“[…] Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não fique à mostra como as molas que saltam de um sofá. […]”
– Andrei Tarkóvski, Esculpir o Tempo, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 56.
Obs. por Fernando Graça: …Marx? Ou terá sido Engels, que, em suas correspondências a escritores (veremos trechos mais abaixo), as quais me valho vez ou outra como referência para marxismo e estética, tratou da tendência na arte?
Em cerca de 2016-2017, utilizando o extinto endereço eletrônico www.fernandograca.xyz, escrevi texto que não consigo encontrar em meus arquivos. Porém, o recordo quase inteiro.
Hoje mais amadurecido, volto ao seu pensamento aqui.
Tratava acerca de um valioso ensinamento artístico em Esculpir o Tempo (1985), livro do cineasta russo/soviético Andrei Tarkóvski (1932-1986), uma de minhas obsessões naquela fase adolescente e pós-adolescente. Nesse livro, que depois descobri estar disponível para alugar na Biblioteca Pública Municipal Sérgio Milliet do Centro Cultural São Paulo, Tarkóvski critica fortemente o famoso quadro Madona Sistina (1512), de Rafael Sanzio (1483-1520), embora não deixe de chamá-lo de “o gênio de Urbino”, e, em contraposição, apresentava-me um pintor extraordinário, o veneziano Vittore Carpaccio (1465-1525/1526), contemporâneo de Rafael, e que eu não conhecia (que, de fato, é pouco conhecido). Suponho, inclusive, que o cineasta provavelmente soube dele em seu triste período de exílio (por motivos sórdidos de sicofantas politiqueiros, entre os quais o de ser preterido por cineastas menores) da União Soviética na Itália. O meu texto referido aludia jocosamente ao fato de que de carpaccio eu conhecia apenas o prato culinário italiano…
Este ensaio que ora escrevo se deve ao fato de, recentemente, eu ter espiado exposição multimídia no Museu de Arte Brasileira da FAAP, intitulada Magister Raffaello – “Uma viagem maravilhosa para o Renascimento italiano”. (Fui especialmente para ver outra exposição, brasileira, “Um Celereiro de Artistas“, em especial um quadro de tamanho grande que fotografei, Camisa Verde, do meu conterrâneo, o grandioso artista e comunista Mário Gruber, e não me arrependi de observar minuciosamente o seu talento em fazer lantejoulas tão realistas, mas isto e outras coisas mais são assunto para outro ensaio…)
A crítica de Tarkóvski, de adjetivos ásperos, é convincente, mesmo que só até certo ponto:
“[…] Quem ainda não escreveu sobre Rafael e a sua Madona Sistina? A idéia do homem, que finalmente conquistou sua própria personalidade, em carne e osso, que descobriu o mundo e Deus em si mesmo e ao seu redor depois de séculos de adoração do Deus medieval, cuja contemplação o privara da sua força moral — diz-se que tudo isso encontrou concretização perfeita, coerente e definitiva nessa tela do gênio de Urbino. De certo modo, é possível que assim tenha sido. Pois, a Virgem Maria, na configuração do artista é, de fato, uma cidadã comum, cujo estado psicológico, tal como o vemos refletido na tela, tem sua base na vida real: ela está temerosa pelo destino do filho, oferecido em sacrifício aos homens. Embora tudo se dê em nome da salvação destes últimos, ele próprio está capitulando na luta contra a tentação de defender-se deles.
“Tudo isso está, de fato, vivamente “escrito” no quadro — em minha opinião, com uma clareza excessiva, pois as idéias do artista oferecem-se ali à leitura: tudo por demais inequívoco e definido. Irrita-nos a tendenciosidade doentiamente alegórica do pintor, que paira sobre a forma e ofusca todas as qualidades puramente pictóricas do quadro. O artista concentrou sua vontade na clareza das idéias e na conceituação intelectual da obra; para isso, porém, pagou seu preço, pois a pintura é débil e insípida. […]” (ibidem, p. 54)
(Escrevi “até certo ponto”, porque é preciso considerar que todo movimento seminal possui a tendência inicial de estabelecer seus manifestos e intenções pela necessidade de anunciar-se e marcar presença… Neste aspecto, a Madona Sistina de Rafael, cuja protagonista, pobre, despojada e simples, que parece saltar dum filme de Pasolini, tem, sim, importante destaque histórico! Não se pode também esquecer que o próprio Tarkóvski, dentro da sua tentativa de transplantar o espírito observacional, gestáltico dos haicais para o cinema, tampouco escapou de forçar, em certas cenas, intenções explícitas, sobretudo as excessivamente religiosas-ortodoxas ou até misticistas, que representam enorme retrocesso com relação à história de seu país e o fazem hoje ser deturpado por conservalóides do cristianismo, outras intenções até pretenciosas demais e pseudointelectuais, quando bota frases supostamente filosóficas em certas personagens, que não convencem, contudo toda essa problemática seria tema para outro ensaio…)
O zeitgeist do Renascimento, conforme Tarkóvski supracitado descreveu em linhas gerais, anunciou a imanência material no lugar da transcendência. Engels, em Dialética da Natureza (1883; cf. São Paulo: Boitempo, 2020, Introdução), um livro deixado por terminar e muito hesitante pelas polêmicas suscitadas entre sociedade e ciências naturais, mostrou que a Renascença — “a época que precisou de gigantes e produziu gigantes“, segundo ele — possibilitou polímatas admiráveis (como Leonardo da Vinci), porque, malgrado o feudalismo caduco de então (isto sou eu quem faço questão de frisar), o artista-cientista-erudito não havia ainda sido escravizado pela divisão capitalista do trabalho, uma vez que o capitalismo engatinhava e começava a ascender (recordo a frase de Marx no capítulo IV do primeiro livro de O Capital, que está aqui próximo de mim entre meus livros: “O comércio e o mercado mundiais inauguram no século XVI a moderna história do capital“); ou seja, com a hegemonia e a implementação em larga escala da divisão do trabalho, que serviram para otimizar a produção industrial e acelerar a moderna acumulação, os sucessores dos polímatas — incluindo nós — foram submetidos a um sistema limitante e unilateral. Essa importante tese estrutural de Engels será retomada por Lukács na década de 1930 para a seção “Tragédia e tragicomédia do artista no capitalismo” do ensaio “Tribuno do povo ou burocrata?” (presente nas edições brasileiras Marx e Engels como historiadores da literatura e também em Marxismo e teoria da literatura). Igualmente merece nota que, já em A Ideologia Alemã (cf. São Paulo: Boitempo, 2007, págs. 378-382, “Organização do trabalho”), série de escritos inovadores de 1845-1846, publicados só em 1932, Marx e Engels, em brainstorming mútuo, desmascaram os resquícios burgueses/individualistas da mentalidade de Stirner sobre a propriedade e o gênio (o “Único”, para se referir justamente a um Rafael), não só fazendo ver que tais indivíduos (da Vinci, Rafael, Mozart, que teve seu Réquiem terminado postumamente por outro músico, etc.) não criavam apenas solitariamente e distanciados da sociedade, dependiam, inclusive para os materiais concretos necessários às suas atividades práticas, da organização socioeconômica de sua época, do intercâmbio disponível e de muitos outros homens interligados à rede social produtiva, como também sugerem que, superada a divisão capitalista do trabalho, “Numa sociedade comunista não há nenhum pintor, mas no máximo, homens que, entre outras atividades, também pintam” (ibidem).
Voltemos ao nosso tema principal… Para reivindicar a “vontade e energia” duma “lei de intensidade que me parece constituir uma condição fundamental da pintura” (Esculpir o Tempo, ibidem, p. 54), Tarkóvski nos apresenta Carpaccio em contraposição a Rafael:
“Em sua pintura, [Carpaccio] resolve os problemas morais que assediavam o homem do Renascimento, fascinado por uma realidade repleta de objetos, pessoas e matéria. Ele os resolve através de meios verdadeiramente pictóricos, muito diversos daquele tratamento quase literário que confere à Madona Sistina seu tom de alegoria, de sermão. A nova relação entre o indivíduo e a realidade exterior é por ele expressa com coragem e nobreza — sem nunca cair no excesso de sentimentalismo, sabendo como ocultar as suas inclinações, a sua vibrante alegria frente à emancipação. […]” (ibidem, págs. 54-55)
Tarkóvski tem razão aqui. Em matéria de conjunto da obra (muito além da Madona Sistina, porém), Carpaccio espelha (para usar termo da estética lukácsiana) os novos tempos da Renascença de maneira mais fidedigna do que Rafael por pulverizar pelas telas os elementos modernos (ou proto-modernos) de seu tempo, quando a cidade ia sendo mais habitada do que o campo. São quadros (conferir as imagens que coloquei ao final deste texto com frases de Tarkóvski que pincei deliberadamente) de acontecimentos histórico-sociais (que dissipam o sagrado da religiosidade dos temas cristãos), viagens materiais (não à toa, época das grandes navegações), retomada integral e adaptação ao seu tempo de mitos pré-cristãos, pagãos, e inúmeras ações e relações humanas cotidianas em dezenas e centenas de tipos e classes sociais estratificadas em ampla composição. A sociedade em movimento e fluxo. Vontade e energia da tal “lei de intensidade” desejada! Ao sopesar as obras de ambos, não seria incorreto afirmar que Carpaccio é muito mais “materialista” e coletivista: está interessado e mergulhado nos assuntos terrenos, enquanto que em Rafael, em que pesem a Madona Sistina ou mesmo A Escola de Atenas, notamos os pés flutuando acima do chão, os resquícios transcendentais da religião, mesmo que sob novas formas e olhares mundanos. Além do mais, arrisco a dizer que Rafael, que tanto influenciou o século 18, é o clássico/classicista por excelência, a buscar o ideal harmônico da serenidade e da beleza, enquanto que em Carpaccio o moderno se antecipa diante de nossos olhos.
Guardadas as devidas diferenças, faz lembrar a crítica do amoroso modernista Mário de Andrade ao grande Machado de Assis, na ocasião do centenário de seu nascimento, comemorado em 1939 (v. Mário de Andrade, “Machado de Assis” In: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins, 1974, p. 103). O autor de Macunaíma e pesquisador popular reconhece a inquestionável grandeza de Machado em diversos níveis e sentidos (só faltaria aos modernistas de 1922, que nos levaram a uma “segunda independência”, estudo cavado do surpreendente pioneirismo experimental da prosa machadiana, conforme Décio Pignatari, Haroldo de Campos e outros fizeram décadas depois noutro grande momento cultural do Brasil…), e que escrevera “apaixonante obra e do mais alto valor artístico, prazer estético de magnífica intensidade que me apaixona e que cultuo sem cessar”, “deixou, em qualquer dos gêneros em que escreveu, obras-primas perfeitíssimas de forma e fundo”, porém argui que era escritor encastelado, que Lima Barreto, João do Rio, França Júnior conseguiram muito mais reter o burburinho da vida do Rio de Janeiro, tendo também falhado em captar a “alma brasileira” como o fizeram Gonçalves Dias, Castro Alves, Aleijadinho, Almeida Júnior, Farias Brito e outros. Isto tudo é fato, ainda que Machado de Assis tenha sido cronista profícuo, e foram justamente o universal e a influência eurocentrista agentes de sua consagração estrangeira; por outro lado, ainda bem que nos deixou em literatura, sobretudo nos contos e romances, o retrato das nossas classes médias e dominantes indolentes, servindo para entendermos melhor (reforçados pelos estudos sociais machadianos de Alfredo Bosi, Roberto Schwarz, Antonio Candido, Helen Caldwell, John Gledson et al) as causas dos problemas do Brasil sob este ângulo alto e direto, mas jamais conivente, sempre crítico e mordaz, que nenhum outro autor do século 19 nos deixou.
Carpaccio captou o burburinho e a “alma” de seu tempo renascentista bem mais do que grande parte de seus contemporâneos. Embora Tarkóvski não cite qualquer exemplo de quadro do elogiado que possa nos fazer vislumbrar suas palavras, rápida pesquisa havia me levado, à época, a uma galeria de quadros citadinos com turbas, eventos e movimentações, construções, etc., que de fato fascinam qualquer cineasta autêntico diante de grandes cenários e elencos. De repente, um quadro em específico chamou minha atenção, e, desde então, logo converteu-se numa das minhas pinturas preferidas (impossível não citar, nesta lista em construção, também Ovídio entre os citas, de Delacroix, e vários outros, obviamente muitos brasileiros):
Não seria, também este quadro, um panfleto ou cartaz?!… O cadáver dessacralizado de um eurocêntrico Jesus (e sem auréola!), entre ossos e esqueletos, “espera” que os coveiros preparem sua tumba. Um velho, apoiando uma das mãos no rosto, o olha com indiferença (faz lembrar os anjos-crianças da Madona Sistina, que também direcionam nosso olhar à figura principal), afinal, é mais um que morre dentre tantos outros. A dor e a desolação das duas mulheres no canto, cenicamente unidas, uma de cabeça para cima, a outra com a cabeça para baixo, parecem ser o único eixo a lembrar da gravidade do ocorrido. Isto ocorre nos primeiros planos. No fundo, com exceção do caminho à esquerda que nosso olhar percorre até chegar às tortuosas cruzes de madeira na parte superior, a vida continua com variadas ações de variados tipos sociais em meio à despojada paisagem: alguém toca um instrumento de sopro, há outras tumbas, cenas pastorais, transeuntes, etc. Por fim, cabe dizer que esse quadro guarda cordão umbilical com outro quadro ainda mais impressionante, O Corpo do Cristo Morto na Tumba (1520-22), de Hans Holbein, o jovem, que, séculos depois, no século 19 foi gatilho para Doistoiévski, ex-revolucionário e cristofrênico convertido, ter sério ataque de epilepsia quando diante dele esteve… (Para uma próxima contraposição: Tchernichévski versus Dostoiévski, só que mais aprofundada.)
Entanto, pelas descrições oferecidas por Tarkóvski, é certo que este pensava em gama de outras pinturas, as quais reuni de acordo com meu gosto e agora elenco abaixo, após reproduzir suas argutas palavras finais acerca da obra de Carpaccio. Observem a variedade de acontecimentos e ações e figuras no primeiro e segundo e demais planos das pinturas do mestre veneziano. Será injusto não fazer o mesmo com Rafael, porém de outro modo penso que expor mais obras suas não advogaria em seu favor nesta contraposição, e comparações tendem à superficialidade e ao desrespeito à singularidade de um artista.
“[…] As composições cheias de figuras de Carpaccio têm uma beleza surpreendente e misteriosa. Talvez seja até mesmo possível chamá-la ‘a Beleza da Idéia’. Diante delas, tem-se a perturbadora sensação de que o inexplicável está prestes a ser explicado. Momentaneamente, é impossível compreender o que cria campo psicológico em que nos encontramos, ou fugir ao fascínio que se apodera de nós diante da pintura e nos põe num estado muito próximo do medo.
“[…] Podem se passar horas antes que comecemos a perceber o princípio da harmonia que rege a pintura de Carpaccio. No entanto, assim que o apreendemos, permanecemos para sempre sob o encanto da sua beleza e do nosso arrebatamento inicial.
