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“PL das Fakenews”: um detalhe crítico que faz toda a diferença

Quanto ao Projeto de Lei 2630, o “PL das Fakenews”, sou a favor de que seja mais enxuto para concentrar-se precisamente na regulação das redes antissociais, que têm lucrado e protegido disseminação de notícias falsas da extrema-direitalha e seu financiamento escuso, negacionismo, planejamento de ataques a escolas e crimes de preconceitos e ódio, porém sou contra e crítico ao artigo 32, inserido ali tardiamente por pressões alheias e que precisa ser retirado, pois destinaria recursos da publicidade para a velha mídia empresarial familiar, a mesma que dissemina ideologia neoliberal ao povo trabalhador, mas não desgruda das verbas concessionárias do Estado (i.e., dos contribuintes), independentemente do governo de ocasião. O termo ali justificado, “jornalismo profissional”, é vago e vazio, pois jornalistas independentes e alternativos nas redes não são menos profissionais do que os das emissoras televisivas e mídia tradicional.

Conforme o jornalista Paulo Henrique Amorim (1942-2019) explicou anos atrás em evento gravado (“PHA conta como a Google está matando a Globo“), essa mesma mídia profissional, há muito chamada de “o quarto poder”, se viu numa crise de hegemonia e de economia sem precedentes nas últimas décadas com a expansão mundial e monstruosa das “big tecs”, que, aliás, verdade seja dita, mais recentemente têm se mostrado explicitamente irresponsáveis, lenientes, até condescendentes com as intenções da extrema-direitalha no mundo. (Aliás, Amorim é exemplar neste campo, pois acompanhou de perto tal transição, transitou de um polo a outro em sua carreira, tendo sido repórter internacional da emissora da família Marinho por muitos anos, além de outras, e terminando como jornalista independente com canal próprio nas redes, o “Conversa Afiada”, crítico, corajoso e impenitentemente à esquerda.) Para resumir o novo processo, típico deste século, capitalistas comerciais e empresariais no geral pagam aos capitalistas bilionários das grandes empresas de redes antissociais menos por seus anúncios incessantes, e que nos atingem feito alvos certeiros de acordo com algoritmos e com nossos rastros virtuais pessoais capturados em bancos de dados consumistas, do que subordinados a tempos fixos diante de público disperso demais da TV e meios tradicionais, que, ademais, já entraram num franco declínio em receita, audiência, credibilidade etc. Ou seja, há uma disputa econômica (elementos de lutas de classes) e de narrativa hegemônica (em termos de Gramsci, mesmo) entre a classe dominante, nacional e externa…

Tais interesses estruturais, que são o que realmente importa à conscientização, continuam desapercebidos pela manipulação das discussões políticas do senso comum e se manifestam nos bastidores do lobby por trás do mise-en-scène superestrutural da arena parlamentar no Congresso Federal…

Quem defende bilionário e burguês?

Comento em determinada notícia que a ideologia neoliberal tem feito chamarem trabalhadores de “colaboradores” para escamotear o controle autocrático dos espaços capitalistas de trabalho e o roubo econômico da mais-valia (ou mais-valor).

Entre as respostas, fiz questão de anotar duas, por conta do nível de comicidade:

Um sujeito que começa a desferir ataques pessoais e a defender o capitalismo. Entro no perfil. Parece que é locatário de um galpãozinho numa cidade onde Judas perdeu as meias. O ignorante de si deve ter aberto um pequeno negócio, ter alguns funcionários e, sem ser dono do galpão nem do terreno, acha-se pertencente à classe dominante…

Uma mulher de meia idade a digitar: “Mais valia? Atualiza a bibliografia, colega!” (sic) Antes de minha réplica de que, sim, horas trabalhadas não remuneradas continuam vigentes sob o capital contemporâneo e que a diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o valor pago pela burguesia faz parte da própria essência capitalista, entro no perfil da caricata da piada pronta que pede atualização bibliográfica e vejo várias fotos suas numa igreja católica neogótica, falando num púlpito com uma bíblia gigante! Enquanto trato de teoria econômica moderna, a “colega” do compêndio misógino sem exegese crítica está atrasada pelo menos uns dois mil anos.

É cada uma…

Trump: “Estamos perdendo o Brasil para a China”

“O Irã se une com a Arábia Saudita através da China. E a China, ouvi algumas pessoas dizerem: ‘Bem, o nosso dólar nunca perderá o padrão’. Eles estão brincando? A China quer mudar o padrão, o padrão monetário. E se isso acontecer, é como perder uma guerra mundial. Seremos um país de segunda linha. Se isso acontecer, seremos literalmente um país de segunda linha.

“Estamos perdendo o Brasil, estamos perdendo a Colômbia, a América do Sul, estamos perdendo o Irã, eles já o perderam, nós perdemos a Rússia e se ainda não os perdemos, eles vão. A China está ganhando. Então, a China se foi. Então, vemos a França caindo fora. O que está acontecendo? Estamos perdendo. Se perdermos nossa moeda, isso equivale a perder uma guerra mundial. Nossa moeda é o que nos torna poderosos e fortes.” – Donald Trump

O Brasil, econômica e estrategicamente importante, continua a ser um país de “terceiro mundo”, de capitalismo dependente (em termos marxistas de Florestan Fernandes, Caio Prado Jr. et al), no sentido de que há outros dois países poderosos de capitalismo próprio que disputam nas lutas de classes internacionais, comprando empresas brasileiras, sediando multinacionais aqui, pinçando nossos trabalhadores para lucrarem acionistas estrangeiros. Não mais a União Soviética, que nem chegou a tanto, nos “perdeu” para o golpe de 1964 da ditadura empresarial-militar ou nem teve interesse e não nos fez satélite; agora, é o capitalismo da China, um bebê da produção em larga escala, enquanto que os EUA tornaram-se já há décadas um decadente império do consumo, não mais da produção. Há ainda o poderio bélico envolvido… Alertei, anos atrás, em ensaio sobre caso exemplar, que envolve os trabalhadores brasileiros precarizados entre as atrozes Uber (EUA) e 99 (antes brasileira, comprada por uma gigante bilionária chinesa).

Não fui roubado por um lek da “gangue da bike” em São Paulo…

Verídico. Realmente aconteceu. Este santista ingênuo, mais ou menos manjado de morar em vários bairros da capital paulistana, estava atravessando uma rua no centro de São Paulo quando notou um garoto bonitinho de bicicleta me olhando fixamente pela lateral. Gostei tanto do rosto dele, imberbe, tão sério, me encarando tão fixo e com oblíqua volúpia, mas, leonino exibido, segui o caminho, achando que era mais um flerte cotidiano. Nada. Passou na minha frente feito águia ligeira e tomou o celular da minha mão (eu só estava vendo o mapa). Súbito e sem raciocinar, dei uma leve corrida atrás dele e, com uma voz grossa de comando, ordenei para voltar. Por incrível que pareça, o lek da “gangue da bike” largou meu celular no chão e se mandou, não sem ficar me olhando para trás, o que me deixou completamente orgulhoso de mim mesmo, porém com uma dúvida: devolveu por medo ou porque também gostou de mim ou por ambos?! São coisas mágicas que acontecem comigo: sempre desistem de me roubar, muito provavelmente porque eu não demonstro pânico ou desespero (emoções que são transmitidas a quem rouba), mas uma inabalável segurança…

O ex-presiDEMENTE ficará inelegível, pelo menos

Para os mandatários da justiça do país, não é interessante que o amigão do Queiroz, o contrabandista de joias e armas, o idólatra de torturador, o corrupto familiar, o arremedo de genocida seja preso, pois isso poderia criar caos, marketing politiqueiro e mais demonstrações de fanatismo.
Ficará inelegível, pelo menos.

Sugestão aos puritanos da Flórida: muito além do ‘Davi’, Eva faz boquete em Adão na Capela Sistina

Sugiro aos puritanos da Flórida, que pressionaram uma professora a se demitir por mostrar o ‘Davi’ a seus alunos, que defendam também a raspagem do teto da Capela Sistina (profusão de corpus nus) no Vaticano, a começar por este trecho de ‘A Queda e a Expulsão do Paraíso’ a mostrar Eva praticando felação (chupando, mamando, fazendo boquete) em Adão, mas interrompida pela serpente entremeada à Árvore do Conhecimento. Se o homoerótico ‘Davi’ não é pornografia, isto sem dúvidas é proto-pornografia (heterossexual, porém, o que talvez os faça hesitar no plano)… Não fosse assim, aquela que inacreditavelmente surgiu das costelas do homem não estaria agachada e com o corpo virado para o membro do parceiro, que está de pé, virando o rosto apenas num relance de hiato. Amor natural. Só será preciso questionar se, para gerarem Caim e Abel e nós todos, não seria necessário tão somente a penetração, mas é que o artista era homossexual, e sabemos bem que estes só fazem sexo por prazer, ao contrário dos heteronormativos procriadores, que sabem que o prazer deve ser tratado como “pecado” a ser controlado e se escandalizam assim diante dos que nos forçam a sair dos bitolados medievos: “Como ousa sentir prazer e realizar desejos, quando eu sou obrigado a reprimir os meus?!”
O Livro do Gênesis (e grande parte da bíblia) é historinha infantil, diria Einstein, cientista da Física: concordo… Segundo Borges, o inferno é uma ameaça; o céu, um suborno: eu subscrevo e concordo… Minha saudosa mãe me levou em todas as religiões — espírito crítico… Não existe “Deus” (e nunca escrevo assim) — só escrevo dEU$, sobretudo neste século em que, ainda bem, a secularização já atingiu a Igreja Católica e atingirá lentamente os “neo”pentecostai$ iconoclastas. Obs.: Michelângelo, renacentista típico na sondagem do belo do corpo depois de séculos de castração medieval, foi também autor de sonetos homoeróticos.

Um dos maiores desafios de uma construção revolucionária socialista…

Um dos maiores desafios (se não for o maior) de uma construção revolucionária socialista consiste no fato de que precisa aglutinar, articular e unir, em solidariedade de classe, os mais diversos tipos culturais de pessoas (de trabalhadores): desde o jovem descolado e urbano que trabalha numa empresa de telemarketing com o camponês laborando numa terra, estereotipado num Jeca Tatu; um funcionário de terno e gravata em sua rotina num arranha-céu da Faria Lima com o entregador de chinelos em sua bicicleta entregando no dia a dia comida de aplicativo pelas ruas etc. etc. etc. A solidariedade e a devida organização nascem primeiramente da consciência de classe, mas também em momentos históricos mais graves do ponto de vista econômico. São os tipos mais diversos possíveis, presos, porém, em suas classes, que consiste exatamente em vender a força produtiva de trabalho para poder subsistir (com uma migalha que chamam de salário, considerando a riqueza produzida) aos detentores ilegítimos dos meios de produção, que lucram com o trabalho alheio — o capitalismo dividiu historicamente os trabalhadores com maestria, inclusive em termos de renda, porém é justamente aquilo que os une e os torna em comum, acrescido, por conseguinte, do poder que tais forças produtivas tem de simplesmente parar, sucumbindo todo um sistema baseado no capital, que não é o Leviatã, que simplesmente persiste através de comando por um trabalho e obediência/resposta de trabalho que gera (mais) valor…

Distopia escancarada

Não se pode deixar de afirmar e insistir que os EUA, o “big and better, wiser and perfect brother of the North”, são uma distopia escancarada, sem precisarmos adentrar no submundo do background, a começar pelo que haveria de mais superficial e explícito nessa discussão a respeito de uma típica “sociedade do espetáculo”, que deixou de ser “império da produção” para tornar-se um “império do consumo” no momento histórico mesmo em que a China é um bebê da produção capitalista: o seu próprio sistema político encabeçado por apenas dois partidos, partidos de magnatas dinásticos que, cada um a seu modo, servem ao complexo industrial-militar (cf. Gore Vidal). Partidos demais fazem mal à promessa de democracia, também servem a politiqueiros sem princípios ideológicos e à alienação eleitoreira (vide o caso do famigerado “Centrão”), porém o bipartidarismo impede qualquer pulverização de forças políticas reais e populares. Socialistas no Partido Democrata foram extirpados já nos intensos anos 1960s e 1970s, restando um velho Bernie Sander, que é sensacional na retórica contra Wall Street, mas que não passa de retórica; o partido comunista dos Panteras Negras sequer vingou… E a desgraça consiste justamente no fato de que o hegemonismo capitalista dos EUA respingou a distopia da especulação e dos espaços laborais antidemocráticos e autocráticos para o resto do mundo, ao que eu pergunto a um belo garoto, delicado e feminino, em São Paulo, trabalhando no McDonald’s (fora do estabelecimento, em outra circunstância, pois não entro mais e não como isopor maquinado), quem são os donos, e ele (que sequer “chuta” falar o nome do CEO que está em holofote na mídia ou a Board of Directors que se encontra num arranha-céu dos EUA) me dizer o nome de sua gerente, que ele avista todo dia, ou seja, mal sabe de acionistas anônimos, milionários e bilionários, lucrando alhures com o suor precarizado de milhares de jovens como ele a partir das franquias multinacionais de milhares de gerentes nos quatro cantos do planeta sem precisarem sequer chegar perto da porcaria venenosa que chamam de comida rápida. Mais distópico do que isso, nem a Coreia do Norte!

Como a vida é inesperada, irônica, indescritível!…

Como a vida é inesperada, irônica, indescritível!…
Marcar encontro, esperando um “algo a mais” além do físico: o amor natural, o sexo foi muito bom, porém a conversa antes foi esquecível…
Aceitar marcar amor físico e nada mais, sem esperar “algo a mais” com outro alguém, e de repente, antes de qualquer aproximação mais íntima, por timidez da outra parte, haver uma conversa inesperada, em que o outro, uns dez anos mais jovem, relata que lê ‘Angústia’, estoicismo, Machado de Assis, J. D. Salinger etc., e tenho de lhe mostrar meus livros, inclusive todos esses, incluindo toda uma bibliografia marxista, livros que tomam conta de um dos quartos e se esparramam na minha cama, e de repente adivinha que um dos livros da minha adolescência foi ‘O Retrato de Dorian Gray’ (sem, suponho, ter lido isso em algum lugar, ou talvez por ser eu um personagem explícito a quem é mais ou menos culto), falou que pensa em fazer teatro, prometi levá-lo a pertinentes peças em São Paulo, confessei meu bloqueio de escritor…
Como a vida é indescritível, irônica, inesperada! O sexo talvez não tenha sido do bom como no anterior, mas, mas reticente fico… Não acordo esta hora, muito menos às segundas-feiras: pegando na minha mão e sorrindo de pé ao lado da cama, acabou de me acordar para eu abrir a porta e se despedir, pois tem que ir trabalhar (dormimos juntos).

Mais algumas notas autobiográficas sobre meu pai e minha mãe, e quem sou hoje…

Certo dia, quando eu estava entre a pré-adolescência e a adolescência, meu afetuoso pai (quando eu nasci, eu, filho caçula, “raspa do tacho” e “não planejado, mas que mudou a mãe totalmente” — parentes distantes sempre me definiram assim –, eu, nascido de uma recidiva entre eles e da traição da traição — gosto disso –, ele já estava aposentado e separado da minha mãe, mas nem por isso não presente) me apareceu com filmes do Pasolini (os quais guardo até hoje); depois, com ‘Traídos Pelo Desejo’, filme cult (para quem não viu, o espião da IRA – Irish Republican Army, apaixonado, descobre que a personagem é trans, é uma travesti, perdoem o spoiler, e meu pai adorava essa reviravolta), sem contar os vários livros que me presenteou com dedicatória e os quais ainda hoje guardo, desde que minha mãe lhe disse que o filho queria ser escritor; dele herdei também ouvir muito samba bom, muita “MPB”… Morreu em 2011. Sem saber, me “estragou”, e o agradeço por isso, porque o clichê, o padrão e o quadradismo são execráveis. Na verdade, deu-se conta, mas já era tarde, em seu ano derradeiro, insistindo para um amigo dele me arranjar um emprego, quando eu o ajudava; já disfuncional, no dia a dia, em seu apartamento de “classe média”, junto à enfermeira e minha madrasta, mas já era tarde… Só pude avaliar recentemente o impacto paterno a me forjar, agora beirando os 30, criando analogia entre isso e quem sou hoje, meus referenciais artísticos e estilo de vida não-ortodoxo. Em seu leito no hospital, em 2022, também minha mãe, que me criou solteira e na raça, viu o seu “estrago” quanto à minha formação, mas também já era tarde; em nosso último diálogo, ela, entre a consciência e a inconsciência, e sob a morfina, enquanto eu lhe dizia gentilmente coisas amenas de resolução final, como “Você me criou muito bem, foi uma ótima mãe”, ao que ela respondeu, com dificuldade, mas não sem comicidade: “Será?!”, e eu: “Sim, todos elogiam o seu filho”, para então ela arrematar: “Fui liberal demais…” Somam-se a eles minhas professoras de português, história e filosofia das escolas públicas que frequentei, sempre elogiosas às minhas redações, e uma prima de segundo grau, professora, que me deu várias coleções de livros basilares da literatura, que suas sobrinhas usaram apenas para vestibulares e logo dispensaram.

Alguém me chamou de “assustador”…

Alguém (uma seguidora) me chamou de “assustador” (sic) pelo fato de ter lançado luz a um garoto (provavelmente ele não viverá outra chance invulgar feito essa), quando me disse que trabalha no McDonald’s, mas não soube me responder quem eram seus patrões, fornecendo apenas o nome da gerente, ao que respondi, não com a esperança de mudar o sistema (este, sim, assustador!) num simples chat feito para terceiras intenções, talvez, sim, por que não?, a “militar” ali a ponto de despertar consciências de classes na juventude ingênua, mas sobretudo com doses de cansaço (em meio à futilidade), conformado pedantismo, picardia à lá Lorde Henry e inconformismo (anotei o que enviei, e ora reproduzo abaixo, para utilizar posteriormente num romance revolucionário):

“Como não sabe?! É a empresa que você trabalha! Há um “CEO” identificável, com fotos e entrevistas e holofotes na mídia, há uma Board of Directors com engravatados num arranha-céu dos EUA, o qual você e demais jovens do precariado jamais conhecerão, mas tampouco estes são os verdadeiros donos: fantoches. Os proprietários são acionistas anônimos da “bolsa de valores”. Aliás, a própria gerente, que você trata feito patroa, é meramente dona de uma franquia vinculada a um oligopólio multinacional (que sequer paga taxas decentes ao Brasil, se é que paga alguma), portanto não se trata de negócio próprio dela, o que a faz também classe trabalhadora como você, apesar da diferença de aparência, renda e bens, que, por si só, não constituem critérios definitivos para definir classe social. Também ela produz capital para acionistas anônimos, também ela é despossuída dos meios de produção, embora deva se sentir da “classe média” (pequena-burguesia) ou até “elite” (burguesia). Não é, e o mecanismo foi hábil ao longo dos séculos em separar e criar divisões dentro duma mesma classe, impedindo a solidariedade de classe entre vocês. Imagine, então, milhares de jovens como você e milhares de gerentes e responsáveis de franquias como ela espalhados pelos quatro cantos do globo, trabalhando duro e ganhando pouco para lucrar e enriquecer especuladores anônimos, milionários, bilionários, que, por sua vez, a fim de manter suas fortunas criminosas, sequer precisam chegar perto de vocês com ordens, pois vocês já as automatizaram e normalizaram em seus cérebros e ideologias, durante o tempo que gastam, por falta de melhor opção socioeconômica, em seus ambientes autocráticos de trabalho, tampouco eles precisam chegar perto das máquinas de fazer isopor, que vocês chamam de comida… Distópico, e ainda chamam isso de trabalho, emprego, democracia.”

O garoto me excluiu.

Ezra Pound aderiu ao fascismo sobretudo porque…

Ezra Pound, que em muitos de seus versos presentifica e critica ipsis litteris a usura (um de seus autores referenciais em economia foi Henry George, que acreditava que o sistema financeiro devia estar a serviço do bem comum e da justiça social), em estilo poético que combina classicismo, experimentalismo e militância, sabidamente aderiu ao fascismo, entre outros motivos de irracionalismo (para evocar Lukács) e subversivismo reacionário (termo de Gramsci), pelo fato principal de que, no início, na esteira dos eventos anteriores e subsequentes à Crise de 1929, fascistas roubaram do marxismo (para ludibriar incautos populares) a noção real da exploração econômica e roubo (de mais-valia) capitalistas do trabalho… Pena, parece que o poeta não leu Marx.

O Tadzio da vida real, o outro Tadzio, os Tadzios…

Władysław Gerard Jan Nepomuk Marya Moes

Wladyslaw Moes (1900-1986), polonês de família aristocrata, foi a inspiração para a novela filosófica Morte em Veneza (1912).

Em entrevista de agosto de 1965 a Andrzej Dołegowski, tradutor polonês das obras de Thomas Mann, publicada na revista alemã Twen, o próprio admitiu que passou as férias com a família na cidade italiana:

“Eu sou aquele garoto! Sim, embora em Veneza eu fosse chamado Adzio ou, às vezes, Wladzio… Mas na história sou chamado de Tadzio… É assim que o Mestre entendeu… Na história, eu achei tudo descrito com exatidão, até as minhas roupas, o meu comportamento – bom ou mau – e as brincadeiras rudes que eu tinha com o meu amigo na areia.”

“Eu era considerado uma criança muito bonita e as mulheres me admiravam e beijavam quando eu andava na calçada. Algumas me desenhavam e pintavam. Mas nas minhas memórias tudo isso me parecia insignificante. Eu tinha aquelas negligentes maneiras infantis que as crianças mimadas mostram. Em Morte em Veneza esse enredo é muito melhor narrado do que eu jamais poderia fazer. O escritor deve ter ficado altamente impressionado pelas minhas roupas pouco convencionais e as descreveu sem perder um detalhe: o traje listrado e uma gravata vermelha, assim como a jaqueta azul com botões dourados, minha favorita.”

Foi no verão de 1911; Mann visitava Veneza na companhia de sua esposa Katia, que mais tarde também relataria o seguinte, em Minhas Memórias Inescritas (1974), a respeito da estadia no Grand Hotel des Bains:

“Todos os detalhes da história vieram com a experiência. Na sala de jantar, no nosso primeiro dia, vimos a família polonesa, que se parecia exatamente com a forma com a qual o meu marido os descreveu: as garotas estavam vestidas bastante rígida e severamente, e o garoto muito charmoso e belo, de uns 13 anos, estava vestido com uma roupa de marinheiro com um colarinho aberto e um laço muito bonito. Ele chamou a atenção do meu marido imediatamente. O menino era tremendamente atraente, e o meu marido sempre ficava o observando com seus amigos na praia. Ele não o perseguiu por toda Veneza – isso ele não fez -, mas o garoto realmente o fascinou, ele frequentemente pensava nele…”

Recordo que, em determinado trecho, Gustav von Aschenbach, alter ego, sente-se inspirado, “[…] almejava era trabalhar em presença de Tadzio, tomar como modelo ao escrever a figura do menino, deixar seu estilo seguir as linhas desse corpo que lhe parecia divino, transportar sua beleza ao espiritual, tal como outrora a águia carregara o pastor troiano ao éter” (aqui, misturo as traduções de Maria Delimg e Eloísa Ferreira Araújo Silva – tenho as duas próximas da minha cama e as releio constantemente; destaque para o referencial homoerótico do rapto mitológico do jovem Ganímedes por Zeus, que Drummond certa vez definiu em poema como “outra forma de amar no acerbo amor”). Mann, num ensaio a respeito das diferenças entre o comportamento homossexual, fundamentalmente estético e artístico, e os deveres do casamento e do que hoje chamamos de heteronormatividade, confessa, en passant:

“[…] A liberdade orgiástica do individualismo que uma vez descrevi em ‘Morte em Veneza’ na forma de pederastia. […]”

Tal confissão pessoal, a meu ver, não refuta o caráter filosófico da ficção acerca do artista e o belo, preenchido, inclusive, com referência direta à instrução de Sócrates a Fedro sobre o desejo e a virtude; na realidade, o nível puro e metafórico não exclui o outro, erótico, pois os desejos da carne toldam o sentimento do imponderável e também o pensamento intelectual, presentificam-se amalgamados de maneira a remontar os séculos de elevado homoerotismo entre um homem mais velho, carregado, e um jovem com beleza e alegria pela vida, na esteira de Platão, Michelângelo, Shakespeare, Wilde, Pasolini et al… O escritor transformou o garoto num dos ícones mais emblemáticos do século passado, a fascinar ainda hoje.

(Embora, nesse caso verídico, Moses fosse criança ainda e sequer adolescente, o que seria para mim muito mais adequado, porém é preciso considerar contexto: tal mudança de paradigma acerca de fases infantil e adulta só ocorreria sobretudo na segunda metade do século passado, em que a chamada adolescência “surge” pra valer como fase intermediária.)

Num livro de 2003, The Real Tadzio: Thomas Mann’s Death in Venice and the Boy Who Inspired It, Gilbert Adair registra a reação de Moes com relação ao texto de Mann e também à adaptação cinematográfica de Visconti, em 1972, que tornou-se “cult”, justapondo a vida do personagem real com a de seu gêmeo mítico: um homem imortalizado na Arte e esquecido pela História. Analogia reversa pode ser feita, finalmente, à vida degradante do ator Björn Andrésen, o outro Tadzio, das telas, traumatizado para sempre pela fama e pelo assédio, conforme mostra documentário sueco de 2021, O Garoto Mais Bonito do Mundo

O Brasil e a revolução por vir…

O Brasil nunca deixou de viver grandes mobilizações, protestos decisivos, insurreições populares e correlatos em sua história, porém as grandes viradas transformadoras (da colonização para a Independência, da monarquia para a República, das oligarquias da República Velha para a República Nova, da ditadura para a redemocratização etc.), ainda que com a participação de movimentos civis, se deram pelo alto, fenômeno que Gramsci (o mesmo ocorreu no percurso italiano) cunhou de “revolução passiva”, em que as classes dominantes é que, gladiando-se, são protagonistas e excluem as outras subalternas. Não foram poucos os países que, diferentemente, para “progredirem”, precisaram passar por revoluções e guerras civis muito mais violentas, integralmente nacionais e debaixo para cima, e isso se deu por causa da necessidade de combater e vencer as forças do atraso (por exemplo, o Ancien Régime na França, os escravistas do sul na Guerra da Secessão nos EUA, o czarismo na Rússia): o mundo nunca mais foi o mesmo…

Não padeço de “crise de inspiração”…

Não padeço de “crise de inspiração” – não me faltam ideias e muitas anotações despendidas em dezenas de blocos de notas… Sofro do horror mallarmaico da página em branco… Termo algo clínico e menos romântico: bloqueio. Li que Salman Rushdie, após o ataque que sofreu, está em dificuldade semelhante por causa de “estresse pós-traumático” (“Sento para escrever e nada acontece”, revelou): sob bloqueio há anos e tanta distração a prejudicar disciplina, não precisei de atentado nenhum a não ser o conflito teórico-prático mal resolvido entre realismo e modernismo… Preciso me apaixonar por alguém, e do vinho e do conhaque, porém prosa (diferentemente de poesia) requer difícil e contínua prática de costura depois, sempre depois do estado de inspiração arrefecido… A escritura é uma benção, mas começar a escrever é limitar infinitas possibilidades (exemplo imagético e concreto de infinitude: o triângulo matemático de Pascal, um triângulo lindo e infinito)… Não a balela de autoajuda motivacional, mas “O Artista Inconfessável” (João Cabral de Melo Neto) me serve de bom poema-lenitivo nessas horas!… Borges (só escrevia contos, e afirmou no prefácio de Ficciones que compor longos romances é um “desvario laborioso”) escreveu que só se publica um livro para se livrar dele: livro livra! Devo juntar todas as ideias num só livro, ou não escreverei. Medo, porém, de ser deixado em esgotamento e vaziez…

Os bolcheviaues só tomaram o Palácio de Inverno por…

Os bolcheviques só tomaram o Palácio de Inverno com a ajuda de oficiais militares fiéis a Lênin (e a Trótski, que já comandava o Exército Vermelho, urdido a partir de forças militares desgostosas do czarismo e com o governo provisório — por exemplo, o ex-czarista e então leninista Vladimir Antonov-Ovseyenko, que liderou os Guardas Vermelhos no dia fatídico), embora camponês e operário estivessem ali em peso… Maduro só não levou golpe recente de Guaidó, EUA e Europa porque o chavismo dominou as forças militares (aliás, o grande Chávez era militar), além de militância social organizada, e ele fez questão de mostrar pelas redes em vários vídeos que estavam armados dos pés à cabeça e às suas ordens… Fidel, o Che e outros triunfaram em Cuba ao fazer uma limpa teórica e material, de fora para dentro, no Exército contra a ditadura imperialista de Fulgêncio Batista… Allende morreu suicidado após acreditar nas instituições, tendo sido golpeado por Pinochet… No Brasil, as Forças Armadas tiveram um Prestes e sua Coluna, um Lamarca ensinando grupos de luta armada, um intelectual marxista feito Nelson Wenerck Sodré, mas limitados, porque foram expulsos, perseguidos, presos — houve cedo a implantação de um anticomunismo barato no militar brasileiro (que, historicamente, é um sujeito semianalfabeto), já com Vargas e a ala militar pró-nazismo, mas sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, em que a outra aula, ideologicamente controlada pelo complexo industrial-militar dos EUA e sua “Política da Boa Vizinhança”, tornou-se dominante, levando à capitulação e ao golpe empresarial-militar de 1964. Não houve, na redemocratização, interesse em profunda reforma militar por aqui. É tarefa urgente para a esquerda que queira realmente mudar o país estruturalmente. E é um desafio que continua a ser global, acaso como está a situação militar na Rússia conservadora?… E os núcleos nazistas na Alemanha, núcleos supremacistas nos EUA, resquícios das ditaduras militares nas forças de segurança deste continente etc. etc. etc.?…

É uma lástima que a extrema-direitalha tenha se apropriado do ímpeto revolucionário…

É uma lástima que a extrema-direitalha tenha se apropriado, com toda a espécie de deturpações, do ímpeto revolucionário comunista no período mesmo em que a esquerda agarrou-se na manipulação institucional liberal, por conta da derrocada ideológica do final do século passado com o fim do “socialismo real”. Lembrem-se da tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques, por exemplo, não sem a ajuda decisiva de generais fiéis a Lênin e que estavam desgostosos do czarismo e do governo transitório…

Os bloqueios não são uma iniciativa de caminhoneiros, mas de empresários bolsonarentos…

Os bloqueios dos derrotados em algumas avenidas e rodovias não são uma iniciativa de caminhoneiros. A arruaça golpista de extrema-direita foi organizada com antecedência por empresários bolsonarentos, obrigando capangas, empregados e terceirizados. É/seria apenas um primeiro passo: a intenção é estimular um golpe militar supostamente pedido pela população como se o covarde e isolado Bolsonaro — que só chegou até aqui por não ter sido punido lá atrás junto aos viúvos da ditadura — não tivesse nada com isso. O script farsesco segue 1964. Já que não possui mais apoio político, esta é a única alternativa, ainda que minguada, mas para pressionar conchavos ou pactos com o STF e/ou outros, que Bolsonaro tem para escapar da cadeia por tantos processos e crimes, agora que pela primeira vez não dispõe de foro privilegiado. Se (e somente se) os bloqueios continuarem por mais um dia, não podemos esperar tudo somente das instituições judiciais conservadoras e da polícia que prevarica – é preciso que militantes dos movimentos sociais de esquerda e trabalhadores das centrais sindicais (controladas sobretudo pelo PT) botem os poucos arruaceiros restantes pra correr, mostrando também a força popular do novo governo eleito de Lula.

