de interesses presente na vida social da defesa de privilégios, da correlação de forças político-sociais” (Ibidem, p. 28). A respeito da relação entre natureza e concepção materialista da história, afirma Saffioti (Ibidem, p. 10): “A identidade social é, portanto, socialmente construída. Se, diferentemente das mulheres de certas tribos indígenas brasileiras, a mulher moderna tem seus filhos geralmente em hospitais, e observa determinadas proibições, é porque a sociedade brasileira de hoje construiu desta forma a maternidade. Assim, esta função natural sofreu uma elaboração social, como aliás, ocorre com todos os fenômenos naturais. Até mesmo o metabolismo das pessoas é socialmente condicionado”. Em Rearticulando Gênero e Classe Social (in: Uma Questão de Gênero, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 192 e 194), repõe no mesmo plano como sistema de dominação-exploração base e superestrutura. Para a autora (Ibidem, p. 186), “A formação da identidade de gênero é um exemplo de produção no reino do sistema sexual. E um sistema de sexo/gênero envolve mais do que ‘as relações de procriação, reprodução no sentido biológico”, ou, noutros termos, as identidades de gênero e as sexualidades são construções sociais, nas quais não se parte do nada, mas de condições materiais, uma vez que “o vetor direciona-se, ao contrário, do social para os indivíduos que nascem. Tais indivíduos são transformados, através das relações de gênero, em homens ou mulheres” (Ibidem, p. 187). Saffioti entende que a acumulação e centralização no modo de produção capitalista são base material para a realização das contradições e antagonismos nas quais operam o sistema sexual: “[…] a contradição entre as categorias de gênero nem é a única, nem opera autonomamente” (Ibidem, p. 199).
– Após a crítica demolidora de Loreta Valadares, já supracitada, resta-nos ainda falar em Simone de Beauvoir? Ela combatia o preconceito de que as mulheres não podiam se apresentar como filósofas, refletiu a condição histórica da mulher e a construção social do machismo. Ainda assim, em O Segundo Sexo, a autora demonstra uma incompreensão do materialismo e da estrutura e superestrutura, enfim, do marxismo, caindo no equívoco comum de tomar o marxismo como um economicismo vulgar que não serviria às discussões feministas, e que o “homo aeconomicus” marxista seria limitado ou até mesmo não serviria aos estudos feministas, algo já refutado por Valadares e muitas outras, e veremos, em outras autoras contemporâneas (embora uma Rosa Luxemburgo jamais tenha abdicado da questão da mais-valia, conforme vimos acima), que o próprio fator econômico na forma de valor encontra forte respaldo na crítica do marxismo feminina (Roswitha Scholz?). Ou seja, a própria obra O Segundo Sexo teria encontrado um grande filão se contribuísse para as questões do patriarcado (lembrar de Saffioti ou mesmo Eleanor Burke Leacock, que veremos adiante) enquanto produto da estrutura e produtor de mercadorias. É Roswitha Scholz, marxista feminista da qual veremos mais adiante, que escreve em seu “Simone de Beauvoir Hoje” (2011) que, enquanto a filosofia existencialista de Heidegger expressava “o sentimento básico da população de classe média nacional-socialista” (ou nazista), “De Beauvoir, pelo contrário, inclui também ideias marxistas na sua teoria. Isso, no entanto, não tanto em relação às causas sócioeconômicas da opressão das mulheres, mas sim, como é usual numa visão existencialista-fenomenológica, com uma intenção mais descritiva, a fim de determinar O Segundo Sexo com fundamento em primeiro lugar existencialista.” Bem, a base é o existencialismo urdido em parceria com Sartre – seu companheiro intelectual e com quem teve encontros memoráveis com o Che e com Fidel (lembrar que a Cuba revolucionária deu garantias do aborto às mulheres, por exemplo). Sartre foi figura mais ou menos cosmopolita, engajada e de renome mundial que afirmou em Crítica da Razão Dialética que o Marxismo “permanece como a filosofia insuperável do nosso tempo. Não conseguimos ir além dele.”, ainda que ele próprio tenha incorrido em alguns equívocos esquemáticos e no dualismo (ao invés da dialética) sujeito-objetivo, mas isso é assunto para outro texto… Pois bem! Estamos, então, diante de autores que precisam de filtro aqui e ali. Nesse sentido, há um texto pouco