“Quando o analisamos, descobrimos que o princípio é extraordinariamente simples e expressa, no mais alto sentido, a base essencialmente humana da arte renascentista, em minha opinião, com muito mais intensidade do que Rafael. A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem “incidental”. O círculo se fecha, e ao olharmos para a tela de Carpaccio, nossa vontade acompanha, dócil e involuntariamente, o fluxo lógico de sentimentos pretendido pelo artista, voltando-se primeiro para uma figura aparentemente perdida na multidão, e depois para outra. […]” (Esculpir o Tempo, ibidem, págs. 55-56)
Tarkóvski, recordando Marx (fica a dúvida se a afirmação não seria de Engels), fecha a contraposição ressaltando a cautela de suas posições:
“[…] Não tenho a menor intenção de convencer os leitores da superioridade dos meus pontos de vista sobre dois grandes artistas, nem de estimular a admiração por Carpaccio em detrimento de Rafael. Tudo o que pretendo dizer é que, embora em última instância toda arte seja tendenciosa, que até mesmo o estilo seja comprometido, uma mesma tendência tanto pode ser absorvida pelas camadas insondáveis das imagens artísticas que lhe dão forma, quanto pode ser exageradamente afirmada, corno num cartaz, como é o caso da Madona Sulina de Rafael. Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não fique à mostra como as molas que saltam de um sofá. […]” (ibidem, p. 56)
Só mais um parágrafo final, que completa a questão da tendência na arte. Não se sabe até que ponto Tarkóvski era familiarizado com a obra marxiana, entretanto é possível que tenha havido um equívoco ao citar (sem rigor ou fonte) Marx, ao invés de Engels. Sabemos que a dupla não deixou um tratado estético, e sim escritos esparsos e laterais, formativos, mas, por exemplo, este último, em seus anos finais, já sem o companheiro de luta, ao estreitar correspondências com artistas, escritores socialistas e revolucionários, inclusive escritoras, cravou explicitamente: “Quanto mais permanecerem ocultas as opiniões do autor, melhor para a obra de arte. O realismo a que me refiro pode manifestar-se até mesmo a despeito das opiniões do autor” (trecho de carta a Margaret Harkness em abril de 1888, tradução minha). No seguinte trecho de outra carta, para Minna Kautsky, em 26 de novembro de 1885, colhida do Marx & Engels Collected Works Vol 47, Engels, comentando o romance Die Alten und die Neuen escrito pela destinatária, e que, a despeito de Balzac ser simpático à burguesia, confessando que o admirava como escritor pela criação realista de tipos sociais, explica melhor tal posicionamento: “[…] The source of this failing, however, may be discovered in the novel itself. In this book you obviously felt impelled to take sides openly, to testify to your convictions before the whole world. Now that you have done so, it is something you can put behind you and have no need to repeat again in the same form. I am not at all opposed to tendentious poetry as such. The father of tragedy, Aeschylus, and the father of comedy, Aristophanes, were both strongly tendentious poets, as were Dante and Cervantes, and the best thing about Schiller’s Kabale und Liebe is that it was the first politically tendentious drama in Germany. The Russians and Norwegians of today, who are producing first-rate novels, are all tendentious writers. But I believe that the tendency should spring from the situation and action as such, without its being expressly alluded to, nor is there any need for the writer to present the reader with the future historical solution to the social conflicts he describes. Furthermore, in present circumstances, the novel is mainly directed at readers in bourgeois — i.e. not our own immediate — circles and, such being the case, it is my belief that the novel of socialist tendency wholly fulfils its mission if, by providing a faithful account of actual conditions, it destroys the prevailing conventional illusions on the subject, shakes the optimism of the bourgeois world and inexorably calls in question the permanent validity of things as they are, even though it may not proffer a solution or, indeed, in certain circumstances, appear to take sides. Your detailed knowledge and your wonderfully true-to-life descriptions, both of the Austrian peasantry and of Viennese ‘society’, provide ample material for this, and you have already shown in Stefan that you are also capable of handling your protagonists with a nice irony which testifies to the command an author has over his creatures. But now I must desist, otherwise you’ll think me altogether too prolix. […]” Mas tal escolha artística delineada por Engels contra a tendência (que suscitará, no século posterior, outra contraposição, desta vez no interior do próprio marxismo: Brecht x Lukács), depende muito do público-alvo (da classe) a que o artista se dirige, conforme disse-me Mauricio Puls, certa vez, em longa troca de mensagens que tivemos: assim, neste complexo século 21, embora devamos abalar as certezas da axiomática capitalista sem necessariamente apresentarmos a solução inequívoca (ou até panfletária, portanto ingênua ou oportunista) dos conflitos histórico-sociais espelhados na arte, tomando lados tendenciosos que suplantam a força própria das situações, figuras e personagens, ainda que importantes aos escritos políticos de não-ficção, ainda que devamos frustrar o falso otimismo da ordem da manipulação e da alienação diárias, dos desvios de foco, e mostrar a decadência tardia da sociedade burguesa às classes dominantes e seus representantes, penso que um público consciente, despossuído da propriedade privada dos meios de produção, trabalhador e nada burguês demanda um Brecht, um Plínio Marcos (outro conterrâneo meu) e correlatos, sob pena da revolta transformadora vinda debaixo, do nosso caldo cultural à lá Gramsci, da agitação cultural, da ameaça ao status quo, da denúncia, da conscientização revolucionária e de outras categorias que nos são imprescindíveis à arte não serem potencializadas.
Ps.: O Prof. Brasilio Sallum Jr. (USP e UNIFESP), embora faça mais jus à sociologia paulista, sabe muito de marxismo, teoria marxiana, método marxista e merece ser lido quando trata disso. Recomendo seu texto abaixo (“Marxismo, sistema e ação transformadora“), em que cita Gramsci (o “site” reúne textos gramscianos e sobre Gramsci) e uma renovação coerente de Marx e Engels, e é justamente uma tentativa de propor caminhos teórico-práticos para marxistas superarem não só o dito “dogmatismo”, mas também o limbo de um tempo contra- ou antirrevolucionário:
Não existe “polarização” (farsa da ideologia liberal): existem lutas de classes, ora veladas, ora abertas, como já afirmava o Manifesto Comunista, e com seus respectivos representantes ou lideranças…
Escrevi, há poucas semanas, um texto crítico com relação a Lula, intitulado “Lula e a utopia da conciliação de classes“, mas nunca deixei de considerar o fato inconteste de ser ele a maior liderança orgânica do país e uma das maiores do mundo – em determinados momentos, um protagonista do movimento progressista.
Agora, a reabilitação dos direitos políticos de Lula com a anulação dos processos dos lesa-pátria lavajateiros de Curitiba – por um Edson Fachin que, com toda certeza, quis com sua manobra livrar Sérgio Moro, agradar a gregs e troianos – e, já no dia seguinte, o início do julgamento da suspeição de Moro pelo Supremo Tribunal Federal (que Faschin quis interromper, revelando sua intenção) certamente restauraram a cidadania e provocaram uma onda de alegria, entusiasmo, fôlego e alívio em milhões de brasileiros num momento terrível e cinzento de DESgoverno, falta de liderança, desmobilização, isolamento geopolítico, distanciamento sanitário, crise capitalista, sufoco, descrédito, nenhuma perspectiva, ataques direitistas e pandemia mortífera. Tento não me deixar levar e ter os pés calcados na crítica.
O momento talvez lembre, guardadas as enormes diferenças contextuais e até de estatura das figuras, a ditadura de Vargas I e a promessa de um Prestes Cavaleiro da Esperança redentor, que não se cumpriu. Aliás, ambos – na verdade, Vargas II – subiram juntos em palanque anos depois…
Agora, pensem bem. Se a grande mídia hegemônica – Globo, Folha, Estadão – está fula com Lula (chamando-o de “monstrengo”, mais uma vez investindo no terrorismo da época da Guerra Fria ao dizer que ele joga o Brasil “num turbilhão de incertezas”, sendo que governou também para eles e para o empresariado por 8 anos, estupidamente nivelando-o com Bolsonaro, já que o plano seria emplacar um direitista que continuasse com as contrarreformas antipopulares, o que eles não têm, etc.), Lula, um utópico da conciliação de classes, imaginem o que os capitalistas e seus capangas fariam contra um comunista, um marxista realmente calcado na teoria e na práxis que fosse intelectual/líder orgânico e tivesse enorme organização popular consigo!
Isto é para vocês verem o quão ignóbil e desprezível é a nossa elite econômica, o quão a centro-esquerda apenas ocupa posições que deveriam ser de uma direita minimamente sensata, o quão irracional é a direitalha, que só ganha com marionetes toscas não-orgânicas, bizarras e exóticas sem projeto sério – Jânio, Collor, Bolsonaro, etc. Diante dessa miséria ideopolítica, resta à doutrina marxista ser ainda minoritária na esquerda – mas sua força é explosiva!
Os destinos de Marighella, Che Guevara, Allende (um médico equilibrado, que disputou eleição nos conformes da regra eleitoral da farsa burguesa, porém autoproclamado comunista e suicidado por Pinochet e EUA!), personagens da Intentona Comunista e muitos outros nomes deste continente e alhures (praticamente todo marxista e comunista) que o digam, a própria História mostra o que acabo de afirmar sobre o elitismo anticomunista…
Para terminar, cabe uma palavra filosófica. Obviamente, não se trata apenas da situação de que uma transformação radical exige uma reação radical, de que um processo revolucionário justificaria a contrarrevolução (fórmula nazifascista em favor dos capitalistas e proprietários fundiários), mas o inverso, a transformação é radical justamente pelas próprias condições dadas no jogo de tabuleiro após a acumulação primitiva e a concentração da posse, porque os oponentes de tal transformação já estão fortemente armados contra a melhoria da humanidade e da socioeconomia para perpetuar seus sórdidos interesses e privilégios de classe dominante, que queremos abolir e socializar a todos e todas.
O melhor argumento contra o socialismo ainda é muito ruim. Está em Friedrich August von Hayek (1899-1992), opositor impenitente de qualquer forma de socialismo e até de qualquer social-democracia; anticomunista, antimarxista, aquele que afirmou preferir uma ditadura sanguinária como a de Pinochet com mercado autorregulado (neoliberalismo) do que “democracia” com regulação. O Estado vira pura coerção; o mercado, pura tirania. Fome e repressão. Basta isto para qualquer ser lúcido manter-se distante desse perverso. Mil vezes melhor um Polanyi, na mesma época pós-guerra, contra a forma mercadoria: a autorregulação do mercado é que levou ao nazifascismo, porque, ao ver-se ameaçada, a classe trabalhadora faz movimento brusco para proteger-se (infelizmente, tal movimento, a priori revolucionário, é cooptado pelos nazifascistas reacionários)!
É preciso, porém, encará-lo para desmontá-lo:
A pseudotese deste autor da “escola austríaca” vê o mercado como um sistema descentralizado e “insuperável” por promover o encontro de ofertantes e demandantes de mercadorias. Nada sobre classes sociais! Contra qualquer intervenção socialista, Hayek o define como uma “auto-organização insubstituível” (pérfida metafísica!) que reproduziria a sua própria estrutura. Ora, um sistema autônomo e livre de liames sociais não existe, e ninguém jamais conseguiu provar sua existência! (Cf. Lukács, Conversando Com Lukács, São Paulo: Instituto Lukács, 2014, p. 54.) É ficção. Nem mesmo admite a intervenção do Estado burguês pela legislação e na segurança coercitiva da propriedade… Para Hayek, a relação sob o capitalismo seria espontânea – mas, na vida real, constatamos que o mercado é, na sociedade de classes burguesa, seletivo e hierarquizado, sem contar o papel da mídia e da propaganda, que servem à classe dominante!
A economia mundial, para Hayek, não opera com a razão. A razão pode arruiná-la. Ora, estamos diante dum irracional confesso! A justiça social destruiria “uma civilização que nenhuma mente planejou, pois ela cresceu a partir dos esforços livres de milhões de indivíduos”. Podemos notar, assim, que Hayek, como todo direitista, não sabe de História (sobretudo a história da acumulação primitiva mostrada por Marx em O Capital). Hayek diminui a construção humana para elevar e santificar um sistema abstrato.
Fácil desmontar o cerne da pseudotese: basta apontar sua defasagem quanto à teoria do valor e mostrar que, seguindo o erro do liberalismo e da economia vulgar desde o século XIX, Hayek apreende o capitalismo apenas na aparência (a circulação de mercadorias), sem alcançar ou até escamoteando a relação de produção que é sua essência: a contradição entre capital de um lado e trabalho assalariado do outro, comprovada pelo mais-valor (ou mais-valia, na tradição tradutória brasileira) e que revela a exploração classista e a dominação política.
Por que é o melhor (pseudo)”argumento” contra o socialismo, então? Porque o socialismo, para ter sucesso, não pode ser governado por um “sujeito automático” e “acumulativo”, e sim por um télos associado às necessidades humanas e ao enriquecimento cultural de todos. É famoso o lema comunista por excelência lançado por Marx na Crítica do Programa de Gotha para a transição socialista: “De cada um conforme suas capacidades; a cada um conforme suas necessidades!”
E por que é ruim, além dos equívocos já apontados? Porque não passa duma apologia barata (apologia do mercado capitalista tirano) com pitadas de charlatanismo, exacerbação idealista do individualismo e até bandidagem fascistóide e burguesa, que só serve à matriz da corrupção, que certamente advém do próprio mercado: um sistema baseado na concentração dos meios de produção e no lucro acima de tudo só pode ser corrupto e, hoje em dia, cada vez mais autocrático com seus bilionários, monopólios, conglomerados, OMCs, FMIs, FIESP, CIESP, etc. etc. etc. a decidir tudo de cima para baixo a despeito do povo, dos trabalhadores e mesmo dos partidos ou organizações democráticas.
Na construção da sociedade comunista (abolição do capital, fim da divisão e antagonismo de classes, abolição do sistema de trabalho assalariado em nome do trabalho fundante, dissolução do Estado-coerção, meios de produção socializados para a sociedade, propriedade comunitária, etc. etc. etc.), o mercado sem dúvidas terá de ser mitigado ou até destruído, conservando dialeticamente o que possa haver nele de de positivo para a humanidade.
No artigo disponível acima, em profundo contato com os Cadernos do Cárcere e outros textos gramscianos e marxistas fundamentais, praticamente a cada parágrafo, eu mostro que, para o líder dirigente do PCI, militante da Internacional, deputado preso pelos fascistas e grande intelectual marxista Antonio Gramsci, Estado e sociedade estão em relação dialética, não dualista.
A separação entre ambos só interessa à ideologia direitista-burguesa, que demoniza o público, torna o Estado pura coerção, reivindica a tirana autorregulação do mercado (neoliberalismo e correlatos) e camufla a dominação de classes na sociedade civil (tida como espaço da “livre iniciativa”), seja sob a dominação da fábrica/empresa capitalista ou do consenso em escolas, mídia, jornais etc. Há, por outro lado, ingênua fenomenologia pós-moderna, sobretudo anarquista, pior ainda quando cita Gramsci (sem o estudar), que cai na armadilha liberal e, ao invés de lutar pela hegemonia da classe subalterna para esta tornar-se dominante (isto, sim, é Gramsci puro!), rejeita a luta política, reafirma a sua subalternidade.