Jair Bolsonaro, seus apoiadores e sua bíblia

Elogios ao ditador pedófilo Stroessner e ao ditador sanguinário Pinochet, exaltação ao torturador de mulheres Ustra, cópias de lemas do nazifascismo de Hitler e Mussolini…

Entre os apoiadores, os assassinos Guilherme de Pádua, goleiro Bruno, Flordelis, milicianos sicários… Um líder da Ku Klux Klan. Um pouco acima desse esgoto todo que não é de agora: pseudocantores sertanojos e jogadores que buscam proteção por suas corrupções, sonegações, estupros coletivos…

Na bíblia bolsonarenta, Jesus ceava com César e Herodes, crucificava a mando de Pôncio Pilatos e dos fanáticos ensandecidos, reverenciou de braços abertos os vendilhões do templo, transava escondido com as prostitutas, que depois ajudava a apedrejar publicamente, e apreciava combates sanguinolentos no Coliseu.

(Eu, que sou ateu, sei que, segundo o Livro do Apocalipse, o chamado Anticristo surge na própria igreja, não fora…)

O forasteiro Tarcísio de Freitas não pode ganhar; Fernando Haddad precisa vencer

Estou muito preocupado com o segundo turno para governador de estado aqui em SP. Não vejo, ainda, atuação vigorosa de amplos setores para o quadro eleitoral ser alterado, mas dá tempo de acordar. É de uma gravidade atroz imaginar a intelligentsia e as universidades paulistas ameaçadas de caírem nas mãos de bolsonarentos; classe trabalhadora, professores do estado, profissionais da Saúde, áreas culturais e institutos de pesquisa e ciência terem vidas e conquistas atacadas de forma sem precedentes; a Polícia Militar controlada ainda mais à extrema-direita; SP, RJ e RS serem oposição direta e desestabilizadora a um governo federal Lula (neste ponto, a eleição estadual tem imprescindível importância nacional), entre outros descalabros e horrores. Seriam anos de greves, repressão, incompetência, caos, desgastante resistência contra retrocessos e regressões. Considerando a tecnocracia tucana (a grande derrotada e (ir)responsável), é de uma piora enorme. O forasteiro Tarcísio de Freitas, que “perdeu” para brancos e nulos no primeiro turno, definitivamente não pode ganhar. Fernando Haddad tem de vencer, mas, começando o segundo turno atrás, precisará de uma estratégia extraordinária, até mesmo hercúlea, talvez de uma dose de populismo social, mais vontade organizada, outro tipo de atuação em massa nas redes e menos apatia habitual; já ganhou na capital, precisa conquistar votos no interior; sobretudo, a depender das pesquisas nos próximos dias e semanas, a candidatura do forasteiro deve ser inviabilizada de alguma forma.

Lukács critica o “efeito de distanciamento / estranhamento” em Brecht, em favor do teatro de Tchékhov e do próprio último Brecht

Já bastante se escreveu sobre o fecundo conflito interno no marxismo entre Lukács-Brecht — parte de uma controvérsia mais ampla entre os defensores do “realismo socialista” (isto é, o realismo burguês do século 19 com um novo conteúdo) e os partidários do “modernismo”, particularmente o expressionismo alemão e o cubismo —, mas tais textos se concentram na primeira fase de ambos, nas primeiras décadas do século 20, esquecendo-se ou sem saber do aprofundamento posterior.

O conflito amadureceu durante a Segunda Guerra Mundial e no pós-guerra. O influente filósofo Georg Lukács, que criticava o “caráter sectário” das primeiras levas de “peças didáticas” do seminal dramaturgo e poeta Bertolt Brecht (sendo, por sua vez, considerado por este, junto a seus colaboradores, “inimigos da produção […] eles próprios não querem produzir [mas] brincar de apparatchik e exercer controle sobre as pessoas”, conforme lemos em Bloch, Ernst, Georg Lukács, Bertholt Brecht, Walter Benjamin & Theodor Adorno, Aesthetics and Politics, 1977, p. 97), em seus anos finais elogia a obra brechtiana dos anos 1940, tendo até mesmo se encontrado pessoalmente com ele num café em Moscou durante a guerra, ao que o artista teórico do teatro épico-dialético recomendou amigavelmente que não poderiam se deixar levar por “uma infinidade de gente” que queria incitar um contra o outro (cf. Pensamento Vivido: Autobiografia em Diálogo, Instituto Lukács, 2017, págs. 120-122).

De qualquer forma, as divergências estéticas eram prementes. Não pretendo, aqui e agora, me posicionar, o que será feito em momento mais propício após reflexões e estudos em torno da minha própria obra e teoria-prática para este século 21. Um posicionamento dialético, em termos de Gramsci, requer que se critique, se transforme e se conserve a fim de se superar ambos os lados para uma nova cultura. Uma vez que há várias implicações para este tema, que demandariam maior tempo: por exemplo, o fato de que Brecht estava implicado na práxis artística constante, enquanto que Lukács, não, ao passo que foi o primeiro a criar uma estatura para uma teoria da “estética marxista”; a diferença de públicos para os diversos tipos de artes (e teatros) e a importância de se atingir todos os diferentes públicos, sob todas as formas, para nossos desejos de conscientização crítica e transformação estrutural, não sendo possíveis comparações e legislações muito fechadas; as etapas cronológicas e histórico-sociais das artes; a importância histórica específica do didatismo, que, tal como colocou Adorno (BRECHT, Bertolt, A Santa Joana dos Matadouros, Apêndice, trad. de Schwarz, Cosac & Naif, p. 206), “conduziu [Brecht] a suas inovações dramatúrgicas, que derrubaram a cena moribunda do teatro psicológico e de intriga” etc.

Neste primeiro momento, pretendo apenas expor algo pouco divulgado e pouco lido. Em sua Estética, o polêmico Lukács, em favor do teatro de Tchékov e do próprio último Brecht (“considerado poeta e dramaturgo”, segundo o filósofo), critica e procura refutar o “efeito de distanciamento/estranhamento” e as assertivas de seu primeiro programa teórico, conforme podemos ler no trecho que destaco abaixo (em tradução de Manuel Sacristán, Ediciones Grijalbo, S. A., Barcelona – México, D. F., 1967, págs. 189-194):

“[…] Como en todo intento de resolver con correcta proporcionalidad dialéctica las contradicciones fecundas y motoras de la estructura de la obra, también aquí se producen problemas histórico-sociales relativos al carácter favorable o desfavorable de las condiciones concretas. Esos problemas incluyen el básico de si una determinada personalidad poética es adecuada para una determinada conformación satisfactoria o problemática. También aquí, como muchas otras veces, tenemos que remitir a la parte histórico-materialista de la estética como lugar metodológico en el cual puede darse respuesta concreta a esas preguntas. Ahora nos limitaremos a aducir un caso típico que puede aclarar según aspectos —generales— nuevos el contradictorio principio general dominante en este contexto problemático. Nos referimos al discutido «efecto de extrañación» [Verfremdungseffektl] de Bertolt Brecht. Él lo define así: «Una reproducción extrañadora es aquella que permite reconocer el objeto, pero haciendo al mismo tiempo que aparezca como extraño».¹ Es claro sin más que con ese concepto Brecht apunta a lo mismo que hemos llamado aquí generalización. Aunque con una diferecia importante, o, por lo menos, supuestamente tal: que Brecht busca un teatro revolucionario, un teatro que, mediante la representación, mueva a los espectadores a una actividad revolucionaria. Desde ese punto de vista critica Brecht no sólo la actual escena, sino también toda la dramática del pasado: «El teatro tal como lo encontramos muestra la estructura de la sociedad (reproducida en la escena) no como influible por la sociedad (que está en la sala)».² Esta argumentación no nos parece demasiado convincente. Pues en muchos de los más grandes dramas de la literatura universal se muestran precisamente trasformaciones esenciales de la sociedad; así el paso del derecho matriarcal al patriarcal en Esquilo, el hundimiento del feudalismo medieval en la obra de Shakespeare, el de la sociedad burguesa en la de Chéjov y en la de Gorki, y en la de este último pisan incluso la escena las nuevas fuerzas sociales en vía de constitución. Pero incluso cuando las palabras de Brecht «Pues lo que no ha cambiado en mucho tiempo parece inmutable»³, dan la impresión inmediatamente de un acierto pleno, no es verdad que coincidan con la realidad de la producción dramática. ‘La Tempestad’, de Ostrovski, o la ‘María Magdalena’, de Hebbel, representan mundos que no cambiaron en mucho tiempo. Pero la excelente crítica de Dobroliubov muestra que el efecto revolucionario de la tragedia de Ostrovski se debe precisamente a esa circunstancia.⁴ Así pues, cuando Brecht dirige la frase últimamente citada contra el drama y el teatro anteriores a él y establece la consecuencia: «El teatro tiene que provocar el asombro en el público, y eso se consigue por luedio de un extrañamiento de lo sólito»⁵ está luchando contra molinos de viento: pues ya el teatro, sin «efecto de extrañación», ha llevado a su público en el pasado no sólo al «asombro», sino incluso a una profunda conmoción, mediante la conformación de las contradicciones de la situación social dada en cada caso. Un importante dramaturgo de un pasado que penetra directamente en la actualidad, Chéjov, muestra que la razón que alienta en el programa de Brecht puede realizarse sin «efecto de extrañación». Chéjov construye sus dramas precisamente sobre la base de la contraposición entre las intenciones subjetivas de los personajse y la orientación y la significación objetiva de éstas. Con eso se pone constantemente al espectador en la ambigua o escindida situación de tener que entender los sentimientos de los personajes y hasta simpatizar con ellos, mientras se ve simultáneamente obligado a vivir, con la misma intensidad al menos, la contraposición trágica, tragicómica o cómica entre aquellos sentimientos subjetivos y la realidad objetiva de la sociedad. Podría decirse que el drama entero es un «efecto de extrañación», pero que precisamente por eso es, en su modo de conformación, drama y no «efecto de extrañación».

“Si añadimos a esas observaciones que los últimos e importantes dramas de Brecht producen —contra su programa— conmociones «tradicionales» en el espectador, y que el «efecto de extrañación» es para ese efecto revolucionario un momento más perturbador e inhibidor que promotor, nos acercamos más a la fuente del error teorético de este considerable poeta y dramaturgo e iluminamos con más precisión el problema que estamos estudiando. Esa fuente de la doctrina del «efecto de extrañación» es, en efecto, la dura y unilateral polémica de Brecht contra la «teoría de la empatia», polémica que llega a ocultar los hechos históricos y sus conexiones. Ya al hablar de la ornamentística hemos encontrado una violenta oposición así por parte de Worringer. Es claro que las dos polémicas no pueden ponerse al mismo nivel: Worringer combate la «teoría de la empatia» desde la derecha, en nombre de un irracionalismo reaccionario; Brecht lo hace desde la izquierda, en el nombre de la revolución socialista. Worringer lucha en favor de la muerte y la inhumanidad; Brecht por la vida y la humanidad. Por eso la práctica artística madura de este poeta y su resultante visión artística inmediata tienen que entrar en contraposición cada vez más abierta con esa estrecha antinomia, fruto de una pasajera moda intelectual. Así, por ejemplo, considera Brecht «oportunista» la técnica de su Galileo; y al hablar así da precisamente con el principio aquí decisivo, puesto que concibe esa nueva pieza como un contraejemplo de las anteriores parábolas: «Allí se encarnan ideas, en éstas se despoja a una materia de determinadas ideas». Con ese reconocimiento se abandona en el fondo toda la teoría de la «pieza didáctica» y se coloca en primer plano el «oportunismo» de la nueva pieza, la conformación auténticamente dramática (como la de las grandes obras tardías), por una operación que teoréticamente puede ser inconsecuente, pero que desde el punto de vista dramático-poético no puede ser más fecunda. Honra al Brecht teórico el que desde esa situación haya tropezado con la problemática profunda de su teoría del teatro épico: «Veo claramente —escribe en su diario en marzo de 1941— que hay que liberarse del planteamiento de duelo “aquí la Razón, aquí la emoción”». El efecto de extrañación va a dejar a partir de entonces de obstaculizar la emoción, y va a dedicarse sobre todo a desencadenar los sentimientos adecuados.⁶ Y Brecht no se da cuenta de que con eso no ha hecho ninguna concesión a la doctrina de la empatia, sino que la ha quitado definitivamente de en medio.

“Pero, pese a la diferencia, hay en Worringer y Brecht un error común: la confusión de la «empatia» con la teoría y la práctica de los grandes períodos realistas del arte europeo; ambos pasan por alto que la «empatia» es una teoría artística específicament pequeño-burguesa, que expresa sin duda algunos momentos de la concepción del mundo del arte que le es contemporáneo, pero que por su superficialidad pasa por alto incluso los logros artísticos más importantes de su mismo período.⁷ Sin poder entrar aquí con detalle en la teoría, observemos sólo que por obra de ella se produce ese comportamiento vago ante las obras de arte, ajeno a toda actividad, que Brecht —con acertada sensibilidad— desprecia y odia tan profundamente; pero, por otra parte, que el gran arte del pasado, como reflejo de la realidad, es precisamente la contraposición más estricta a la «empatia». Podemos entrar «empatéticamente» en algo cuya esencia objetiva nos sea totalmente desconocida o indiferente, pero ante la realidad manifiesta o sus refiguraciones adecuadas no podemos sino ser dirigidos a una vivencia posterior en la cual se incluye la consciencia de que no se trata d nuestra subjetividad, sino de un «mundo» independiente de ella. Lo específico de la vivencia «tua res agitur» se encuentra precisamente en esa dualidad que distingue la realidad vivenciada de la «empatia», de la introyección. La «impaciencia» de una locomotora puede ser una «empatia», pero nunca lo será la vivencia de Fausto. Al sucumbir Brecht a ese moderno prejuicio —aunque en el sentido de una apasionada y unilateral polémica contra él— se produce la confusionaria concepción del «efecto de extrañación». Esto tiene, por una parte, como consecuencia el que se produzca para la necesaria generalización el peligro de hacerse demasiado conceptual, de pasar del sistema de señalización 1′ al 2; y, por otra parte, se aspira a introducir en la estructura de la obra misma lo que hemos estudiado como «Después» de la vivencia estético-receptiva; y esta consecuencia apunta en la misma dirección que la primera.

“Creemos que el descubrimiento de ese error teorético habrá contribuido algo a la clarificación de nuestro presente problema de la generalización poética, especialmente si tenemos presente que los importantes efectos poético-dramáticos del último Brecht no se han conseguido desde esa actitud suya teórica, sino que han nacido en discrepancia con ella. La generalización poética no tiende a convertir el conjunto singular conformado en un mero «caso» subsumible bajo una teoría o una tesis, sino que, por el contrario, tiene «meramente» la intención de hacer visibles y comprensibles,explícitas y actuales las determinaciones generales presentes (por inhenfia) en la singularidad en cuestión. Dicho de otro modo: la intención es mostrar cómo una tal singularidad se articula manifiestamente en la tipicidad a la que representa para la evolución de la humanidad en sí. Así se aclara mucho la doble y contradictoria determinación de esa situación. Ante todo, no puede haber tipicidad alguna con una existencia independiente de sus singulares modos de manifestación. En este punto se aplica directamente la crítica aristotélica a la doctrina platónica de las ideas. Pero, además, el tipo es cosa distinta y mayor que la mera suma de los fenómenos singulares que le corresponden. Al constituir la historia de la humanidad —mediante sus conflictos, sus vicisitudes trágicas, tragicómicas y cómicas— determinados modos de comportamiento típicos y típicos modos de reacción, la orientación a lo típico conserva ciertos momentos duraderos, pero enriqueciéndolos y concretándolos sin cesar con la riqueza infinita del mundo mismo, con el verdadero material de la realización. Por eso la elevación de lo singular a lo típico no es nunca una eliminación de su singularidad; por el contrario, esta singularidad destaca aún más sensible y plásticamente cuando llega claramente a expresión la tipicidad de las acciones y los sufrimientos, en la consciencia del individuo o en la lógica de la situación. Por último, esaa lo típico no es nunca un acto aislado y solo, sino siempre el movimiento de un conjunto concreto. Esto tiene como consecuencia para la poesía el que todo movimiento hacia la tipicidad —por ejemplo, en la forma de un drama o de una novela— se desarrolle siempre fuera de la rarificada y montañosa atmósfera de la abstracción, y dentro de un concreto complejo de hombres concretos y situaciones concretas. Como es este conjunto como totalidad el que expresa la propia generalización última, la incorporación de la totalidad conformada en la autoconsciencia de la humanidad, la elevación de una figura a la consciencia de su destino tiene que poseer, desde el punto de vista de la generalización, algún elemento relativo, ya con objeto de no romper este sentido último de la poesía, sino reforzarlo, por el contrario, de modo adecuado como sonido de un acorde; por eso mismo esa operación está indisolublemente ligada a la singularidad única de la figura de que se trate, de la situación concreta.

“Piénsese, por ejemplo, en las consideraciones que hace Ótelo sobre sí mismo cuando Yago ha despertado ya en él la duda sobre la fidelidad de Desdémona […]”

1. BERTOLT BRECHT, Kleines Organon fur das Theater [Organon breve para el teatro], § 42.
2.
Ibid., § 33.
3.
Ibid., § 44.
4. DOBROLIUBOV,
Ausgewdhlte phitosophische Schriften [Escritos filosóficos escogidos], ed. alemana, Moscú 1949, págs. 594 ss.
5. BRECHT,
loc. cit., § 44.
6. Citado según el artículo de Ernst Schumacher, «Brechts Galilei: Form und Einfiihlung» [El Galileo de Brecht: Forma y empatia], en
Sinn und Form 1960, Heft [Número] IV, págs. 510 s., 522 s.
7. Al estudiar el verdadero fundador teorético de esta doctrina, que es F. Th. Vischer (el término «empatia» se debe a su hijo, Robert Víscher), he expuesto el contenido esencial de la misma. Lo filosóficamente esencial de la empatia se presenta resumido en el texto de Vischer del modo siguiente: «la intuición ideal
mira y proyecta en el objeto lo que no está en él». Cfr. Beitrage zur Geschichte der Asthetik [trad, castellana: Aportaciones a la historia de la estética, México, Grijalbo, 1965], cit., págs. 263 s.

Acabei de ver o presidente de Portugal na Livraria Cultura em São Paulo…

Acabo de ver o Presidente de Portugal atrás de mim, aqui na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, Avenida Paulista. Senhor aparentemente simples e com alguma simpatia, tirou fotos com quem lhe pedia respeitosamente, feito uma celebridade “low profile”. Parece que veio para a Bienal do Livro de SP e que hoje almoçou com Lula, enquanto o presidemente cancelou encontro com ele.

Quem terá tido a ideia de inscrever o inovador “Comigo me Desavim”, de Sá de Miranda, e outros poemas na estação Vila Madalena?…

Quem terá tido a ideia de inscrever o inovador poema “Comigo me Desavim”, de Sá de Miranda, sem contar outros de poetas concretistas, nas paredes da estação de metrô Vila Madalena, em São Paulo, há anos?!… Esta(s) pessoa(s) motiva(m) a existência citadina.

Minha mãe, mesmo com câncer terminal, continua…

Sinto que minha mãe só tem dias ou poucas semanas de vida: mesmo com a memória espantosamente intacta, cada vez mais precisa fazer esforço para falar, come praticamente nada do hospital, dificuldade de mastigar, sem apetite, olhos a maior parte do tempo vidrados, definhando. Câncer terminal. As duas únicas formas atuais mais fortes de combater o câncer, quimio (ela fez 4 sessões antes da internação) e radioterapia, só lhe trariam mais reações sem resultados de reversão do quadro; enquanto isso, os tumores continuam marchando, espalhando-se e não param. Estamos lhe dando conforto, cuidando, realizando possíveis desejos, etc.
 
Alivia lembrar que ela sempre me dizia que preferia morrer a ficar dependente numa cama… Também é inacreditável a sua força de resistência e lucidez – o oncologista achou semana retrasada que ela viria logo a óbito, e se surpreendeu ela ter durado muito mais; outra oncologista disse que, no estágio em que ela está sob cuidados paliativos, não é comum manter a memória que ela mantém, sobre situações e coisas recentes, depois desse tempo todo e ainda responder normalmente às pessoas. Classificou isso como “milagre” (palavra rara na fria e realista oncologia). Há quem diga que são as orações e correntes que centenas de pessoas mandam. Atribuo isso à sua força de vontade de querer retomar sua rotina, levantar da cama, ir para casa, não se entregar. Informo a todos que, embora eu chore e preveja sentir incomensurável falta da minha mamãe (por exemplo, sou novo e fico pensando quanta coisa de valor farei e ela não verá ou não poderei compartilhar com ela), sempre tive conversas muito francas com ela sobre a vida e a morte, e no leito confirmei que ela quer ser cremada. Tudo isso me prepara bastante neste processo de luto, assim como o espiritualismo dela mais o meu materialismo.
 
Além do fator genético (pai que teve tuberculose), os mais próximos sabem que ela era tabagista de marca maior desde os 14 anos de idade (hoje tem 61), fumava muito (só parou em dezembro, determinada, e por insistência minha ao vê-la indo fumar quando tinha crises de tosse — este foi o primeiro sintoma significativo, que ela negligenciou, mesmo com meus pedidos para ir ver do que se tratava a tosse anormal, mas também por conta das dificuldades de atendimento durante a pandemia, depois o emagrecimento absurdo, tudo isso em questão de meses ou um ano –, e colei até o último adesivo de tratamento de nicotina nela, já internada, dando-lhe os parabéns).
 
Considero importante dizer que, se antes eu achava exagerada a (recente) campanha de conscientização dos malefícios do cigarro, depois de ver o que as toxinas fizeram com minha mãe, vibro que se intensifique, sem ares de moralismo ou de culpabilidade, mas por questão de saúde pública, sem deixar de notar que há muita hipocrisia com relação ao álcool, muito mais aceito, porém tão ou mais destrutivo a si e aos outros, se em excesso e vício.
 
Aos fumantes, vale a máxima “é melhor prevenir do que remediar”: que não só parem ou diminuem, tratando a ansiedade e outros motivos subjacentes ao vício ou hábito, mas principalmente que façam exames periódicos, sobretudo de pulmão, e espero que a oncologia, no geral, avance nas próximas décadas a ponto de reverter quadros avançados dessa mortífera doença, cada vez mais comum no mundo todo e em todas as classes sociais, que começa silenciosa e, quando descoberta, já encontra-se implacável e veloz.

Cartas entre Mário de Andrade e Antônio Cândido sobre ‘Café’: arte e engajamento político

Abaixo, carta de Antonio Candido (à época, jovem crítico em formação), a Mário de Andrade — um dos representantes máximos do modernismo brasileiro e da Semana de ’22, evento ponto-de-virada que neste 2022 completa 100 anos, grande poeta, romancista, contista, músico e pesquisador cultural — sobre seu poema dramático Café, conforme exposta na “Ocupação Antonio Candido”, realizada pelo Itaú Cultural em São Paulo, e aqui transcrita:

Poços de Caldas, 16 de janeiro de 1943.

Muito obrigado, Mário de Andrade, pelo trabalho que você teve me enviando as suas obras… escandalosamente cantadas por mim através da minha vítima nestas circunstâncias: Gilda! Muito obrigado pela Revista Nova e, sobretudo, muitíssimo obrigado pelo que você escreveu no Ensaio.

Como estou com a mão na massa, aproveito para falar de outro assunto. Antes de mais nada: Eu e Sainte-Beuve não nos damos bem com o teatro… Este aviso é uma precaução necessária, porque eu lhe vou falar alguma coisa sobre o Café. No seu drama (?), portanto, sou capaz de apreender só os aspectos não-teatrais. Não digo não-dramáticos – porque abunda nele dramático não teatral, e, este, acho que percebo. O que eu disser, naturalmente que não terá grande interesse para você; tem para mim, porque a audição do Café foi, de fato, uma coisa que muito me deu que sentir e pensar.

Para começo, acho que seu empreendimento resultou na maior obra que jamais viu ou sonhou ver a poesia dramática no Brasil. Aliás, isso não é dizer muito, concordo… Mas eu acho, sinceramente, que ela é uma grande obra no plano universal.

Deixando de parte o lado performance, de reussite formal, quero dizer a v. a razão mestra que me faz atribuir um excepcional valor ao seu drama: há certos aspectos do Brasil que v. é o primeiro a fixar e a universalizar – isto é, dar a eles o estado de arte, quer por via da sátira-poesia, quer por meio do patético. Ora, isto garante o caráter de superioridade artística que eu vejo no Café. Ao mesmo tempo, esta superioridade, no caso, só é realmente possível porque v. tem um seríssimo fundamento ético para a sua obra. V. elevou à categoria de arte largos e dos mais profundos aspectos do Brasil; ao mesmo tempo, a realidade humana e, lâchons le mot, social desses aspectos, garante a eles uma universalidade que dá à sua obra direito de permanência. O caráter pitoresco, que é tão frequente em boa parte dos seus escritos, está no seu dele lugar, desaparece aqui, onde poderia ser comprometedor. Pedaços como o do Truco servem para dar uma nota de cor, localizada no conjunto – o que areja e dá encanto.

Pela peça afora v. tem certas trouvailles que são de uma eficiência extraordinária. É o caso, por exemplo, do “– Eu sou aquela que disse.” Como eu comentava outro dia com a Gilda, esta apóstrofe (??) recorrente, traz do fundo dos tempos um obscuro tom bíblico, uma certa grandeza profética que muito serve para elevar as palavras da mulher.

E há coisas absolutamente novidades – como o “Cânone dos Assustados”, às quais, também você deu estado de arte.