referido de Beauvoir, intitulado “O Pensamento de Direita, Hoje” (ensaio de 1954, publicado em livro no Brasil em 1967 – período oportuno, diga-se de passagem – pela Editora Paz e Terra). Podemos dizer que, nesta obra, Simone de Beauvoir, em defesa da ciência, inscreve-se entre as críticas pioneiras do pós-modernismo – embora em seu tempo não se falasse nisso com a insistência de hoje. Tal crítica só pode ter derivado do marxismo, que é moderno por excelência. Antes do A Destruição da Razão de Lukács (embora no mesmo Zeitgeist de pós-nazismo) e de maneira corajosa para uma autora mulher, Simone de Beauvoir, ainda que não de maneira mais aprofundada e erudita, já identificava o irracionalismo de Oswald Spengler, Martin Heidegger, Arnold Toynbee, Karl Jaspers e outros… Mas os temas mais pertinentes giram em torno de um ataque à burguesia e ao pensamento da direita – que vão do anticomunismo crasso, ao subjetivismo, misticismo, individualismo, elitismo, rejeição da ciência, características vulgares que formam o pensamento reacionário. Em “O pensamento de direita, hoje”, ela criticou “os teórico burgueses que professam um subjetivismo psicofisiológico: as ideias refletem não o objeto pensado, mas a mentalidade do sujeito pensante”. Ora, essa elaboração crítica certamente é uma herança marxista. Ela ainda desmascara a “naturalização da História”: “A natureza é um dos grandes ídolos da direita. Ela surge como antítese da história e da práxis. Contra a história a natureza nos oferece uma imagem cíclica do tempo; vimos que o símbolo da roda elimina a ideia de progresso e favorece a sabedoria quietista. O retorno indefinido das estações, dos dias e das noites encarna concretamente a grande roda cósmica. A evidente repetição dos invernos e dos verões torna [para a direita] irrisória a ideia de revolução e manifesta o eterno.” Como podemos constatar, Simone de Beauvoir está ao lado da revolução socialista.
– Ângela Davis (1944-) contou recentemente que, após a publicação de seu famoso livro Mulheres, Raça e Classe (1981), todos passaram a chamá-la de feminista, ao que ela respondia: “Eu não sou feminista, eu sou uma revolucionária negra”, até se dar conta que sua ojeriza referia-se a um certo tipo específico de feminismo, “o feminismo infelizmente mais representativo”, de acordo com ela: o feminismo “branco”, burguês ou pequeno-burguês, o feminismo liberal, etc. Assim, é autora que nos importa, porque, diante de pautas ditas “identitárias” que segregam a luta ou buscam ascensão arrivista no sistema capitalista exploratório, Davis, por ser autoproclamada comunista, sabe que não se privilegia raça e gênero em detrimento da classe, mas que é nas interseções entre as três categorias que podemos encontrar o potencial revolucionário. (Noutras palavras, permitam-me um exemplo relevante ao nosso panorama atual, ainda que tosco: há parcelas “identitárias” da esquerda brasileira que, por falta de teoria revolucionária de certos partidos ou por desejo arrivista, batem palmas para uma Maju Coutinho, jornalista negra e mulher, pela primeira vez em posição de maior destaque na Rede Globo, sendo que esse “liberalismo” escamoteia não apenas a relação capitalista exploratória entre patrão e empregado, como também o fato de que tal representatividade efêmera – e reduzida – está nas mãos do capitalista, sempre macho, heteronormativo e branco, no caso, os Marinho e seus chefes executivos, propagadores dum “jornalismo” “neoliberal” e privatista financiado por banqueiros e grandes empresas, portanto racista – aliás, o diretor de jornalismo da emissora, Ali Kamel, é autor de um dos livros mais infames deste país, Não Somos Racistas. Uma Reação aos que Querem nos Transformar Numa Nação Bicolor.) Portanto, cabe tomar cuidado com o prefácio de Djamila Ribeiro na recente edição da Boitempo para Mulheres, Raça e Classe, que lastimavelmente desvia a centralidade da categoria trabalho para a questão racial (questão facilmente cooptável, quando solitária, conforme o exemplo já mencionado), sendo que Davis segue no miolo de sua obra o caminho contrário, muito mais revolucionário e coerente: percebe de que modo o capital instrumentaliza o racismo e o sexismo para nos colocar uns contra os outros e perder de vista a centralidade do trabalho e o nosso inimigo comum, a burguesia. Tomando o livro de Davis