Ao separar a superestrutura marxiana e engelsiana em dois níveis (“sociedade civil” e “sociedade política”), Gramsci une os dois níveis em teoria inovadora e fatídica sobre o Estado através do termo indissociável estrutura-superestrutura. (Basta citar o poder do lobby nas decisões dos parlamentos, o vínculo podre entre empresariado e políticos profissionais, a legislação burguesa que molda as ações da sociedade sob a forma mercadoria ou o notório fato de que as forças militares do Estado servem à defesa da propriedade privada dos meios de produção da burguesia…)
Gramsci, enfim, mostra que a sociedade civil é um momento do que ele chama de Estado integral ou ampliado e uma arena das lutas de classes. “Todo Estado é uma ditadura.” Esta teoria sustenta as estratégias práticas gramscianas da revolução no Ocidente (“guerra de posição”, “guerra de movimento” etc.) e a tese da “sociedade regulada” (comunismo), que é construída à medida que o Estado-coerção esgota-se e dissolve-se na sociedade civil para o fim da divisão de classes após a conquista do poder por trabalhadores revolucionários, de forma organizada e gradativa (tal como em Marx, Engels et al., com a diferença de que G. inova ao defender a conquista da hegemonia antes da conquista do poder governamental).
Após muitas perguntas sobre esse termo que eu devo ter inventado, cumpre-me apresentá-lo, sobretudo neste momento de tantos desvios e deturpações com relação à teoria revolucionária. O termo é meu, mas não é nada de original ou de novo; trata-se da tese das “três fontes” e “três partes” do marxismo, ora criticada, ora reivindicada.
O marxismo não é monolítico; é, muitas vezes, oscilante, até contraditório e com divergências ferrenhas na própria luta ideopolítica. Porém, a teoria marxiana revolucionária é constituída por alguns princípios socioeconômicos, científicos, filosóficos e políticos básicos sem os quais não há marxismo de fato, porque tratam-se de descobertas seminais e próprias. (Por exemplo, sem a teoria do valor não se identifica a exploração do capitalismo; sem a concepção materialista da história, não se explica a estrutura e a superestrutura, etc.)
Engels
“Exposição mais ou menos coerente do método dialético e da ideologia comunista defendida por Marx e por mim, numa série de domínios bastante vastos“, segundo escreve o próprio Friedrich Engels, a obra Anti-Dühring (1877 – recomendo a edição da Boitempo), que formou a primeira geração de “marxistas”, já visava se opor às deturpações do que seria o socialismo; livro “contemporâneo” a Marx, que, mesmo estando ocupado com O Capital, revisou e ajudou sobretudo a parte de Economia Política. A ideologia marxiana é dividida por Engels (ainda que interdependentes entre si) em Filosofia, Economia Política e Socialismo. Abaixo, o índice do livro (a parte da Filosofia será posteriormente criticada por Lukács, na medida em que a dialética engelsiana, com enfoque demasiado na natureza, desconsideraria o homem, o que compromete a práxis revolucionária):
Seção I – Filosofia
111. Subdivisão. Apriorismo
IV. Esquematismo do mundo
V. Filosofia da natureza: tempo e espaço
VI. Filosofia da natureza: cosmogonia, física, química
VII. Filosofia da natureza: mundo orgânico
VIII. Filosofia da natureza: mundo orgânico. Conclusão
IX. Moral e direito: verdades eternas
X. Moral e direito: igualdade
XI. Moral e direito: liberdade e necessidade
XII. Dialética: quantidade e qualidade
XIII. Dialética: negação da negação
XIV. Conclusão
Seção II – Economia política
111. Teoria do poder. Continuação
IV. Teoria do poder. Conclusão
V. Teoria do valor
VI. Trabalho simples e trabalho composto
VII. Capital e mais-valor
VIII. Capital e mais-valor. Conclusão
IX. Leis naturais da economia. Renda fundiária
X. Da História crítica
Seção III – Socialismo
Seção 111 – Socialismo
I. Aspectos históricos
11. Aspectos teóricos
111. Produção
IV. Distribuição
V. Estado, família, educação
Kautsky
As três fontes do marxismo (1908), livrinho de Karl Kautsky, teórico importante para o marxismo e que tivera contato com Marx e Engels no século 19, mas que logo no século 20 será chamado por Lênin de “o renegado Kautsky” por lamentavelmente ter apoiado a guerra imperialista de 1914, já expunha as três fontes a partir do que fora organizado por Engels em Anti-Dühring, porém de maneira mais acessível. Kautsky expõe as três explícitas influências: a economia política inglesa (Adam Smith e David Ricardo), a filosofia alemã (sobretudo Hegel e Feuerbach) e o socialismo francês (que Engels, em seu célebre ensaio Do socialismo utópico ao socialismo científico, opúsculo retirado do Anti-Dühring, chamará de “utópico”, isto é, o socialismo de Saint Simon, Charlie Fourier, Robert Owen, mas no qual Marx, antes de fundar o socialismo científico, entra em contato teórico-prático em sua experiência com a classe trabalhadora francesa revolucionária).
Lênin
As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo (março de 1913), de Lênin, além do “Karl Marx (Breve Esboço Biográfico Seguido de uma Exposição do Marxismo)” de novembro 1914 são dois textos que estão nos meus 3 tomos calhamaços das Obras Escolhidas de Lênin, que, ao menos em termos teóricos, foi fiel a Marx, embora de maneira apressada e, portanto, um tanto quanto reducionista, mas trata-se do beabá: Lênin divide seu breve texto em materialismo e dialética (a partir de Hegel e Feuerbach), economia (Smith e Ricardo, mas sobretudo a teoria da mais-valia de Marx) e o socialismo enquanto lutas de classes. Para Lênin, enfim, há a concepção materialista da história, a teoria da mais-valia e as lutas de classes. Lênin cita duas obras importantes de Engels, Anti-Dühring e Ludwig Feuerbach, afirmando que são livros de cabeceira de “todo operário consciente”. O seu esboço biográfico de Marx seguido de uma exposição do marxismo é um tanto mais explicativo, inclusive sobre o valor.
Gramsci
(Aqui, temos um dos pontos em que Gramsci supera Lênin; há outros, e pretendo enumerar todos ou os principais em outro ensaio.)
Antonio Gramsci, que, nos Cadernos do Cárcere, dispõe de um laboratório terminológico e criptográfico original, refere-se (em parte para escapar da censura fascista, em parte para dialogar com outros autores que usavam tal termo) ao marxismo como filosofia da práxis. Defensor de uma filosofia de base historicista, Gramsci refutou todo e qualquer vestígio de metafísica, mecanicismo, economicismo vulgar e idealismo no tratamento do pensamento de Marx.
No § 33 (“Questões gerais”) e no § 46 do Caderno 11, Gramsci se contrapõe ao ensaio supracitado de Lênin (com quem militou enquanto membro do comitê executivo da Internacional Comunista e a quem define, nos Cadernos, como o “maior teórico moderno da filosofia da práxis”). Ele não descaracteriza as formulações expostas ali por Lênin, mas em Gramsci o tratamento do marxismo surge de maneira bem mais crítica, problematizada e complexa, porque suas condições são outras, enquanto que as preposições leninianas reforçaram a vulgata russa (promovendo parte considerável da vulgata marxista ocidental). Para Gramsci:
“Um estudo acurado da cultura filosófica de Marx […] é certamente necessário, mas como premissa ao estudo bem mais importante de sua própria e ‘original’ filosofia que não pode ser esgotada em algumas ‘fontes’” (Q 11, 70, 1.508 [CC, 1, 223]).
Gramsci parece se referir diretamente ao opúsculo de Lênin:
“Uma concepção muito difundida é a de que a filosofia da práxis é uma
pura filosofia, a ciência da dialética, e as outras partes são a economia e a política; daí se afirmar que a doutrina é formada por três partes constitutivas, que são ao mesmo tempo o coroamento e a superação do mais elevado nível que, por volta de 1848 [data das revoluções de 1848 e do Manifesto Comunista], tinha atingido a ciência das nações mais desenvolvidas da Europa: a filosofia clássica alemã, a economia clássica inglesa e a atividade e a ciência política francesa. Essa concepção – que é mais uma investigação genérica das fontes históricas do que uma classificação nascida do interior da doutrina – não pode se contrapor, como esquema definitivo, a qualquer outra organização da doutrina que seja mais adequada à realidade” (Q 11, 33, 1.448)
Essa “outra organização” é exatamente a filosofia da práxis.
Voltando à “cultura filosófica de Marx” citada por Gramsci, (Caderno 11, § 25):
“A filosofia da práxis nasceu sob a forma de aforismos e de critérios práticos por um mero acaso, a saber, porque o seu fundador dedicou
sistematicamente as suas forças intelectuais a outros problemas, notadamente econômicos; nestes critérios práticos e nestes aforismos,
contudo, está implícita toda uma concepção do mundo, uma filosofia.”
Segundo a filosofia da práxis, política, filosofia e economia são reciprocamente traduzíveis (Q 4, 46, 472-3). Além disso, para Gramsci, não se pode deixar de tratar dos aspectos pertinentes à arte, economia, ética e até mesmo das teorias das ciências naturais, elementos que não aparecem nem de modo implícito no texto de Lênin.
No Caderno 11, Gramsci pergunta-se várias vezes sobre a tradutibilidade recíproca de várias linguagens filosóficas e científicas; a indagação tem como objetivo compreender a “integração” entre filosofia clássica alemã, literatura e prática política francesa e economia clássica inglesa na filosofia da práxis. Para Gramsci, a vulgata russa exposta por Lênin e que remontava a Plekhanov do materialismo marxismo promovia uma justaposição das três fontes, mas a justaposição dos três grandes movimentos culturais do século 19 foi fruto, na crítica de Gramsci e até em estudos de Labriola, da sociologia positivista (v. Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci (1926-1937), tradução de Luiz Sérgio Henriques, Brasília: Fundação Astrojildo Pereira: Rio de Janeiro: Contraponto, 2012; cf. Paolo Nosella, A escola de Gramsci, São Paulo: Cortez Editora, 2018).
Para resolver a problemática da “integração” que preserve a originalidade da filosofia da práxis, Gramsci aposta no conceito de imanência (Caderno 10 § 9):
“O momento sintético unitário, creio, deve ser identificado no novo conceito de imanência, que da sua forma especulativa, tal como era apresentada pela filosofia clássica alemã, foi traduzido em forma historicista graças à ajuda da política francesa e da economia clássica inglesa”
Giancarlo Schirru, em “La categoria di hegemonia e il pensiero linguístico di Antonio Gramsci” (In: Egemonie, coordenador Angelo d’Orsi com a colaboração de Francesca Chiarotto, Ed. Libreria Dante & Descartes, Napoli. 2008, pp. 397-444, 2008), observa que as notas dos Cadernos detêm-se longamente, e não sem oscilações, sobre as modalidades de como descrever essa conexão [entre filosofia, política e economia], ou seja, de “como a filosofia da práxis chegou à síntese dessas três correntes vivas na nova concepção de imanência, depurada de qualquer vestígio de transcendência e de teologia” (p. 421). Vale dizer que para Gramsci a filosofia da práxis deve criticar e superar a religião – “ópio do povo” para o Marx da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – para um progresso intelectual da massa e da classe trabalhadora!
Gramsci, que havia entrado no curso de Letras da melhor universidade de seu país através de uma bolsa (era pobre), ainda que não o tenha concluído devido a vida política atribulada, sabia por meio da Ciência Linguística o reconhecimento da autonomia de cada linguagem. Segundo Paolo Nosella (A escola de Gramsci, 2018), quando esboça o conceito de “tradutibilidade”, Gramsci “rechaça as tentativas do bolchevismo de reduzir o marxismo a instrumento político contingencialmente útil que identificava, mecânica e interesseiramente, política, filosofia e economia, e, até mesmo poesia, música e arte em geral“.
A “unidade” pode ser entendida e até praticada dialeticamente se (Caderno 11, 22)
“[…] a filosofia da práxis for concebida como uma filosofia integral e
original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e, superando, integra em si os seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicional, expressões das velhas sociedades. Se a filosofia da práxis é pensada apenas como subordinada a uma outra filosofia, é impossível conceber a nova dialética, na qual, precisamente, aquela superação se efetua e se expressa.”
Portanto, Gramsci posiciona-se como contrário a reducionismos explicativos do “marxismo vulgar”. Atenta que o tratamento sistemático da filosofia da práxis não pode se dar de maneira reducionista para não se negligenciar nenhuma das partes constitutivas, caso contrário as explicações fáceis levam a noções mecânicas e até idealistas no interior do próprio marxismo, sobretudo quando este penetra no seio da classe trabalhadora.
Gramsci rascunha (Caderno 7, § 18; 1, 236-237):
“A unidade [do marxismo] é dada pelo desenvolvimento dialético das contradições entre o homem e a matéria (natureza – forças materiais de produção). Na economia, o centro unitário é o valor, ou seja, a relação entre o trabalhador e as forças industriais de produção (os que negam a teoria do valor caem no crasso materialismo vulgar, colocando as máquinas em si – como capital constante e técnico – como produtoras do valor, independentemente do homem que as manipula). Na filosofia, é a práxis, isto é, a relação entre a vontade humana (superestrutura) e a estrutura econômica. Na política, é a relação entre o Estado e a sociedade civil, isto é, intervenção do Estado (vontade centralizada) para educar o educador, o ambiente social em geral. (Deve ser aprofundado e posto em termos mais exatos.)”
Ainda sobre o materialismo vulgar, Gramsci atesta no § 16 do Caderno 11:
“[…] É notório, por outro lado, que o fundador da filosofia da práxis [Marx] jamais chamou sua concepção de ‘materialismo’ e que, falando do materialismo francês, criticou-o, afirmando que a crítica deveria ser mais exaustiva. Assim, jamais usou a fórmula ‘dialética materialista’, mas sim ‘racional’, em contraposição a ‘mística’, o que dá ao termo racional uma significação bastante precisa”
Gramsci, acima, me parece se referir ao posfácio à segunda edição de O Capital, em que Marx explica como seu método dialético é oposto ao de Hegel – pondo este “de pé”, mitiga seu invólucro místico e procura o que há ali de racional.
Para Gramsci, a influência de David Ricardo é particularmente significativa tanto na economia quanto na filosofia, porque a teoria do valor e a lei da tendência em Marx deriva dele (Q 7, 42 e Q 10 II, 31, 1.275), além da noção de homo oeconomicus, uma descoberta a que também se deve a Ricardo, implicando no marxismo “uma nova ‘imanência’, uma nova concepção da ‘necessidade’ e da liberdade etc.” (Q 10 II, 9, 1.247) que levou Marx e Engels à superação da filosofia hegeliana e à construção dum novo historicismo sem traços de lógica especulativa (Cartas, II, 205).