Por outro lado, há um senão no Café. São certos pedaços em que há um certo demagogismo (ausente, aliás, do espírito da peça) – não sei se voulu –, como na cena dos fazendeiros e dos empregados. Esta cena não peca pela grandiloquência do discurso dos comissários, como quer a Gilda. Muito pelo contrário, acho este um achado, uma valorização estética de certo tipo ultra-brasileiro de retórica e de dialética. Peca, acho eu, pelo lado das apóstrofes dos camaradas, que soltam aqui e acolá, umas tiradas que me deixaram meio contrafeito (registro a minha reação por não saber a razão exata dela).

Em suma, e deixando de lado a extraordinária beleza formal para só cuidar do significado, parece-me uma grande obra, porque é, de fato, um momento social, com os seus problemas humanos, elevado à categoria definitiva da arte – e não esta (“nunca jamais!”…) servindo de apoio à expressão de tal momento.

Neste ponto, deixe-me dizer, Mário de Andrade, como eu acho grande a sua evolução em face dos problemas sociais. V. fez o caminho inverso do habitual. Na primeira mocidade, a gente arde por eles em entusiasmos generosos… e platônicos – para ir se aquietando, com a idade, num individualismo comodista, na grata contemplação do próprio umbigo. V. partiu do individualismo estético para, na idade em que normalmente se fica no adagio pianissimo da comodidade, entrar generosa e profundamente na dor que provocam aqueles problemas – como mostra este admirável Café, e como já vinha mostrando há tempo muito escrito seu.

O título sucinto, duma obra escrita “pra povo” (segundo o próprio autor na carta mais logo abaixo), não deixa dúvidas: daquele grão-elemento que tanta riqueza garantiu à elite paulista, o cultivo pelas mãos do trabalhador fornece cenários de lutas entre as classes, espelhados literariamente por Mário de Andrade, homem de posição socialista, marxista, que realmente entrou “generosa e profundamente na dor que provocam aqueles problemas” sociais. Mário preocupava-se com o valor social de um “teatro cantado” e privilegia massas corais como protagonistas do enredo. É, hoje, uma obra de tempo demarcado historicamente no Brasil. Arrisco a dizer que faz par — cada um a seu modo — ao poema dramático O Santeiro do Mangue (1950), de seu rival-amigo Oswald de Andrade, ex-burguês e comunista… Recomendo que se adquira Café em livro físico, mas a Universidade Federal de Santa Catarina, em excelente página virtual de textos literários em meio eletrônico, a transcreve tendo as Poesias Completas de Mário como edição de referência: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=43992.

Voltemos à correspondência… Pesquisei a resposta epistolar de Mário de Andrade a Antonio Candido a partir de pista deixada pelo próprio remetente no áudio que segue, que constitui depoimento da maior importância (proferido no Centro Cultural São Paulo em agosto de 1992 e pertencente ao Acervo IEB – Instituto de Estudos Brasileiros/USP):

Para quem, como eu, surpreendeu-se com a voz heráldica e empostada de um modernista kamikaze e tão coloquial feito Oswald, lendo vários de seus poemas (neste CD lançado por Augusto de Campos), e também para quem, como eu, alegrou-se quando gravação fonográfica reproduziu pela primeira vez a voz de Mário de Andrade a nós, cantando canções populares coletadas nas ruas ou em pesquisa, (não posso deixar de também recordar o deslumbramento coletivo que é a entrevista raríssima em vídeo que divulguei de Guimarães Rosa,) é pena não termos registro daquela primeira leitura de Café, já que a sua interpretação tanto impressionou o jovem Antonio Candido a ponto deste não sentir o mesmo impacto ao reler o texto…

Conforme conta no depoimento acima, o autor lhe respondeu em carta que fora publicada, anos depois, pelo editor cultural Décio de Almeida Prado no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo em 27 de fevereiro de 1960. (Tratava-se, pela proximidade da data de morte, de edição especial, com vários textos em homenagem a Mario e sua obra. Eis a exata página do jornal no acervo que condiz com a carta: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19600227-26022-nac-0038-lit-4-not/busca/Ant%C3%B4nio+C%C3%A2ndido+Mario.)

Carta de Mário de Andrade sobre <<Café>> (18/01/1943)

Página do Suplemento Literário de 27 de fevereiro de 1960 a publicar a carta, até então inédita, de Mário de Andrade sobre Café. Registro de tela a partir do acervo do jornal, após pesquisa. Link direto: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19600227-26022-nac-0038-lit-4-not/busca/Ant%C3%B4nio+C%C3%A2ndido+Mario

Por fim, transcrevo, ipsis litteris, o documento publicado:

No começo de janeiro de 1943, Mario de Andrade reuniu em sua casa alguns amigos para a primeira leitura do Café, poema dramatico a ser musicado por Francisco Mignone. Estavam presentes Oneida e Silvio Alvarenga, Gilda e Antônio Cândido de Mello e Souza, Luis Saia e o amigo argentino Norberto Frontini. Daí a dias, Antônio Cândido escreveu a Mario, comentando a obra. O grande escritor respondeu com a seguinte carta, até hoje inédita, que constitui um documento de intensa lucidez, dos mais importantes que um artista já escreveu no Brasil sobre os próprios métodos de trabalho e sobre o processo de criação. Vai publicada na ortografia do manuscrito e quase na íntegra, suprimindo-se cerca de dez linhas de carater pessoal, sem importancia para o caso. Deixaram-se, todavia, as referencias individuais cuja supressão implicaria em afetar a integridade expressiva.

“Quando vocês saíram, fiquei numa tentação danada de repegar logo no ‘Café” e preparar desde já uma qualquer ”redação definitiva” que eu pudesse passar a vocês. Mas não pode ser assim. O que está feito, embora reconhecendo que em muitas partes principalmente do poema, eu ”sinta” definitivo: é apenas uma redação para governo e trabalho do compositor. Certamente ainda não é a obra, vaidosamente só minha, que eu publicarei um dia, sem musica, para os que me queiram ler.

Aliás esta é uma das tragedias deste ”caso”. Há uma ”vaidade” no ‘Café’ que até chega a me repugnar e de que talvez eu seja castigado. É que se tratando de um libreto apenas, eu não devia ter dado aos meus textos o excesso de cuidado artistico que dei Eles se tornaram muito independentes, apesar das mil e uma intenções musicais a que pude confortavelmente me sujeitar, por saber musica o meu bocado. Quer ver um caso muito típico? É o Canone das Assustadas. Não há duvida nenhuma que eu o fiz com pura intenção musical, sujeitando-o a cortes ritmicos tais que obrigam a entrada canonica das três vozes corais femininas, consecutivamente cantando a mesma melodia. Mas o diabo é que, meu Deus! eu sei musica! De maneira que em vez de eu fornecer um texto qualquer, uma pobre quadrinha em redondilhas, de que um compositor inventasse de sopetão a idéia polifonica de um canone, porque a melodia dele, só dele, se prestava a isso, eu usurpei o valor exclusivamente musical do canone, a sua expressividade psicologica e pus isso no meu texto! O texto é que ficou canonico! No texto é que as palavras se assustam, montam umas sobre as outras, correm ofegantes. E a conclusão deploravel que sou obrigado honestamente a reconhecer é que em vez de eu auxiliar o compositor como devia, eu roubei ele. Nada implica mais que o compositor possa tirar um canone bom do meu texto. Pelo contrario; o mais provavel é que o canone musical esteja definitivamente prejudicado. É uma coisa por demais sabida que não são os textos milhores que provocam as milhores musicas. Principalmente em musica teatral, cuja audibilidade textual é muito incorreta. Mas o pior não é isto. É eu ter provavelmente sugado a musicalidade da musica, a pondo no meu texto.

Foi o meu pecado de vaidade. Completada a concepção da obra teatral, lhe tendo imaginado a marcação quase completa do movimento cenico, me propus honestamente a escrever textos sem grandes pretensões literarias, que apenas firmassem claro as idéias geratrizes e… didaticas. Principiei assim mas logo foi impossível continuar. Eu creio que V. já sabe: a obra-de-arte esteticamente destratada sempre me repugnou até a abjeção. Mandei musica e musico verem se eu estava na esquina e tratei exclusivamente de mim, da ”minha” obra.

Aliás ainda forçou esta interferencia da vaidade justamente eu ter esbarrado nessa danada cena da discussão entre donos e colonos a que V. e Gilda fazem reservas mais fortes e eu acho também a mais defeituosa de todas. Exatamente: a que causa mais malestar na leitura.

Esta cena era primitivamente a que abria a representação. Talvez até fôsse preferível eu não contar este ”segredo” meu, de artista. repare que ficava muito mais logico, muito mais natural como exposição do assunto, a obra principiar com a cena do cafezal, terminando o ato com a cena do armazém do cais. Mas é que também o segundo ato principiava com o Exodo e acabava com o Camara-Ballet, erro evidentissimo por dois fatos. Terminar logo o segundo ato, com a comicidade gozada do Camara-Ballet era prejudicar a validade moral do espetaculo. O espectador saía divertido por demais, com muita vontade de se rir com os conhecidos e convidar a gente pra beber um chopinho nos Franciscanos desse mundo. Ora isso eu não queria. Teatro é fundamentalmente e essencialmente povo, e si um de nós, ressequidos de cultura e erudição, é mais ou menos refratario a essa funcionalidade educativa do teatro, eu não queria e não quero esquecer que fiz uma obra voluntariosamente popular. Pra povo. Pouco importando mesmo a possível perfeição estetica dos versos. Ora transportando o ”Exodo” de efeito visual e musical creio que muito dramatico, para o fim do ato, o efeito moral sobre o povo era de abtimento, premonitorio de não-conformismos possiveis. Diante desses dois erros: o defeito moral da comicidade do Camara-Ballet ser desmoralizador de um publico geral e o defeito estetico dele prejudicar a gradativa intensificação dramatica do assunto, mudei as duas cenas de lugar.

Logo surgiu a modulação ritmica: urbano = Camara-Ballet -> rural = Exodo -> urbano = a revolução do terceiro ato. E me senti obrigado a obedecer a ela também no primeiro ato, lhe mudando as cenas de lugar:

E agora também a gradação do assunto prepara milhor a aparição da farsa do Camara-Ballet, que, força é reconhecer, é um bocado estrompante. Nesta distribuição timica do assunto a coisa milhora porque na primeira cena os estivadores estão à espera de noticias de providencias, que os jornais devem trazer. Já na segunda cena os comissarios falam decisoriamente que o governo prometou tomar providencias pelas suas camaras. E então o segundo ato abre sem muito forcejamento do assunto, denunciando o que são essas camaras.

Mas, voltando a essa terrivel cena da discussão. Era a primeira da peça, então, e como eu não tinha ainda pretensão de fazer poemas, porém textos para musicar, não havia motivo para esperar a chegada da ”inspiração”, nem obedecer a esta por onde escolhesse principiar. Fui escrever e parei horrorizado. Os donos aparecem no momento em que o colono velho, de desanimo, dá um ponta-pé no cafeeiro. A frase dos donos, ”’naturalistamente” seria qualquer coisa parecida com:

– Pois vocês não sabem que é proibido maltratar as arvores!

Imagina só uma frase dessas, cantada, o ridiculo que fica! O canto, por isso mesmo que anti-naturalistico, tem suas exigencias textuais. O meu engano é que eu imaginara falado o meu texto, quando ele tinha que ser cantado. E o drama, agora o ”meu” drama principiou: eu tinha que achar o ”tom” dos meus textos. Foi um deus-nos-acuda e uns quinze dias de uma indecisão feroz. Procurei me inspirar na tragedia grega, reli textos, nada. Shakespeare e nada. As danças dramaticas folcloricas colhidas por mim, nada. Até que o simples acaso de um pouco antes ter relido a tradução de Ossian feita lindamente por Otabiano, me lembrou os bardos celtas. Mas os legítimos, não Ossian. E foi o deslumbramento. Nem se pensava mais na discussão. Chegara tipicamente, no mais romantico sentido, a Inspiração! Ora uma passagem, ora um poema, sem nexo, sem ordem, sem conexão. Às vezes, nem podia terminar a leitura de um poema, deixava o livro para escrever. Me inspirei, plagiei deslavadamente, anatolefrancemente. Um poema de invocação aos porcos me deu a invocação ao ”grão pequenino do café”. Em quatro ou cinco dias tinha o poema todo escrito, com exceção da ”Endeixa da Mãe”, que não havia meios de achar.

Na verdade, eu ainda não achara o ”meu” tom. A coisa estava ainda muito grandiloquentemente bardica, os poemas eram bastante ruins a meu ver. E disso tudo pouca coisa ficou. Terá ficado um substrato mais que a realidade dos poemas — e ninguém nunca jamais se lembraria dos bardos celtas e dos meus plagios, se eu não o confessasse. Mas é que hoje ando assustadamente apaixonado pelos misterios da criação artística pra não confessar lealmente estas coisas, como já fiz, a pessoas varias. Eu devo o ”meu” Café aos bardos celtas.

Mas então já me viera o desejo maliciento de, na impersonalidade geral do assunto, celebrar a minha cidade e a minha região do café. E intercalei a evocação no poema do ”Exodo”. Achara ”meu” tom afinal. É engraçado que todos os outros poemas diferem sensivelmente desse por certos detalhes sentimentais de fatura. Quase tudo, ou tudo, é de uma dureza quase rispida de fatura, uma ausencia enorme de adjetivos qualificadores, ao passo que a evocação de São Paulo se escarrapacha em mil e um qualificativos sentimentais. Mas tudo derivou dele.

E só então tive que preencher a lacuna do poema: a cena da discussão. É o unico dialogo de toda a obra, não consegui lhe dar valor poematico. Aqui entra a musica com o seu joguinho. Você repare: em todos os dialogos das tragédias em verso faladas, desque o autor é obrigado a frases curtas, de conversa explicativa, sem tiradas, o poeta, por maior que seja, perde o valor poematico. É nas ”tiradas”, como sistematicamente em Shakespeare, nas frases mais longas que ele consegue reverter ao valor poematico ao clima, não exatamente de ”poesia”, de ”lirismo”, mas exatamente poematico. E com raras exceções, a altitude descamba.

Consolei-me com isso e acabei deixando a discussão no sensível desvalor em que está. Tenho outro consolo mais. Talvez que, posta em musica, seja a mais ”vivente”, vivificante das cenas, pela variedade de efeitos musicais, contrastes de timbres, processos varios de tratar polifonicamente o coral, riqueza de movimentos diferentes que colecionei aí. Porém, nada impede. Também estou convencido que é a parte mais fraca do meu texto. Mas também não concordo com Gilda: a demagogia dos comissarios é toda construída ”folcloricamente” com frases feitas da demagogia nacional e expressamente feita pra tornar abjeta a falação e, por consequencia, o grupo. A sua objeção me parece muito mais valida. Algumas frases já principiam me desagradando francamente e se destacando nitido da inferioridade do conjunto como indignas até dele. Já estou certo que muitas delas vou modificar e outras tirar.

Mas agora, pra acabar, volto ao principio: O ”Café” antes de mais nada o que precisa agora é descansar, como o legitimo que dizem mais concentrado depois de dormir um ano na saca. Trabalhei três meses, de iluminações sublimes e desesperos impiedosos nele, de outubro a dezembro. Cheguei a tresler totalmente, totalmente desgostoso de mim e desesperado da obra, sem mais capacidade nenhuma de ver. Não era mais essa insatisfação fatal e afinal das contas honrosa que todo artista tem quando dá por terminada a sua obra. E ele termina, não porque a obra não possa ser melhor, mas porque ela não pode fazer melhor. Todas as obras de arte, meu Deus! são obras em que o artista fracassou.

Mas o meu caso é que eu não tinha mais opinião perduravel dois segundos, nem nenhuma garantia de mim. Por isso é que fiz aquela leitura com amigos de vario espirito que escolhi, ( ) Agora eu sei por vocês que a obra poderá viver sozinha, livre de mim, por ai. Agora ela precisa descansar. Nestes cinco, seis meses, depois que a tiver traido bastante noutros amores, então poderei saborear melhor o gosto dela” (S. Paulo, 18-1-43).

Anotação sobre o momento atual do mundo… (ação militar russa na Ucrânia)

Interesses de classes não comportam maniqueísmos… E a sobrevivência é o único valor em situações-limite, sobretudo as causadas pela indústria bélica capitalista a levar sofrimento e mortes aos povos…

A Europa Ocidental — incluindo seus partidos de esquerda — anunciam sanções, bloqueios e até expropriações de oligarcas russos frente à agressão russa à Ucrânia; por que não fazem o mesmo com magnatas dos EUA quando este país invade e agride tantos outros em busca de petróleo e desestabilização geral? É a hipocrisia. Porque europeus — que gladiam entre si há milênios –, sejam de esquerda ou de direita, temem ser pegos no conflito, que se avizinha, enquanto que os outros casos, tão terríveis e mais, ocorrem longe de suas zonas hegemônicas de conforto, no Oriente Médio e alhures, então pouco lhes importa… No caso dos EUA, nem é preciso pensar muito acerca do que mantém sua sociedade sob o complexo industrial-militar.

(Ps.: Um dia após eu escrever isto, vejo pelas redes este vídeo de compilação chocante que confirmou minha afirmação: não faltaram “jornalistas” europeus e dos EUA a dizer pelas TVs, com racismo escancarado, que essa guerra lhes impactava por não se tratar de Síria ou Afganistão, mas de país “europeu”, “civilizado”, com civis fugindo em carros iguais aos deles e de “olhos azuis” morrendo, etc.)

Alemanha (ali bem perto), França, Holanda resolverem ajudar militarmente a fraca Ucrânia, que tenta ingressar na União Europeia, cristaliza esse quadro. Conforme os jornais noticiam, o governo da Ucrânia, num ato de insanidade, empurra civis contra o Exército daqueles cujos antepassados um dia já derrotaram Napoleão e Hitler, armando e incentivando a preparem coquetéis molotov (!), proibindo a saída de homens entre 18 e 60 anos, e seu presidente, um ex-comediante antipolítico que fez vídeo nada engraçado antes das eleições fuzilando parlamentares, falhada, até agora, a concessão à OTAN, mente pelas redes em tentativa de encorajar incautos, quando é óbvio que ou está de malas feitas ou próximo a ceder aos russos…

Mas a problemática se acentua para nós.

Entendo nossa específica posição latino-americana de torcida frente a qualquer inimigo do hegemonismo dominador de EUA e Europa (e à OTAN, organização de métodos militares terroristas), que tanto nos tolheram (para dizer o mínimo) historicamente, um adversário que seja capaz de quebrar com eles, golpeá-los pra valer e, assim, oxigênio, permitir que façamos surgir sangue novo no jogo de xadrez geopolítico multipolar.

O fato, pena, é que uma simples pesquisa comprova que o partido de Putin é o Rússia Unida, uma aglomeração de oligarcas, “raposas” grandes e também do tipo “pega-tudo”, junto a outras coalizões de direita e até de extrema-direita. Partidos socialistas e comunistas da Rússia atual, majoritariamente compostos pela juventude, porém pequenos e fragmentados desde o fim da União Soviética (cujo escalão final era composto por idosos em descompasso com movimentos sociais), tentam protestar contra o que eles próprios chamam de ditadura (palavra neutra e complexa no marxismo, aliás), e as declarações públicas desses grupos de esquerda atestam em que lado estão: na oposição a Putin. (Paralelamente aos liberais pró-Ocidente, assinala-se, estando estes em maior número e com mais dinheiro…)

Não é à toa que, em longo discurso sobre a problemática situação atual, Putin, sempre de cara excessivamente sóbria e anestesiada, responsabilizou veementemente Lênin e outros comunistas soviéticos do passado por terem defendido criar uma Ucrânia separada, assim como outras regiões historicamente russas. (É certo que aquilo acontecia quando não havia ainda a OTAN, que está tentando cercar e dominar tudo, sendo esta a única justificativa plausível para sua decisão bélica… Lênin, por exemplo, não viveu para testemunhar o período do pós-segunda guerra mundial em que os EUA assumem de vez o que ele mostrara em sua teoria do imperialismo; até então, era a burguesia da Europa que desempenhava tal papel de maneira dominante.)

De qualquer forma, por mais defensivo que esteja frente a tal hegemonismo, todos sabemos que o “putinismo” é nacionalista, não internacionalista (princípio comunista básico), que é preconceituoso e ortodoxo nos costumes e quanto a outras conquistas caras às nós, ocidentais, que impede livres organizações da classe trabalhadora, que seu suporte à Venezuela ou a Cuba é mais estratégico do que qualquer outra coisa (assim como o era durante a União Soviética, quando esta já pouco ou nada tinha de revolucionária, mas de burocrática, quando pouco fez para barrar a interferência dos EUA em nosso continente); enfim, que está mais próximo ideologicamente do czarismo.

O hegemonismo dos EUA e da Europa não fará falta nenhuma e deve ser mitigado, varrido do mapa, e este é o momento, por conta da falta de grandiosos líderes ocidentais, mas tenho os pés no chão e o estado atual não me faz ver um mundo melhor com estes dois gigantes em momento pós-revolucionário ou até contrarrevolucionário de sua história, que um dia experimentaram fase mais popular e gloriosa do que agora: uma Rússia já nada socialista e uma China tão capitalista, este país, inclusive, cuja arma poderosa não é o míssil, mas o mercado, desde que o descobriu e por esse monstro insaciável foi picada — basta ver o que é o 99, aplicativo brasileiro comprado por um bilionário chinês e que explora informalmente nossos desempregados tal qual a Uber dos EUA, basta ver como empreendimentos chineses no Nordeste brasileiro ameaçam população e natureza tal qual qualquer essência capitalista apocalíptica –, daí a lástima de não termos ainda, não neste momento de DESgoverno federal de provincianos, incompetentes, ridículos, muito, muito pequenos, um Brasil forte e decisivo no jogo geopolítico, dando a sua imensa contribuição…

(E tal lamentação final dá assunto para outro aspecto, nosso, a ser resolvido a partir deste ano eleitoral e eleitoreiro de alguma mudança: temos, a rigor, três possibilidades internacionais e diplomáticas do miscigenado e diverso Brasil por vir – uma direitalha dependente e entreguista, uma esquerda potente mas limitada e uma extrema-esquerda, minha vertente favorita, mas imensamente precária de pensamento e meios materiais, praticamente inexistente na práxis, adolescente, deslumbrada, apologista, sem marxismo, ou, quando com marxismo, ainda em fase teórica.)

27/02/2022

O melhor texto sobre o centenário da Semana de 22…

Estamos em fevereiro, mas já dá para supor que o melhor texto a ser escrito este ano em jornal sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 de São Paulo será o do músico intelectual Zé Miguel Wisnick, no caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo de hoje. Incontornável. Pedagógico.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/02/semana-de-22-ainda-diz-muito-sobre-a-grandeza-e-a-barbarie-do-brasil-de-hoje.shtml

13 de fevereiro de 2022

Dois filmes que assisti durante o Lobofest no CCBB marcaram-me profundamente…

Dois filmes que assisti durante o LoboFest no CCBB São Paulo – Centro Cultural Banco do Brasil, Retoque (do Irã), em que o microcosmo dum acidente cotidiano em família heteronormativa descortina todo um campo de desejo/justiça sem maniqueísmos frente à sociedade patriarcal, e Chá (do Uzbequistão!), em que a poética e tanta história abundam sem precisarem de diálogos e clichês, marcaram-me profundamente (estética e tecnicamente), quando estive semana passada hospedado num hotel no centro de Sampa, bem em frente ao Sesc 24 de maio (desde a pandemia, voltei pra Santos, agora sem lugar fixo em São Paulo, metrópole onde retorno aos poucos, amodeio e sinto-me adulto). O segundo, inclusive, confesso, inspira-me para parte importante de um romance meu… Não deixei de comentar com uma das curadoras que o primeiro critério para um curta-metragem valer a pena, em termos artísticos, é o de ter a capacidade de não nos fazer sentir que algo na obra falta (querendo ser longa) ou sobra; a sua completude. O que é muito difícil de se conseguir num formato de menor ou pequena duração… Ambos os filmes referidos cumprem tal critério e são memoráveis, sobretudo por espelharem acontecimentos humanos e a vida.

12 de fevereiro de 2022

Ruy Castro não compreendeu a renovação modernista da Semana de 22 de São Paulo

Ruy Castro confunde modernismo com modernidade, e associa o primeiro a quem teve prédio alto e eletricidade antes… É a superficialidade carioca. Acrescida à superficialidade do jornalismo. Acostumado a questões culturais de costumes, falta-lhe conhecimento avançado em estética e em estrutura interna da obra de arte. Assim, demonstra nada saber sobre a renovação estrutural nas artes e no pensamento brasileiros promovida pela seminal Semana de Arte Moderna de 1922 de São Paulo, que neste 2022 completa 100 anos. A Semana foi “alguma coisa de inesquecível, que sacudiu os meios artísticos de todo o país”, nas palavras de Anita Malfatti décadas depois, “porque era impossível tolerar-se o academismo, a inércia, o mau gosto da época”. Ou seja, antes do inovador modernismo paulista(no), toda a arte brasileira era incontestavelmente pré-moderna, inclusive a feita no Rio de Janeiro (com exceção de Lima Barreto ou mesmo dos pioneirismos da “segunda fase” de Machado de Assis, dois grandiosos casos solitários e mal compreendidos em seus próprios meios), cidade com resquícios políticos (República militar, quando em SP surgiu a mais moderna República civil), socioeconômicos e mentalidade de corte decadente. Romances, contos e poemas eram pré-modernos; poemas não tinham ainda superado totalmente a forma fixa do soneto, da métrica e da rima com a força que precisavam, quando Oswald (ele e seus poemas-minutos, de reinvenção da nossa história, cujo teatro também foi duma extraordinária e ainda hoje espantosa inovação ímpar, décadas e décadas antes de Nelson Rodrigues) e Mário (grande poeta e contista, grande pesquisador cultural) trouxeram inovações na prosa e versos mais do que livres e dum coloquialismo absoluto e sem precedentes, para ficarmos apenas em um exemplo concreto, determinante, literário (pois seria necessário também citar que a moderna pintura brasileira nasce com duas mulheres paulistas, Anita e Tarsila). Graças à Semana, o Brasil é dos poucos países no mundo que pode se gabar de ter tido um modernismo… A Semana de ’22, ocorrendo um século depois de outro momento histórico importante, foi, no plano cultural das artes, a segunda independência do Brasil, porém de vanguarda e anti-elitista, em contraposição a modelos enclausurados classicistas e de comportamento burguês (cf. a “Ode ao Burguês”)… Tanto que Antonio Candido, em texto e em simpósios, fazia questão de lembrar que o modernismo carioca (geração de Cecília Meirelles et al), atrasado, e que só veio muito depois ao de São Paulo, foi muito mais contido e conservador em comparação ao despojamento, à ousadia e às liberações da Semana de 22… Não é à toa que uma renovação modernista daquele impacto só pudesse surgir numa cidade que, de casebres e ruelas de chão batido no século 19, logo se industrializaria aceleradamente mais do que qualquer outra do país no 20, tornando-se metrópole por excelência, ponto de convergência do Brasil, “Paulicéia” unicamente moderna e modernista em meio aos provincianismos e paradigmas imperialistas do resto do país e de grande parte do mundo.

11 de fevereiro de 2022

Existem brancos e negros no Brasil?!

“Ninguém no Brasil é branco a não ser a Xuxa, e, se ela não casar com o Taffarel, vão acabar os últimos brancos…”

– Chico Buarque em entrevista, brincando (seriamente)

Meu pai, Roberto Édio de Souza, se dizia “café-com-leite”. Eu era criança e, ao ouvir, não problematizava. Na verdade, seria o “moreno” (segundo o senso comum) ou o mestiço brasileiro clássico, filho de negra com um pai branco, que ele não conheceu, e de quem certamente vieram seus fios de cabelo claros, quase loiros, apenas na infância (assim como os meus). Minha mãe é parda, filha de muitas misturas: há negros, brancos, mestiços e indígenas em minha linhagem materna, estes últimos, inclusive, muito provavelmente em gerações não tão longínquas (a começar por seu sonoro nome tupi, que faz parecer ter saído de personagem de algum romance indianista de José de Alencar: Iraci; Iraci de Souza Graça).

Tenho a cor de pele muito clara (mesmo nascido no litoral ensolarado e abafado), porém, com esse background genealógico acima esboçado, estou longe de ser branco — sou, no entanto, resultado do embranquecimento, e só muito recentemente me dei conta disso, e entrei em crise. Concluí, depois, que a muita mistura étnica que me compõe se deu tanto por ordem politicamente proposital das classes dominantes durante a história brasileira para controle social e “melhoramento” discriminatório da espécie humana, como também das eventuais circunstâncias subjetivas das relações, amorosas e sexuais da biologia, até se chegar nesta minha cor de pele, mas meu sangue/DNA não é “branco puro”, para minha satisfação (nem tenho ascendentes europeus que sejam diretos na árvore genealógica). Tampouco sou negro, apesar do meu cabelo não ser liso. Mesmo assim, a sociedade brasileira, calcada na aparência do colorismo, trata-me como branco, e nos formulários não há uma designação correta para mim, restando-me frequentemente marcar a inexata opção “caucasiano”. Obviamente, nos EUA ou na Europa, não sou visto como branco branco. No mínimo, “latino”, sobretudo se deixo a barba e o cabelo crescerem. Minha raça ou etnia, mesmo meu fenótipo, é maravilhosa problemática, frutos de choques, retalhos e somatórias, uma crise de identidade(s).