dessa forma, temos um primor da luta marxista contra o capitalismo, um apelo de unificação entre todos os grupos subalternizados que devem eles mesmos ultrapassarem o racismo e o sexismo para pôr foco na luta contra o capitalismo global, que forma, mantém e gera o racismo e o machismo. (Numa minúscula resenha mais ou menos “diplomática” intitulada “O Marxismo de Ângela Davis“, Silvio Almeida, destacado intelectual negro brasileiro contemporâneo, escreve: “a importância de Mulheres, raça e classe transcende as perspectivas teóricas ou práticas de grupos específicos e se mostra relevante para o marxismo enquanto “método” ou “ciência da história”. Davis nos lembra que o marxismo tem como prioridade o movimento do real da materialidade histórica, e por isso o conceito de classe deve ser “elevado” em direção ao concreto. Classes são formadas por indivíduos, cujas relações são determinadas pela lógica capitalista da produção e pelas formas históricas de classificação racial ou sexual. Atentar para a forma adquirida pelo racismo e pelo sexismo no interior do capitalismo permite ao marxismo não ser engolfado pelo idealismo ou por esquemas mecânicos que inviabilizam uma concepção verdadeiramente científica da sociedade. Trata-se, portanto, de ponto de partida para o desafio de responder à questão se a relação entre capitalismo, racismo e sexismo se explica por fatores históricos (nunca houve capitalismo sem racismo e sexismo) ou lógicos (não há capitalismo sem racismo e sexismo).” É importante, enfim, que a ontologia marxista do ser social (para lembrarmos Lukács) não se confunda com o cientificismo academicista e que não se opere nem se desvie a centralidade do trabalho para explicar a racionalidade do capital ou a substitua pela “centralidade da questão racial”, para que a problemática negação da “não hierarquização das opressões” se resvale, necessariamente, no relativismo, pois essa concepção é fruto de uma vertente “marxista” fácil de ser cooptada pelas próprias formas mercadológicas que Almeida identifica e denuncia, é uma vertente que teme a radicalidade do pensamento marxiano, sintetizado na revolução. Não será possível remontar, nos objetivos deste curto espaço, detalhes sobre a questão, mas basta dizer que o machismo se sustenta a partir do fato da propriedade privada ser detida pelo homem heternormativo na sociedade de classes (e que a fileira que pretende superar tal sociedade é o comunismo), assim como o racismo se estabelece a partir da acumulação primitiva e suas consequências na colonização e escravidão, posteriormente, no capital, e que em sua superação pela via do comunismo é que há a expressiva superação do sexismo e racismo.
– Eleanor Burke Leacock (1922-1987) foi a mais importante antropóloga marxista estadounidense, que deu enormes contribuições ao estudo das sociedades igualitárias (primitivas ou modernas), à evolução do status das mulheres na sociedade, ao marxismo e ao movimento feminista. O seu volumoso e importante Mitos da Dominação Masculina: Uma Coletânea de Artigos sobre as Mulheres numa Perspectiva Transcultural (Instituto Lukács, 2019) é estudo altamente recomendado, tanto como discussão crítica do estado da arte quanto como um relato de história pessoal/política que informa o processo de investigação científica. A obra desmascara os diversos mitos por trás da ideia de superioridade masculina “natural”. (Lembrar da crítica de “O Pensamento de Direita, Hoje” a respeito da naturalização da História, muito comum nos autores burgueses e na direita.) Com base em uma extensa pesquisa histórica e intercultural, Leacock mostra que as reivindicações de superioridade masculina são baseadas em mitos cuidadosamente construídos sem base histórica factual. Ela também documenta vários exemplos históricos de relações igualitárias de gênero. “Norteada pela busca incessante para desvelar o que constitui a essência do mito da dominação masculina, Eleanor Burke Leacock dedicou-se com afinco à pesquisa antropológica para corroborar a tese marxiana de que a humanidade constrói seu próprio mundo desta ou daquela forma sobre a base das condições objetivas historicamente postas (…)”, afirma um trecho da descrição do livro pelo Instituto (é possível baixar em .pdf, mas o preço de cerca de R$8 para um livro de mais de 400 páginas não pode ser desperdiçado). A ler.