Por fim, é impossível compreender totalmente Gramsci se não se compreender outras fontes e autores extrínsicos ao marxismo nos quais ele se debruçou, como Benedetto Croce, George Sorel (e seu neoidealismo e bergsonismo), Giovanni Gentile, depois, Maquiavel (para Gramsci, o “Príncipe moderno” é o Partido Comunista). Ou seja, assim como Marx teria procedido com Hegel, Smith, Ricardo, Gramsci empreende uma assimilação-superação, uma fusão de socialismo deglutindo outras correntes intelectuais para uma formulação revolucionária marxista original. É de Sorel, por exemplo, que Gramsci tomará emprestado o termo “bloco histórico”, mas sob outro ponto de vista, marxista, gramsciano, ou seja, “bloco histórico” enquanto a unidade dialética entre a superestrutura e a estrutura e, a partir de tal superação, o estímulo à criação revolucionária de um novo bloco histórico.
“Contudo, se as fontes são discutíveis, constituem para G. três caracteres inseparáveis do marxismo: filosofia, economia e política“, escreve Giuseppe Prestipino no Dicionário Gramsciano.
Chasin
Investigando os textos marxianos, o Prof. brasileiro José Chasin concluiu que neles não haveria comprovação textual da ideia do “tríplice amálgama” ou da incorporação da herança hegeliana e que a própria colocação da questão em termos de três fontes seria enviesada, porque toma elementos alheios ao novo padrão reflexivo instituído por Marx. (Cf. Chasin, “Ad Hominem – Rota e prospectiva de um projeto marxista”, Revista Ensaios Ad Hominem, São Paulo, n. 1, t. I pp. 37-40.) É o caso de sopesar o quanto tal argumentação é pertinente em termos de práxis e de renovação do marxismo, o quanto é ou não academicista, como encarar as citações explícitas nos textos marxianos a partir de tal afirmação polêmica, etc.
Dois parágrafos sobre Aristóteles e Adam Smith em Marx
Aristóteles opunha economia (valores de uso indispensáveis à vida) à crematística (ligada à incessante produção e busca pela riqueza) e já condenava, em sua Política, o dinheiro que é usado para um fim em si mesmo, para a acumulação, ao invés de ser a justa medida na sociedade para que não haja carência de um lado nem excesso do outro. “A troca não pode existir sem a igualdade, nem a igualdade, sem a comensurabilidade”, escreveu Aristóteles citado por Marx em O Capital. O legado de Adam Smith em Marx é bastante “simples”: o autor de Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, mais conhecida simplesmente como A Riqueza das Nações (1776), trabalha a partir das ideias de Aristóteles em sua Política (que já distinguia duas dimensões da mercadoria: o valor de uso e o valor de troca) e na Ética a Nicômaco (que lega à época moderna a compreensão da teoria do valor-trabalho e do valor-utilidade), assim como Marx fará no século posterior (Aristóteles é citado várias vezes no primeiro livro de O Capital); desde a economia mercantil a que se referia Aristóteles, já que as mercadorias devem ser equiparadas ao serem trocadas umas pelas outras, devem conter algo igual quantitativa e qualitativamente, e este “algo igual” é o valor.
Em finais do capitalismo manufatureiro e nos primórdios do capitalismo industrial do século 18, Smith procura explicar o valor de troca pelo trabalho empregado na produção da mercadoria (Marx partirá deste ponto), não pela utilidade, argumentando que coisas vitais como água possuem valor baixo de troca, enquanto coisas menos úteis como jóias têm alto valor de troca. Mas o que é o valor? Há dois significados da palavra valor para Smith – valor enquanto utilidade de um determinado objeto e valor enquanto poder de compra que o referido objeto possui em relação a outras mercadorias. “O primeiro”, conclui Smith, “pode se chamar valor de uso e o segundo, valor de troca”. Eis precisamente o ponto de partida de Marx para O Capital, além de muitos outros autores e até mesmo Shakespeare.
– Trata-se de uma “antologia” em construção. Veremos, através da própria vida-obra de diversas autoras proeminentes do marxismo, que, nem do ponto de vista teórico, muito menos do ponto de vista prático e histórico factual, no fundo, quando o assunto é Crítica e Emancipação, o marxismo não é oposto ao feminismo (há feminismos, e aqui, é claro, entende-se o método e o conteúdo do feminismo enquanto crítica classista da exploração da mulher e pela transformação socioeconômica estrutural da sociedade, menos quando o feminismo se reduz a um movimento sóciopolítico arrivista de classe média, o que o faz adequar-se à retaguarda do liberalismo), embora tal intersecção entre feminismo e marxismo, tanto no método quanto no conteúdo, seja mais complexa e problemática do que pareça (ou, talvez, falsa, não havendo, para algumas autoras, separação entre as lutas e teorias). Hoje, já existe um feminismo marxista; também existem marxistas mulheres que não fazem questão de usar o termo feminismo ou que o tornam indissociável do marxismo, sem contar as feministas ecléticas que se utilizam, vez ou outra ou sempre, do método marxista para determinados fins teóricos e práticos. Não faltam ainda hoje e não faltaram marxistas e comunistas mulheres que exerceram críticas ferrenhas ao ecletismo e ao feminismo liberal pequeno-burguês das próprias mulheres… É consenso, entre elas, que esse feminismo não é alternativa superior ao marxismo nem pode lhes oferecer plena emancipação e crítica.
– A conclusão que podemos estabelecer através das autoras logo citadas (que escreveram e pensaram a partir de uma prática pela transformação da realidade e do status quo) é que, sem o marxismo, o feminismo, assim como todas as outras fileiras e campos ideopolíticas novas e antigas, torna-se meramente representativo e desejo de ascenção e inclusão efêmeras, manco, ingênuo, até politiqueiro, superficial e arrivista, incapaz de compreender as raízes dos seus problemas e resoluções, cooptável pela própria estrutura que pensa combater e não a supera; sem as contribuições teóricas e de luta específicas das mulheres, o marxismo, por sua vez, que desde o início esteve conjuminado a elas, seria distante, possui lacunas teóricas e problemas básicos de práxis diante dos desafios do nosso tempo. Vale lembrar que, mesmo estatisticamente, as mulheres estão em peso na massa e na classe trabalhadora, no arcabouço fundador e mantenedor de nossas sociedades e cada vez mais a ocupar espaços intelectuais, tornando-se impossível não vislumbrá-las no topo das lutas e dos debates, assim também com negros e miscigenados.
– Antes de qualquer coisa, “marxismo” refere-se, é claro, ao gênio Karl Marx (1818-1883), um revolucionário cuja obra, basilar, seminal, a grosso modo – simplificando muito para não sairmos do objetivo específico desta pequena antologia – expõe e estuda, através da concepção materialista da história (expressão frequente de Friedrich Engels, seu parceiro intelectual e de militância) e de um novo método dialético, a sociedade de classes burguesa e a estrutura capitalista exploratória, defendendo para a sua superação a construção do comunismo pela classe trabalhadora, tal como os capitalistas modernos tomaram o poder político e econômico da aristocracia no curso do desenvolvimento da história humana. Traçamos o marxismo em três partes que se intercalam num tripé, tal como propõe o Anti-Dühring: a teoria do valor (a partir da crítica da Economia Política), que identifica a exploração do capital; a filosofia dialética e a concepção materialista da história, cujo “elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real“; o socialismo enquanto lutas de classes e teoria do poder, da revolução e do Estado. É impossível, aqui, nos aprofundarmos nestas três partes, coisa que faço sempre que posso em outras oportunidades. O importante, por enquanto, é sabermos que não há marxismo (ou há um pseudomarxismo) quando se esquece ou se negligencia uma das partes supracitadas.
– Na obra de Marx, não há identidade sexo/gênero, nem mesmo em cartas ou notas (a menos que descubra-se algo inédito para o MEGA) de maneira aprofundada, apenas algumas colocações muito pertinentes e por si só fundamentais, conforme veremos. O Manifesto (1848) da Liga Comunista (que contava com a participação de mulheres) já trazia a necessidade da “comunidade de mulheres” independente contra a dominação burguesa, antecipando de maneira impressionante as lutas feministas e propondo uma via revolucionária. Somente podemos acusar Engels de homofóbico (em um ou outro episódio, como no caso do pioneiro gay e socialista Karl H. Ulrich, ou para tratar da pederastia grega antiga), mas de uma maneira tão pueril e sarcástica que, naquela sociedade vitoriana hipócrita, fundamentalista e puritana de então, que aprisionava, condenava e cerceava os destoantes, é algo que torna-se quase batido e nada criminoso. É certo que o miolo da obra de Marx é eurocêntrico (vale lembrar que, saindo do atraso político e econômico da Alemanha de então, por forças maiores ele se exila na Inglaterra, onde o capitalismo industrial estava muito mais desenvolvido, com todas as agruras sociais provenientes desse desenvolvimento – a elite inglesa foi catapultada a partir do ouro brasileiro, vale dizer), mas em cartas e em trechos de várias obras Marx não deixou de mostrar interesse, até o fim da vida, e sobretudo nos anos finais, em muitos outros países e nas regiões periféricas do capital.
– Como se sabe, não são poucos os conceitos nem pobres as teorias implicadas a partir de tal simplificação do que é o marxismo, mas há um termo marxiano que nos importa, por enquanto: Marx nos fala no “ser social” – até então, não se aprofunda em gênero, raça, sexo, identidade ou outro componente deste “ser social” e jamais tomaria qualquer uma dessas categorias como central do ser social, porque o que funda este ser é o trabalho, esta, sim, uma categoria (ou até mesmo ação) fundante. O caráter fundador do trabalho no ser social unifica toda a raça humana, mas, sem as particularidades (inclusive de classes sociais!) do ser social, essa afirmação seria puramente idealista, abstrata e fora da realidade concreta. Dito isto, é importante também afirmar que, uma vez dispostos os termos “marxiano”, “teoria marxiana”, “obra marxiana” e afins (para identificar as próprias obras de Karl Marx), todos sabem que o termo “marxismo”, por si só, e já ampliado a partir do homem que lhe deu o nome, apesar de calcado em fundamentos contrários a ecletismos, dogmatismos, deturpações e deformações, nunca foi inteiramente monolítico nem em táticas e estratégicas nem no método e na teoria (“Tudo o que eu sei é que não sou marxista”, teria dito ironicamente o próprio Marx, mas a respeito de pseudomarxistas franceses já do seu tempo, conforme registra Engels numa carta).
– No marxismo (ou na própria obra marxiana), a relação sujeito – objeto não é prejudicada por um suposto predomínio do sujeito econômico (da sujeita econômica) em detrimento do sujeito histórico (da sujeita histórica); nem há objeto sem sujeit@ ou sujeit@ sem objeto. Marx frisa, nas Teorias da Mais-Valia (Theorien über den Mehrwert), que há uma conexão entre a produção intelectual e a produção material e que esta última não deve ser considerada “[…] como categoria geral, mas em forma histórica determinada. […] Se não se concebe a própria produção material em sua forma histórica específica, é, então, impossível compreender o que é determinado em sua produção espiritual correspondente e a ação recíproca entre ambas”. E, embora Marx nada tenha escrito especificadamente sobre subjetividade, pululam em sua obra passagens que fornecem bases para uma construção teórica da subjetividade (Eduardo F. Chagas, “O pensamento de Marx sobre a subjetividade”, Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 2, p. 63-84, Maio/Ago., 2013, p. 66), que jamais é autônoma ou pura muito menos simplesmente natural e imediatamente dada, mas construída socialmente, estando em movimento, produzida numa dada formação social e em determinado tempo histórico. Em consequência, tal subjetividade se constitui na relação com a sociedade (hoje, capitalista – e que estágio e tipo de capitalismo?!) que a forja e a mantém.
– É consenso contemporâneo no marxismo, sobretudo em suas fileiras mais radicais, que o direito ao voto às mulheres e a proibição da discriminação de gênero ou raça, além de outros direitos individuais conquistados no curso do século 19 e 20, não significaram, por si só (e isto é explícito no século 21), “a plena igualdade social da mulher ou do negro, mas sim, instrumentos melhores para a reprodução do patriarcalismo e do racismo em condições mais estáveis e menos conflituosas” (Alysson Mascaro, “Direitos humanos: uma crítica marxista”, Lua Nova, São Paulo, págs. 109-137, 2017, p. 132; cf. também I. M. Wallerstein, “The ideological tensions of capitalism: universalism versus racism and sexism”, 1991, In: BALIBAR, E.; WALLERSTEIN, I. M. Race, nation, class: ambiguous identities, London: Verso, pp. 29-36., p. 34). Talvez possamos discutir se tudo não passa de uma questão de tempo: a curto e médio prazo, a elevação social dos status de amplas camadas sociais; a longo, a construção revolucionária, mas por que entrar pela janela, quando há a porta, não raro invadida pelo genócidio negro (fruto da colonização/escravização/capitalismo) ou pela violência contra a mulher (fruto da propriedade privada nas mãos do homem)? E é possível chegar a um objetivo histórico transformador tomando outro rumo sem a perspectiva desse objetivo? Em que medida as lutas fracionárias “identitárias” se acomodam a um arrivismo de mentalidade pequeno-burguesa e fazem com que a esquerda se distancie dos estratos da base da pirâmidade, cooptados então por formas direitistas e até fundamentalistas? Etc.
– Também há um consenso no marxismo, neste nosso tempo contemporâneo, de que não são a ecologia “pura”, o pós-modernismo, o individualismo metodológico, o desconstrucionismo e afins as alternativas superiores ao marxismo para perceber a realidade e propor radicalidade emancipadora (Michael Lowy, A Teoria da Revolução no Jovem Marx, São Paulo, Boitempo, 2012 [1997], p. 21-22), mas que eventuais lacunas e até insuficiências no marxismo podem ser corrigidas por um procedimento aberto do marxismo não apenas aos movimentos sociais “clássicos” dos operários e camponeses, mas também “dos novos como a ecologia, o feminismo, os movimentos em defesa dos direitos humanos ou pela libertação dos povos oprimidos, o apoio aos índios da América Latina, a Teologia da Libertação” (Ibidem, p. 22), desde que (acrescento eu) isso não se torne um ecletismo vago, difuso, como, no geral, ocorre, desde que possamos trazê-los, em suas específicas seções, para as lutas de classes reais, verdadeiro terreno da construção revolucionária totalizadora.
– Algumas questões frequentemente levantadas quando se encara o feminismo marxista, conforme veremos em várias autoras e militantes: as questões que tangem a relação entre desigualdade (ou diferença) dita “natural” (etnia/gênero) e desigualdade social, questões da dupla jornada na mulher, trabalho produtivo e improdutivo, donas de casa e proletárias, o valor na especificidade feminina, etc.