Machado de Assis não foi negro, ao contrário do que se diz nos últimos anos, se considerarmos que sua mãe era portuguesa branca dos Açores e seu pai, mestiço, ou, para usar designação desgastada e devidamente criticada, “mulato”. É certo que não tinha a cor de pele clara, tal como os embranquecedores quiseram fazer crer em sua iconografia; tinha a cor de pele mais escura, conforme fotografias de boa qualidade comprovam; entanto, era um miscigenado ou mestiço, fruto explícito da inovadora mistura de raças.

Quem são os negros na sociedade brasileira atual, então? A rigor, somente os imigrantes retintos de países como Moçambique, Haiti, Congo, Angola, etc., que não sofreram ou não passaram por largos e acentuados processos de miscigenação em seu DNA. Esta é minha tese. E os brancos? Seriam os descendentes diretos de europeus, embora, à presente altura geracional de nossa história, eles rareiem ou nem mais existam; também os ascendentes já se misturaram demais durante os séculos 19 e 20, de modo que não podem mais se dizer brancos brancos; neste século 21, os próprios países que não são da Europa ibérica (formada por Portugal, Itália e Espanha, onde a miscigenação foi mais acelerada), sobretudo a França e mesmo a Inglaterra, também adentram na miscigenação com os filhos e netos negros da (neo)colonização e também com árabes. O mesmo processo — acelerado pelas novas diásporas e grandes imigrações — não demora a chegar na Alemanha, que um dia comprou o mito da raça ariana, e nos demais.

Filosoficamente, o negro é um devir, porque não é hegemonicamente dominante (tal como o modelo cristão, branco, proprietário, homem adulto heteronormativo, etc.)…

Hoje em dia, com o avanço da genealogia genética e os testes de DNA, é possivel mapear com certa precisão o percentual étnico/racial dos sujeitos e da população no geral. Os resultados espantam. Assim, se realmente há brancos brancos no Brasil atual, devem ser minoria percentual: os coloniais paulistas, por exemplo, têm, em média, 80% de DNA branco (Europeu e MENA – Oriente médio e norte da África) e 20% de DNAs africano e ameríndio, mas não fazem parte da massa. A massa, porém, tem muito de DNA europeu. Em grupos de pesquisa étnico-genética, vemos vários brasileiros com fenótipo negro ou “quase negro” (segundo o senso comum) que possuem surpreendentes 60% de DNA europeu. Não devem ser a maioria, mas tal fato não ocorre nos EUA, onde os negros têm, no máximo, 30% de DNA branco. Também surpreende que o pardo brasileiro tenha, em média, 60% de DNA branco e 40% de DNAs africano e indígena. (Estes e outros dados podem ser consultados em dois estudos disponíveis no Scielo: <https://www.scielo.br/j/gmb/a/fk6kLTxZknvrJjmC9hdcZBC/?lang=PT> e <https://www.scielo.br/j/ea/a/6Ym7R859tBjyNgV96LcZmKr>, sendo esse último meio enviesado, e também neste artigo pela Fiocruz: <https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/12570/2/milton2_moraes_etal_IOC_2013.pdf>. Esta reportagem <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1802201101.htm> divulgou ainda a constatação científica de que a cor da pele é parâmetro enganoso, pois tem elo com poucos genes.)

Tenta-se, muitas vezes, — sobretudo nas discussões de esquerda identitarista — replicar teoricamente no Brasil a polarização explícita do aparthaid dos EUA (país que viveu colonização de povoamento) entre negros e brancos, quando, na realidade, o conjunto histórico que caracteriza o caso brasileiro — no bojo das “três raças tristes” de que escrevera Bilac, sendo que modernamente acrescentaram-se a elas japoneses, árabes e muitos outros — é a pulverização das etnias comprovada em nosso cotidiano e pelas pesquisas genéticas, o fracasso da pureza de qualquer ordem, o preconceito velado e mal resolvido em meio à tal pulverização étnicosocial, o sincretismo e a miscigenação.

Basta constatar que, antes de mais nada, os portugueses se misturaram muito mais do que os ingleses, e não apenas por talvez serem eles menos racistas, mas também como parte dos vínculos de relações da exploração colonizatória, uma vez que, nas suas colônias tardias como Angola (quando o Brasil já era há muito tempo independente), criou-se com a abolição da escravatura um estatuto especial para quem não era branco, o sistema do indigenado de mão de obra gratuita, escravatura disfarçada. É o que, por consequência, me contara, certa vez, um camarada português muito crítico da história colonizatória de seu país não contada nas escolas, residente da França: que a mistura étnica pode ser encarada também como estratégia de controle, sobretudo nas décadas finais do decadente império português (quando o Brasil já era há muito tempo independente). Os mestiços, que serviam à coroa ou, posteriormente, ao Estado Novo de Salazar, eram mais escutados pelos negros por também terem sangue centro-africano, tal como um estrato social médio que servia para articular o sistema de exploração dos negros pelos brancos. Esse camarada português lembrou, ainda, que o próprio Salazar, sob a pressão europeia para deixar as colônias de África, pensou em mudar a capital para Luanda, assim como a corte portuguesa esteve uns tempos no Brasil quando os franceses invadiram Portugal no início do século 19. Portugal sempre gostou dessa estratégia da mistura ou a cogitou em momentos críticos, ao contrário dos britânicos.

Ainda que no Brasil influam a miscigenação, o sincretismo, a ambiguidade étnica, a mistura e correlatos, tudo isso não quer dizer que não há, aqui, racismo, de preferência o racismo do colorismo, pois trata-se de país com exclusões sociais e sistemas de poder, com mais séculos de escravidão do que de abolição (feita tardiamente e nas coxas, sem socialização de terras); no entanto, o processo de miscigenação no Brasil — pelas circunstâncias da vida em meio às interrelacões entre diferentes povos e também pelo proposital embranquecimento classista de cima para baixo e historicamente comprovado como política eugenista desde a colônia, mas sobretudo de finais do século 19 até os anos 1930 — criou um gênero novo na história da humanidade, para usar insistente tese de Darcy Ribeiro em entrevistas e livros. Esse gênero não é branco nem negro. É já outra múltipla somatória de ambos — e dos vários outros.

Há militantes, porém, que consideram todos os pardos como negros, sem considerar os indígenas na discussão racial, e que simplesmente ignoram quando esses mesmos pardos têm suas cotas negadas em universidades e instituições públicas. Vimos, acima, que os pardos brasileiros possuem considerável percentual de DNA europeu também, não podendo ser considerados negros em stricto sensu.

Todavia, à guisa de considerarmos a teoria da gota única, muito defendida por alguns dos movimentos negros dos EUA mais elucidados, a reivindicar que não importa o fenótipo, se você tem apenas uma gota de sangue negro, você já pode ser considerado negro, assumo que, nesses casos, a (auto)designação negro/preto faria sentido, mas apenas em termos retóricos e simbólicos: em matéria de lógica básica, se temos algum laço negro em nosso sangue que não é total, é sinal que temos também de outras etnias que nos compõem, o que nos torna imediatamente miscigenados, escapados dum padrão inequívoco e limitado à univocidade; uma outra nova raça/etnia de somatórias e multiplicidades, sem que se exclua nenhuma. É que apenas alguns têm cor de pele mais clara e outros, mais escura, embora isso faça toda diferença na nossa sociedade geograficamente dividida em periferias e centros de acordo com o colorismo historicamente marcado… Bastaria essa conscientização da miscigenação para que arrefecesse a regra da violência lastreada em características da vítima, por exemplo, em raça.

A designação “pessoas de cor” não está equivocada e é mais abrangente, do ponto de vista antropológico e científico: lembro de Michael Jackson, que tinha vitiligo, numa de suas entrevistas, a explicar que “people of color” são assim chamadas, porque a cor de suas peles pode ir da cor da palma da mão até o ébano…

E, se os percucientes estudos sobre a Pangéia estão corretos, desmorona ainda todo um paradigma histórico e qualquer tentativa de pureza racial ou mesmo de linhagem diferencial. Ou seja, as cores de peles teriam se distinguido ao longo de séculos e milênios à medida que os diferentes grupos tenham tendido a regiões de climas diversos e aspectos geográficos impactantes na melanina mais desbotada ou tonalizada, bronzeada ou mais escurecida, não estando, porém, a humanidade, em seus primórdios, diferenciada em continentes separados.

Enfim, não esqueçamos do que houve aqui com a miscigenação, que traz consigo problemáticas, traumas e maravilhas. Esse novo gênero humano é, na realidade, o futuro do mundo, sobretudo neste século 21, estando o Brasil em posição avançada de vanguarda na miscigenação global dos povos. Como uma mácula na falsa pureza, isto apavora a direitalha, a extrema-direitalha cristofrênica, racista, branca ou que se acha branca ou que quer ser branca, assecla das explorações do capitalismo tardio, agarrando-se o quanto pode nos últimos resquícios insuportáveis e danosos da branquitude e da univocidade dominadora.

1 de fevereiro de 2022

Para Sérgio Sérvulo da Cunha (1935-2021)

Faleceu hoje o eminente professor, advogado e filósofo Sérgio Sérvulo da Cunha, meu conterrâneo (chegou a ser vice-prefeito de Santos), aos 86 anos. É, agora, homenageado e elogiado por nomes consideráveis de amplos setores públicos. Não bastasse ter presidido a Comissão pela Autonomia de Santos contra a ditadura civil-militar, ter atuado na Constituinte e, depois, ter sido advogado de acusação no processo de impeachment contra o então presidente Fernando Collor, continuou, nos últimos anos, conforme pode-se ver em textos seus no perfil do Facebook e em outros locais, de exercer a crítica a respeito do estado atual das coisas, sempre do lado certo da História. Também escrevia versos sobre seus passeios à nossa praia santista. Nunca o conheci pessoalmente; porém, há poucos meses, conhecendo sua biografia e sabendo de seus posicionamentos políticos corretos, condizentes com seu caráter, enviei para ele a seguinte mensagem, que, entanto, ele sequer deve ter visto:

Mensagem que enviei para Sérgio Sérvulo da Cunha em outubro de 2021.

12 de dezembro de 2021

Carpaccio versus Rafael, a partir de Tarkóvski: arte, panfletagem, tendência – marxismo e Renascença

“[…] Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não fique à mostra como as molas que saltam de um sofá. […]”

– Andrei Tarkóvski, Esculpir o Tempo, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 56.

Obs. por Fernando Graça: …Marx? Ou terá sido Engels, que, em suas correspondências a escritores (veremos trechos mais abaixo), as quais me valho vez ou outra como referência para marxismo e estética, tratou da tendência na arte?

Em cerca de 2016-2017, utilizando o extinto endereço eletrônico www.fernandograca.xyz, escrevi texto que não consigo encontrar em meus arquivos. Porém, o recordo quase inteiro.

Hoje mais amadurecido, volto ao seu pensamento aqui.

Tratava acerca de um valioso ensinamento artístico em Esculpir o Tempo (1985), livro do cineasta russo/soviético Andrei Tarkóvski (1932-1986), uma de minhas obsessões naquela fase adolescente e pós-adolescente. Nesse livro, que depois descobri estar disponível para alugar na Biblioteca Pública Municipal Sérgio Milliet do Centro Cultural São Paulo, Tarkóvski critica fortemente o famoso quadro Madona Sistina (1512), de Rafael Sanzio (1483-1520), embora não deixe de chamá-lo de “o gênio de Urbino”, e, em contraposição, apresentava-me um pintor extraordinário, o veneziano Vittore Carpaccio (1465-1525/1526), contemporâneo de Rafael, e que eu não conhecia (que, de fato, é pouco conhecido). Suponho, inclusive, que o cineasta provavelmente soube dele em seu triste período de exílio (por motivos sórdidos de sicofantas politiqueiros, entre os quais o de ser preterido por cineastas menores) da União Soviética na Itália. O meu texto referido aludia jocosamente ao fato de que de carpaccio eu conhecia apenas o prato culinário italiano…

Silhueta de Fernando Graça durante exposição sobre Rafael no Museu de Arte Brasileira da FAAP. Foto: Henrique Lima, 13 de novembro de 2021.

Este ensaio que ora escrevo se deve ao fato de, recentemente, eu ter espiado exposição multimídia no Museu de Arte Brasileira da FAAP, intitulada Magister Raffaello – “Uma viagem maravilhosa para o Renascimento italiano”. (Fui especialmente para ver outra exposição, brasileira, “Um Celereiro de Artistas“, em especial um quadro de tamanho grande que fotografei, Camisa Verde, do meu conterrâneo, o grandioso artista e comunista Mário Gruber, e não me arrependi de observar minuciosamente o seu talento em fazer lantejoulas tão realistas, mas isto e outras coisas mais são assunto para outro ensaio…)

A Madona Sistina, de Rafael: arte-síntese dos novos tempos da Renascença, mas panfletária, insípido cartaz? Os anjos do canto inferior estão cansados do velho e renitente tema em séculos e séculos de medievo. Clique na imagem para ampliar. Melhor visualização em computador/notebook.

A crítica de Tarkóvski, de adjetivos ásperos, é convincente, mesmo que só até certo ponto:

“[…] Quem ainda não escreveu sobre Rafael e a sua Madona Sistina? A idéia do homem, que finalmente conquistou sua própria personalidade, em carne e osso, que descobriu o mundo e Deus em si mesmo e ao seu redor depois de séculos de adoração do Deus medieval, cuja contemplação o privara da sua força moral — diz-se que tudo isso encontrou concretização perfeita, coerente e definitiva nessa tela do gênio de Urbino. De certo modo, é possível que assim tenha sido. Pois, a Virgem Maria, na configuração do artista é, de fato, uma cidadã comum, cujo estado psicológico, tal como o vemos refletido na tela, tem sua base na vida real: ela está temerosa pelo destino do filho, oferecido em sacrifício aos homens. Embora tudo se dê em nome da salvação destes últimos, ele próprio está capitulando na luta contra a tentação de defender-se deles.

“Tudo isso está, de fato, vivamente “escrito” no quadro — em minha opinião, com uma clareza excessiva, pois as idéias do artista oferecem-se ali à leitura: tudo por demais inequívoco e definido. Irrita-nos a tendenciosidade doentiamente alegórica do pintor, que paira sobre a forma e ofusca todas as qualidades puramente pictóricas do quadro. O artista concentrou sua vontade na clareza das idéias e na conceituação intelectual da obra; para isso, porém, pagou seu preço, pois a pintura é débil e insípida. […]” (ibidem, p. 54)

(Escrevi “até certo ponto”, porque é preciso considerar que todo movimento seminal possui a tendência inicial de estabelecer seus manifestos e intenções pela necessidade de anunciar-se e marcar presença… Neste aspecto, a Madona Sistina de Rafael, cuja protagonista, pobre, despojada e simples, que parece saltar dum filme de Pasolini, tem, sim, importante destaque histórico! Não se pode também esquecer que o próprio Tarkóvski, dentro da sua tentativa de transplantar o espírito observacional, gestáltico dos haicais para o cinema, tampouco escapou de forçar, em certas cenas, intenções explícitas, sobretudo as excessivamente religiosas-ortodoxas ou até misticistas, que representam enorme retrocesso com relação à história de seu país e o fazem hoje ser deturpado por conservalóides do cristianismo, outras intenções até pretenciosas demais e pseudointelectuais, quando bota frases supostamente filosóficas em certas personagens, que não convencem, contudo toda essa problemática seria tema para outro ensaio…)

Detalhe da Madona Sistina de Rafael: a mãe, uma cidadã comum, está temerosa pelo destino do bebê, oferecido aos homens em sacrifício – trata-se de um ponto de virada renascentista, se considerarmos toda a arte produzida no medievo. Segundo Tarkóvski, porém, tais elementos humanistas são apresentados nesse quadro de maneira “débil e insípida”, por estarem explícitos demais, quase escritos de maneira panfletária.

O zeitgeist do Renascimento, conforme Tarkóvski supracitado descreveu em linhas gerais, anunciou a imanência material no lugar da transcendência. Engels, em Dialética da Natureza (1883; cf. São Paulo: Boitempo, 2020, Introdução), um livro deixado por terminar e muito hesitante pelas polêmicas suscitadas entre sociedade e ciências naturais, mostrou que a Renascença — “a época que precisou de gigantes e produziu gigantes“, segundo ele — possibilitou polímatas admiráveis (como Leonardo da Vinci), porque, malgrado o feudalismo caduco de então (isto sou eu quem faço questão de frisar), o artista-cientista-erudito não havia ainda sido escravizado pela divisão capitalista do trabalho, uma vez que o capitalismo engatinhava e começava a ascender (recordo a frase de Marx no capítulo IV do primeiro livro de O Capital, que está aqui próximo de mim entre meus livros: “O comércio e o mercado mundiais inauguram no século XVI a moderna história do capital“); ou seja, com a hegemonia e a implementação em larga escala da divisão do trabalho, que serviram para otimizar a produção industrial e acelerar a moderna acumulação, os sucessores dos polímatas — incluindo nós — foram submetidos a um sistema limitante e unilateral. Essa importante tese estrutural de Engels será retomada por Lukács na década de 1930 para a seção “Tragédia e tragicomédia do artista no capitalismo” do ensaio “Tribuno do povo ou burocrata?” (presente nas edições brasileiras Marx e Engels como historiadores da literatura e também em Marxismo e teoria da literatura). Igualmente merece nota que, já em A Ideologia Alemã (cf. São Paulo: Boitempo, 2007, págs. 378-382, “Organização do trabalho”), série de escritos inovadores de 1845-1846, publicados só em 1932, Marx e Engels, em brainstorming mútuo, desmascaram os resquícios burgueses/individualistas da mentalidade de Stirner sobre a propriedade e o gênio (o “Único”, para se referir justamente a um Rafael), não só fazendo ver que tais indivíduos (da Vinci, Rafael, Mozart, que teve seu Réquiem terminado postumamente por outro músico, etc.) não criavam apenas solitariamente e distanciados da sociedade, dependiam, inclusive para os materiais concretos necessários às suas atividades práticas, da organização socioeconômica de sua época, do intercâmbio disponível e de muitos outros homens interligados à rede social produtiva, como também sugerem que, superada a divisão capitalista do trabalho, “Numa sociedade comunista não há nenhum pintor, mas no máximo, homens que, entre outras atividades, também pintam” (ibidem).

Voltemos ao nosso tema principal… Para reivindicar a “vontade e energia” duma “lei de intensidade que me parece constituir uma condição fundamental da pintura” (Esculpir o Tempo, ibidem, p. 54), Tarkóvski nos apresenta Carpaccio em contraposição a Rafael:

“Em sua pintura, [Carpaccio] resolve os problemas morais que assediavam o homem do Renascimento, fascinado por uma realidade repleta de objetos, pessoas e matéria. Ele os resolve através de meios verdadeiramente pictóricos, muito diversos daquele tratamento quase literário que confere à Madona Sistina seu tom de alegoria, de sermão. A nova relação entre o indivíduo e a realidade exterior é por ele expressa com coragem e nobreza — sem nunca cair no excesso de sentimentalismo, sabendo como ocultar as suas inclinações, a sua vibrante alegria frente à emancipação. […]” (ibidem, págs. 54-55)

Tarkóvski tem razão aqui. Em matéria de conjunto da obra (muito além da Madona Sistina, porém), Carpaccio espelha (para usar termo da estética lukácsiana) os novos tempos da Renascença de maneira mais fidedigna do que Rafael por pulverizar pelas telas os elementos modernos (ou proto-modernos) de seu tempo, quando a cidade ia sendo mais habitada do que o campo. São quadros (conferir as imagens que coloquei ao final deste texto com frases de Tarkóvski que pincei deliberadamente) de acontecimentos histórico-sociais (que dissipam o sagrado da religiosidade dos temas cristãos), viagens materiais (não à toa, época das grandes navegações), retomada integral e adaptação ao seu tempo de mitos pré-cristãos, pagãos, e inúmeras ações e relações humanas cotidianas em dezenas e centenas de tipos e classes sociais estratificadas em ampla composição. A sociedade em movimento e fluxo. Vontade e energia da tal “lei de intensidade” desejada! Ao sopesar as obras de ambos, não seria incorreto afirmar que Carpaccio é muito mais “materialista” e coletivista: está interessado e mergulhado nos assuntos terrenos, enquanto que em Rafael, em que pesem a Madona Sistina ou mesmo A Escola de Atenas, notamos os pés flutuando acima do chão, os resquícios transcendentais da religião, mesmo que sob novas formas e olhares mundanos. Além do mais, arrisco a dizer que Rafael, que tanto influenciou o século 18, é o clássico/classicista por excelência, a buscar o ideal harmônico da serenidade e da beleza, enquanto que em Carpaccio o moderno se antecipa diante de nossos olhos.

Guardadas as devidas diferenças, faz lembrar a crítica do amoroso modernista Mário de Andrade ao grande Machado de Assis, na ocasião do centenário de seu nascimento, comemorado em 1939 (v. Mário de Andrade, “Machado de Assis” In: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins, 1974, p. 103). O autor de Macunaíma e pesquisador popular reconhece a  inquestionável grandeza de Machado em diversos níveis e sentidos (só faltaria aos modernistas de 1922, que nos levaram a uma “segunda independência”, estudo cavado do surpreendente pioneirismo experimental da prosa machadiana, conforme Décio Pignatari, Haroldo de Campos e outros fizeram décadas depois noutro grande momento cultural do Brasil…), e que escrevera “apaixonante obra e do mais alto valor artístico, prazer estético de magnífica intensidade que me apaixona e que cultuo sem cessar”, “deixou, em qualquer dos gêneros em que escreveu, obras-primas perfeitíssimas de forma e fundo”, porém argui que era escritor encastelado, que Lima Barreto, João do Rio, França Júnior conseguiram muito mais reter o burburinho da vida do Rio de Janeiro, tendo também falhado em captar a “alma brasileira” como o fizeram Gonçalves Dias, Castro Alves, Aleijadinho, Almeida Júnior, Farias Brito e outros. Isto tudo é fato,  ainda que Machado de Assis tenha sido cronista profícuo, e foram justamente o universal e a influência eurocentrista agentes de sua consagração estrangeira; por outro lado, ainda bem que nos deixou em literatura, sobretudo nos contos e romances, o retrato das nossas classes médias e dominantes indolentes, servindo para entendermos melhor (reforçados pelos estudos sociais machadianos de Alfredo Bosi, Roberto Schwarz, Antonio Candido, Helen Caldwell, John Gledson et al) as causas dos problemas do Brasil sob este ângulo alto e direto, mas jamais conivente, sempre crítico e mordaz, que nenhum outro autor do século 19 nos deixou.

Carpaccio captou o burburinho e a “alma” de seu tempo renascentista bem mais do que grande parte de seus contemporâneos. Embora Tarkóvski não cite qualquer exemplo de quadro do elogiado que possa nos fazer vislumbrar suas palavras, rápida pesquisa havia me levado, à época, a uma galeria de quadros citadinos com turbas, eventos e movimentações, construções, etc., que de fato fascinam qualquer cineasta autêntico diante de grandes cenários e elencos. De repente, um quadro em específico chamou minha atenção, e, desde então, logo converteu-se numa das minhas pinturas preferidas (impossível não citar, nesta lista em construção, também Ovídio entre os citas, de Delacroix, e vários outros, obviamente muitos brasileiros):

Preparação da Tumba de Cristo (c. 1505), de Vitore Carpaccio, têmpera sobre tela. Clique na imagem para ampliar. Melhor visualização em computador/notebook.

Não seria, também este quadro, um panfleto ou cartaz?!… O cadáver dessacralizado de um eurocêntrico Jesus (e sem auréola!), entre ossos e esqueletos, “espera” que os coveiros preparem sua tumba. Um velho, apoiando uma das mãos no rosto, o olha com indiferença (faz lembrar os anjos-crianças da Madona Sistina, que também direcionam nosso olhar à figura principal), afinal, é mais um que morre dentre tantos outros. A dor e a desolação das duas mulheres no canto, cenicamente unidas, uma de cabeça para cima, a outra com a cabeça para baixo, parecem ser o único eixo a lembrar da gravidade do ocorrido. Isto ocorre nos primeiros planos. No fundo, com exceção do caminho à esquerda que nosso olhar percorre até chegar às tortuosas cruzes de madeira na parte superior, a vida continua com variadas ações de variados tipos sociais em meio à despojada paisagem: alguém toca um instrumento de sopro, há outras tumbas, cenas pastorais, transeuntes, etc. Por fim, cabe dizer que esse quadro guarda cordão umbilical com outro quadro ainda mais impressionante, O Corpo do Cristo Morto na Tumba (1520-22), de Hans Holbein, o jovem, que, séculos depois, no século 19 foi gatilho para Doistoiévski, ex-revolucionário e cristofrênico convertido, ter sério ataque de epilepsia quando diante dele esteve… (Para uma próxima contraposição: Tchernichévski versus Dostoiévski, só que mais aprofundada.)

Entanto, pelas descrições oferecidas por Tarkóvski, é certo que este pensava em gama de outras pinturas, as quais reuni de acordo com meu gosto e agora elenco abaixo, após reproduzir suas argutas palavras finais acerca da obra de Carpaccio. Observem a variedade de acontecimentos e ações e figuras no primeiro e segundo e demais planos das pinturas do mestre veneziano. Será injusto não fazer o mesmo com Rafael, porém de outro modo penso que expor mais obras suas não advogaria em seu favor nesta contraposição, e comparações tendem à superficialidade e ao desrespeito à singularidade de um artista.

“[…] As composições cheias de figuras de Carpaccio têm uma beleza surpreendente e misteriosa. Talvez seja até mesmo possível chamá-la ‘a Beleza da Idéia’. Diante delas, tem-se a perturbadora sensação de que o inexplicável está prestes a ser explicado. Momentaneamente, é impossível compreender o que cria campo psicológico em que nos encontramos, ou fugir ao fascínio que se apodera de nós diante da pintura e nos põe num estado muito próximo do medo.

“[…] Podem se passar horas antes que comecemos a perceber o princípio da harmonia que rege a pintura de Carpaccio. No entanto, assim que o apreendemos, permanecemos para sempre sob o encanto da sua beleza e do nosso arrebatamento inicial.