– Feministas italianas veteranas e contemporâneas como Silvia Federici (1942-), radicada nos Estados Unidos (em que o movimento feminista deste país influenciou sua luta e trabalho?), e que possui livros traduzidos no Brasil, onde é muito requisitada para eventos, sempre esgotados, e Maria Rosa Della Costa (1943), desafiam a teoria marxiana da acumulação primitiva, mostrando como a despossessão de corpos femininos também fez parte desse processo, repensando a relação entre capitalismo e patriarcado e o lugar do trabalho doméstico e não remunerado no esquema marxiano. Podem existir alguns equívocos regressivos aqui e ali em matéria de crítica da Economia Política (por exemplo, Federeci reivindicava, desde os anos 1970, o assalariamento para o trabalho doméstico das donas de casa, e é preciso sopesar como essa questão é vista por outras feministas, se isso uniria as mulheres domésticas às trabalhadoras externas, e mesmo a partir da crítica ontológica marxista do assalariamento), mas eis o que fica de basilar em seu pensamento e luta: em entrevista ao El País Brasil em 2019, Federici, diante da pergunta “Pode-se ser feminista e não estar contra o capitalismo?”, responde, pondo abaixo o arrivismo de certos grupos: “Não. Não pode. O feminismo não é uma escada para que a mulher melhore sua posição, que entre em Wall Street, não é um caminho para que encontre um lugar melhor dentro do capitalismo. Sou completamente contrária a esta ideia. O capitalismo cria continuamente hierarquias, formas diferentes de escravização e desigualdades. Então, não se pode pensar que sobre esta base se possa melhorar a vida da maioria das mulheres, nem dos homens. O feminismo não é somente melhorar a situação das mulheres, é criar um mundo sem desigualdade, sem a exploração do trabalho humano que, no caso das mulheres, se transforma numa dupla exploração.” Dois livros destacados de Federici com tradução no Brasil e corpo crítico já disseminado: Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2004) e Revolução ao ponto zero: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas (2013).
– Roswitha Scholz (1959-). Jornalista alemã. Contemporânea. Ainda não me aprofundei para delinear pontos divergentes, mas os pontos convergentes parecem muito enriquecedores. Conhecida pela crítica do valor (partindo, assim, da teoria marxiana) vinculado à clivagem de gênero, o que lhe permitiu desenvolver a teoria do “valor-clivagem”, “valor-dissociação” ou “dissociação-valor”, dependendo da tradução. Parece que a teórica do valor-clivagem encara o patriarcado como produtor de mercadorias (tomando como referencial o título de uma reunião virtual recente de mulheres brasileiras a discutir a autora), postura fundamental e central para o casamento do feminismo com o marxismo; esta parece ser uma visão coerente e fecunda. (Resta problematizar, como vimos com Heleieth Saffioti, a questão do patriarcado diante da categoria gênero?) Começar pelo artigo “O Valor é o Homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos” (de 1992, embora a própria Scholz, em Nota Prévia de 2017, veja deficiências nesse texto, recomendando, a título de compreendermos com maior profundidade a teoria da dissociação-valor, consultarmos o livro O Sexo do Capitalismo. Teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do patriarcado, além de ensaios seus e de outros e outras na revista teórica Exit! Crise e crítica da sociedade das mercadorias). Em “Simone de Beauvoir Hoje” (2011), Scholz revê o legado da autora francesa a partir do feminismo e do marxismo. É preciso se perguntar se essa autora, uma vez debruçada na crítica do valor e divulgadora da teoria do valor-clivagem, supera e resolve, de uma vez, e de que modo critica – como a brasileira Loreta Valadares o fez em seu texto supracitado – a velha querela de feministas como Simone de Beauvoir, Juliet Michell e Schulamith Firestone que viam no marxismo (mesmo em Marx e Engels) uma “redução” de tudo ao econômico e ao “homo aeconomicus”.
– Da brasileira Taylisi de Souza Corrêa Leite (Doutora, Mestra e Especialista em Direito), o importante livro Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e feminismo marxista, lançado neste ano de 2020 pela Editora Contracorrente (salvo engano, a autora é orientanda de Alysson Mascaro, que sempre bebeu muito na fonte de um Pachukanis, cuja filosofia do direito dá as bases marxistas para uma crítica e superação do direito burguês): em seu percuciente livro, Taylisi parte do valor-clivagem de Roswitha Scholz para criticar, desmascarar e denunciar o feminismo de cooptação liberal. Tudo aponta que trata-se de livro obrigatório para formarmos e vacinarmos as camaradas mais novas e sacudirmos no combate contra as armadilhas capitalistas. A ler.