– Sobre a categoria gênero, veremos que trata-se de termo incontornável para toda marxista feminista, mas cabe aqui um preâmbulo: havendo desconsideração intencional ou inconsciente dos fenômenos estruturais como dialeticamente determinantes da superestrutura (teoria social básica no marxismo e da concepção materialista), a tendência da abordagem de gênero torna-se o chamado “identitarismo”, desvinculação da luta antissistema, cooptação, arrivismo, mero desejo de adequação, inclusão e ascensão, epifenomenologia, etc. Arrisco a dizer que todo “identitarismo” é fruto de uma defasagem teórica.
– Notamos que o capital, nas últimas décadas, tem incorporado LGBTTIQA+s e o movimento negro como backlash de maneira mais ou menos análoga ao que se iniciou na segunda onda do feminismo. O cenário torna-se ainda mais difícil quando há uma extrema-direitalha regressiva abertamente racista, homofóbica e misógina, em sua defesa ultrapassada, moribunda e decadente de família tradicional, porque, diante desse confronto, a crítica marxista radical não ganha capilaridade para agregar as fileiras “identitárias”, ávidas por serem aceitas e incluídas no sistema representativo, simbólico, econômico, ingressar no trabalho assalariado exploratório, a lutar contra o capital. Mas, ao menos do ponto de vista ideopolítico, não é difícil elaborar essa construção, se for mostrada a raiz do preconceito, tal como as marxistas feministas de peso já o fizeram e ainda o fazem, conforme veremos.
– Estendendo a reflexão à ética marxista lukacsiana, não há ética no modo de produção capitalista; no limite, resta uma moral bem estreita vinculada à reprodução de mercadorias e mão de obra pauperizada, enfim, não há possibilidade de “liberdade” ou plena emancipação no capitalismo, na ordem capitalista… Aqui, cai por terra mesmo todo reformismo, embora tenha sido a grande revolucionária Rosa Luxemburgo quem escreveu, com boa dose de realismo, que reformas (obviamente, reformas estruturais e não de arranjamento ou manutenção do capital) só fazem sentido no interior de uma estratégia que tem por norte uma revolução anticapitalista, comunista.
– Progressismo não é a mesma coisa que revolução. “Forças progressistas” não são necessariamente “forças revolucionárias”… Marx, no informe “Salário, Preço e Lucro”, diante de uma epidemia de greves por melhores salários e melhores jornadas de trabalho, caracteriza tais reivindicações como “divisas conservadoras” e defende a bandeira da abolição do trabalho assalariado (pela tomada do Estado e dos meios de produção a serem socializados a todos)…
– Na ampla construção do socialismo, vamos precisar de todo mundo; somente um reacionário vislumbraria um socialismo só de homens cis-heteronormativos ou só de brancos ou só de estadounidenses ou só de europeus etc. etc. etc… (Não faria sentido, já que o capital engloba e domina tudo e todos – o capital é totalizante, e assim deve ser o socialismo, inclusive em suas táticas e estratégias revolucionárias.) Por outro lado, abdicar das lutas de classes e centralizar uma especificidade é brigar entre si, pulverizar a luta e fazer o jogo do sistema vigente de classes. O objetivo principal do marxismo é destruir com o antagonismo de classes e a exploração de uma classe pela outra. Quando o assunto é “identitarismo” e luta da mulher, negros, LGBTTIQA+, etc., costumo lembrar que Marx e Engels mostraram, em A Ideologia Alemã e em outros textos, que a classe dominante, ao deter os meios de produção da sociedade (e, por conseguinte, diremos também os meios de comunicação), domina por tabela a ideologia dominante que se encontra na superestrutra dessa sociedade. Em nosso tempo histórico moderno, tal classe dominante é constituída pelos capitalistas (detentores dos meios de produção – fábricas, empresas, terras, matérias-primas, ferramentas, commodities, etc.) e proprietários fundiários (que detêm os terrenos onde estão os meios de produção). Eis o que chamamos de burguesia (cf. nota de Engels à edição do Manifesto Comunista de 1888). Ora, pode-se identificar uma burguesa mulher (vide Luiza Trajano, bilionária dona da rede de lojas Magazine Luiza), mas é exceção que confirma a regra: a (i)lógica é patriarcal, a burguesia é o homem, macho, heternormativo, branco, eurocêntrico ou estadounidense das cidades e, por deter os meios de produção e a ideologia dominante, acaba essa classe reproduzindo na sociedade todas as formas de violência, exploração e preconceitos aos que fogem do modelo majoritário, sexismo, LGBTfobia, racismo, etc. Esta explicação, ainda que ligeira (seria preciso incrementar apontamentos dialéticos, impossível agora), é fundamental para a solidariedade de classes dos despossuídos com todas suas diversidades em torno de uma emancipação estrutural anticapitalista, processos revolucionários, construção revolucionária.
Feminismo e Marxismo: autoras, autores e livros
– A primeira referência a respeito de feminismo e marxismo que eu recomendo é o fervoroso texto de 10 páginas de Loreta Valadares (1943-2004), militante nos anos 1960 do Movimento Estudantil da Ação Popular (AP), quando o PCdoB não era PelegodoB (e tinha quadros realmente comunistas e revolucionários, ao invés de uma Manuela d’Ávila), bravamente participante da luta contra a ditadura militar, presa e torturada, o que lhe afetou a saúde para o resto da vida, posteriormente destacada professora de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, “A ‘controvérsia’ feminismo x marxismo” (Revista Princípios, N. 18, jun/jul/ago, 1990, páginas 44- 49), texto arguto, mas não sem uma boa dose de ferocidade militante. É muito bonito constatar a postura implacável de uma militante veterana, que não “virou a casaca” como tantas outras e outros, intrépida em sua luta, apesar dos pesares. Primeiramente, Valarades é taxativa: “É falsa a polêmica feminismo X marxismo”. Alguns apontamentos a se fazer a partir desse texto: (1) Ao contrário de muitas autoras feministas, Valadares entende que o materialismo histórico não se opõe ao feminismo enquanto concepção sobre a específica opressão da mulher na sociedade. Valadares denuncia os feminismos que pretendem que o marxismo negue a si mesmo, denuncia o ecletismo no socialismo, que sai do terreno da realidade e deixa de ser ciência. Escreve ela, combativa: “São as correntes feministas que se têm colocado em oposição ao materialismo histórico e à sua visão científica e metodológica das questões mais gerais da ciência social, sem cujo esclarecimento se torna impossível a explicação do desenvolvimento da vida social em seu conjunto. Consequentemente, fica-lhes difícil – se não impossível, dentro de sua visão estreita do problema específico – admitir o ponto de vista do materialismo histórica sobre a opressão da mulher e os caminhos de luta para sua emancipação; isto porque buscam a explicação sobre as origens e as formas de opressão da mulher fora das leis objetivas do desenvolvimento social e independente das causas últimas que originam as relações de dominação das sociedades antagônicas” (página 6). (2) Conhecedora da estrutura e da superestrutura, critica – citando as obras, e não de forma leviana – autoras feministas como Simone de Beauvoir, Juliet Michell e Schulamith Firestone, que viam no marxismo (mesmo em Marx e Engels) uma “redução” de tudo ao econômico e ao “homo aeconomicus”, e as ataca exemplarmente. Ela usa a obrigatória carta de Friedrich Engels a Joseph Bloch para afirmar que tais correntes feministas (na verdade, trata-se de um equívoco não só de certas feministas, mas geral) não compreenderam o marxismo, tomando-o como um economicismo vulgar. Acrescento que não falta apenas conhecimento da concepção materialista, mas da própria Dialética. (3) Não é errado concluir que, para Loreta Valadares, assim como para as mais brilhantes marxistas que veremos no decorrer desta antologia (limitada, mas incontornável), é através da própria luta anticapitalista, estrutural, classista e marxista que ocorrerá consequentemente a emancipação feminina, sem que se desconsidere os elementos específicos e próprios de tal emancipação.
– Aliás, o catatau de mais de 570 páginas Mulheres Na Luta Armada – Protagonismo Feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional), de Maria Cláudia Badan Ribeiro, recentemente lançado, pode jogar outras luzes à intersecção marxismo – feminismo, mesmo que, a priori, tenha um significado mais associado ao comunismo militante do que ao marxismo, e mais histórico do que teórico. Ora, qualquer lacuna nesses dois eixos podem ser resolvidos hoje a partir dos fatos expostos no livro. De qualquer forma, documenta sobre as próprias mulheres à extrema-esquerda inseridas numa orientação revolucionária. A ler.
– Jamais esquecer do caráter vanguardista, inovador e pioneiro do próprio Manifesto Comunista (1848) da Liga Comunista (que contava com a participação de mulheres militantes) e seu longo trecho a respeito da condição das mulheres, encaradas pela burguesia como meras reprodutoras da classe a ser perpetuada, enfim, mera propriedade do burguês. Havia, naquele momento, conforme o próprio Manifesto expõe, todo um planejamento comunista em torno da construção da “comunidade de mulheres” independentes para resolver a necessidade de eliminação da posição da mulher enquanto instrumento de produção, sendo essa uma das pautas na luta contra a sociedade burguesa.
– Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, explicam que a opressão específica tem íntima relação como processo de surgimento de propriedade privada, transformando a própria mulher em propriedade do homem.
– É Engels, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1883), que coloca a gênese da opressão específica da mulher e seu processo de formação com o aparecimento da sociedade de classes, “com elas se entrelaçando e refletindo seu antagonismo e sua luta ao longo da história, nas diversas etapas e em diferentes formações econômico-sociais” (conforme explica Loreta Valadares em seu texto supracitado). É preciso notar, porém, que a análise engelsiana sobre a origem do patriarcado é muito criticada aqui e ali, não só por feministas. Mesmo entre marxistas é entendível que Engels, tendo se debruçado no que havia de mais novo à época naqueles finais do século 19 em matéria de antropologia e naquele que hoje é considerado um dos fundadores da antropologia moderna, isto é, Lewis Henry Morgan (que, em seu Ancient Society, divide a história humana em três estágios fundamentais de desenvolvimento social: selvageria, barbárie e civilização, cada um destes caracterizado por formas materiais distintas), muito citado em todo o livro de Engels, pode ter caído em alguns equívocos e limitações de Morgan, de acordo com a antropologia mais avançada.
– Não é menor lembrar que as três filhas de Marx tiveram finais trágicos. O desejo de emancipação feminina chocou-se à realidade do status quo patriarcal. Os primeiros homens marxistas, por sua vez, viram a derrota da revolução comunista e o recrudescimento de um novo tipo de capital. No fundo, na raiz, a luta era/é a mesma!
– Permitam-me citar só mais um homem (muito citado pelas próprias mulheres, aliás), à guisa de contextualizar o tema feminista no marxismo. Embora encontremos trechos sobre a opressão das mulheres em Marx e Engels, é o livro A Mulher e o Socialismo (1879), de August Bebel, que representa “a primeira produção teórica de particular importância para um enfoque marxista da questão feminina, justamente por sua grande difusão e abordagem específica do problema” (tal como escreve, ipsis litteris, Joana El-Jaick Andrade em artigo acadêmico sobre esse livro). Loreta Valadares, no texto primeiramente citado, afirma: “(…) A opressão específica da mulher caminha e se desenvolve “pari passu” com a opressão social, de classes, caracterizando, assim, a mulher como oprimida enquanto ser sexual e ser social (Bebel, in A Mulher e o Socialismo), com seus correspondentes reflexos e formas na superestrutura (…)”. Bebel via a necessidade de atrair as mulheres para o movimento e de difundir os princípios do socialismo para as amplas massas trabalhadoras. A obra é dividida em três partes: a situação das mulheres no passado (antes e depois do cristianismo), as condições das mulheres no presente e a projeção das transformações operadas dentro de uma futura sociedade socialista. O livro discute a construção da nova sociedade socialista e o livre exercício da sexualidade, o Programa Socialista e a igualdade entre os sexos, etc. Conforme Joana El-Jaick Andrade escreve (página 11): “A saída apontada por Bebel para a questão feminina, com vistas à “redenção e emancipação” de todas as mulheres, residiria na compreensão de seu verdadeiro lugar no movimento socialista e sua participação na(s) luta(s) de classes”.
– Eleanor Marx (1855-1898), filha de Karl Marx e Jenny von Westphalen, militante, autora, tradutora, pioneira do feminismo socialista. Escreveu, com seu parceiro Edward Aveling, o tratado “A questão da mulher: de um ponto de vista socialista” (1886). Trata-se, segundo Luiz Bernardo Pericás (Professor do Departamento de História da USP), de um texto “que deveria figurar em importância ao lado de Reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels e de Um teto todo seu, de Virginia Woolf”. De acordo com Pericás, “Seu “feminismo” era bastante distinto daquele defendido pelo pensamento mainstream da segunda metade do século XIX. Ainda que muitas de suas amigas fossem sufragistas, a campanha pelo voto, na visão de Eleanor, mesmo que importante, seria um objetivo limitado. A reforma eleitoral para as senhoras de classe média dentro da sociedade capitalista não dava conta de resolver o debate social mais amplo, já que, segundo ela, “a dita questão do ‘direito das mulheres’… é uma ideia burguesa. Eu propus lidar com a Questão Sexual do ponto de vista da classe trabalhadora e do conflito de classe”. Ou seja, os direitos das mulheres e do proletariado eram parte da mesma luta.”
– Nadejda Krupskaia (1859-1939) não foi apenas “esposa de Lênin”, porque desempenhou um papel destacado e próprio como pedagoga revolucionária; escreveu sobre a construção de uma nova pedagogia socialista que nos interessa até hoje (a prova é que o livro encontra-se esgotado), tendo sido vice-ministra da Educação da União Soviética por mais de dez anos, responsável pela criação de um novo sistema educacional e pela construção de inúmeras bibliotecas no período soviético nos primeiros anos da Revolução. Mas não para aí. Tudo indica que foi Nadezhda quem escreveu o primeiro texto feminista significativo sobre a situação das mulheres na Rússia: o panfleto “A Mulher Trabalhadora” (para ler em inglês, clique aqui – no original em russo, aqui, inclusive com uma nota da própria autora relatando as circunstâncias clandestinas em que o texto foi escrito e divulgado em 1899 sob o pseudônimo Sablina e publicado dois anos depois através da imprensa clandestina Iskri, “Faísca” em russo). O texto foi banido, devido a sanguinária repressão czarista durante a Revolução de 1905. O próprio Lênin nunca ignorou uma das reivindicações mais importantes da Revolução Soviética, a das camponesas e mulheres trabalhadoras em busca de pão, paz e terra, tendo escrito em vários momentos a respeito, como se pode conferir neste texto explicativo aqui. A própria Nadejda escreveria, em 1933, o texto “A Emancipação da Mulher segundo Lênin“, dez anos após a morte do companheiro. Vale lembrar, por fim, de um volume brasileiro de 1956 intitulado O Socialismo e a Emancipação da Mulher com 14 textos significativos de Lênin sobre o trabalho na mulher da fábrica e na agricultura no regime capitalista, sobre o aborto, a classe operária e o neomalthusianismo, a luta contra a prostituição, o direito ao divórcio, discurso no Primeiro Congresso Pan-Russo das Operárias, a contribuição da mulher na construção do socialismo, as tarefas do movimento operário feminino na República dos Sovietes, a situação da mulher no poder soviético, divórcio diante da família, dois textos (em 1920 e em 1921) sobre o Dia Internacional da Mulher, além de um texto de 1920 por Clara Zetknin, “Lênin e o movimento feminino” (“o movimento feminino era para ele parte integrante e, em certas ocasiões, parte decisiva do movimento de massas. É desnecessário dizer que ele considerava a plena igualdade social da mulher como um princípio indiscutível do comunismo”).