“Quando o analisamos, descobrimos que o princípio é extraordinariamente simples e expressa, no mais alto sentido, a base essencialmente humana da arte renascentista, em minha opinião, com muito mais intensidade do que Rafael. A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem “incidental”. O círculo se fecha, e ao olharmos para a tela de Carpaccio, nossa vontade acompanha, dócil e involuntariamente, o fluxo lógico de sentimentos pretendido pelo artista, voltando-se primeiro para uma figura aparentemente perdida na multidão, e depois para outra. […]” (Esculpir o Tempo, ibidem, págs. 55-56)

Tarkóvski, recordando Marx (fica a dúvida se a afirmação não seria de Engels), fecha a contraposição ressaltando a cautela de suas posições:

“[…] Não tenho a menor intenção de convencer os leitores da superioridade dos meus pontos de vista sobre dois grandes artistas, nem de estimular a admiração por Carpaccio em detrimento de Rafael. Tudo o que pretendo dizer é que, embora em última instância toda arte seja tendenciosa, que até mesmo o estilo seja comprometido, uma mesma tendência tanto pode ser absorvida pelas camadas insondáveis das imagens artísticas que lhe dão forma, quanto pode ser exageradamente afirmada, corno num cartaz, como é o caso da Madona Sulina de Rafael. Até mesmo Marx afirmou que, na arte, a tendência deve estar oculta, para que não fique à mostra como as molas que saltam de um sofá. […]” (ibidem, p. 56)

Só mais um parágrafo final, que completa a questão da tendência na arte. Não se sabe até que ponto Tarkóvski era familiarizado com a obra marxiana, entretanto é possível que tenha havido um equívoco ao citar (sem rigor ou fonte) Marx, ao invés de Engels. Sabemos que a dupla não deixou um tratado estético, e sim escritos esparsos e laterais, formativos, mas, por exemplo, este último, em seus anos finais, já sem o companheiro de luta, ao estreitar correspondências com artistas, escritores socialistas e revolucionários, inclusive escritoras, cravou explicitamente: “Quanto mais permanecerem ocultas as opiniões do autor, melhor para a obra de arte. O realismo a que me refiro pode manifestar-se até mesmo a despeito das opiniões do autor” (trecho de carta a Margaret Harkness em abril de 1888, tradução minha). No seguinte trecho de outra carta, para Minna Kautsky, em 26 de novembro de 1885, colhida do Marx & Engels Collected Works Vol 47, Engels, comentando o romance Die Alten und die Neuen escrito pela destinatária, e que, a despeito de Balzac ser simpático à burguesia, confessando que o admirava como escritor pela criação realista de tipos sociais, explica melhor tal posicionamento: “[…] The source of this failing, however, may be discovered in the novel itself. In this book you obviously felt impelled to take sides openly, to testify to your convictions before the whole world. Now that you have done so, it is something you can put behind you and have no need to repeat again in the same form. I am not at all opposed to tendentious poetry as such. The father of tragedy, Aeschylus, and the father of comedy, Aristophanes, were both strongly tendentious poets, as were Dante and Cervantes, and the best thing about Schiller’s Kabale und Liebe is that it was the first politically tendentious drama in Germany. The Russians and Norwegians of today, who are producing first-rate novels, are all tendentious writers. But I believe that the tendency should spring from the situation and action as such, without its being expressly alluded to, nor is there any need for the writer to present the reader with the future historical solution to the social conflicts he describes. Furthermore, in present circumstances, the novel is mainly directed at readers in bourgeois — i.e. not our own immediate — circles and, such being the case, it is my belief that the novel of socialist tendency wholly fulfils its mission if, by providing a faithful account of actual conditions, it destroys the prevailing conventional illusions on the subject, shakes the optimism of the bourgeois world and inexorably calls in question the permanent validity of things as they are, even though it may not proffer a solution or, indeed, in certain circumstances, appear to take sides. Your detailed knowledge and your wonderfully true-to-life descriptions, both of the Austrian peasantry and of Viennese ‘society’, provide ample material for this, and you have already shown in Stefan that you are also capable of handling your protagonists with a nice irony which testifies to the command an author has over his creatures. But now I must desist, otherwise you’ll think me altogether too prolix. […]” Mas tal escolha artística delineada por Engels contra a tendência (que suscitará, no século posterior, outra contraposição, desta vez no interior do próprio marxismo: Brecht x Lukács), depende muito do público-alvo (da classe) a que o artista se dirige, conforme disse-me Mauricio Puls, certa vez, em longa troca de mensagens que tivemos: assim, neste complexo século 21, embora devamos abalar as certezas da axiomática capitalista sem necessariamente apresentarmos a solução inequívoca (ou até panfletária, portanto ingênua ou oportunista) dos conflitos histórico-sociais espelhados na arte, tomando lados tendenciosos que suplantam a força própria das situações, figuras e personagens, ainda que importantes aos escritos políticos de não-ficção, ainda que devamos frustrar o falso otimismo da ordem da manipulação e da alienação diárias, dos desvios de foco, e mostrar a decadência tardia da sociedade burguesa às classes dominantes e seus representantes, penso que um público consciente, despossuído da propriedade privada dos meios de produção, trabalhador e nada burguês demanda um Brecht, um Plínio Marcos (outro conterrâneo meu) e correlatos, sob pena da revolta transformadora vinda debaixo, do nosso caldo cultural à lá Gramsci, da agitação cultural, da ameaça ao status quo, da denúncia, da conscientização revolucionária e de outras categorias que nos são imprescindíveis à arte não serem potencializadas.

Degustemos Carpaccio!

Vittore Carpaccio – Recepção de um Legado, c. 1490, Museu Nacional de Belas Artes, Cuba. “Cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio, Milagre da Santa Cruz na Ponte Rialto, têmpera sobre tela, c. 1496, Gallerie dell’Accademia, Veneza. “Em sua pintura, [Carpaccio] resolve os problemas morais que assediavam o homem do Renascimento, fascinado por uma realidade repleta de objetos, pessoas e matéria.” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio, A Partida de Ceix, c. 1502-1507, Galeria Nacional de Londres. Carpaccio, assim como Shakespeare, cada um a seu modo, retomaram mitos da antiguidade pagã e pré-cristã para o seu tempo, baseando-se, por exemplo, nas Metamorfoses de Ovídio, como é o caso deste quadro.
Vittore Carpaccio – Visitação, entre 1504 e 1506, Galleria G. Franchetti alla Ca’ d’Oro. “O círculo se fecha, e ao olharmos para a tela de Carpaccio, nossa vontade acompanha, dócil e involuntariamente, o fluxo lógico de sentimentos pretendido pelo artista, voltando-se primeiro para uma figura aparentemente perdida na multidão, e depois para outra.” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio – Embaixadores retornam à corte inglesa, c. 1495-1500, Gallerie dell’Accademia. Época proto-moderna de viagens e navegações, que Carpaccio captou exemplarmente. “Quando o analisamos, descobrimos que o princípio é extraordinariamente simples e expressa, no mais alto sentido, a base essencialmente humana da arte renascentista, em minha opinião, com muito mais intensidade do que Rafael.” – Tarkóvski
Linhas de perspectiva do quadro Retorno dos embaixadores à corte inglesa, de Vittore Carpaccio.
Vittore Carpaccio – Crucificação e apoteose dos dez mil mártires do Monte Ararat, Accademia, Veneza. “Podem se passar horas antes que comecemos a perceber o princípio da harmonia que rege a pintura de Carpaccio. No entanto, assim que o apreendemos, permanecemos para sempre sob o encanto da sua beleza e do nosso arrebatamento inicial.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Ciclo de pinturas para a lenda de São Estêvão, cena: Consagração de São Estêvão, detalhe, óleo sobre tela, c. 1540. Gemäldegalerie, Berlim. “Diante [das composições cheias de figuras de Carpaccio], tem-se a perturbadora sensação de que o inexplicável está prestes a ser explicado” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Encontro e Partida dos Noivos, têmpera sobre tela, entre 1495 e 1500, Gallerie dell’Accademia em Veneza. “As composições cheias de figuras de Carpaccio têm uma beleza surpreendente e misteriosa.” – Tarkóvski.
Vittore Carpaccio – O apedrejamento de Santo Estêvão, c. 1520. Staatsgalerie Stuttgart, Alemanha. “Momentaneamente, é impossível compreender o que cria campo psicológico em que nos encontramos, ou fugir ao fascínio que se apodera de nós diante da pintura e nos põe num estado muito próximo do medo.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – São Jerônimo e o leão no convento, têmpera, 1502, exposto na Scuola di San Giorgio degli Schiavoni em Veneza. “A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem ‘incidental’.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – O Triunfo de São Jorge, 1502. Da coleção da Scuola di San Giorgio degli Schiavoni. “A nova relação entre o indivíduo e a realidade exterior é por ele expressa com coragem e nobreza — sem nunca cair no excesso de sentimentalismo, sabendo como ocultar as suas inclinações, a sua vibrante alegria frente à emancipação.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Chegada dos Embaixadores Ingleses, c. 1495-1500, Gallerie dell’Accademia. “A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem ‘incidental’.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Martírio dos Peregrinos e o Funeral de Santa Úrsula, 1493. Accademia em Veneza. “A questão é que cada personagem é um centro na composição cheia de Carpaccio. Em qualquer figura que nos concentremos, começamos a perceber, com clareza inequívoca, que tudo o mais é mero contexto, segundo plano, construído como uma espécie de pedestal para esse personagem ‘incidental’.” – Tarkóvski
Detalhe ampliado de Martírio dos Peregrinos e o Funeral de Santa Úrsula.
Vittore Carpaccio – São Estêvão é Consagrado Diácono, 1511, Gemäldegalerie, Berlim. “Tudo o que pretendo dizer é que, embora em última instância toda arte seja tendenciosa, que até mesmo o estilo seja comprometido, uma mesma tendência tanto pode ser absorvida pelas camadas insondáveis das imagens artísticas que lhe dão forma, quanto pode ser exageradamente afirmada, corno num cartaz, como é o caso da Madona Sulina de Rafael.” – Tarkóvski
Vittore Carpaccio – Teseu recebe a embaixada de Hipólita, rainha das Amazonas, c. 1495, tendo como provável fonte a Teseida de Boccaccio, livro I, Musée Jacquemart André, Parigi, França.

5 de dezembro de 2021

A necessária Maria da Conceição Tavares incorre num erro sobre marxismo e comunismo… (ANOTAÇÃO)

(ANOTAÇÃO -) A necessária Maria da Conceição Tavares, cujo legado combatente ora se reacende entre jovens brasileiros contra os direitismos liberais, liberalóides e correlatos até piores ou travestidos disso, incorria em um equívoco constante em suas aulas no que se refere ao marxismo. Aliás, eu, que sou jovem, afirmo que seria mais efetivo a esses jovens (e ao próprio PT – Partido dos Trabalhadores) terem antes se aprofundado em Caio Prado Jr. e em Florestan Fernandes (que chegou a ser deputado pelo PT, enquanto o primeiro foi quadro heterodoxo do PCB), dois enormes e considerados marxistas de obra incontornável, do que somente em Tavares, cuja carga reformista leva a conhecidos impasses históricos no plano institucional insatisfatório e não permite espaço para a construção revolucionária estrutural e de massas entre o povo trabalhador. O marxismo sem dúvidas fez parte de sua formação econômica desde cedo — os principais matemáticos portugueses eram marxistas, sobretudo os exilados — junto a dois outros posteriores, os chamados “nacional-desenvolvimentismo” e “keynesianismo”. Tal equívoco — que parece ser a sua única ressalva ao marxismo junto a qualquer paixão revolucionária exacerbada e pouco realista dentro da luta política imediata — refere-se à afirmação de que o fim da sociedade baseada na exploração entre classes ou a abolição da divisão de classes seria idealismo ou utopia. (Quando, na realidade, aquele que só é reformista é ingênuo ou conivente, sobretudo no Brasil e neste continente, em que a revolução pode ser contingente, mas a contrarrevolução é sempre certa de vir, conforme a história ensina, mesmo contra meros reformistas!…) Bem, a própria Tavares, findo o dito “socialismo real”, autodenominou-se como socialista utópica em entrevistas, a “utopia” aqui em sentido positivo enquanto estímulo e horizonte. O equívoco apressado — e não basta exatamente a filosofia para tal estudo — está em caracterizar essa defesa ou vislumbre como idealismo, sendo que, antes de mais nada, seria preciso um aprofundamento antropológico específico (e materialista). Falo do comunismo primitivo, primeiramente, considerando o quanto as diferentes sociedades primitivas eram ou não estratificadas. Esta é uma questão científica ainda não totalmente detalhada. Em O Capital, Marx cita lateralmente comunidades peruanas antigas baseadas na propriedade comum, um exemplo de cordão umbilical com o comunismo a ser construído na sociedade pós-industrial e a partir dela, com características próprias e modernas, não significando um retorno histórico meio rousseauniano, mas avanço ao reino da liberdade. É certo que Engels, em seu A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, parte dos estudos pioneiros de Morgan, que, no entanto, com o avanço mais moderno da antropologia, foram desmistificados em pontos que, justamente, não consideravam o quanto certas sociedades primitivas eram estratificadas de fato. De qualquer maneira, para variados estudos antropológicos marxistas sérios dos últimos dois séculos — de Gordon Childe a Sergio Lessa e outros –, vários povos e sociedades, por não apresentarem escravismo nem excedente (uma vez que consumiam o que eles próprios produziam) e tampouco ainda negociarem com outros povos, eram sociedades comunistas. Sem qualquer “romantismo” ou idealismo a respeito. Há quem não tenha cautela em citar também os exemplos quilombolas, comunitários, mesmo indígenas, etc., guardadas as enormes proporções, desigualdades e diferenças (inclusive tecnológicas) entre cidade e campo, que devem ser mitigadas (sobretudo as desigualdades socioeconômicas) na proposta comunista. Basta pensar, ainda, na harmonia democrática e coletivista das cooperativas trabalhistas de teor revolucionário sem a figura do patrão/capitalista, logo sem mais-valia, em que pese o fato de certas experiências validarem a contingência. A própria contingência não justifica pensamento contrário duma construção com base no real, e tampouco experiências do passado anulam a construção do presente e o futuro. Isto é, o fim da sociedade de classes não é mera utopia ou idealismo, necessita de estudos pretéritos, presentes e futuros que certamente não são fáceis. Marx (cf. a Crítica do Programa de Gotha, em que evoca o lema comunista A cada um conforme sua necessidade, de cada um conforme sua capacidade) e sobretudo Engels (em Anti-Dühring) engendram tais exemplos históricos para a sua teoria revolucionária seminal baseada no fato de que, conquistado pelos detentores das forças produtivas (classe trabalhadora) o poder e expropriados os expropriadores burgueses a fim de que a sociedade se apodere dos meios de produção antes concentrados e particularizados e monopolizados, o Estado-coerção (termo posterior de Gramsci), a mercadoria capitalista, a acumulação e a divisão de classes e seus resultantes perdem gradual sentido, caducam, tanto quanto outras formas políticas e socioeconômicas anteriores, bem estabelecidas por milênios, caducaram e mudaram (conclusão indiscutível), portanto isto é plenamente possível em termos históricos e materialistas, embora não de maneira simplista. Para citar um dos muitos obstáculos (neste caso, do maravilhoso apagamento comunista entre fronteiras sob o elo proletário e da humanidade, e decisivo para qualquer êxito socialista grandioso), está o fator global e axiomático de que revoluções nem sempre são mundiais, mas localizadas, além das diferenças entre os capitalismos “dependente” e “hegemônico” na correlação de forças entre os países, e as lutas de classes internacionais, além das nacionais. Daí a vigência atual para nós do único mandamento de Marx (presente no Manifesto Comunista): Trabalhadores do mundo, unam-se!

Sou privilegiado, entre Sampa e Santos…

Sou privilegiado: morar em Sampa megalópole, desfrutar de sua vida cultural invejável, trabalhos e possibilidades cosmopolitas, e em pouco tempo descer a serra e poder ser arrebatado pelo mar/pôr do sol da minha ilha de Santos natal…Sou privilegiado: morar em Sampa, megalópole industrializada de concreto, desfrutar de sua vida cultural invejável, trabalhos e possibilidades cosmopolitas, e em pouco tempo descer a serra da estrada em curvas e ser arrebatado pelo mar/pôr do sol litorâneo da minha ilha de Santos natal… Rara ambivalência geográfica em qualquer canto do mundo. Amores, memórias, experiências, problemas socioeconômicos a resolver, vislumbres. Poético, mas também cinematográfico, como tem sido o filme político que comecei a gravar em ambas as cidades que somente juntas completam-me.

Apontamentos estéticos para uma poesia/proesia do século 21 (esboço)

Texto em progresso…

 

  • Lukács (Conversando com Lukács, Instituto Lukács, São Paulo, 2014, p. 51), em seus anos finais, disse ser “apaixonante problema técnico de atelier investigar que coisa pode produzir um poeta de hoje com a linguagem de Gôngora”. Trocar por Sá de Miranda ou Camões.
  • Na propositiva acima, obviamente influem ressignificação e inovação, que se inserem numa tradição sem a ela obedecer integralmente ou fazer catequese: revolucionar.
  • …Descoberta que nas mãos de outro vira outra coisa, ambas originais em sua época, e de preferência “perenes”…
  • O “perene” na arte – lembrar dos apontamentos inconclusos de Marx (nos Grundrisse, escritos de gênio) sobre o fascínio “perene” da arte grega em nós e Shakespeare (até onde se sabe, infelizmente, ele não chegou a escrever essa parte ou se perdeu ou ainda não foi descoberta, apenas a anuncia, embora todo marxista saiba da sua paixão pela impactante peça Titus Andronicus e a cena sobre o poder do ouro/dinheiro, citada nos Manuscritos Econômico-Filosóficos e, décadas depois, no próprio livro primeiro de O Capital).
  • …Influi também o tema já superado entre forma e conteúdo (ou forma-conteúdo, ou ainda conteúdo-forma), que o próprio Lukács, admitindo que via o conteúdo como principal, em detrimento da técnica (quando seria mais correto encarar a dialética de ambos os termos), trata de tratar. Falsa dicotomia; relação dialética. Resgatar o que a semiótica (um dos capítulos de Semiótica e Literatura, de Décio Pignatari, exatamente acerca) pode contribuir para isso. E o pensamento certeiro de Maiakóvski a respeito.
  • O conflito entre Brecht e Lukács hoje, século 21, já que o segundo dos dois pensava numa continuação do realismo do século 19 para o 20, enquanto o primeiro enxergava defasagem no 19 e novas inserções no 20. A solução: diferentes públicos para diferentes apetites.
  • A contribuição dialética de Gramsci, a partir de Hegel (não sem Marx): dupla operação/estratégia: é preciso criar uma nova culturarte, seja como agitação ou antecipando a nova sociabilidade, e que só é plenamente possível a um status revolucionário se criticar a cultura vigente e extrair/conservar pontos positivos dela, por consequência, superando-a (= “síntese”).
  • Estética enquanto múltiplas determinações dos homens encarnados na arte…
  • Estética: menos legislação, mais observação/apresentação da estrutura interna duma obra artística…
  • Trata-se, antes, de decidir se é possível uma “estética” (ou Estética) hoje. E se o sinônimo de tal decisão/empreitada é legislar sobre arte. Não que não seja impossível, mas instigantes autores por vezes preferem outro termo — certamente mais aristotélico –, imediatamente ligado a uma ação ou relação bem mais concreta de fazer e práxis: ao invés de estética(s) — palavra de filósofos e não necessariamente de artistas –, poética(s)
  • Certa passagem de A Ideologia Alemã (Marx e Engels), refutando Max Stirner e seus equívocos acerca da propriedade privada, alerta sobre a mentalidade burguesa no tocante ao individualismo corriqueiro a respeito do artista criador (o exemplo dado é Rafael), costumeiramente tido como gênio solitário que leva todos os créditos, e lembra da enorme cadeia ou rede socioeconômica de pessoas — que antecede ou está presente no processo ou depois — de uma obra artística, sem a qual ela não existiria. Tal como a comida em nossa mesa, que não brotou do nada tampouco nela, muito menos no supermercado ou na feira. Outra passagem desse livro seminal, marxiano-engelsiano, trata, ainda que de maneira lateral, o fazer artístico por todos numa sociedade comunista em que a divisão/o antagonismo de classes foi devidamente abolida.
  • O ato de escrever e sua angústia, que não é de hoje, mas acrescenta-se à tal angústia-base a angústia da derrocada das ideologias (inclusive estéticas!) e a sensação (ao menos para aqueles que, como eu, seguem um percurso histórico) de que tudo já foi escrito (em forma-conteúdo): a insistência da inovação em face de um beco sem saída, e que tal inovação não vire solipsismo, mas, ao invés, arranque do branco do papel (ou de qualquer outra superfície) a exata palavra que possa nos “salvar” (?)…
  • A problemática do “romance” hoje, com ou sem proesia. Trata-se de decidir em minha obra se, neste caso, vale também a propositiva inicial do sangue novo introjetado num corpo (ou cadáver) antigo. (Sangue, ao invés de “roupagem nova”.)
  • Identificar, evitar, denunciar, extirpar, saber usar, pôr no lugar etc. os elementos fascistóides da linguagem. Ao contrário do que muito se pensa, o elemento fascistóide não é apenas militarismo, não são só palavras de ordem e comando, é, muitas vezes, bem mais sinuoso/ardiloso/corruptor do que isso. (E em que medida, na verdade, eram as simples palavras de ordem ou comando, bem antes disso, ancestrais?…) Diferenciação entre autoritarismo (que sabe onde pisa com o coturno) e fascismo (que, tal como disse Deleuze, é uma linha de morte de si e do outro).
  • Eu sou capaz de escrever linhas lindíssimas, de seivas que são entendidas antes de qualquer explicação junto ao pleno domínio da língua (eis o caráter significativo e enriquecedor duma proesia), porém os fantasmas vanguardistas me atordoam; súbito, no entanto, o treino em face de uma estética marxista exorciza de mim o abstracionismo (não é meio conservador?) ou a pura técnica (que não alcança o realismo), já datados também.
  • O realismo de cada tempo, inclusive deste, a partir do espelhamento do real através das obras de arte. Um pé atrás diante de tudo o que se afasta do real (irracionalismo).
  • Por que todo direitismo se afasta do real?!
  • Proesia não só em termos subjetivos, mas concretos – Galáxias, de Haroldo de Campos, teve “sacada” ainda hoje rara, já que escritores e poetas (não assim com os concretistas) geralmente nem preocupam com a materialidade da obra-livro: versos longos e edição com página obrigatoriamente pensada a partir do espaço de tais versos longos, de modo que quase pareçam, mesmo, linhas duma prosa (sem o ser).
  • A Poesia é resolvida com a inspiração, sobretudo quando se é poeta cultivado, e não qualquer escrivinhador; não assim com a prosa, que é como costurar (por isso devo muito à minha mãe costureira caseira meu ofício literário): na prosa, cose-se hoje e amanhã é preciso continuar de onde se parou, mesmo que não seja de onde se parou ontem.
  • Poetas são pest-sellers, enquanto há prosadores best-sellers, aliás, tais mais-vendidos são sempre em prosa. Entre outros motivos, porque a poesia corta o logos e não tem fim (quando se chega ao final, recomeça outra vez), enquanto a prosa, por sua própria estrutura interna, nos leva sempre a conclusões – assinale-se que a moldura ocidental não admite facilmente o que não tem explicação ou conclusão.
  • Proesia: poderosa indeterminação entre prosa e poesia, implosão de gêneros num jorro estilístico de signos carregados de significados ao máximo.
  • Proesia – que não seja mera masturbação, e sim sexo bom para as partes bissexuais homoeróticas.

Telenovela ‘Nos Tempos do Imperador’ mente sobre Pedro II, Princesa Isabel, escravidão e abolição no Brasil

Texto em construção?

“[…] Convencidos, finalmente, de que a libertação de nossa raça, foi unicamente devida ao esforço popular, sem influencia do governo nem do throno, que mandou espingardear os nossos irmãos que sahiam das fazendas […]” – Trecho (até então inédito, não fosse por mim?) de protesto de libertos e republicanos contra recrutamento para a Guarda Negra da suposta “Redentora”, Provincia de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo, 30 de janeiro de 1889. Fonte: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18890130-4149-nac-0002-999-2-not

Não tenho televisão e não assisto telenovelas, mas, na quarentena da sindemia ou em temporada em Santos, passando para lá e para cá no apartamento de minha mãe [P.s. de 2023: saudosa mãe, que já se foi], involuntariamente dou umas olhadelas na TV, e ela mesma me faz perguntas históricas de acordo com o que é apresentado, ainda que em ficção, mas tratando-se duma ficção histórica ou “de época”.

Há muito tempo, antes mesmo da telenovela, eu queria escrever sobre tais temas e figuras da história do Brasil, sobretudo neste momento de tanto revisionismo à solta, em que é preciso resgatar a veracidade dos fatos, desmistificar, refutar, clarificar. Aproveito o ensejo.

Sempre tive muita dificuldade em comprar a imagem de abolicionistas do d. Pedro II e da Princesa Isabel, em detrimento de eminentes vultos, heróis e personagens (sobretudo de cor de pele negra) do próprio movimento abolicionista e republicano, como Luís Gama, André Rebouças, Silva Jardim, José do Patrocínio (que traiu a própria etnia por causa da Guarda Negra e da defesa da monarquia, conforme veremos mais adiante) e outros fervorosos e verdadeiros combatentes da causa nas ruas, tribunas, conferências e imprensa… O senso comum ainda pensa que a Abolição se deu do dia para a noite pela “caridade” dos monarcas, do alto, quando, na realidade, o movimento abolicionista foi um processo de lutas de décadas e séculos, diário, sobretudo dos cativos e rebeldes. Muitas vezes, há quem tenha a audácia cínica de retratar a família real embolorada, dum sistema socioeconômico carcomido, odioso e podre, como desgostosa da permanência tardia da escravidão no Brasil, que envergonhava o mundo “civilizado” (não menos pérfido, e sim industrializado, portanto necessitado de nova massa internacional de trabalhadores assalariados e consumidores de bens, sobretudo a Inglaterra), retratando tal família como praticamente resignada e impotente diante dos latifundiários exploradores, que necessitavam do braço escravizado; ora, a esse reducionismo histórico, a essa inverdade de imprecisão históricas veremos, com provas e registros, que o movimento abolicionista e o republicano cresciam cada vez mais e ganhavam mais e mais adesões importantes nas décadas finais do Segundo Império, não só dos próprios negros e mestiços ativistas, dos filhos e netos do escravagismo obsceno, mas igualmente de setores da elite pelo país, de liberais no geral e fora da corte do Rio de Janeiro. A tais movimentos, a princesa regente, ou antes seu esposo estrangeiro conde d’Eu, tendo o então velho Pedro II impossibilitado de continuar no trono por debilidades (inclusive mentais), no afã de engatarem um terceiro reinado tirano (esta é a expressão dos jornais da época diante de milícias e repressão), a princesa e o esposo trataram de reprimir com violência, chegando ao limite de arregimentar ex-escravizados iludidos para isto (com a tal “Guarda Negra”, conforme veremos, embasados em documentos).

Lembremos, a priori, da Lei Aberdeen, aprovada na Inglaterra no ano de 1845 e declarando piratas os navios negreiros brasileiros. Há suficiente historiografia a respeito. Essa lei “para inglês ver” autorizava que britânicos — cuja classe dominante tanto faturou com mercado de escravizados e com as colônias — prendessem qualquer navio suspeito de transportes escravizados no oceano Atlântico. Tratou-se, portanto, de duro recado ao Brasil. Não fosse tal lei, os navios negreiros, cujos horrores aprendemos na escola por meio da poesia engajada de Castro Alves, persistiriam por mais e mais tempo! Em 1850, é assinada na legislação brasileira a Lei Eusébio de Queirós, proibindo o tráfico de escravizados para o Brasil, e todo historiador sabe que isso se deu não pela caridade de conservadores e monarquistas brasileiros, mas também sob pressão utilitarista da Inglaterra industrializando-se (inclusive com o ouro roubado do Brasil por meio da colonização portuguesa), isto é, duma burguesia ascendente, necessitada de nova massa assalariada e consumidora de bens de países de “capitalismo periférico” e que haviam sido colonizados. Não é fácil sopesar qual lado dominante foi pior, mas, ainda assim, o vil açoite resistindo a qualquer ideia de libertação dos negros carimba qual lado representava maior atraso, naquele momento específico, a ponto dos resquícios de tal atraso estarem visíveis ainda hoje em nossa sociedade. Ora, de 1845 ou 1850 a 1888 correram décadas, o que comprova o quanto as desprezíveis classes dominantes nacionais postergaram a abolição por anos, mesmo com a pressão capitalista externa e mesmo com a pressão do movimento abolicionista interno! Volto a repetir que isso se deu, entre outros motivos estruturais e conjunturais, porque a monarquia brasileira era sustentada pelo latifúndio espoliativo, que, por sua vez, dependia do trabalho escravizado, sendo conveniente para a monarquia brasileira, inclusive, minar projetos de industrialização (tais como o do Barão de Mauá, falido propositalmente), que criaram nos outros países o trabalho assalariado, ou seja, uma mudança econômica libertadora da escravatura levaria à derrocada de todo um sistema político que sequer enfrentara, aqui, revolução (como houvera na França em nome da República ou mesmo em países vizinhos, quando tornaram-se independentes) ou opulenta guerra civil (como nos EUA) para tal.

É verdade que no princípio de 1867 o imperador pede a seu gabinete proposta de discussão a ser enviada ao Legislativo para um prazo com relação ao fim da escravidão, porém isso ocorre num momento de crise internacional: com o fim da Guerra Civil Americana (1861-1865) e da servidão nos EUA, diversos registros e fatos comprovam que aumentaram as pressões internacionais para que o Brasil, como último país independente da América a mantê-la, pusesse fim à instituição. O próprio Pedro II abriu as portas do país para escravagistas dos EUA derrotados… Não nego que o movimento de D. Pedro II tenha recebido protestos lamentáveis ou chocantes, inclusive do escritor e político José de Alencar, então do Partido Conservador, que via utilidade na escravidão e que ela deveria ser superada “naturalmente” ao cabo de anos ou até séculos, conforme pesquisas e cartas só colhidas nas últimas décadas revelam.

Pesquisa rápida como esta que fiz, porém arrasadora e eficiente de notícias e registros da época (alguns inéditos, que historiador ou pesquisador nenhum colheu antes e trouxe à tona), portanto que destoa de qualquer revisionismo barato, atesta e fornece estofo para aquela relatada dificuldade, tal como mostrarei neste texto que merecerá maior aprofundamento em outra ocasião. Espero que ele forneça uma série de esclarecimentos fundamentais e destrua mitos.