– Mulher, Estado e Revolução: política da família soviética e da vida social entre 1917 e 1936 (1993), de Wendy Goldman (1956-), parece apontar os retrocessos históricos da época “stalinista” (basta compará-los com as conquistas factuais anteriores e até com os escritos de Lênin, Nadejda Krupskaia, Alexandra Kollontai, outros e outras na fase histórica anterior). Não posso ainda dizer se essa autora tem ou não um aprofundamento no marxismo, mas é historiadora especializada em Rússia e União Soviética, sabendo retratar as grandes experiências e conquistas da libertação da mulher e do amor livre na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) depois de uma revolução comunista com uma vanguarda de intelectuais marxistas – e por que falharam, quando entrou em cena a burocracia stalinista. A ler, principalmente para o combate interno (ainda que anacrônico e extemporâneo, mas que se impõe alheio à nossa vontade) contra o “stalinismo”, que fisga até mesmo uma ou outra camarada menina mais incauta a embarcar nesse idealismo machofrênico, além de meninos aborrecentes (não sem a influência de marmanjos pseudomarxistas sem caráter e reacionários, praticamente direitistas). Esses dias mesmo, vi uma suposta feminista marxista (perfil “Solidariedade Feminina! no Instagram) omitindo (a troco de que?!) os danos, inclusive femininos, no período Stálin (cuja própria filha chamava-o de homem conservador, relatando que pessoas da própria família é que começaram a sumir antes dos demais). Goldman parece contribuir enormemente para a historiografia recente daquele período – espera-se que tenha problematizado as condições táticas particularmente difíceis da Rússia isolada do resto do mundo que não logrou a revolução, ao invés de um retrato simplório ou moralista, mas que exponha os danos do Grande Expurgo para a própria revolução, sem contar, depois, a dissolução da Internacional para agradar os Aliados liberais e anticomunistas, desmantelamento cujas consequências amargarmos até hoje. Enfim, é uma autora mais do que interessada em Stálin. Basta olhar os seus títulos subsequentes: Women at the gates : gender and industry in Stalin’s Russia (2002) – este trata de gênero e indústria, Terror and democracy in the age of Stalin : the social dynamics of repression (2007), Inventing the enemy : denunciation and terror in Stalin’s Russia (2011) e Hunger and war : food provisioning in the Soviet Union during World War II (2015). Infelizmente, estes outros livros parecem não contar ainda com uma tradução no Brasil.
– Lise Vogel (1938-), Susan Ferguson (1962-), Tithi Bhattacharya (1971-) e Cinzia Arruzza (1976-), também contemporâneas, apesar das diferenças geracionais e apesar de atuarem (na prática e na teoria) em países e culturas bastante distintas entre si, com problemas e resoluções específicos, são todas feministas marxistas que apresentam uma teoria unitária para explicar como o movimento do capital, enquanto forma a partir da qual a sociedade capitalista se produz e se reproduz, concretiza-se articulando gênero, raça e classe, bem como trabalho produtivo e reprodutivo.
Um breve comentário sobre o enorme e influente Hegel
Fazia parte do Clube Jacobino, mas foi o grande teórico do Estado burguês e elogiou Napoleão, que afastou a velharia medieval, mas que incorporava a nostalgia monárquica. Transformou “Deus” na Idéia (ou Conceito, Begriff) de uma maneira mais lógica, cortando tanto para a religião (ou para o idealismo filosófico) como para a ciência moderna. Para alguns, sua crítica ao Terror Jacobino é contrarrevolucionária; para outros, é construtiva. Ao defender a revolução, contraditoriamente observava a “ordem do mundo” influída por canhões, baionetas, corpos e espírito, ou seja, sem ser reacionário, mas tampouco materialista. Não à toa, como se sabe, seus alunos ou os alunos de seus alunos se dividiram entre os velhos hegelianos e os jovens hegelianos de esquerda. Os velhos defendiam o império austro-húngaro-prussiano e deram, com irracionalidade e deturpação, nos nazistas. Os novos (entre eles, o grande Marx, que na maturidade superou e inverteu o método dialético hegeliano – cf. o seu esclarecedor posfácio à segunda edição de O Capital) defendiam mudanças, e os melhores, que sabiam que a transformação não estaria nas mãos da amorfa burguesia alemã tampouco nos resquícios aristocráticos, mas dos trabalhadores, viraram comunistas.
Ps.: Apesar disso, não tenho visto bons autores de direita, tampouco autores de direita hoje em dia se debruçando em Hegel. Apenas a esquerda. A direitalha anda irracional, num nivelamento rasteiro, torpe, tosco, canalha. O capitalismo tardio só gera barbárie. Nada de cultura, nada de pensamento. A direita superestrutural, por defender o capital, não geraria outra coisa. Deve ser derrotada em todos os cantos e espaços, em nome da vida social, política, econômica e ecológica.