– Alexandra Kollontai (1872-1952) foi um dos principais nomes da participação feminina no bolchevismo. É, ainda hoje, considerada figura central do “feminismo marxista” (cf. Jinee Lokaneeta, “Alexandra Kollontai and Marxist Feminism”, de 2001, e Andrea Nye, Feminist Theory and the Philosophies of Man, capítulo 3, “A Community of Men: Marxism and Women”, seção “Marxist feminists: Zetkin, Kollontai, Goldman”). Militante ativa nos principais episódios do pré-revolução e mesmo nos anos subsequentes, estando no topo da vanguarda e do novo governo junto a Lênin e outros, tendo sido uma das lideranças do Genotdel (“Seção da Mulher”), o Departamento de Mulheres Trabalhadoras e Mulheres Camponeses criado em 1919 com o objetivo de melhorar as condições das mulheres e as atrair para a causa socialista. Sempre se opôs ao feminismo liberal burguês, que buscava objetivos políticos de sufrágio, mas não a elevação revolucionária da classe trabalhadora. É brilhante a sua posição a respeito do universal e do particular no feminismo em A Base Social da Questão da Mulher (1909), em que ela defende o seguinte: “O instinto de classe – o que quer que as feministas digam – sempre se mostra mais poderoso do que os nobres entusiasmos da política ‘acima da classe’. Enquanto as mulheres burguesas e suas ‘irmãs mais novas’ [proletárias] forem iguais em sua desigualdade, as primeiras podem, com total sinceridade, fazer grandes esforços para defender os interesses gerais das mulheres. Mas uma vez que a barreira é derrubada e as mulheres burguesas têm acesso à atividade política, as recentes defensoras dos ‘direitos de todas as mulheres’ tornam-se defensoras entusiastas dos privilégios de sua classe, satisfeitas em deixar as irmãs mais novas sem nenhum direito. Assim, quando as feministas falam com as mulheres trabalhadoras sobre a necessidade de uma luta comum para realizar alguns princípios das ‘mulheres em geral’, as mulheres da classe trabalhadora ficam naturalmente desconfiadas.” Argumentava que, mesmo adentrando no trabalho assalariado, as mulheres ainda se mantinham na função reprodutora da família. Defendeu, portanto, a socialização do trabalho reprodutivo para acabar com a exploração do trabalho doméstico e a exploração dos homens neste papel. Assim, teve papel de liderança nos debates que criticavam o modelo estabelecido de família. É conhecida por sua defesa arrojada – mantida por toda a vida – do amor livre e do amor camaradagem, expressão última da solidariedade de classe (ler a edição pela editora Expressão Popular, A Nova Mulher e a Moral Sexual). Quando o regime fechou, quase foi expulsa do partido, mas acabou indo exercer funções diplomáticas no exterior. Escreveu “Base social da questão feminina” (1908), “Sociedade e maternidade” (?), “A nova mulher” (1918), “A moral sexual” (1921), Amor Livre (1932), Comunismo e Família (1970), A Autobiografia de uma Comunista Mulher Emancipada Sexualmente (1971), Relações Sexuais e Lutas de Classes: Amor e a Nova Moralidade (1972), A luta das mulheres trabalhadoras por seus direitos (1973), entre outros.
– Clara Zetkin (1857-1933) foi uma das primeiras agitadoras e propagandistas do feminismo socialista, tendo levado o feminismo ao topo da agenda política no primeiro congresso da Segunda Internacional, e demonstrou que o fundamento do feminismo sendo a emancipação das mulheres encontra um limite estrutural: o capitalismo (quem valida tal afirmação histórica é a professora Mirla Cisne em “Feminismo e marxismo: apontamentos teórico-políticos para o enfrentamento das desigualdades sociais“, Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 211-230, maio/ago. 2018, página 220). Em 1889, Clara Zetkin profere a conferência “Pela libertação das mulheres”, considerada a primeira declaração política da classe trabalhadora europeia sobre a questão da mulher (Ana Isabel Álvarez González, As origens e a comemoração do Dia Internacional das Mulheres, São Paulo: SOF/Expressão Popular, 2010, página 61), em que declarou: “As mulheres operárias estão totalmente convencidas de que a questão da emancipação das mulheres não é uma questão isolada. Sabem claramente que esta questão na sociedade atual não pode ser resolvida sem uma transformação básica da sociedade […]. A emancipação das mulheres, assim como de toda a humanidade, só ocorrerá no marco da emancipação do trabalho do capital. Só em uma sociedade socialista as mulheres, assim como os trabalhadores, alcançarão os seus plenos direitos” (ibidem).
– A grande revolucionária Rosa Luxemburgo (1871-1919), ao que se sabe, nunca se definiu como “feminista” e, isto é certo, já que tinha relações próximas com Clara Zetkin e outras da luta comunista, nunca endossou o feminismo liberal de sua época, mas escreveu sobre a condição feminina na sociedade de classes e sobre (e para) a mulher trabalhadora. Presa pelas forças reacionárias, assassinada pela extrema-direita que depois se associaria ao nazismo, são de Rosa Luxemburgo alguns dos postulados mais influentes e algumas das frases mais potentes, memoráveis e contundentes de todo o marxismo, como podemos constatar em Reforma ou Revolução?, “O que quer a Liga Espartaquista?” e no lema de seu grupo revolucionário, “Socialismo ou barbárie!”; para o nosso tema, é sua uma das frases mais fortes dessa intersecção, já em 1902, em “Uma questão tática”: “A emancipação política das mulheres teria que fazer soprar um forte vento fresco inclusive na vida política e espiritual [da social-democracia], que eliminasse o fedor da hipócrita vida familiar atual que, de modo inequívoco, permeia também os membros de nosso partido, tanto trabalhadores como dirigentes”. Dois são os textos de destaques de Luxemburgo sobre a emancipação das mulheres no bojo da revolução comunista e do marxismo: o ainda pertinente “O sufrágio das mulheres e as lutas de classes”, de 1912, e o belíssimo “A Proletária“, de 1914. Neste segundo, em ocasião do Dia Internacional da Mulher (ou melhor, “Dia da Proletária”, segundo Rosa), a “proletária assalariada moderna” é alçada como protagonista da classe trabalhadora. É um toque simbólico e concreto feminino à imagética do proletariado tantas vezes masculinizado (mas não sem razão, inclusive estatística). Rosa contrapõe a defesa burguesa por direitos políticos pelas mulheres (pauta única do chamado “feminismo liberal” e das sufragetes) com o poder efetivo a ser conquistado pela mulher proletária e, se a vida parlamentar nega a participação feminina, o partido revolucionário abre as portas para as mulheres e trabalhadores, onde encontram ali “um campo incalculável de trabalho político e poder político”, etc. Termina esse texto com fortes palavras de ordem: “Proletária, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. (…) Corra para o front, para a trincheira!” Não há dúvidas de que, para Rosa, já no Partido Social-Democrata Alemão, com todas suas querelas internas até o revisionismo crasso, venal, “vira casaca”, como depois na sua Liga Espartaquista (com Karl Liebknecht, Clara Zetkin, Franz Mehring e outros) e no Partido Comunista, o ponto central era a revolução pela classe trabalhadora, mas, ao saber das especificidades da mulher dentro de tal classe, ela defendia, nos títulos citados e também em cartas para Clara Zetkin e Sonia Liebknecht, seções de mulheres em áreas intelectuais, jornalísticas, partidárias, enfim, na luta prática. Rosa Luxemburgo, diga-se de passagem, sempre foi calcada na teoria marxiana e criticava desvios e revisionismos! A prova disso foi a grande querela com o oportunista Eduard Bernstein… Comprometida com a teoria marxiana, em “O sufrágio das mulheres e as lutas de classes”, escreve pontos econômico-teóricos relevantes para os debates correntes entre as feministas de hoje: “Apenas é produtivo aquele trabalho que produz mais-valia e rende lucro capitalista – enquanto o domínio do sistema de capital e de salário se mantiver. Deste ponto de vista, uma dançarina num café, que produz lucro para o seu patrão com as suas pernas, é uma mulher trabalhadora produtiva, enquanto que todas as tarefas das mulheres e mães do proletariado dentro das quatro paredes de casa é considerado trabalho improdutivo. Isto soa cru e louco, mas é a expressão precisa da crueza e da loucura da ordem econômica capitalista de hoje.” Veremos adiante como a brasileira Heleieth Saffioti amplifica a crítica da exploração da mulher para abranger a dupla jornada (trabalho doméstico e produtivo), o que a faz desconsiderar a mais-valia; mas certamente Rosa, mulher de costumes pioneiros, vanguardistas e destoantes para sua época, jamais diria que o trabalho doméstico não é exploratório, apenas diferencia ambos a partir da observação da estrutura… Nancy Holmstrom, professora de Filosofia, editora do The Socialist Feminist Project (Monthly Review Press, antiga revista socialista de Nova Iorque) e co-autora de Capitalism For and Against: A Feminist Debate (Cambridge University Press), entre vários outros artigos e livros, explica o trecho rosaluxemburguiano em “Rosa Luxemburgo: um legado para as feministas?“: “Usei esta citação mais do que uma vez para clarificar o sentido do trabalho (im)produtivo no capitalismo e para distinguir opressão de exploração capitalista. Algumas feministas ficam muito ofendidas pela posição marxista de que o trabalho doméstico é trabalho improdutivo e algumas defendem “salários para o trabalho doméstico”. Mas tal como a citação de Luxemburgo torna claro, designar o trabalho doméstico como improdutivo dificilmente é um insulto, nem é sexista. Um carpinteiro que trabalhe para o governo é igualmente improdutivo no sentido capitalista, apesar de ambos, obviamente – e muito importantemente – serem produtivos num sentido geral. É fundamental entender o que “produtivo” significa em termos capitalistas, especificamente, a produção de mais-valia, porque isto é o que faz o sistema capitalista funcionar.” Rosa discute, naquele texto, o trabalho produtivo e improdutivo, o trabalho operário e doméstico, e denuncia a exploração capitalista do trabalho de homens e mulheres – “milhões de mulheres proletárias […] produzem lucro capitalista tal como os homens – em fábricas, oficinas, agricultura, indústrias domésticas, escritórios e lojas”, escreveu ela. “Proletária, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. (…) Corra para o front, para a trincheira!”