Não posso deixar de notar, antes, que é de espantar que a emissora da Família Marinho, em pleno momento em que “neomonarquistas” anacrônicos pintam vez ou outra por aí, inclusive um dos descendentes parasitas na República ressuscitando enquanto deputado federal, queira retratar a família real como núcleo principal de uma telenovela. A troco de qual mensagem ou lição histórica ao público?! Assinala-se que a própria Rede Globo é “imperialista”, enquanto detentora de monopólio de TV, rádio e jornal impresso, ainda mais se pensarmos que o Rio de Janeiro, onde um dia fora a corte, é dominado pela Rede Globo dos quiosques da praia até à vida cultural e jornalismo. Aliás, o próprio patriarca da empresa, já falecido, foi ele mesmo, por décadas, sobretudo durante a ditadura empresarial-militar, uma espécie de “imperador” capitalista deste país…

Ainda hoje, em descompasso com a cultura deste século, perderam o bonde da história, mesmo da (tele)dramaturgia, que deveria seguir a corrente do retrato da luta raiz, para, ao invés, continuarem com um público fútil, obcecado por fofocas “reais” (tais como a dos tablóides britânicos), núcleos familistas à lá século 19, e tramas-clichês, bem compatíveis analogicamente com o modelo televisivo de “Hollywood” brasileira do brejo, que também já ficou para trás.

Justamente num momento em que é lançado no cinema, infelizmente sem a mesma projeção, filme sobre o grande Luís Gama, este, sim, um personagem inspirador!…

A verdadeira personalidade política de D. Pedro II e de Isabel I

Este tópico merece um tratado mais aprofundado com pesquisa histórica ampla, inclusive porque os livros históricos e as biografias mais conhecidas são omissos ou pouco cavados. Eu mesmo já pensei em escrever um livro a respeito, o que demanda cavucar demais. Dito isto, aqui teremos apenas resumo e esqueleto introdutório:

Dom Pedro II

“Pobre país! A corrupção alimenta a vaidade, para dar vida ao patriotismo!” – é a legenda desta charge de 1867 por Ângelo Agostini, publicada no periódico paulistano O Cabrião, em que retrata o corrupto comércio de comendas no Segundo Império sob a anuência do imperador. Um indígena, agachado, põe a mão no rosto. E Pedro II está de braços cruzados, cuidando das gavetas de títulos de nobreza. Fonte: https://ensinarhistoria.com.br/caricaturas-do-segundo-reinado-critica-com-humor-e-ironia/ – Ensinar História – Joelza Ester Domingues.

À esquerda e à direita, rememoram que a nossa República nasceu de um golpe, no sentido negativo do termo. Trata-se de uma noção simplista. Antes de mais nada, a título de teoria política, existem enormes diferenças entre a República militar e a República civil. De fato, houve um golpe do alto escalão militar, mas a queda do regime monárquico ocorreu por diversos fatores, que incluem interesses liberais, perda de legitimidade e a queda do regime escravocrata que o sustentava pelo latifúndio. A acuidade histórica, por sua vez, faz a devida divisão entre a República Velha (1889-1930) das oligarquias e a construção do que se pode chamar de Estado brasileiro tal como o é hoje, conjuminada a um processo gradual de lutas e conquistas por parte das parcelas organizadas do povo trabalhador inseridas em lutas de classes com a classe dominante.

No entanto, costumam esquecer ou omitem que o Império do Brasil surge também de um golpe, que eu recordo ter inscrito nos livros didáticos quando estudei história do ensino fundamental ou médio: o “golpe da maioridade” de Dom Pedro II. Há grande historiografia a respeito. Se, por um lado, tal golpe ajudou a unificar o Brasil, por outro isso se deu, por parte dos dirigentes e tutores do adolescente real, através de repressões e contenções de rebeliões e protestos vários, alguns dos quais em busca já do estabelecimento de uma república, o que só ocorreu tardiamente.

O sr. D. Pedro II parece evocar temperança, que logo cai em sonolência e monotonia, típicos da indolência elitista. Seria preciso, entanto, investigar com espírito desarmado o quanto essa personalidade fazia parte menos de sentimentos e intenções altas e mais da síntese da indolência da elite brasileira. Não há dúvidas de que tinha cultura, tanto quanto privilégios. Porém, mesmo quando tento considerar a hombridade pessoal de Pedro II e a estatura que a direita revisionista tenta lhe atribuir, seja como suposto “estadista” (do que, se não levou à frente sequer um projeto de industrialização, pois isto acabaria com a mão de obra escravagista, logo com a coroa?!) ou mesmo como “intelectual” (de obra intelectual nenhuma), sabendo, entretanto, de antemão (justiça seja feita) que ele passou muito, muito longe dum proto-nazista feito o Leopoldo II da Bélgica e sua devastação genocida no Congo, a tentativa é minimizada ao lembrar-me, indignado, da escravidão cotidiana no Brasil de então, mantida vergonhosamente até o quanto se pôde pelo sistema de um imperador rodeado de latifundiários escravagistas e, conforme veremos, nomeador direto de gabinetes não só conservadores como pró-escravidão; ao revigorar em mim o absoluto anticlericalismo; e, por tabela, também por minha postura antielitista e anti-monárquica, sistema de castas.

Como era o imperador retratado em seu próprio tempo? É isto o que deveria ser levado em conta, antes de tudo. Conforme caricaturas da época atestam (e os chargistas captam o momento na crista da onda, como nenhum outro artista ou intelectual, que necessitam o distanciamento histórico), Pedro II era um contumaz distribuidor de títulos de nobreza e de cargos, partícipe direto e intermediário de processos de corrupção, clientelismo, manipulação eleitoral, benesses, “toma-lá-dá-cá” e correlatos, junto aos parlamentares e outras figuras das franjas ou do centro da corte. (Há um cordão umbilical entre tais práticas e o famigerado “Centrão” do Congresso Federal contemporâneo.) Este o legado político da monarquia no Brasil, que se manteve na República, além da escravidão obscena de séculos, ainda que já extinta, mas com resquícios inegáveis e sem tempo cronológico equivalente de completa cicatrização e resolução, oriunda primeiramente dos processos desprezíveis e sanguinários da colonização europeia e suas navegações monumentais.

O comércio de comendas, corrupto, realizado sob anuência do imperador, era forma sabida de aumentar as receitas e de manipulação política do governo no Segundo Reinado. Não sei até que ponto a telenovela, formato muito aprisionado ainda a clichês de protagonistas bonzinhos (mas Pedro II destoa desse modelo) e, do outro lado, vilões (mesmo que tenha, em produções das últimas décadas, pulverizado tal maniqueísmo e atribuído maior complexidade às personagens), mostra este fato e conduta política do Segundo Império. Talvez os retratos cinematográficos do imperador tenham sido um tanto quanto mais fidedignos do que este da TV, mas isto é assunto para outro texto. Pela olhadela que dei em uma ou outra cena na TV, parece que retratam certos políticos como pérfidos antiabolicionistas (não sem humor), enquanto o imperador, cheio de intenções honestas, sobretudo quanto à abolição, cercado por torpes e aproveitadores, quedaria impotente e frustrado. Não deixam de retratar seus casos de infidelidade, mas isto é já corriqueiro em todas as cortes nobres, que fingiam se suceder honestamente por meio do sangue ou que fingem família “tradicional”, sempre de fachada… A realidade política foi bem diferente, no entanto: Pedro II era conivente e complacente, para dizer o mínimo, porque não consta que tenha tido ação enérgica ou mesmo de inegável reformista.

Foi conservador, nem sequer liberal, possivelmente até reacionário. O episódio em que demitiu, em 1868, o gabinete liberal de Zacarias de Góis, formado pela Liga Progressista, substituindo-o pelo Gabinete Itaboraí montado pelo Partido Conservador, rendeu-lhe a acusação de bonapartista por parte de grêmios e jornais mais liberais (cf. Alfredo Bosi, O teatro político nas crônicas de Machado de Assis, São Paulo, IEA/USP, Coleção Documentos, Série Literatura, 2004, p. 1).

Joaquim José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí, que chefiou o gabinete conservador, era contrário à Lei do Ventre Livre antes de sua promulgação!

Conforme escrevi — quando ainda era adolescente, anos e anos atrás — no verbete biográfico de Machado de Assis na Wikipédia, o notável escritor, atento a seu tempo, e que mais tarde em seus contos e romances da maturidade retratará o liberalismo que convivia com a exploração do regime escravocrata, testemunhou aquela situação com simpatia aos não-conservadores e contra o despotismo e o clero (ibidem, p. 2). Aliás, monarquia pressupõe clero e toda sorte de teocracia que lhe segue. Quanto a esse aspecto não quero me alongar, porque as críticas são vastas e mereciam rigor específico, não só nos costumes hipócritas, inclusive no âmbito educacional, que só começara a experimentar reivindicações decentes com a República civil e a sua (trepidante) participação popular. (Há uma charge na Revista Illustrada em que no quadro de uma lousa de sala de aula aparece, enquanto matérias de ensino, rezas e correlatos, ao invés de conteúdos formativos.)

Pedro II continuou com o sistema de trocas de favores e benesses e com a corrupção do comércio de comendas até o fim da vida, haja vista que esta seção inicia-se com charge de 1867 e, mais abaixo, temos a caricatura de 1885, em que, vestido de Papai Noel, Pedro II, já bem mais velho e de barba branca, distribui presentes ao Gabinete do Barão de Cotegipe do Partido Conservador.

Ora, João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, foi um dos cinco senadores desprezíveis a votar contra a aprovação da Lei Áurea! Não pelas insuficiências de tal lei, que veremos mais adiante, e não só por interesses socioeconômicos dos mais sórdidos e anacrônicos e atrasados, mas também porque sabia que a tal lei precipitaria o fim da monarquia caduca e calcada no latifúndio. (Afinal, ele teria dito à Isabel: “A senhora acabou de redimir uma raça e perder o trono!”. Fontes: Carlos Penna Brescianini, «Há 131 anos, senadores aprovavam o fim da escravidão no Brasil», Agência Senado, 13 de maio de 2019, Senado Federal do Brasil, consultado em 29/10/2021; Carlos Lopes, «A formação do abolicionista Rui Barbosa», Hora do Povo, consultado em 29/10/2021.)

À guisa de analogia com ícones atuais, que atravessa tempo-espaço para ajudar a compreensão, há distância entre Pedro II e um Temer ou um Sarney, guardadas as enormes diferenças de sistema e época, porém nos liames institucionais e postura política há alguma espécie de cordão umbilical oligárquico, é difícil ver grande distância entre o imperador e um dos dois citados…

Segundo minha mãe, a telenovela o pinta como um amigão dos escravizados… Isto o que mais me indignou. Não vemos embasamento concreto neste retrato de Pedro II, considerando que, segundo conta Décio Pignatari, para quem Pedro II seria um dos agentes do atraso do Brasil e especificadamente do Rio de Janeiro, o imperador ganhava percentual por cada peça de escravizado vendida, ou seja, ele engordou, junto com a classe dominante latifundiária que lhe rodeava, em cima do criminoso e indecente trabalho escravizado. Não temos notícias ou registros de grande convocação ou escusa ou pronunciamento de Pedro II contra a escravidão. Conforme escrito anteriormente, em 1867 o monarca pede ao gabinete que se discuta um prazo para o fim da escravidão junto ao Legislativo; não tratava-se de iniciativa originalmente própria, mas das pressões da burguesia internacional após a Guerra Civil Americana e com a industrialização acelerada na Inglaterra. E, mesmo assim, recebeu críticas e protestos de conservadores — um dos casos mais lamentáveis é o do escritor e político José de Alencar, conforme atesta sua correspondência.

Nunca é demais frisar, para além de críticas personalistas, que a monarquia no Brasil estava assentada sobre o latifúndio, que necessita do braço escravo, portanto sem o qual a coroa sucumbiria (como de fato veio a acontecer por este e diversos outros fatores durante a posterior e última regência de Isabel I e seu esposo estrangeiro e semi-ditador, o conde d’Eu); este sistema segregatório de classes e castas comprova que o imperador, representante máximo da superestrutura, indubitavelmente estava cercado e próximo dos agentes dominantes da estrutura, classe escravagista de proprietários de terras, latifúndios e fazendas, logo equidistante dos escravizados pela própria posição social e hereditária, ao contrário do que essa telenovela e outras representações ou opiniões possam fazer crer, e é simplesmente desprovido de convencimento representação de Pedro II íntimo de negros; é notório que o imperador Pedro II, junto aos escravagistas, contribuiu significativamente para a falência do barão de Mauá e seu arrojado projeto de industrialização do país, um dos motivos do nosso secular atraso e dependência — aqui, cabe rememorar o exemplo da Guerra Civil nos EUA (entre industrialistas do norte contra escravistas do sul, com a vitória de Lincoln, elogiado por Marx): a industrialização significará sempre o fim do trabalho escravizado em troca não da libertação total, mas do exploratório trabalho assalariado em face do desenvolvimento capitalista e o fim definitivo dos resquícios do feudalismo que caduca; além do mais, como pode ter maiores preocupações sociais um imperador que nomeava ele próprio os principais cargos políticos gabinetes pró-escravidão em sistema que, em seus finais, caminhando para um terrível e incerto terceiro reinado, já era menos monarquia constitucional e mais absoluta oligarquia, segundo palavras então contemporâneo Machado de Assis em crônica de 11 de maio de 1888?

A caricatura de Faria, aliás, já evidencia tal configuração de nomeações, benesses e correlatos entre o monarca e os parlamentares, estabelecida muito antes da República:

“Manipanso imperial”, charge de Cândido Aragonez de Faria publicada no jornal de teor republicano O Mequetrefe, 10/1/1878. Pedro II é retratado feito um deus hindu que distribui pastas (ou carteiras) ministeriais de maneira toda-poderosa, bajulado e cultuado por agentes de diversos setores.
Dom Pedro II como Papai Noel do Ministério do Barão de Cotegipe (membro do Partido Conservador, insignado numa das bandeiras no topo da árvore, e um dos cinco senadores a votar contra a Lei Áurea, obviamente não por suas deficiências), Revista Ilustrada, 1885. Outra caricatura que retrata a troca de favores e benesses evidente e contumaz durante a monarquia e o parlamentarismo.

Ora, a monarquia brasileira não só foi brutalmente estratificadora, tal qual a monarquia em qualquer canto do globo o é, já que é inerente a esse sistema uma sociedade de castas (não só de classes), como foi sustentada pelo escravismo, tanto que ela caducou no mundo inteiro quando a escravidão deixou de ser o modo de produção em larga escala. (As “realezas” de hoje em dia, diante da “democracia liberal”, presidentes e primeiros-ministros, são meros bibelôs turísticos, anacrônicos, de escanteio em vias de decomposição, já sem poderio ou significação efetiva como outrora. A aristocracia praticamente foi extinta enquanto classe dominante e perdeu os poderes político e econômico dominantes para a burguesia num longo processo que culminou de vez na Primeira Guerra Mundial, conforme mostram livros recentes de Thomas Piketty e outros.)

O considerado professor-historiador Fernando Novaes, cuja geração fez de fato história, em determinada passagem da aula gravada abaixo, fornece outros dados importantes: Pedro II escrevia, em suas cartas, inclusive para as mulheres próximas, meros relatórios maçantes, burocráticos e numéricos, o oposto da personalidade integralmente humanista que geralmente lhe é atribuída; a violência da estúpida e desprezível escravidão piorou no Segundo Reinado, já que no Primeiro os colonizadores enviavam livros e manuais sobre os “tratos” necessários aos escravizados. (Para detalhes iconográficos de tal violência, jamais esquecermos as tristes pinturas então contemporâneas de Debret et al…)

Nesta aula, Novaes ainda diz preferir — enquanto figura histórica — Pedro I, o pai, do que seu filho, porque aquele foi responsável pela proclamação da Independência do Brasil, maior país da América do Sul, mesmo tendo sido uma independência conservadora, mas importante ao país contra a tirania colonizatória, e depois também responsável pela implementação do liberalismo — que era, então, a vanguarda — em Portugal (contra o despotismo de seu irmão), país europeu. Em que pese o comentário de Machado de Assis em Esaú e Jacó na boca dos protagonistas — num dos raros momentos em que os irmãos concordam entre si! — de que Pedro de Alcântara fora mau pai (largou o filho pequeno aqui), mau irmão, mau esposo (muito adúltero e “galinha”), etc., eu subscrevo a visão de Novaes, ainda mais considerando que não sai de minha cabeça o ar “latino” de Pedro I em seu cavalo, de preferência junto ao meu conterrâneo José Bonifácio, o patriarca da Independência, porém igualmente maçom…

Selton Mello é, sem dúvida, ator de talento e carisma, o oposto de Pedro II. (Aliás, sua atuação, pelo que vi, deixa a desejar justamente por conta dos equívocos teledramatúrgicos e de direção, que criaram um Pedro II pouco verídico… Não vejo um Pedro II ali, e sim o próprio Selton Mello. Nem mesmo a voz ele trabalhou/criou! É somente a dele. Pode ser que Lincoln tenha sido completamente diferente de como Daniel Day Lewis brilhantemente o interpretou e o criou — uma das suas grandes dificuldades, conforme este contou à época do filme, foi criar ou “achar” a voz do lendário presidente que nunca se ouviu posteriormente –, mas a conjunção representativa na construção daquele personagem faz com que nos sintamos realisticamente no século 19.)

Pedro II, ao invés, sempre me pareceu a súmula da elite brasileira definida por Darcy Ribeiro em sua mítica entrevista no Roda Viva: indolente, ranzinza, inerte, de braços cruzados (como na caricatura mais acima de Agostini), incapaz de grandes feitos. Abaixo, eis outra boa representação de Agostini, que comprova e vem ao encontro desta minha impressão, já nos estertores da monarquia:

O detalhe-chave desta caricatura que chegou a figurar na capa da Revista Ilustrada está no título do jornal no colo do sonolento e desinteressado Pedro II…
Sempre me fascinou este estupendo desenho… Pedro II é finalmente derrubado do trono nesta charge satírica e provocativa de 1882 de Agostini na Revista Ilustrada, que antecipa a queda duma monarquia cada vez mais insustentável e atrasada. Assinala-se que a caricatura possui tons anticlericais e republicanos.

Princesa Isabel, o conde d’Eu e a Guarda Negra

São atribuídos à Princesa Isabel, enquanto regente, os “maiores” feitos para a abolição no Brasil. Atribuições apressadas e meramente repetitivas, sem apuração e crítica. Ainda hoje, sem qualquer juízo científico ou levantamento histórico, há quem incorra em idealismo ingênuo (ou má fé) para achar que tudo não passou de “ato caridoso” pessoal da princesa (demorou tal “ato caridoso”, não?), e assim descartam o cálculo utilitário diante de países mais avançados na industrialização, por exemplo.

Veremos, nas próximas seções, que a Lei do Ventre Livre, a Lei do Sexagenário e a Lei Áurea não passam de escárnio, utilitarismo, trapaça, etc.

Princesa Isabel e conde d’Eu: ambos prenunciaram um terceiro reinado tirano, intento que acelerou a proclamação da República.

Fiquemos, por enquanto, com o ponto de vista da personalidade. No jornal A Metralha, de 23 de novembro de 1888, a sra. Isabel I é chamada de “pobre burgueza, sabendo um pouco de piano e canto, muito carola, casada com um príncipe vencedor de asneiras bellicas. Roubou ao povo a iniciativa da abolição.

Pior do que isso, conforme atestam documentos da época, com seu esposo conde d’Eu prenunciava um terceiro reinado que seria tirano, sobretudo no que tange à tentativa de repressão aos republicanos reunidos em conferências pacíficas, com a sordidez de arregimentarem uma espécie de milícia com negros libertos para o intuito (a famigerada Guarda Negra). Se era “muito carola”, era de fato submissa ao príncipe estrangeiro, ambicioso e obtuso, e ao sistema patriarcal, conforme é por vezes retratada em estudos acadêmicos de fácil pesquisa.

Quanto ao Conde d’Eu, para começo de conversa, este homem europeu deveria ficar para sempre marcado pelo massacre terribilíssimo que promoveu de crianças paraguaias entre 9 e 15 anos na Batalha de Acosta Ñu ou Batalha de Campo Grande (1869), enquanto comandava o Exército do Brasil durante finais da Guerra do Paraguai… É certo que fora o próprio presidente paraguaio, o desprezível Solano López e seu entorno, que enviaram tais crianças disfarçadas ao campo sanguinário de batalha, mas isso não isenta o outro lado, que logo deve ter percebido o erro, a catástrofe, o crime… Não pretendo me aprofundar nesse triste episódio que avilta qualquer esperança na humanidade, pois os registros a respeito abundam. (É provável que a telenovela de plantão retrate o conde francês e o comandante paraguaio como tipos mais pífios do que os nobres brasileiros, e de fato eles eram, porém o parentesco com a nobreza europeia também liga Pedro II, Isabel et al ao lastro histórico da dominação e do imperialismo.)

No Paraguai, a data de 16 de agosto é o Dia da Criança, porque nesse dia, em 1869, durante a Guerra do Paraguai,
cerca de 20 mil soldados comandados pela monarquia e sobretudo pelo Conde d’Eu, marido da princesa Isabel, massacraram um “exército” de cerca de 3,5 mil “soldados” paraguaios que tinham entre 9 e 15 anos, disfarçados e enviados ao campo de batalha pelos próprios comandantes paraguaios, incluindo o presidente Solano López.

Voltando ao aspecto acerca do perigo antidemocrático que um terceiro reinado de Conde d’Eu e Isabel representaria ao Brasil nos estertores da monarquia, importa o manifesto de 10 de fevereiro de 1889 (fonte: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18890210-4158-nac-0001-999-1-not/busca/Pedro+II) do Boletim Republicano, que recebia importantes adesões, publicado no  jornal A Provincia de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo (a título de nota, no Rio de Janeiro surgiu imediatamente a República militar, enquanto que foi em São Paulo que surgiu primeiro a República civil e a industrialização acelerada — sem ingenuidades, porém, com tais marcas paulistas e paulistanas, pois o descortinar do século posterior mostraria os interesses da oligarquia da política do café-com-leite de SP e Minas):

“Arredado da direcção politica do imperio o sr. d. Pedro II, o governo da regente ou antes o do sr. conde d’Eu iniciou uma politica de corrupção e violencia, que não póde e não deve ser tolerada por um povo educado na escola da Democracia”

“Precauções que aconselhamos à Sua Alteza, o Sr. Conde D’Eu, quando tiver de visitar escolas. Se Sua Alteza imitasse o seu augusto sogro, Dom Pedro II, não teria nunca Ocasião de contestar fatos históricos”. Outra caricatura de Agostini na Revista Ilustrada, n. 309, 29 jul. 1882.

Note-se que o mesmo Boletim Republicano supracitado afirmara que o sr d. Pedro II “sempre se inspirou nos sentimentos de justiça, que sempre respeitou, mais ou menos, a livre manifestação da vontade nacional”, mas, por problemas de saúde (inclusive mental), encontrava-se “inutilizado para reger os destinos do paiz” (ibidem). Em seu lugar, o príncipe estrangeiro (esse fato tocava fundo na questão de soberania nacional, tal como mostra literalmente o jornal) e sua filha regente cerceavam a livre defesa da República.

O boletim cita uma série de nomes de políticos e cidadãos, parte deles provavelmente da oligarquia paulista/paulistana, mesmo de certos fazendeiros, mas não são os interesses dessa classe que são expostos aqui, e sim dos cidadãos brasileiros como um todo no que tange a um avanço de conquistas civis. A necessidade da República é colocada em compasso com a nomeada Democracia. Esses valores, fossem liberais ou não, encontrariam impasses enormes décadas depois, já no século seguinte, em que presidentes da oligarquia se revesaram com o voto direto até o chamado Estado Novo, porém, num retrospecto, as reivindicações populares, aqui e ali pelo país, ansiavam pela derrubada duma corte emborolada, tendendo à tirania, e pelo avanço irrevogável.

O manifesto, assinado por políticos, vereadores e juízes-de-paz e outros, queria a República para que os brasileiros pudessem escolher seu governo e impedir um terceiro reinado tirano. E relata que, contra os defensores da oportunidade da República em livre manifestação do pensamento, o governo monárquico,

“em vez de oppôr a tribuna e a imprensa, unicas armas possíveis em um paiz livre, arregimentou a escória das ruas da capital — que, sob a denominação de Guarda Negra, foi investida pelo presidente do conselho da alta missão de defender e guardar o throno do Brazil.”

No mês anterior, em 5 de janeiro de 1889, denuncia-se que o órgão conservador de São Paulo estaria com a Guarda Negra e sob a influência de José do Patrocínio; indaga se os conservadores de São Paulo entendem que

“os capoeiras, os secretas e alguns libertos illudidos e mal aconselhados podem atacar os cidadãos que se reunem em um edificio particular, para ouvir um orador republicano e, porque atacam dando vivas à monarchia, devem levar a efeito o seu plano, sendo obedecidos, respeitados?!”

Fica explícita a indagação de que os republicanos deveriam saber se eram fora da lei, se não podiam se reunir, fazer conferências nas garantias de ordem e liberdade:

“[…] não são os republicanos os ameaçados, é a sociedade brazileira […]”.

Estes registros históricos sobre a Guarda Negra são de grande validade de resgate, porque, vez ou outra, tanto neomonarquistas toscos (perdoem o pleonasmo) quanto sujeitos mais à esquerda, só que sem maior embasamento, atribuem à Guarda Negra caráter totalmente positivo, usando-a como suposta prova de como a princesa regente,”Redentora”, fosse próxima dos libertos e a eles caridosa. (Conferir, por exemplo, este post no Twitter de um neomonarquista ridículo — perdoem a redundância.) Não. Em verdade, eram libertos iludidos, mal aconselhados, catequisados para defender a branquitude e a monarquia.

Já é de espantar, por si só, que monarquistas e seus correligionários tenham, mesmo após a Abolição, arregimentado negros para lhe servir como cães-de-guarda, mas isso servia ao propósito da direitalha do tipo mais torpe para fingir que haviam negros do seu lado; logo, para que os racistas fingissem-se de não-racistas (como vemos ainda hoje com a extrema-direitalha politiqueira). Noutras palavras, em português claro, guardadas as diferenças, há histórico cordão umbilical entre José do Patrocínio e um Sérgio Camargo ou Hélio Lopes, esquecíveis e em breve esquecidos. Tais fileiras são sempre perdedoras e fracassadas diante do avanço de conquistas socioeconômicas, intelectuais, humanistas e civis de massas mais esclarecidas de sua posição.

A situação era iminentemente ainda mais grave e assassina. O retrato revelador que se tem aqui, de que a tal Guarda Negra tenha sido criada contra os militantes e propagandistas pacíficos da República, é totalmente diverso e oposto ao que muitas vezes se pensa:

“A’s victimas do punhal e da navalha, sacrificadas no dia 30 de Dezembro pela Guarda Negra, com a acquiessencia da policia, respondeu o governo com a publicação de um inquerito immoral e monstruoso onde toda a criminalidade dos sicarios é imputada aos que foram cruel e miseravelmente massacrados.”

Houve um conluio entre os chefes da Guarda Negra com a polícia contra uma conferência republicana. O inquérito policial, forjado, cairia sobretudo contra Antônio da Silva Jardim, mestiço e conhecido ativista republicano. (Fonte: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18890227-4172-nac-0002-999-2-not/busca/negra+guarda.)

Em 12 de janeiro de 1889 (fonte: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18890112-4135-nac-0001-999-1-not/busca/guarda+negra), o mesmo jornal dizia que para a Guarda Negra existir bastou “mudarem o nome aos capoeiras e dirigerem os instinctos ferozes destes contra os republicanos” (recorde-se que os capoeiras formavam grupos conhecidos como maltas, que andavam com navalhas e sofriam muitos estigmas, servindo, neste caso, como grupos de manobra contra a própria classe e etnia); também se afirma que

“a crença, a fé na monarchia tenha, ha muito, desapparecido”

E arremata, já no proto-ranço moderno entre SP e RJ, que tal guarda só medra na corte do Rio de Janeiro, não fora dela:

“Fóra da côrte, se quizerem impedir aos republicanos o sagrado direito de propaganda, será preciso que os monarchistas commettam o crime por si, e não por mandatarios assalariados e illudidos.

“Si a monarchia para viver mais algum tempo precisa de apoiar-se na guarda negra, então reconhece e confessa que já perdeu todo o apoio na consciencia do povo, e deve desapparecer quanto antes.”

Na mesma página, lemos na última coluna sábias e emocionantes frases intituladas “Actos e Palavras”, dum pseudônimo sugestivo, Proudhon, que alerta para a raça negra não ser confundida com a guarda negra:

[…] Afinal a guarda-negra não deve inspirar odio, nem medo – inspira compaixão.

“Deve-se ver nella a parcella mais infeliz de sua raça.