Até onde e até quando pode e deve um(a) artist@ e intelectual, mesmo sem desenvolver teoria, lutar e envolver-se na prática da transformação da sociedade? Patrícia Galvão (1910-1962), mais conhecida como Pagu, foi uma força da natureza; escritora que estreou aos 18 anos na Revista Antropófaga, militante comunista do PCB (das primeiras presas políticas do Brasil, presa duas dezenas de vezes, torturada durante a ditadura Vargas após uma greve dos estivadores na minha Santos, onde, aliás, ela irá morar no fim da vida e onde foi encarcerada na Cadeia Velha De Santos, que hoje se chama Oficina Cultural Pagu), incansável tentadora da revolução brasileira, rompida com o Partido Comunista (que a abandonou e a obrigou a assinar uma retratação em que se apresentava como “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”) em 1940 após exílio e acerto de contas com todo o seu passado, poeta, crítica dos costumes, intimamente próxima dos modernistas de 22 (“nem Anita nem Tarsila eram escritoras, nenhuma assumiu até o fim ideias tão radicais e renovadoras, nenhuma correu os riscos e sofreu o que sofreu por elas, nenhuma defendeu com tanto ardor a arte de vanguarda, nenhuma se pode comparar, em termos de atuação ética e estética, com ela”, conta Augusto de Campos), agitadora cultural, jornalista, desenhista, tradutora, etc. Em 1931, com o companheiro Oswaldo de Andrade (1890-1954), funda o pasquim O Homem do Povo, “um jornal com características agressivas e despudoradas, com fortes nuances ideológicos da esquerda marxista” ( Anselmo Peres Alós, “Parque Industrial: influxos feministas no romance proletário de Patrícia Galvão”, Caligrama: Revista de Estudos Românicos, v. 15, n. 1, 2010, p. 188). As provocações de Oswald contra o atraso geral e o temperamento revolucionário de Pagu produziam uma alquimia sem precedentes na política e na cultura brasileiras, e deve-se sublinhar que ela era absolutamente independente e original. Desenhava charges satíricas e possuía uma coluna fixa intitulada “A Mulher do Povo”, em que criticava o feminismo pequeno-burguês e os valores elitistas das mulheres paulistas (que reproduziam, não sem o provincianismo da época e de capitalismo periférico, o movimento de mulheres sufragistas da Inglaterra do início do século XX). Alguns desses textos estão preservados ainda hoje. Em 1933, Pagu lança o importante Parque Industrial, primeiro romance proletário do país, sob o pseudônimo (exigência do Partido) Mara Lobo, obra de nítida inspiração marxista com influxos feministas que retrata a condição das mulheres proletárias numa São Paulo a se industrializar freneticamente. Ou seja, no panorama literário regionalista de 30 (lembremos de O Quinze, de Raquel de Queiroz, que retrata a seca, ou Menino de Engenho, de José Lins do Rego), Pagu apresenta um Brasil urbano, isto é, mais desenvolvido material e ideologicamente, portanto mais condizente com o anticapitalismo do marxismo; eis outro fato que destaca esse romance. Mas não para aí: a obra conjuga o problema da opressão ao proletariado às reivindicações das mulheres, superando o feminismo da época. Também neste romance já há críticas ao feminismo pequeno-burguês, complacente à estrutura social do capital. No entanto, é interessante que Pagu não dirige sua crítica ao movimento sufragista em si, mas principalmente à despreocupação de tal movimento a questões estruturais e mais amplas, como a condição da mulher proletária e até das mulheres negras (Ibidem). No primeiro caso, a obra encontra associação com o pensamento teórico-prático das comunistas de todo o mundo, inclusive as supracitadas. No segundo aspecto, o enfoque antecipa uma luta ainda hoje continuada e candente – antecipou, focando sua narrativa na realidade das mulheres proletárias, pertencimentos identitários superpostos que feministas particularmente lésbicas e negras levantaram nos EUA a partir das décadas de 1970 e 1980. O convívio de Pagu com operários, a partir de 1931, quando se filiou ao PCB, lhe fez concretizar, no romance, um projeto modernista por excelência: pululam em sua escritura elementos da linguagem coloquial, cotidiana, até mesmo considerada “grosseira”; o texto apenas é prejudicado (anacrônico) por jargão e estereótipos da época (Ibidem, p. 193). “(…) saem para o almoço das onze e meia. Desembrulham depressa os embrulhos. Pão com carne e banana. Algumas esfarelam na boca um ovo duro.” É nos intervalos do tear, quando se consegue mais tempo para conversar, que Rosinha Lituana, operária de aguda consciência de classe, militante do Partido Comunista, dissemina as ideias entre os colegas. Rosinha e Otávia são comprometidas com a revolução e o movimento proletário; Corina é aprendiz de costureira, jovem e miscigenada que acaba engravidando e caindo na prostituição após falsa promessa de casamento, terminando na prisão. Alfredo é o único personagem masculino da narrativa a se comprometer com o ideário revolucionário. “Acorda com o alvoroço de mulheres entrando. São as emancipadas, as intelectuais e as feministas que a burguesia de São Paulo produz.” E segue um diálogo das feministas liberais sobre futilidades: cosméticos, coiffeur, tailleur, namorados, criada que é demitida por se atrasar e esfriar demais o banho da patroa, etc. “- O voto para as mulheres está consequido! É um triunfo!/- E as operárias?/- Essas são analfabetas. Excluídas por natureza.” A acidez faz com que a “denúncia” de Pagu do preconceito presente entre as próprias feministas não caia em panfletagem barata (no máximo, o livro é uma panfletagem arguta, mesmo se considerada “maniqueísta” – trata-se de um retrato cru das lutas de classes!) ou numa crítica simplista, mas, ao invés, continua contundente. Nota-se a influência que Rosa Luxemburgo (“uma militante proletária alemã, que a política matou porque ela atacava a burguesia”) exercia em Patrícia Galvão, já que um dos capítulos do romance é intitulado “Em que se fala de Rosa Luxemburgo”… “- (…) a burguesia é a mesma em toda parte. Em toda parte, manda a polícia matar os operários…/(…) – Matam os operários, mas o proletariado não morre!” Destaca-se, ainda, como a sexualidade dos personagens é retratada e, nesse particular, mesmo sendo obra comunista crítica a uma determinada matriz específica do feminismo, não deixa de tocar em pontos de especificidade feminina: passado no bairro operário do Brás – “Brás do Brasil, Brás de todo o mundo” – , o romance expõe erotismo e sexismo na sociedade capitalista, e denuncia a objetificação das mulheres operárias “reduzidas a objeto de desejo, de reprodução e mão de obra barata pela sociedade capitalista e patriarcal” (Ibidem, páginas 191 e 192). Hoje, entende-se que, “(…) criticando a sociedade burguesa, de um ângulo socialista, [Pagu] é levada a ferroar a aristocracia paulista, ferindo velhos círculos sociais frequentados pelos modernistas de 22. Concentrando-se nas mulheres operárias e lumpemproletáarias, satiriza o feminismo burguês, acompanha moças pobres seduzidas com promessas casamenteiras por conquistadores ricos, seguindo particularmente a trajetória de Corina rumo à prostituição” (Antônio Risério, “Pagu: vida-obra, obravida, vida”, em Augusto de Campos, Pagu: Vida-Obra, São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 21). Assinale-se mais uma vez o caráter vanguardista e pioneiro dessa situação (que encontra paralelo com Raquel de Queiroz, guardadas as enormes diferenças): um romance escrito por uma (jovem) mulher brasileira na década de 30; mais: o primeiro romance realmente engajado escrito por uma mulher na década de 30. Em 1945, de volta ao Brasil após um périplo pelo exterior (vale lembrar das viagens que fez com Tarsila do Amaral e outros vanguardistas décadas antes), ela publica outro romance, em parceria com seu novo companheiro, o jornalista Geraldo Ferraz: A Famosa Revista é importante narrativa ficcional antisstalinista de estilo livre em poesia e prosa que recusa a narrativa tradicional e atua num experimentalismo bastante distinto daquele empreendido dois anos antes pelo livro de estreia de Clarice Lispector – e sem o seu demasiado subjetivismo. É de se questionar por que Pagu acabou sendo relegada dentro dos estudos de literatura brasileira. Talvez tenha sido essa posição marginália que fez com que outro underrated da cena cultural brasileira, o exímio poeta e transtradutor Augusto de Campos, se aproximasse da figura/personagem de Pagu para lançar Pagu Vida-Obra na década de 1980, volume obrigatório, porque a aprofundou (até então, era evocada superficialmente como aquela que teria acabado com o casamento de Oswald e Tarsila), unindo antologia e perfil biográfico: “luminosa agente subversiva de nossa modernidade”, diz a abertura de uma nova edição depois de anos fora do catálogo. Em Santos, onde passou seus anos finais, um pouco mais tranquilos (tudo mudou após a burocracia da URSS, após a Segunda Guerra Mundial, após o período “democrático” do Brasil entre duas ditaduras), continuou sendo jornalista e foi tradutora e agitadora cultural, uma espécie de “mestra”, tendo estimulado e propiciado a carreira teatral do dramaturgo Plínio Marcos, o mais pungente retratista dramatúrgico das nossas mazelas sociais. (Por fim, só mais alguns adendos. O prontuário de Pagu nas dependências da extinta “Ordem Social” e no Deops é extenso, cobrindo duas décadas de atividade, de 1931 a 1950 – “mais de 200 páginas, cheias de interrogatórios, relatos, fotos e textos do próprio punho da escritora”. Ela era considerada comunista de “alta periculosidade”. Pois bem. Vale mencionar, para coroar a intensa participação de Pagu na construção revolucionária brasileira, que sua última prisão foi no auge dos 40 anos de idade, em setembro de 1950: presa em flagrante no centro de São Paulo, quando escrevia “no chão, com tinta branca, lavável, dizeres referentes à propaganda do Partido Socialista Brasileiro”. Ela escreveu: “Contra os imperialismos russo e americano”. Não precisou desenvolver teoria; ela era a própria teoria em carne e osso e em prática.)
– A brasileira Heleieth Saffioti (1934-2010), pioneira da intersecção entre marxismo e feminismo no Brasil, tendo sido orientada em sociologia pelo grande Florestan Fernandes, marxista cultivado, escreveu textos importantes sobre a condição e opressão das mulheres no Brasil, isto é, no capitalismo periférico. É Saffioti quem irá escrever: “Rigorosamente, não existe um só feminismo, pois há diferenças de bandeiras levantadas, de ênfase posta numa ou noutra reinvindicação, de estratégias de luta. Tais distinções decorrem do enfoque político dado por cada grupo ou movimento feminista à questão feminina” (O Poder do Macho, São Paulo: Moderna, 1987, p. 93). Já em seu livro inaugural, A mulher na sociedade de classes: mito e realidade (escrito entre os anos de 1966-1967 e publicado pela primeira vez em 1969), Saffioti combina feminismo com marxismo (ou seja, parte da crítica da sociedade de classes para tratar especificadamente da mulher em tal sociedade a ser superada). Com este livro, em plena ditadura militar (mas antes do AI-5), ela não titubeia: o problema da mulher não é fato isolado da sociedade, portanto para superar a opressão contra as mulheres é preciso destruir o regime capitalista e implantar o socialismo. Ainda que o capital seja maleável e permita mudanças progressistas, não apresenta nem apresentará plena integração social feminina, porque, conforme Saffioti mostra na obra, as características ditas naturais (sexo e raça) são mecanismos em desvantagem no processo competitivo e tornam-se coniventes para a conservação da estrutura de classes (Editora Vozes, 1976, p. 30). O livro não deixa de tratar especificadamente sobre a condição da mulher em tal sociedade de classes. Nos parece também fundamental que, muitas décadas depois, ela tenha destoado da abordagem comum (quiçá dominante) no feminismo de tratar o gênero como central: em seu Gênero, Patriarcado, Violência (2004), a marxista faz forte crítica dos usos da categoria gênero. Saffioti reivindica a importância da categoria “patriarcado” em detrimento de “gênero” ou, ao menos, alerta contra a utilização exclusivista do último. Associa o patriarcado a uma articulação da industrialização do capitalismo. Argumenta que o “gênero”, enquanto categoria central, mesmo sendo útil, até mais rico e vasto, serviria justamente por isso para maquiar o patriarcado. Saffioti parece bastante crítica a certos autores e autores feministas contemporâneos, sobretudo dos EUA. O antropólogo cultural conhecido como ativista e teórico da política de sexo e gênero Gayle Rubin (1949-), segundo ela, teria se utilizado do “gênero” de maneira neutra, sendo que, para Saffioti, e isto certamente deve-se à sua influência marxiana e marxista, o “gênero” “carrega uma dose apreciável de ideologia”: a ideologia patriarcal, que cobre uma estrutura de poder desigual entre mulher e homens, inclusive – eis uma das argumentações mais polêmicas do livro – a partir do exclusivismo da categoria “gênero”, que não ataca o coração da engrenagem da exploração-dominação, mas ao contrário, a alimenta. É uma perspectiva convincente. Retoma Joan Scott (1941-), cujo trabalho é identificado com a história das mulheres a partir da perspectiva de gênero, para apresentar as relações de gênero imbricadas a relações de poder hierarquizantes ao longo da história, mas identifica que Scott não faz ressalvas à concepção foucaultiana de poder – uma noção pós-moderna de “poder” dissolvido na sociedade -, o que compromete um projeto de transformação social. Aqui, novamente temos uma explícita influência marxista. Saffioti, que teve formação marxista, sabia dos vícios pós-modernos e que os tais “micropoderes”, se é que existem, só sobrevivem a partir da estrutura que os reproduz. Dessa forma, não parece que ela se distancie de Rosa Luxemburgo ao abranger a exploração da mulher tanto no caso do trabalho doméstico quanto no caso do trabalho assalariado, ainda que, ao tomar tal postura, acabe por omitir a exploração material da expropriação de mais-valia em O Poder do Macho (ibidem, p. 51): “(…) Tanto a dona-de-casa, que deve trazer a residência segundo o gosto do marido, quanto a trabalhadora assalariada, que acumula duas jornadas de trabalho, são objeto da exploração do homem, no plano da família”. Detalhe para esse final, “no plano da família”, ou seja, num elemento superestrutural. Saffioti, no mesmo texto, apresenta um entendimento coerente do preconceito na sociedade de classes: “o conceito pressupõe a utilização de um instrumental teórico que permita o entendimento do fenômeno, o pré-conceito nasce do jogo de interesses presente na vida social da defesa de privilégios, da correlação de forças político-sociais” (Ibidem, p. 28). A respeito da relação entre natureza e concepção materialista da história, afirma Saffioti (Ibidem, p. 10): “A identidade social é, portanto, socialmente construída. Se, diferentemente das mulheres de certas tribos indígenas brasileiras, a mulher moderna tem seus filhos geralmente em hospitais, e observa determinadas proibições, é porque a sociedade brasileira de hoje construiu desta forma a maternidade. Assim, esta função natural sofreu uma elaboração social, como aliás, ocorre com todos os fenômenos naturais. Até mesmo o metabolismo das pessoas é socialmente condicionado”. Em Rearticulando Gênero e Classe Social (in: Uma Questão de Gênero, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 192 e 194), repõe no mesmo plano como sistema de dominação-exploração base e superestrutura. Para a autora (Ibidem, p. 186), “A formação da identidade de gênero é um exemplo de produção no reino do sistema sexual. E um sistema de sexo/gênero envolve mais do que ‘as relações de procriação, reprodução no sentido biológico”, ou, noutros termos, as identidades de gênero e as sexualidades são construções sociais, nas quais não se parte do nada, mas de condições materiais, uma vez que “o vetor direciona-se, ao contrário, do social para os indivíduos que nascem. Tais indivíduos são transformados, através das relações de gênero, em homens ou mulheres” (Ibidem, p. 187). Saffioti entende que a acumulação e centralização no modo de produção capitalista são base material para a realização das contradições e antagonismos nas quais operam o sistema sexual: “[…] a contradição entre as categorias de gênero nem é a única, nem opera autonomamente” (Ibidem, p. 199).
– Após a crítica demolidora de Loreta Valadares, já supracitada, resta-nos ainda falar em Simone de Beauvoir? Ela combatia o preconceito de que as mulheres não podiam se apresentar como filósofas, refletiu a condição histórica da mulher e a construção social do machismo. Ainda assim, em O Segundo Sexo, a autora demonstra uma incompreensão do materialismo e da estrutura e superestrutura, enfim, do marxismo, caindo no equívoco comum de tomar o marxismo como um economicismo vulgar que não serviria às discussões feministas, e que o “homo aeconomicus” marxista seria limitado ou até mesmo não serviria aos estudos feministas, algo já refutado por Valadares e muitas outras, e veremos, em outras autoras contemporâneas (embora uma Rosa Luxemburgo jamais tenha abdicado da questão da mais-valia, conforme vimos acima), que o próprio fator econômico na forma de valor encontra forte respaldo na crítica do marxismo feminina (Roswitha Scholz?). Ou seja, a própria obra O Segundo Sexo teria encontrado um grande filão se contribuísse para as questões do patriarcado (lembrar de Saffioti ou mesmo Eleanor Burke Leacock, que veremos adiante) enquanto produto da estrutura e produtor de mercadorias. É Roswitha Scholz, marxista feminista da qual veremos mais adiante, que escreve em seu “Simone de Beauvoir Hoje” (2011) que, enquanto a filosofia existencialista de Heidegger expressava “o sentimento básico da população de classe média nacional-socialista” (ou nazista), “De Beauvoir, pelo contrário, inclui também ideias marxistas na sua teoria. Isso, no entanto, não tanto em relação às causas sócioeconômicas da opressão das mulheres, mas sim, como é usual numa visão existencialista-fenomenológica, com uma intenção mais descritiva, a fim de determinar O Segundo Sexo com fundamento em primeiro lugar existencialista.” Bem, a base é o existencialismo urdido em parceria com Sartre – seu companheiro intelectual e com quem teve encontros memoráveis com o Che e com Fidel (lembrar que a Cuba revolucionária deu garantias do aborto às mulheres, por exemplo). Sartre foi figura mais ou menos cosmopolita, engajada e de renome mundial que afirmou em Crítica da Razão Dialética que o Marxismo “permanece como a filosofia insuperável do nosso tempo. Não conseguimos ir além dele.”, ainda que ele próprio tenha incorrido em alguns equívocos esquemáticos e no dualismo (ao invés da dialética) sujeito-objetivo, mas isso é assunto para outro texto… Pois bem! Estamos, então, diante de autores que precisam de filtro aqui e ali. Nesse sentido, há um texto pouco referido de Beauvoir, intitulado “O Pensamento de Direita, Hoje” (ensaio de 1954, publicado em livro no Brasil em 1967 – período oportuno, diga-se de passagem – pela Editora Paz e Terra). Podemos dizer que, nesta obra, Simone de Beauvoir, em defesa da ciência, inscreve-se entre as críticas pioneiras do pós-modernismo – embora em seu tempo não se falasse nisso com a insistência de hoje. Tal crítica só pode ter derivado do marxismo, que é moderno por excelência. Antes do A Destruição da Razão de Lukács (embora no mesmo Zeitgeist de pós-nazismo) e de maneira corajosa para uma autora mulher, Simone de Beauvoir, ainda que não de maneira mais aprofundada e erudita, já identificava o irracionalismo de Oswald Spengler, Martin Heidegger, Arnold Toynbee, Karl Jaspers e outros… Mas os temas mais pertinentes giram em torno de um ataque à burguesia e ao pensamento da direita – que vão do anticomunismo crasso, ao subjetivismo, misticismo, individualismo, elitismo, rejeição da ciência, características vulgares que formam o pensamento reacionário. Em “O pensamento de direita, hoje”, ela criticou “os teórico burgueses que professam um subjetivismo psicofisiológico: as ideias refletem não o objeto pensado, mas a mentalidade do sujeito pensante”. Ora, essa elaboração crítica certamente é uma herança marxista. Ela ainda desmascara a “naturalização da História”: “A natureza é um dos grandes ídolos da direita. Ela surge como antítese da história e da práxis. Contra a história a natureza nos oferece uma imagem cíclica do tempo; vimos que o símbolo da roda elimina a ideia de progresso e favorece a sabedoria quietista. O retorno indefinido das estações, dos dias e das noites encarna concretamente a grande roda cósmica. A evidente repetição dos invernos e dos verões torna [para a direita] irrisória a ideia de revolução e manifesta o eterno.” Como podemos constatar, Simone de Beauvoir está ao lado da revolução socialista.