“Liberta de uma exploração odiosa, pelo decreto de 13 de maio, cahiu pelo mesmo decreto noutra exploração. […]

Ocorre, então, importante protesto de negros libertos contra recrutamento para a Guarda Negra em outras cidades além da corte, conforme noticia em detalhes o mesmo jornal em 30 de janeiro de 1889 (fonte: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18890130-4149-nac-0001-999-1-not/busca/Guarda+Negra, págs. 1 e 2). Este protesto recebe ajuda e divulgação de variados republicanos, sejam morenos ou mestiços e negros (como Silva Jardim), certamente alguns brancos e alfabetizados e de acesso (intermediário?) ao jornal, mas que em momento algum, neste caso, se utilizam dos libertos para expor qualquer interesse escuso ou ganhar louros e créditos próprios, ao contrário, falam sempre no coletivo, na primeira pessoa do plural, e no texto colhido — de alto valor histórico — atribuem corretamente a libertação ao esforço popular, expondo a chocante e violenta reação monárquica durante a Lei Áurea, pouco divulgada e ensinada:

“[…] Convencidos, finalmente, de que a libertação de nossa raça, foi unicamente devida ao esforço popular, sem influencia do governo nem do throno, que mandou espingardear os nossos irmãos que sahiam das fazendas […]”

Há certamente muitas outras figuras e personagens de importância dentro e no entorno da corte, incluindo a medíocre elite militar que a derrubará de vez e todos os agentes das classes dominantes nesta transição, mas cessamos aqui, por enquanto.

A escravidão e a abolição no Brasil diante da industrialização internacional

Tirinha de Junião, 2015. Fonte: http://www.juniao.com.br/princesa-isabel-nao-me-representa/.

Durante décadas e décadas e provavelmente por mais de um século, nas escolas brasileiras das gerações do século 20, dizia-se que a Abolição fora um ato caridoso da Princesa … e desprezou-se o cálculo utilitário. Salvo engano, em meus livros didáticos e pedagógicos de escola pública, o quadro da situação era apresentado de forma mais balanceada e mais ou menos crítica.

Nada mais anti-histórico… Jamais esquecer — para a enorme vergonha humanista ou “patriótica” — que este país foi o último a abolir a escravidão, justamente por conta de sua corte embolorada unida a latifundiários parasitários. Até mesmo um escritor de episódios marcadamente racistas (tanto em cartas quanto aqui e ali na obra ficcional) feito Monteiro Lobato escrevera, indignado, em diálogo entre D. Benta (cor de pele branca) e seus netos em Geografia de D. Benta (São Paulo: Brasiliense, 1960, págs. 213-215), sobre tal acinte nacional. Faltou vontade. Sobraram interesses.

Dando a César o que é de César: não foi um assomo de bondade que conduziu a Princesa Isabel a sancionar a Lei Áurea, já que se tornava insustentável para as relações com países industrializados um contingente grande de indivíduos que não recebessem salários para adquirirem bens de consumo. Este fator é fundamental e, em alguma medida, foi central para a Lei.

Entretanto, Carlos Maximiliano (1873-1960) a criticou porque não houve “nenhuma providência para compensar os agricultores” que eram seus “donos”. Este teve a audácia de se condoer dos escravocratas, e calar-se diante da massa de ex-escravizados despossuídos de terras e do que produziram na base do chicote entre os matos, do pelourinho ou da ameaça urbana! Detalhe: Carlos Maximiliano tinha quinze anos quando da abolição da escravatura em 1888 e escreveu essas supostas críticas nos comentários à Constituição de…1946. A assertiva está no primeiro volume dos Comentários à Constituição de 1946, publicados pela Freitas Bastos.

Machado de Assis, grandioso, e então contemporâneo, que posteriormente relataria (A Semana, 14 de maio, 1893) ter celebrado na rua a Lei Áurea votada pelo Senado e sancionada pela princesa regente, em outra crônica ácida, notável, de inestimável valor histórico (datada de 19 de maio de 1888 na Gazeta de Notícias, portanto apenas seis dias depois da Abolição), utiliza-se da narrativa em primeira pessoa do singular para se passar por um senhor de escravizados que, em nome de ser cristão, gaba-se de, antes mesmo da lei ser promulgada, ter emancipado um criado “molecote”. Este, porém, como todos os escravizados (descendentes de sequestrados internacionais e despossuídos dos meios de produção e quase até do próprio corpo físico, lhes restando quilombos e proto-favelas), não tem para onde ir, portanto continua amarrado ao “dono”, que, entre petelecos, pontapés, puxões de orelhas, xingamentos e insultos, lhe promete um “ordenado pequeno”, já que “de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha“… Não faltarão, anos depois, crônicas do Machado, já na República transcorrida, e que me servirão de baseamento para ficção, a relatar um ou outro caso de escravizado ou escravizada achados pela polícia sem saber que já estavam livres, ou sabendo-se e sem condições de ter emancipação real. (Vide, por exemplo, o caso da preta Ana numa casa de S. Paulo em A Semana, 15 de maio de 1892, que “produziu imenso abalo”, e de um preto de Uberaba em 1º de janeiro de 1893, que envolveu prisão dos capangas do ex-senhor.) Resquícios do horror da escravidão e mesmo de sua alienação. São casos que espantosamente tornam-se avatares noticiados ainda hoje.

A Princesa Isabel tinha 42 anos quando sancionou a Lei Áurea (Lei 3.353, de 13 de maio de 1888), em sua terceira e última regência. A maioridade de seu pai, o Imperador Pedro II, ocorrera 48 anos antes. Os motivos de foro privado da Princesa, que somente governava quando os respectivos pais saíam em viagem, seriam totalmente irrelevantes, sob o ponto de vista da condução dos negócios de Estado, que são governados por lógica distinta, como já nos ensinou, de um modo nada agradável, Nicolau Maquiavel.

A monarquia baseava-se, em muito, nos latifundiários, e o latifúndio necessitava do braço escravo. No entanto, os países industrializados com que o Brasil mantinha relações não admitiam mais a escravidão. Basta ver a diferença entre John Locke, que sem dúvidas merece um espaço na lata de lixo da História, já que seu liberalismo clássico é antes uma defesa da expropriação para fins particulares e da escravidão do que uma doutrina de liberdade, mas chegou a elaborar documentos jurídicos disciplinando o comércio de escravos, e Adam Smith e Jean-Baptiste Say, que escreveram passagens condenando a escravidão, o primeiro, na Riqueza das Nações, o segundo, no seu Tratado de Economia Política.

A sórdida enganação da Lei do Ventre Livre e da Lei do Sexagenário

Ilustração sobre o projeto da Lei do Ventre (nem tão) Livre. Revista Semana Ilustrada, 21 de maio de 1871.

Recentemente, fez 150 anos a Lei do Ventre Livre, também assinada em 28/09/1871 por Isabel I em sua primeira regência.

Muitos aprenderam na escola que foi um passo importante na emancipação dos escravos. Afinal, quem nascesse a partir daquela data estaria livre!

Fui ler a lei com mais afinco. Pois bem, até os 21 anos o nascido livre teria que prestar serviços ao “dono” da mãe.

Continuei, e vi que o “acoutamento” de escravos tornava-se crime.

Não pensem que tratava-se duma forma arcaica de dizer açoitamento, isto é, que seria proibido chicoteá-los. Não! O artigo referido do Código Criminal do Império punia furto!

Acoutar era dar couto, dar abrigo, acolher escravos fugidos! Virava furto.

Mais este dado, que liquida ou ao menos pulveriza a tentativa de aceitar a imagem de abolicionistas de Pedro II e da princesa Isabel…

Quem quiser ver o horror, abaixo está o link da lei. Curiosamente, não consta sua revogação…

LEI Nº 3.270, DE 28 DE SETEMBRO DE 1885

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3270.htm

Resumindo a lei do Ventre Livre: o filho de escrava que nascesse de 1871 em diante serviria como se escravo fosse até os 21 anos de idade. Portanto, pelo menos até 1892.

1892!

Antes disso, em 1888, a luta dos cativos aboliu a escravidão.

A tal lei não libertou ninguém, se entendi direito.

Nem devemos nos estender a respeito da “Lei do Sexagenário”, quando os escravizados, dada sua condição socioeconômica mais precária e humilhante, nem sempre chegavam aos 60 anos… E para onde iria essa massa, o que teriam construído, depois de seis décadas pessoais de total entrega e submissão de seu corpo e força de trabalho (sem contar os séculos precedentes que atingiram seus descendentes)? Lei para inglês ver.

Conclusão preliminar

Historiadores mais recentes têm sugerido que a Lei Áurea só foi promulgada para estancar a torrente imprevisível do movimento abolicionista e impedir reforma agrária e expropriação dos latifundiários. Vide a matéria abaixo:

Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária, diz historiador

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44091474

Enfim, nada a comemorar, ou melhor: coloquemos toda a ênfase nos quilombos e rebeliões, conforme relato já supracitado e iniciatório:

“[…] Convencidos, finalmente, de que a libertação de nossa raça, foi unicamente devida ao esforço popular, sem influência do governo nem do trono, que mandou espingardear os nossos irmãos que saíam das fazendas […]”

E ênfase em todos aqueles que estiveram social e verdadeiramente entre e por baixo do movimento abolicionista, enquanto este avançava rumo a uma libertação total e ainda hoje em plena construção…

28 de outubro de 2021

Quando ruíram as pseudoteses do “direito divino”…

Quando ruíram as pseudoteses do “direito divino”, a ampla participação no exercício do poder se pôs como fundamento da legitimidade deste. Por isto, também se entende por que não se admite, mais, que funcionem como fatores de EXCLUSÃO DE CONQUISTAS gênero, “raça”, religião, posição social e outros. Também por isto, ações e mesmo propostas de redução da democracia a um CLUBE PLUTOCRÁTICO merecem ser fortemente rechaçadas em nome de um horizonte comum que possa primeiro mitigar e com o tempo abolir a divisão e o antagonismo da sociedade de classes.

26 de outubro de 2021

Como o desenvolvimento de habilidades socioemocionais impactam no futuro dos alunos?

O principal papel da escola é a socialização formadora, isto é, formar pessoas e ensinar a viver em sociedade. É claro que os professores, na escola, ensinam conteúdos intelectuais (ou competências, segundo nomenclatura mais recente), mas o pilar da escola é a socialização.

Deu-se quase sempre enfoque nas capacidades cognitivas, mas se esqueceu das capacidades emocionais. Não se percebia que ambas andam juntas, e o mal desenvolvimento de uma capacidade compromete a outra.

Lidar com emoções, saber se relacionar com o próximo e haver conscientização na tomada de decisões fazem parte do nosso dia a dia – e da capacidade socioemocional.

Hoje, com a formação integral, puxada dos gregos antigos e sua Paideia, o desenvolvimento das competências socioemocionais é até exigência legal, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Conforme estabelece o BNCC, o aspecto social e emocional envolve empatia, diálogo, responsabilidade, resolução de conflitos, cooperação.

Portanto, veremos, neste presente texto, sugestões e breve descrição de algumas técnicas reconhecidas internacionalmente e pensadas por (e para) profissionais da área da educação e alunos.

DESENVOLVIMENTO SOCIOEMOCIONAL E SOCIOECONOMIA

Grande parte de certos males emocionais, tais como ansiedade, solidão, depressão e estresse, que acometem cada vez mais jovens, anda ao lado da falta de projetos sociais e coletivos. O ser social que não está inserido nem incluído tende a achar que está sozinho. O sistema de ensino deve nos tirar da dependência, do subdesenvolvimento e dos atrasos.

Assim, o desenvolvimento socioemocional é incompatível com um ensino totalmente técnico, que geralmente põe no horizonte do ser social um trabalho desqualificado, sem valores, mecânico, repetitivo e sem criatividade.

A CRIATIVIDADE

Qualquer exercício que vise, antes, inspirar e, depois, deixar livre a criatividade é, por si só, quando desempenhado com qualidade e propósito, um propulsor de desenvolvimento socioemocional.

Simplesmente porque, através da criatividade, é possível expressar emoções.

A criatividade é ferramenta sobre a qual se desenvolve o florescimento humano.

TRABALHOS EM EQUIPE

Trabalhos em equipe são fundamentais para o relacionamento interpessoal, cooperação, respeito, resolução de conflitos, escuta e fala, empatia e exercício da responsabilidade.

ARTES

As grandes artes, um quadro, filme, uma música ou a literatura, são impregnadas de valores, pensamento crítico e são portas para se debater sobre preconceitos, bullying, retratos sociais, etc.

PEDAGOGIA AFETIVA

Durante muito tempo, a relação professor-aluno e o próprio ambiente escolar foram encarados de maneira absolutamente formal e até hierárquico.

Esse tipo de abordagem está cada vez mais defasado nas escolas-modelo para o desenvolvimento intelectual e também emocional.

É preciso se pensar numa pedagogia afetiva construída diariamente, que faça com que as capacidades cognitivas sejam trabalhadas em conjunto com as capacidades emocionais.

PANDEMIA

A volta às aulas no contexto da pandemia – e mesmo as aulas momentaneamente à distância – precisa falar francamente sobre traumas, impressões, limpar o horror, recriar os laços para que, juntos, possamos superar. Aliás, isto vale para qualquer outro espaço adulto além da escola.

Um dos marcos do desenvolvimento socioemocional reside na identificação ou comunhão com o(s) outro(s). Dessa forma, a escola é espaço formador das capacidades cognitivas, como levar em conta os fatos e considerar evidências científicas, e também das capacidades emocionais, tal como mostrar compaixão, etc.

SUGESTÃO DE DINÂMICA

Se o intuito é começar a falar sobre problemas e traumas, há uma boa dinâmica para “quebrar o gelo” e criar ambiente de acolhimento.

Alguém – pode ser a própria professora – faz algum relato ou fala sobre alguma angústia ou tristeza que sente. Quem se identificar, fala “eu também”, e assim por diante.

Qualquer preconceito ou julgamento é suspendido quando há profunda compreensão das condições do(s) outro(s).

Quanto mais íntimo e pessoal é um caso, mais geral, coletivo e até universal ele é.

A TEORIA/METODOLOGIA DOS “BIG FIVE” (CINCO GRANDES FATORES)

Utilizada muitas vezes no setor de RH, a metodologia dos Cinco Grandes Fatores considera variados traços de personalidade das pessoas e tem sido aplicada para o desenvolvimento das habilidades socioemocionais de alunos.

Os tais cinco fatores são: abertura a novas experiências; conscienciosidade; extroversão; neuroticismo; simpatia ou agradabilidade.

Como aplicar os cinco fatores? A metodologia tem sido eficaz para avaliar por competência, descobrir desenvolvimento de talentos, selecionar para determinadas tarefas, etc. A compreensão desses cinco fatores pode potencializar a junção entre habilidades técnicas e habilidades emocionais.

É de suma importância que o professor conheça seus alunos e os inspire a desenvolver seus lados fracos e fortes.

O SOCIODRAMA

O sociodrama, variação do psicodrama, é outra técnica bem aplicada, pois tem se mostrado eficaz para o desenvolvimento da habilidade socioemocional “conscienciosidade”.

Trata-se duma peça dramática em que todos desempenham papéis para estudar melhor e remediar problemas em grupos ou relações coletivas.

O sociodrama pode ser aplicado a muitas situações: traumas coletivos, eventos atuais, problemas sociais, desintegração, preconceito, tensão interpessoal, reabilitação, etc.

Define-se um tema preemente a todos; a decisão sobre os papéis precisa ser sociométrica; abre-se, antes, durante e depois, o tema à discussão do grupo, se possível junto aos pais e outros agentes da sociedade; anotar e discutir conclusões, conquistas, passos alcançados, etc.

6 de outubro de 2021

REFERÊNCIAS

Antonia Benedita Teixeira, ‘Habilidades Socioemocionais na Educação’. Editora Appris, 2020.

The International Criminal Court and the US war crimes, crimes against humanity by Israel State and Bolsonaro…

The International Criminal Court, which can be likened to the “conscience” of the international community, has opted not to investigate US war crimes during its 20-year military adventure in Afghanistan.

This is the same ICC that will not prosecute Israel for it’s crimes against humanity.

And what about Bolsonaro?…

10/2021

Vicente Cascione virou baba ovo do genocida Jair Bolsonaro

Em 11 de setembro de 2013, Vicente Cascione, defendendo o Mais Médicos, programa extraordinário que foi alvo de ataques baixos de estratos médios e da extrema-direitalha, rasgou muitos elogios e enalteceu Cuba e seus índices sociais, educacionais e de saúde no seguinte texto em perfil de sua rede social:

É de espantar que, recentemente, tenha criado vídeo em seu canal no YouTube e página no Facebook em que fala da “cubanização” (sic) do Brasil. Engana-se quem pensa que ele estivesse se referindo aos arroubos ditatoriais do amigão do Queiroz, conforme liberalóides incorrem com a pseudoteoria anticomunista da ferradura. Na verdade, para ele, seriam os tribunais superiores como o STF e o TSE a impedir o amigão do Queiroz — e seus cupinchas que faturam com monetização de fakenews — de desgovernar ainda mais.

Não irei divulgar nem compartilhar tal disparate, que inclusive o coloca em situação de vergonha alheia… Aliás, não pretendo, aqui, divulgar vídeos das sandices deste outro Cascione torpe, apenas denunciá-las textualmente.

Há ainda postagem de 2012, que redirecionaria para um texto em seu site, já retirado do ar por conta do tempo, em que defende Chávez da Venezuela de comentaristas e jornalistas obtusos e repetitivos, “canarinhos Psitacideos”, que o chamam de ditador:

(O mais surpreendente, e que tem a ver com a virada e mudança que ocorre no Brasil nestes últimos 10 anos: na área de comentários dessa mesma postagem supracitada, uma usuária emula a falácia direitista de que, se a Venezuela é tão boa assim, porque há tantos venezuelanos fugindo, sem considerar os embargos.  No entanto, se entrarmos em seu perfil, veremos fotos com estampas Mulheres Contra Bolsonaro, e a favor da ciência, do SUS, etc. Ou seja, de 2012 a 2021, ela deve ter mudado de ponto de vista sobre diversos assuntos, mas definitivamente não é uma fascistóide ou direitista. Ela respondia a outro usuário, que concorda piamente com o texto de Cascione, ainda que deixe claro que o texto, porém, não defende o chavismo, comentando que o povo venezuelano adora Chávez e que a Venezuela tem bons índices de IDH; este mesmo sujeito traz em seu perfil, anos depois, foto ao lado do próprio amigão do Queiroz…)

Viralizou, há poucos anos, vídeo em que o mesmo Cascione defende Lula contra os abusos de Sergio Moro. Ali, encarnara espírito crítico, mas técnico, lúcido.

 

Agora, o quase octogenário vira piada nas redes ao defender o indefensável.

É certo que o mesmo Cascione aceitou, anos atrás, ser advogado do coronel Ubiratan, partícipe do massacre do Carandiru, tendo escrito e pronunciado que não havia se tratado de um “massacre”, e sim de “ação inevitável”.

Acrescenta-se a este “ovo da serpente” outro: numa de suas lives, Cascione desconversou sobre o racismo diante de notícia chocante do assassinato de um negro num supermercado…

O que faz, ainda assim, um sujeito trabalhar e estudar a vida toda, construir alguma trajetória para, no fim da vida, já idoso e indo embora, arriscar a própria reputação ou até jogá-la no lixo em nome de um perverso como Jair Bolsonaro, cujos crimes antes e durante a pandemia chegam até mesmo ao Tribunal Penal Internacional em Haia e que acumula recorde de pedidos de impeachment no Congresso Federal?! (Vale lembrar que seus cúmplices e cupinchas inconsequentes e toscos também entram nesse enquadramento.)

É o que se deve perguntar diante de figuras como Sérgio Reis (pseudocantor agropecuarista), o sinistro da Saúde Marcelo Queiroga, até então médico cardiologista mais ou menos respeitado, etc. Quais os interesses sórdidos desses “tiozões” de estratos médios e de vida resolvida, a ponto de caírem no ridículo e nem sequer se importarem?

Na verdade, conforme muitos sabem, havia já sempre uma semente de preconceito, sordidez e de interesses de classe.

Nos perguntamos se tudo não passa também de oportunismo.

Tendo perdido feio eleições recentes para prefeito (contou com apoio do senador morto de COVID-19 Major Olímpio, ex-aliado de Bolsonaro!) e até para vereador (tamanha a sua incapacidade de agregar prestígio), além do espaço que tinha em A Tribuna, em que escrevia croniquetas inexpressivas, vazias, que não fediam nem cheiravam, há meses se debandou para a defesa da bandidagem de Bolsonaro e caterva, deixando incrédulos aqueles que o viam como um eixo de racionalidade básica.

É o dinheiro que compra a honra para se fazer propaganda ridícula nas redes de um sujeito como o amigão do Queiroz? Pois nem mesmo veio a público explicar sua guinada ou identificação, que o fez perder seguidores e dizimar a própria reputação, aproximando-se de um grupelho que a cada dia fica menor, como toda a extrema-direita. Qualquer nome considerável que um dia sequer tenha apoiado algo do DESgoverno atual já rompeu há tempos, sobretudo diante das crueldades na pandemia..

Profunda afinidade ideológica e índole criminosa explicam. Pois nem mesmo se trata de um presidente com ampla aprovação popular, com reeleição garantida ou que esteja em bom momento político, ao contrário: acuado por seus crimes comuns e de responsabilidade, insistente na sanha pessoal farsesca e incompetente, tendo que recuar de maneira humilhante dos seus arroubos, para não minar investigações graves contra si e seus filhos bandidos, lhe restou fazer hora extra liberando verbas fartas e muita corrupção para o Centrão oportunista. Todo brasileiro de bem sabe que, se não fosse isso, já estaria no chão.

Não é, portanto, um bom capital político para se apostar. Qualquer sujeito inteligente sabe que o momento é de falar em avanço da vacinação, gasolina cara, gás de cozinha em preço absurdo, volta da fome, da inflação, saídas e soluções para as reais urgências socioeconômicas do país, etc., não choramingos de quem está acuado pela justiça.

No entanto, Vicente Cascione, que sempre fez campanhas nebulosas sem projeto e muita empáfia, de cara sempre amarrada e carisma zero, se agarra agora no que há de pior na política, que é a familícia Bolsonaro, o bandido preso Roberto Jefferson e caterva, em ataques não ao que a grande imprensa faz de criticável, mas o que faz em seu dever, que é noticiar as bandidagens da quadrilha, além de ataques aos pontos positivos das instituições jurídicas conservadoras, que é o de garantir que a extrema-direita e seus sicofantas não façam do Brasil um país tiranizado por defensores de torturadores.

Em seu perfil no Facebook, em que é zombado, ou no YouTube, Vicente Cascione exibe um fim melancólico. Basta muita paciência para atravessar seu caótico raciocínio, em que mistura, como um senil, fatos históricos díspares (por exemplo, chegou ao ápice ridículo de equiparar o golpismo do grupelho do amigão do Queiroz com a Revolução Constitucionalista!), sua deficiência cognitiva e muita falastronice para, então, testemunhar o negacionismo antivacina, o racismo, ataques a quem noticia a bandidagem do DESgoverno, a defesa de um golpinho militaresco, tudo isso de uma figura que sempre se pôs como defensor do Direito.

Deveria rasgar seu diploma.

Que ele também seja, agora, investigado e denunciado, pois não se tolera mais conteúdos desse tipo e causa estranhamento tal comportamento, cujos partidários ou foram derrubados, desmascarados ou até foram parar na cadeia. Quais os interesses por trás de insistir, a essa altura do campeonato, na defesa de uma quadrilha minúscula, mas que provocou tantos crimes?

Trata-se de um irrelevante em termos políticos, um fracasso eleitoral e de público, mas fica o registro para detonar qualquer tentativa de encará-lo como sério, honrável ou respeitável no presente e no futuro.

Pressão das ruas precisa ser pela cassação da chapa Bolsonaro-Mourão, ao invés de impeachment

…Ao invés de impeachment, processo mais difícil e demorado, sobretudo porque o perturbado(r) da República, desprovido de ética, não mede escrúpulos para liberar verbas em troca de apoio no Congresso. Esse processo também esfriou após a carta humilhante escrita por Temer para apaziguar os arroubos golpistas de Bolsonaro no 7 de setembro junto ao que há de pior no agronegócio…

Já há inquéritos a respeito da cassação da chapa Bolsonaro-Mourão, inclusive a pedido de partidos de centro-esquerda, e relatório praticamente pronto a respeito. (Ver a reportagem mais abaixo.) O processo estava maturando em 2019, mas surgiram muitos outros inquéritos sobre gabinete do ódio, fakenews, quadrilha antidemocrática, etc.

Precisamos de pressão social, mas as pautas das manifestações de massa de rua contra a falta de governo e de presidente não parecem ainda especificar isso. Especificam pautas muito importantes e um “Fora, Bolsonaro” – quando muito, “Fora, Bolsonaro e Mourão”, mas não se dá o tom específico decisivo: cassação da chapa.

Uma vez que a justiça eleitoral costuma depender de ampla repercussão, gravidade considerada e provas robustas, o enfoque das manifestações precisam ser a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.

Não se trata de ingenuidade com relação à dita justiça burguesa, mas Bolsonaro desvia e confunde todas as lutas, sendo, portanto, alívio conjuntural retirá-lo, inclusive das eleições (inelegível), por um lado, e justo dentro da própria ordem, considerando os crimes (neste caso) de abuso econômico com empresas financiadoras de campanha suja, compra irregular de base de usuários e outros.

É preciso lembrar que a CPI da Pandemia entregará, nos próximos dias, seu relatório final, e, segundo os jornais, uma equipe de juristas já elencou diversos crimes de Bolsonaro: crime de responsabilidade, corrupção passiva, charlatanismo, estelionato, crime contra a humanidade e outros a serem enviados à Procuradoria Geral da República, ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas da União e até ao Tribunal Penal Internacional.

Esta configuração, no entanto, concentra-se em Bolsonaro e, francamente, pode se arrastar, não indicando necessariamente que a situação mude a curto prazo. Discute-se também no Senado alteração da Lei do Impeachment, uma vez da demora dos pedidos na Câmara dos Deputados – porém, insisto que o impeachment não é o caminho mais adequado no momento.

O problema da cassação da chapa: a priori, após um tempo do mandato/governo, as eleições tornam-se indiretas quando efetivada a cassação. Porém, isso pode constituir outro julgamento, outra discussão.

Compartilho, abaixo, ofício recente, de poucos dias atrás, que pede compartilhamento de provas do inquérito no âmbito do TSE:

https://www.conjur.com.br/dl/tse-compartilhamento-provas-inquerito.pdf

Atenção para o último parágrafo desta reportagem https://outline.com/nBuHLT abaixo :

Na Corte [do STF] tramitam quatro inquéritos contra Bolsonaro e a Segunda Turma do Supremo decidirá em breve o futuro do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) no caso das rachadinhas. Além disso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem em mãos um relatório praticamente pronto que pode levar à cassação da chapa Bolsonaro-Mourão por supostos crimes cometidos na campanha de 2018. Outro fator é o peso que os ministros teriam em apoiar a deflagração de um processo de impeachment, que ganhou corpo nos últimos dias em negociações da oposição com o Centrão.”

Abaixo, uma outra notícia (https://outline.com/TyfMdV), desta vez a respeito do ofício que pede compartilhamento de provas e que contextualiza a questão:

Corregedor do TSE pede ao Supremo compartilhamento de provas para investigação da chapa Bolsonaro e Mourão

O corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Luis Felipe Salomão, encaminhou nesta quarta-feira, 4, um ofício ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), solicitando o compartilhamento de provas coletadas em inquéritos da corte que podem abastecer duas ações no Tribunal Superior Eleitoral contra a chapa do presidente Jair Bolsonaro e pelo vice Hamilton Mourão por disparos em massa durante as eleições 2018.

No ofício encaminhado ao STF, o corregedor-geral da Justiça Eleitoral cita a investigação que mira sobre suposta organização criminosa ‘de forte atuação digital, com a nítida finalidade de atentar contra a Democracia e o Estado de Direito’. A apuração é um desdobramento do inquérito dos atos antidemocráticos arquivado por Alexandre a pedido da Procuradoria-Geral da República.

“Com a instauração de novo procedimento investigativo, que poderá conter elementos para a instauração deste feito, renove-se o pedido de informações e de compartilhamento de provas que possam vir a interessar à solução das lides postas no autos Aijes (ações de investigação judicial eleitoral)”, escreveu Salomão.