– Ângela Davis (1944-) contou recentemente que, após a publicação de seu famoso livro Mulheres, Raça e Classe (1981), todos passaram a chamá-la de feminista, ao que ela respondia: “Eu não sou feminista, eu sou uma revolucionária negra”, até se dar conta que sua ojeriza referia-se a um certo tipo específico de feminismo, “o feminismo infelizmente mais representativo”, de acordo com ela: o feminismo “branco”, burguês ou pequeno-burguês, o feminismo liberal, etc. Assim, é autora que nos importa, porque, diante de pautas ditas “identitárias” que segregam a luta ou buscam ascensão arrivista no sistema capitalista exploratório, Davis, por ser autoproclamada comunista, sabe que não se privilegia raça e gênero em detrimento da classe, mas que é nas interseções entre as três categorias que podemos encontrar o potencial revolucionário. (Noutras palavras, permitam-me um exemplo relevante ao nosso panorama atual, ainda que tosco: há parcelas “identitárias” da esquerda brasileira que, por falta de teoria revolucionária de certos partidos ou por desejo arrivista, batem palmas para uma Maju Coutinho, jornalista negra e mulher, pela primeira vez em posição de maior destaque na Rede Globo, sendo que esse “liberalismo” escamoteia não apenas a relação capitalista exploratória entre patrão e empregado, como também o fato de que tal representatividade efêmera – e reduzida – está nas mãos do capitalista, sempre macho, heteronormativo e branco, no caso, os Marinho e seus chefes executivos, propagadores dum “jornalismo” “neoliberal” e privatista financiado por banqueiros e grandes empresas, portanto racista – aliás, o diretor de jornalismo da emissora, Ali Kamel, é autor de um dos livros mais infames deste país, Não Somos Racistas. Uma Reação aos que Querem nos Transformar Numa Nação Bicolor.) Portanto, cabe tomar cuidado com o prefácio de Djamila Ribeiro na recente edição da Boitempo para Mulheres, Raça e Classe, que lastimavelmente desvia a centralidade da categoria trabalho para a questão racial (questão facilmente cooptável, quando solitária, conforme o exemplo já mencionado), sendo que Davis segue no miolo de sua obra o caminho contrário, muito mais revolucionário e coerente: percebe de que modo o capital instrumentaliza o racismo e o sexismo para nos colocar uns contra os outros e perder de vista a centralidade do trabalho e o nosso inimigo comum, a burguesia. Tomando o livro de Davis dessa forma, temos um primor da luta marxista contra o capitalismo, um apelo de unificação entre todos os grupos subalternizados que devem eles mesmos ultrapassarem o racismo e o sexismo para pôr foco na luta contra o capitalismo global, que forma, mantém e gera o racismo e o machismo. (Numa minúscula resenha mais ou menos “diplomática” intitulada “O Marxismo de Ângela Davis“, Silvio Almeida, destacado intelectual negro brasileiro contemporâneo, escreve: “a importância de Mulheres, raça e classe transcende as perspectivas teóricas ou práticas de grupos específicos e se mostra relevante para o marxismo enquanto “método” ou “ciência da história”. Davis nos lembra que o marxismo tem como prioridade o movimento do real da materialidade histórica, e por isso o conceito de classe deve ser “elevado” em direção ao concreto. Classes são formadas por indivíduos, cujas relações são determinadas pela lógica capitalista da produção e pelas formas históricas de classificação racial ou sexual. Atentar para a forma adquirida pelo racismo e pelo sexismo no interior do capitalismo permite ao marxismo não ser engolfado pelo idealismo ou por esquemas mecânicos que inviabilizam uma concepção verdadeiramente científica da sociedade. Trata-se, portanto, de ponto de partida para o desafio de responder à questão se a relação entre capitalismo, racismo e sexismo se explica por fatores históricos (nunca houve capitalismo sem racismo e sexismo) ou lógicos (não há capitalismo sem racismo e sexismo).” É importante, enfim, que a ontologia marxista do ser social (para lembrarmos Lukács) não se confunda com o cientificismo academicista e que não se opere nem se desvie a centralidade do trabalho para explicar a racionalidade do capital ou a substitua pela “centralidade da questão racial”, para que a problemática negação da “não hierarquização das opressões” se resvale, necessariamente, no relativismo, pois essa concepção é fruto de uma vertente “marxista” fácil de ser cooptada pelas próprias formas mercadológicas que Almeida identifica e denuncia, é uma vertente que teme a radicalidade do pensamento marxiano, sintetizado na revolução. Não será possível remontar, nos objetivos deste curto espaço, detalhes sobre a questão, mas basta dizer que o machismo se sustenta a partir do fato da propriedade privada ser detida pelo homem heternormativo na sociedade de classes (e que a fileira que pretende superar tal sociedade é o comunismo), assim como o racismo se estabelece a partir da acumulação primitiva e suas consequências na colonização e escravidão, posteriormente, no capital, e que em sua superação pela via do comunismo é que há a expressiva superação do sexismo e racismo.
– Eleanor Burke Leacock (1922-1987) foi a mais importante antropóloga marxista estadounidense, que deu enormes contribuições ao estudo das sociedades igualitárias (primitivas ou modernas), à evolução do status das mulheres na sociedade, ao marxismo e ao movimento feminista. O seu volumoso e importante Mitos da Dominação Masculina: Uma Coletânea de Artigos sobre as Mulheres numa Perspectiva Transcultural (Instituto Lukács, 2019) é estudo altamente recomendado, tanto como discussão crítica do estado da arte quanto como um relato de história pessoal/política que informa o processo de investigação científica. A obra desmascara os diversos mitos por trás da ideia de superioridade masculina “natural”. (Lembrar da crítica de “O Pensamento de Direita, Hoje” a respeito da naturalização da História, muito comum nos autores burgueses e na direita.) Com base em uma extensa pesquisa histórica e intercultural, Leacock mostra que as reivindicações de superioridade masculina são baseadas em mitos cuidadosamente construídos sem base histórica factual. Ela também documenta vários exemplos históricos de relações igualitárias de gênero. “Norteada pela busca incessante para desvelar o que constitui a essência do mito da dominação masculina, Eleanor Burke Leacock dedicou-se com afinco à pesquisa antropológica para corroborar a tese marxiana de que a humanidade constrói seu próprio mundo desta ou daquela forma sobre a base das condições objetivas historicamente postas (…)”, afirma um trecho da descrição do livro pelo Instituto (é possível baixar em .pdf, mas o preço de cerca de R$8 para um livro de mais de 400 páginas não pode ser desperdiçado). A ler.
– Feministas italianas veteranas e contemporâneas como Silvia Federici (1942-), radicada nos Estados Unidos (em que o movimento feminista deste país influenciou sua luta e trabalho?), e que possui livros traduzidos no Brasil, onde é muito requisitada para eventos, sempre esgotados, e Maria Rosa Della Costa (1943), desafiam a teoria marxiana da acumulação primitiva, mostrando como a despossessão de corpos femininos também fez parte desse processo, repensando a relação entre capitalismo e patriarcado e o lugar do trabalho doméstico e não remunerado no esquema marxiano. Podem existir alguns equívocos regressivos aqui e ali em matéria de crítica da Economia Política (por exemplo, Federeci reivindicava, desde os anos 1970, o assalariamento para o trabalho doméstico das donas de casa, e é preciso sopesar como essa questão é vista por outras feministas, se isso uniria as mulheres domésticas às trabalhadoras externas, e mesmo a partir da crítica ontológica marxista do assalariamento), mas eis o que fica de basilar em seu pensamento e luta: em entrevista ao El País Brasil em 2019, Federici, diante da pergunta “Pode-se ser feminista e não estar contra o capitalismo?”, responde, pondo abaixo o arrivismo de certos grupos: “Não. Não pode. O feminismo não é uma escada para que a mulher melhore sua posição, que entre em Wall Street, não é um caminho para que encontre um lugar melhor dentro do capitalismo. Sou completamente contrária a esta ideia. O capitalismo cria continuamente hierarquias, formas diferentes de escravização e desigualdades. Então, não se pode pensar que sobre esta base se possa melhorar a vida da maioria das mulheres, nem dos homens. O feminismo não é somente melhorar a situação das mulheres, é criar um mundo sem desigualdade, sem a exploração do trabalho humano que, no caso das mulheres, se transforma numa dupla exploração.” Dois livros destacados de Federici com tradução no Brasil e corpo crítico já disseminado: Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2004) e Revolução ao ponto zero: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas (2013).
– Roswitha Scholz (1959-). Jornalista alemã. Contemporânea. Ainda não me aprofundei para delinear pontos divergentes, mas os pontos convergentes parecem muito enriquecedores. Conhecida pela crítica do valor (partindo, assim, da teoria marxiana) vinculado à clivagem de gênero, o que lhe permitiu desenvolver a teoria do “valor-clivagem”, “valor-dissociação” ou “dissociação-valor”, dependendo da tradução. Parece que a teórica do valor-clivagem encara o patriarcado como produtor de mercadorias (tomando como referencial o título de uma reunião virtual recente de mulheres brasileiras a discutir a autora), postura fundamental e central para o casamento do feminismo com o marxismo; esta parece ser uma visão coerente e fecunda. (Resta problematizar, como vimos com Heleieth Saffioti, a questão do patriarcado diante da categoria gênero?) Começar pelo artigo “O Valor é o Homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos” (de 1992, embora a própria Scholz, em Nota Prévia de 2017, veja deficiências nesse texto, recomendando, a título de compreendermos com maior profundidade a teoria da dissociação-valor, consultarmos o livro O Sexo do Capitalismo. Teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do patriarcado, além de ensaios seus e de outros e outras na revista teórica Exit! Crise e crítica da sociedade das mercadorias). Em “Simone de Beauvoir Hoje” (2011), Scholz revê o legado da autora francesa a partir do feminismo e do marxismo. É preciso se perguntar se essa autora, uma vez debruçada na crítica do valor e divulgadora da teoria do valor-clivagem, supera e resolve, de uma vez, e de que modo critica – como a brasileira Loreta Valadares o fez em seu texto supracitado – a velha querela de feministas como Simone de Beauvoir, Juliet Michell e Schulamith Firestone que viam no marxismo (mesmo em Marx e Engels) uma “redução” de tudo ao econômico e ao “homo aeconomicus”.
– Da brasileira Taylisi de Souza Corrêa Leite (Doutora, Mestra e Especialista em Direito), o importante livro Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e feminismo marxista, lançado neste ano de 2020 pela Editora Contracorrente (salvo engano, a autora é orientanda de Alysson Mascaro, que sempre bebeu muito na fonte de um Pachukanis, cuja filosofia do direito dá as bases marxistas para uma crítica e superação do direito burguês): em seu percuciente livro, Taylisi parte do valor-clivagem de Roswitha Scholz para criticar, desmascarar e denunciar o feminismo de cooptação liberal. Tudo aponta que trata-se de livro obrigatório para formarmos e vacinarmos as camaradas mais novas e sacudirmos no combate contra as armadilhas capitalistas. A ler.
– Mulher, Estado e Revolução: política da família soviética e da vida social entre 1917 e 1936 (1993), de Wendy Goldman (1956-), parece apontar os retrocessos históricos da época “stalinista” (basta compará-los com as conquistas factuais anteriores e até com os escritos de Lênin, Nadejda Krupskaia, Alexandra Kollontai, outros e outras na fase histórica anterior). Não posso ainda dizer se essa autora tem ou não um aprofundamento no marxismo, mas é historiadora especializada em Rússia e União Soviética, sabendo retratar as grandes experiências e conquistas da libertação da mulher e do amor livre na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) depois de uma revolução comunista com uma vanguarda de intelectuais marxistas – e por que falharam, quando entrou em cena a burocracia stalinista. A ler, principalmente para o combate interno (ainda que anacrônico e extemporâneo, mas que se impõe alheio à nossa vontade) contra o “stalinismo”, que fisga até mesmo uma ou outra camarada menina mais incauta a embarcar nesse idealismo machofrênico, além de meninos aborrecentes (não sem a influência de marmanjos pseudomarxistas sem caráter e reacionários, praticamente direitistas). Esses dias mesmo, vi uma suposta feminista marxista (perfil “Solidariedade Feminina! no Instagram) omitindo (a troco de que?!) os danos, inclusive femininos, no período Stálin (cuja própria filha chamava-o de homem conservador, relatando que pessoas da própria família é que começaram a sumir antes dos demais). Goldman parece contribuir enormemente para a historiografia recente daquele período – espera-se que tenha problematizado as condições táticas particularmente difíceis da Rússia isolada do resto do mundo que não logrou a revolução, ao invés de um retrato simplório ou moralista, mas que exponha os danos do Grande Expurgo para a própria revolução, sem contar, depois, a dissolução da Internacional para agradar os Aliados liberais e anticomunistas, desmantelamento cujas consequências amargarmos até hoje. Enfim, é uma autora mais do que interessada em Stálin. Basta olhar os seus títulos subsequentes: Women at the gates : gender and industry in Stalin’s Russia (2002) – este trata de gênero e indústria, Terror and democracy in the age of Stalin : the social dynamics of repression (2007), Inventing the enemy : denunciation and terror in Stalin’s Russia (2011) e Hunger and war : food provisioning in the Soviet Union during World War II (2015). Infelizmente, estes outros livros parecem não contar ainda com uma tradução no Brasil.
– Lise Vogel (1938-), Susan Ferguson (1962-), Tithi Bhattacharya (1971-) e Cinzia Arruzza (1976-), também contemporâneas, apesar das diferenças geracionais e apesar de atuarem (na prática e na teoria) em países e culturas bastante distintas entre si, com problemas e resoluções específicos, são todas feministas marxistas que apresentam uma teoria unitária para explicar como o movimento do capital, enquanto forma a partir da qual a sociedade capitalista se produz e se reproduz, concretiza-se articulando gênero, raça e classe, bem como trabalho produtivo e reprodutivo.