No texto do ofício, Salomão afirma já ter recebido de Alexandre de Moraes cópias do “Relatório de Análise de Material Apreendido” em que constam informações sobre os investigados. O corregedor-geral, no entanto, solicitou o acesso às demais provas colhidas pela investigação que apura possíveis crimes praticados por aliados de Bolsonaro que integram o chamado “gabinete do ódio”. Bolsonaro e Mourão são investigados por supostamente terem contratado serviços irregulares de disparo em massa de mensagens nas redes sociais durante a campanha eleitoral de 2018.

As ações foram movidas pela chapa “O povo feliz de novo”, formada por PT, PCdoB e PROS, que concorreu contra Bolsonaro no segundo turno daquele ano, e pede a cassação da chapa por abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação social.

O teor das apurações que correm em paralelo no TSE e no STF se aproximam, pois os alvos investigados, apesar de distintos, podem integrar a mesma “organização criminosa, de forte atuação digital, dotada de núcleos políticos, de produção, de publicação e de financiamento, cujas atividades teriam se desenvolvido após o pleito de 2018 (2020 em diante”.

Na segunda-feira, 2, os ministros do TSE aprovaram por unanimidade a abertura de inquérito administrativo para apurar se, ao promover uma série de ataques infundados às urnas eletrônicas, Bolsonaro praticou “abuso do poder econômico e político, uso indevido dos meios de comunicação, corrupção, fraude, condutas vedadas a agentes públicos e propaganda extemporânea”.

O desfecho das investigações em andamento no TSE pode atrapalhar os planos políticos de Bolsonaro, que se cercou de parlamentares do Centrão em busca de angariar forças que dêem sustentação ao governo ao custo de cifras milionárias em emendas parlamentares, conforme revelou o Estadão . Juristas ouvidos pela reportagem dizem que o resultado do inquérito pode levar à impugnação do registro de candidatura do atual presidente pela Justiça Eleitoral, caso ele deseje concorrer à reeleição no ano que vem.

10 de setembro de 2021

A verdadeira “terceira via”: NÃO às privatizações e contrarreformas neoliberais, mas crítica à mera estatização corporativista – defesa de cooperativas

Eduardo Leite, que se assumiu gay só agora, diz não se arrepender de ter apoiado Bolsonaro e defende agenda neoliberal de Paulo Guedes

Leite diz que não se arrepende de ter votado em Bolsonaro e defende agenda de Paulo Guedes

https://www.youtube.com/watch?v=fC-hJ6VyjGA
Eduardo Leite, que se assumiu gay só agora, mesmo apoiando, de quebra, a homofobia de Bolsonaro, é exemplo máximo do que venho alertando a respeito do identitarismo (que, em seu caso, sequer é pauta que agregue algo) sem centralidade na categoria de classe social! Colegas gaúchos me disseram que ele está vendendo tudo para o setor privado e arrasando com professores (conforme é típico dos tucanos).
Tudo indica, então, que a Globo finalmente encontrou seu candidato de direita para a Presidência, num rompante de marketing eleitoreiro para fazer o inexpressivo ser conhecido pelo resto do país no programa do decadente Pedro Bial (e o Jornal Nacional noticiou novamente o fato dele ter se assumido gay), um típico representante de um “Quebrando o Tabu” e afins: um tucano neoliberal que engana identitários, incautos, distraídos e despolitizados com afirmação de sexualidade que nem sequer é pauta sua de movimento social, como se LGBTs não tivéssemos classe social, para tentar seguir com as privatizações e contrarreformas que atacam a classe trabalhadora e a população no geral.
Não foi isso também que a Rede Globo, ou seja, a família Marinha com os chefes executivos – e eu avisei desde o início diante de parte da esquerda superficial, deslumbrada, meramente arrivista e sem teoria – elaboraram com uma Maju Coutinho, colocando-a como vitrine para um jornalismo que defende há anos as privatizações e as contrarreformas que, no fundo, perpetuam o racismo?

O que o impeachment de Collor pode nos ensinar sobre o (im)provável impeachment de Bolsonaro diante de escabrosa corrupção e manifestações?

Clique na seta para ver as outras imagens do álbum da postagem abaixo.

Ps.: O Prof. Brasilio Sallum Jr. (USP e UNIFESP), embora faça mais jus à sociologia paulista, sabe muito de marxismo, teoria marxiana, método marxista e merece ser lido quando trata disso. Recomendo seu texto abaixo (“Marxismo, sistema e ação transformadora“), em que cita Gramsci (o “site” reúne textos gramscianos e sobre Gramsci) e uma renovação coerente de Marx e Engels, e é justamente uma tentativa de propor caminhos teórico-práticos para marxistas superarem não só o dito “dogmatismo”, mas também o limbo de um tempo contra- ou antirrevolucionário:

https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1577

Fotos: Estudos de cinema – classe social, marxismo, Cinema Novo, montagem soviética, realismo, modernismo, pós-modernismo em ‘Cinema Studies: The Key Concepts’, de Susan Hayward, e ‘Engaging Cinema’, de Bill Nichols

Clique nas setas para ver as outras imagens do álbum.

O sucessor do bandido Ricardo Salles prova mais uma vez que é preciso tirar Jair Bolsonaro

Ricardo Salles, que pediu demissão hoje do Ministério do Meio Ambiente do DESgoverno Bolsonaro senão iria preso pelo escândalo de madeiras, é um serviçal de desmatadores, grileiros, empresários do agronegócio, proprietários fundiários, fazendeiros e latifundiários. Não é outra a função da direitalha senão servir ao poder econômico da burguesia destrutiva.

Não me recordo se já contei, mas, quando fazia um curso de arte e política no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em 2019, ouvi de um dos participantes que, quando Salles ainda era secretário do governo Alckmin em SP, ao saber que ele havia ocultado área geográfica da bacia do rio Tietê para favorecer capitalistas predadores, o rapaz – que nos mostrou seus belos desenhos de fauna e flora – o denunciou e, ameaçado de morte, teve de deixar o país… (Sim, isto ocorreu antes de Bolsonaro!)

Salles seria condenado em dezembro de 2018 por esse crime – mesmo assim, o sacripanta Bolsonaro, antes e depois da posse, o manteve nomeado.

No seu lugar, entra agora Joaquim Álvaro Pereira Leite, que já era próximo do sacripanta que não pode continuar no Palácio do Planalto. Haja vista que, tão logo seu nome foi anunciado, já pululam boas matérias a seu respeito:

Família de novo ministro do Meio Ambiente disputa posse em terra indígena em SP (23/06/2021):

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57590288

Ricardo Salles: saída tardia de ministro não mudará política pró-desmatamento de Bolsonaro, dizem ONGs (24/06/2021):

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57595804

Homenagem-síntese ao aniversariante Chico Buarque

E para a alegria de milhares nas redes, Chico Buarque passou pelas manifestações do #19JForaBolsonaroeMourão justamente no dia de seu aniversário (ver vídeo e fotos mais abaixo)!

Vídeo: Mais de 500 mil óbitos na pandemia e manifestações do #19J pelo Fora, Bolsonaro e Mourão!

Abaixo, vídeo amador que fiz para meu canal no YouTube em que coletei, primeiro, as declarações absurdas desse sujeito do início da pandemia em março de 2020 até agora, e depois fotos e vídeos das manifestações nacionais exigindo o fim do DESgoverno:

 

Marxismo e LGBT+: um esboço de alguns apontamentos centrais

<blockquote class=”instagram-media” data-instgrm-captioned data-instgrm-permalink=”https://www.instagram.com/p/CO_r20PDfRm/?utm_source=ig_embed&amp;utm_campaign=loading” data-instgrm-version=”13″ style=” background:#FFF; border:0; border-radius:3px; box-shadow:0 0 1px 0 rgba(0,0,0,0.5),0 1px 10px 0 rgba(0,0,0,0.15); margin: 1px; max-width:540px; min-width:326px; padding:0; width:99.375%; width:-webkit-calc(100% – 2px); width:calc(100% – 2px);”><div style=”padding:16px;”> <a href=”https://www.instagram.com/p/CO_r20PDfRm/?utm_source=ig_embed&amp;utm_campaign=loading” style=” background:#FFFFFF; line-height:0; padding:0 0; text-align:center; text-decoration:none; width:100%;” target=”_blank”> <div style=” display: flex; flex-direction: row; align-items: center;”> <div style=”background-color: #F4F4F4; border-radius: 50%; flex-grow: 0; height: 40px; margin-right: 14px; width: 40px;”></div> <div style=”display: flex; flex-direction: column; flex-grow: 1; justify-content: center;”> <div style=” background-color: #F4F4F4; 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overflow:hidden; padding:8px 0 7px; text-align:center; text-overflow:ellipsis; white-space:nowrap;”><a href=”https://www.instagram.com/p/CO_r20PDfRm/?utm_source=ig_embed&amp;utm_campaign=loading” style=” color:#c9c8cd; font-family:Arial,sans-serif; font-size:14px; font-style:normal; font-weight:normal; line-height:17px; text-decoration:none;” target=”_blank”>Uma publicação compartilhada por Fernando Graça (@f.e.r.n.a.n.d.o.g.r.a.c.a)</a></p></div></blockquote> <script async src=”//www.instagram.com/embed.js”></script>

A CPI da COVID, a eleição de 2022 e o objetivo da direita

Informações dos bastidores da política!

Está prevista para amanhã, dia 27, a abertura da “CPI da Covid” no Senado Federal para investigar e avaliar a omissão criminosa, a sabotagem explícita e a responsabilização do governo Bolsonaro (com e sem o sinistro Eduardo Pazuello, general incompetente que aceitou a conivência mortífera e a humilhação dum ex-capitão expulso) com relação à pandemia. Todo brasileiro sabe – mas especialistas endossam – que bastariam as falas e atitudes de Bolsonaro esse tempo todo para a responsabilização criminal, portanto a CPI serve para confirmar, trazer mais dados concretos e de transparência pública.

No entanto, podemos dizer que a CPI não é nem de longe formada majoritariamente por membros da esquerda, o único espectro político realmente lúcido durante toda a pandemia, mesmo não sendo monolítico e mesmo com momentos de concessões, equívocos liberalóides, utopias (ou peleguice) em relação à burguesia, pragmatismo.

Vejamos – os integrantes plenos da CPI são: Eduardo Braga (MDB-AM), Renan Calheiros (MDB-AL e relator), Ciro Nogueira (PP-PI), Otto Alencar (PSD-BA), Omar Aziz (PSD-AM e presidente da comissão), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Eduardo Girão (Podemos-CE), Humberto Costa (PT-CE), Randolfe Rodrigues (Rede-AP, criador da CPI e vice-presidente), Jorginho Mello (PL-SC) e Marcos Rogério (DEM-RO). Há ainda membros suplentes, praticamente dos mesmos partidos direitistas. PT é centro-esquerda, conta com um membro só, a Rede é oposição ferrenha entre a centro-direita e a centro-esquerda, mas trata-se dum partido errático, que há poucos anos defendia a Farsa Jato. E só. Os outros são de direita, a maioria com um pé no “Centrão” (direita sem ideologia).

Porém, o desenho supracitado é pouco favorável ao presiDEMENTE – não há nenhum nome totalmente fiel a ele e seus crimes. É por isso que o DESgoverno está desesperado, empenhando-se como nunca para se defender, e até mesmo tentando tirar Renan Calheiros da relatoria. Ele respondeu: “Por que tanto medo?”. Não falta quem tenha já dito e escrito que se os sicofantas que hoje possuem o governo federal em mãos tivessem tido o mesmo empenho para combater a pandemia, não estaríamos diante de quase – quase – 400 mil óbitos de brasileiros (e subindo).

Estivéssemos com um mínimo de poder popular, a CPI seria formada por conselhos nacionais de amplos setores da população, incluindo enfermeiros, juristas populares, cientistas e médicos. Como está, no entanto, promete ser uma pedra no sapato da extrema-direitalha. Explico:

Um dos acontecimentos políticos mais importantes da semana passada, que não pode deixar de ser desapercebido a respeito deste assunto, foi a entrevista de Gilberto Kassab, que manda no PSD, afirmando que Bolsonaro não irá para o segundo turno da eleição presidencial de 2022. (O PSD eventualmente faz parte, assim como o DEM, ora sim, ora não, do fisiologista “Centrão”, direita sem ideologia.)

Ao dar a entrevista, sinaliza para os atores políticos que começa-se a atuar com essa hipótese. O objetivo de setores da direita e da “centro-direita” é utilizar a CPI da COVID para desgastar ainda mais a imagem de Bolsonaro (ele tem uma reprovação enorme, sobretudo se considerarmos primeiro mandato) de tal modo que chegue combalido no ano de 2022 e não vá para o segundo turno.

Este também é um dos motivos pelo qual Arthur Lira (presidente da Câmara dos Deputados através de conchavos e negociatas), assim como o anterior Rodrigo Maia, ainda não tirou da gaveta um dos mais de 100 (cem!) pedidos de impeachment. (E Mourão, grau 33 da maçonaria, dum partido pérfido e fraco, tampouco interessa à oposição e à situação.)

Por que a direita quer isso? Primeiramente, porque é mais vantajoso um nome que não seja, de cara, de extrema-direita, “independente”,  terrivelmente ruim, deteriorável, a isolar o país numa geopolítica já totalmente transformada (em português claro, estamos na contramão do mundo), e para continuar as contrarreformas neoliberais, apregoadas pela mídia hegemônica monodiscursiva, com visual low profile, enganoso, já que são os mesmos que apoiaram Bolsonaro antes; segundo, porque a direitalha (que nunca se assumiu como de direita, senão perde voto) está tão prejudicada por conta de Bolsonaro, assumidamente de direita, que eles sabem o que vão enfrentar.

Assim, abre-se espaço para outro candidato da direita, ou seja, esses setores direitisitas e até oligárquicos, representantes do pior empresariado, consideram (e os institutos de pesquisa atestam previamente) que Lula/PT, como sempre, por ter base social sólida e legado, está inevitavelmente no segundo turno e que ele vencerá se enfrentar Bolsonaro (tal como venceria em 2018 não tivesse sido preso indevidamente), daí a preocupação desses setores de emplacar outro nome (que ainda não têm), já que Bolsonaro, além de enfraquecido e encurralado, atuando apenas para se safar de tantos crimes seus e de sua familícia, não dá espaço para Kassab e afins.

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Quando eu tinha 12 anos de idade e já queria ser escritor, fiz uma pergunta a Giba Assis Brasil!…

Para a minha grata surpresa e até emoção, justo nesta fase de minha vida em que estou às avessas com uma crise pessoal e bloqueio criativo, ao pesquisar o meu nome completo no Google, descobri uma pergunta que escrevi quando tinha 12 anos de idade (!) para o roteirista, diretor e montador Giba Assis Brasil, e a sua respectiva resposta (que não poderia ter sido melhor!), publicada abaixo em 2016:

Para um escritor de 12 anos” (no caso, eu ou era/fui eu, embora algo, não tudo, daquele menino de 12 anos ainda esteja em mim, mesmo tendo eu mudado tanto já nestes suicidários 27 anos)

http://www.casacinepoa.com.br/o-blog/giba-assis-brasil/para-um-escritor-de-12-anos

Obs.: Eu não preferia literatura infanto-juvenil, conforme supôs Giba em sua bela resposta. Ao contrário, eu justamente já pendia para as referências literárias que ele sabiamente aconselhou! Não muito tempo depois, ainda na adolescência, eu nunca mais fui o mesmo quando Ficções de Borges veio parar em minha mão por conta dos livros que minha prima-tia dava a partir das sobrinhas dela, estudantes de vestibulares, e também tornei-me especialista em Machado de Assis.

Lula readquire os direitos políticos e está elegível para 2022: vamos pensar?

Não existe “polarização” (farsa da ideologia liberal): existem lutas de classes, ora veladas, ora abertas, como já afirmava o Manifesto Comunista, e com seus respectivos representantes ou lideranças…

Escrevi, há poucas semanas, um texto crítico com relação a Lula, intitulado “Lula e a utopia da conciliação de classes“, mas nunca deixei de considerar o fato inconteste de ser ele a maior liderança orgânica do país e uma das maiores do mundo – em determinados momentos, um protagonista do movimento progressista.

Agora, a reabilitação dos direitos políticos de Lula com a anulação dos processos dos lesa-pátria lavajateiros de Curitiba – por um Edson Fachin que, com toda certeza, quis com sua manobra livrar Sérgio Moro, agradar a gregs e troianos – e, já no dia seguinte, o início do julgamento da suspeição de Moro pelo Supremo Tribunal Federal (que Faschin quis interromper, revelando sua intenção) certamente restauraram a cidadania e provocaram uma onda de alegria, entusiasmo, fôlego e alívio em milhões de brasileiros num momento terrível e cinzento de DESgoverno, falta de liderança, desmobilização, isolamento geopolítico, distanciamento sanitário, crise capitalista, sufoco, descrédito, nenhuma perspectiva, ataques direitistas e pandemia mortífera. Tento não me deixar levar e ter os pés calcados na crítica.

O momento talvez lembre, guardadas as enormes diferenças contextuais e até de estatura das figuras, a ditadura de Vargas I e a promessa de um Prestes Cavaleiro da Esperança redentor, que não se cumpriu. Aliás, ambos – na verdade, Vargas II – subiram juntos em palanque anos depois…

Agora, pensem bem. Se a grande mídia hegemônica – Globo, Folha, Estadão – está fula com Lula  (chamando-o de “monstrengo”, mais uma vez investindo no terrorismo da época da Guerra Fria ao dizer que ele joga o Brasil “num turbilhão de incertezas”, sendo que governou também para eles e para o empresariado por 8 anos, estupidamente nivelando-o com Bolsonaro, já que o plano seria emplacar um direitista que continuasse com as contrarreformas antipopulares, o que eles não têm, etc.), Lula, um utópico da conciliação de classes, imaginem o que os capitalistas e seus capangas fariam contra um comunista, um marxista realmente calcado na teoria e na práxis que fosse intelectual/líder orgânico e tivesse enorme organização popular consigo!

Isto é para vocês verem o quão ignóbil e desprezível é a nossa elite econômica, o quão a centro-esquerda apenas ocupa posições que deveriam ser de uma direita minimamente sensata, o quão irracional é a direitalha, que só ganha com marionetes toscas não-orgânicas, bizarras e exóticas sem projeto sério – Jânio, Collor, Bolsonaro, etc. Diante dessa miséria ideopolítica, resta à doutrina marxista ser ainda minoritária na esquerda – mas sua força é explosiva!

Os destinos de Marighella, Che Guevara, Allende (um médico equilibrado, que disputou eleição nos conformes da regra eleitoral da farsa burguesa, porém autoproclamado comunista e suicidado por Pinochet e EUA!), personagens da Intentona Comunista e muitos outros nomes deste continente e alhures (praticamente todo marxista e comunista) que o digam, a própria História mostra o que acabo de afirmar sobre o elitismo anticomunista…

Para terminar, cabe uma palavra filosófica. Obviamente, não se trata apenas da situação de que uma transformação radical exige uma reação radical, de que um processo revolucionário justificaria a contrarrevolução (fórmula nazifascista em favor dos capitalistas e proprietários fundiários), mas o inverso, a transformação é radical justamente pelas próprias condições dadas no jogo de tabuleiro após a acumulação primitiva e a concentração da posse, porque os oponentes de tal transformação já estão fortemente armados contra a melhoria da humanidade e da socioeconomia para perpetuar seus sórdidos interesses e privilégios de classe dominante, que queremos abolir e socializar a todos e todas.

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CPI da COVID já para enquadrar os crimes do presiDEMENTE Jair Bolsonaro!

Ter, em plena crise e pandemia, cancelado o auxílio emergencial, fechado e cortado o financiamento de mais de 8.000 leitos de UTI, promovido aglomeração praticamente semanal, combatido o uso de máscaras de proteção, desdenhado das vacinas, atrasado a aquisição, propalado negacionismo corrupto da perigosa e ineficaz cloroquina, atrasado oxigênio para Manaus e outras cidades, omitido a própria (ir)responsabilidade, isolado o Brasil – que sempre fora referência mundial em Saúde Pública e em vacinação em massa – do resto do mundo, destruído o ministério da Saúde, calado sem nenhuma palavra de solidariedade a tantos óbitos diários de brasileiros etc. são motivos mais do que suficientes para uma CPI da COVID, de preferência com ampla participação popular, ao invés de ser joguete para a direita desidratá-lo e tentar emplacar outro nome para chamar de seu.

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Ciro Gomes, falastrão do degenerado PDT, agora busca aliança com a direitalha do DEM e do PSD!

Ciro Gomes, falastrão do degenerado PDT, agora se aproxima da direitalha do DEM e do PSD!

Nunca passou do primeiro turno. E é desequilibrado emocionalmente para ser líder ou presidente.

PDT (“Cavalo de Tróia” para a esquerda) está cada vez mais votando com Guedes, assim como o PSB (que deveria retirar o “Socialista” da sigla).

O pior é a mídia hegemônica, monomaníaca quanto às contrarreformas neoliberais, chamando esses partidos de “centro”. No máximo, Centrão (direita sem ideologia, como tenho insistido).

https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/02/27/ciro-busca-aliancas-para-2022-e-diz-que-tarefa-e-tirar-pt-do-2o-turno-contra-bolsonaro.ghtml

Ciro Gomes afirma na entrevista acima de hoje que “a tarefa é tirar o PT em 2022 contra Bolsonaro”. Ora, sou marxista e comunista. Nenhum problema em tirar o PT, APENAS E DESDE QUE FOSSE um grupo com uma organização popular ainda mais à esquerda do que os petistas, que, no entanto, ao contrário do PDT, têm integralmente votado contra os absurdos de Bolsonaro e Guedes. Um grupo contra a peleguice e o pragmatismo.

Não é o caso. Tirar PT com o PDT degenerado junto à direitalha do DEM e do PSD É ENORME ATRASO…

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A bilionária Luiza Trajano, assim como todo capitalista…

Esses dias, saiu pelos jornais a informação de que Fernando Haddad cogita chamar Luiza Trajano, dona do Magazine Luiza, como sua vice para a eleição presidencial de 2022. Assim, o PT – “Partido dos Trabalhadores” repetiria a dupla Lula-José de Alencar (que também era empresário).

A bilionária Luiza Trajano, assim como todo capitalista “bem intencionado”, fala de variadas pautas e temas com a centro-esquerda e direita: ecologia, educação, inclusão social, vacina, direitos, etc. Tal qual a ruralista Kátia Abreu…

Agora, convidem-na para falar sobre mais-valor (a exploração do capital) ou para criticar e superar a sociedade de classes, de preferência na presença de trabalhadores e trabalhadoras do Magazine Luiza. Nenhum burguês se sustenta. Capitalista tem interesses de classe.

A utopia pelega da conciliação de classes foi o que nos atirou no cenário atual de devastação e ataques elitistas e de falta de mobilização popular imbatível. O jogo precisa se inverter.

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Outro livro não-marxista e contra a revolução socialista: refutando Branko Milanović e seu ‘Capitalismo Sem Rivais’

Capitalismo Sem Rivais – O Futuro do Sistema Que Domina o Mundo, lançado em 2020 (ano passado), é outro livro antirrevolucionário (no texto anterior, que merece ser lido, demoli Hayek), e este tem a decência ética de reconhecer a desigualdade no capitalismo. É fraquinho, mas devemos saber o que não-marxistas tentam pensar, e é fácil provar que não é nada de fecundo.

Duas ideias são oferecidas: “capitalismo meritocrático e liberal” (que nomezinho!) e “capitalismo político” (?!). O primeiro pretende se referir aos EUA; o segundo, à China. Não me aprofundarei no papel do complexo industrial-militar nem no fato de que o Estado capitalista dos EUA subsidia as empresas tal como o apoio do governo chinês às empresas da China. E lhe falta o básico sobre a teoria do Estado e sua história superestrutural a partir da estrutura!

O central está no último capítulo, denominado “Futuro do capitalismo global”. Após apresentar o capitalismo contemporâneo como “amoral” por impor a forma mercadoria a quase tudo (ao menos isto!), Branko Milanović (que já deu entrevista ao programa brasileiro Roda Viva da TV Cultura) pergunta se há um sistema que possa substituí-lo. A sua resposta é thatcherista: “o problema com tal avaliação sensata é que não há uma alternativa viável para o capitalismo hiper mercantilizado”. Sua justificação: a) “as alternativas criadas no mundo se mostraram piores – algumas delas muito piores”; b) “não se pode ter a esperança de manter tudo isso” – ou seja, os “bens e serviços que se tornaram parte integral de nossas vidas” – “destruindo o espírito aquisitivo ou eliminando a acumulação de riqueza como a única forma de sucesso”.

No primeiro pseudoargumento, toma as experiências dos “socialismos reais” como definitivas, sendo que no mesmo livro as considera infiéis ao pensamento de Marx! E lhe falta antropologia política para afirmar categoricamente que são “piores”! Acertadamente, viu que não alcançaram o socialismo – eram sociedades atrasadas que alçaram-se no caminho do desenvolvimento capitalista. (Para este aspecto, é importante conferir a teoria do elo mais fraco, elaborada por Lênin.) Porém, é falácia (i)lógica presumir que eventos de ontem eliminam eventos de amanhã.

A segunda conclusão requenta a perversa pseudotese de Fukuyama com utilitarismo e pragmatismo ainda mais burgueses. O próprio Fukuyama já se desfez dela, conforme lemos na imprensa! O cínico Milanović saúda o egoísmo como um traço desejável da “natureza humana”. Puro idealismo. Deve ter achado isso depois de liderar pesquisa no Banco Mundial…

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O melhor argumento contra o socialismo ainda é ruim: refutando Hayek e ‘O Caminho da Servidão’

O melhor argumento contra o socialismo ainda é muito ruim. Está em Friedrich August von Hayek (1899-1992), opositor impenitente de qualquer forma de socialismo e até de qualquer social-democracia; anticomunista, antimarxista, aquele que afirmou preferir uma ditadura sanguinária como a de Pinochet com mercado autorregulado (neoliberalismo) do que “democracia” com regulação. O Estado vira pura coerção; o mercado, pura tirania. Fome e repressão. Basta isto para qualquer ser lúcido manter-se distante desse perverso. Mil vezes melhor um Polanyi, na mesma época pós-guerra, contra a forma mercadoria: a autorregulação do mercado é que levou ao nazifascismo, porque, ao ver-se ameaçada, a classe trabalhadora faz movimento brusco para proteger-se (infelizmente, tal movimento, a priori revolucionário, é cooptado pelos nazifascistas reacionários)!

É preciso, porém, encará-lo para desmontá-lo:

A pseudotese deste autor da “escola austríaca” vê o mercado como um sistema descentralizado e “insuperável” por promover o encontro de ofertantes e demandantes de mercadorias. Nada sobre classes sociais! Contra qualquer intervenção socialista, Hayek o define como uma “auto-organização insubstituível” (pérfida metafísica!) que reproduziria a sua própria estrutura. Ora, um sistema autônomo e livre de liames sociais não existe, e ninguém jamais conseguiu provar sua existência! (Cf. Lukács, Conversando Com Lukács, São Paulo: Instituto Lukács, 2014, p. 54.) É ficção. Nem mesmo admite a intervenção do Estado burguês pela legislação e na segurança coercitiva da propriedade… Para Hayek, a relação sob o capitalismo seria espontânea – mas, na vida real, constatamos que o mercado é, na sociedade de classes burguesa, seletivo e hierarquizado, sem contar o papel da mídia e da propaganda, que servem à classe dominante!

A economia mundial, para Hayek, não opera com a razão. A razão pode arruiná-la. Ora, estamos diante dum irracional confesso! A justiça social destruiria “uma civilização que nenhuma mente planejou, pois ela cresceu a partir dos esforços livres de milhões de indivíduos”. Podemos notar, assim, que Hayek, como todo direitista, não sabe de História (sobretudo a história da acumulação primitiva mostrada por Marx em O Capital). Hayek diminui a construção humana para elevar e santificar um sistema abstrato.

Fácil desmontar o cerne da pseudotese: basta apontar sua defasagem quanto à teoria do valor e mostrar que, seguindo o erro do liberalismo e da economia vulgar desde o século XIX, Hayek apreende o capitalismo apenas na aparência (a circulação de mercadorias), sem alcançar ou até escamoteando a relação de produção que é sua essência: a contradição entre capital de um lado e trabalho assalariado do outro, comprovada pelo mais-valor (ou mais-valia, na tradição tradutória brasileira) e que revela a exploração classista e a dominação política.

Por que é o melhor (pseudo)”argumento” contra o socialismo, então? Porque o socialismo, para ter sucesso, não pode ser governado por um “sujeito automático” e “acumulativo”, e sim por um télos associado às necessidades humanas e ao enriquecimento cultural de todos. É famoso o lema comunista por excelência lançado por Marx na Crítica do Programa de Gotha para a transição socialista: “De cada um conforme suas capacidades; a cada um conforme suas necessidades!”

E por que é ruim, além dos equívocos já apontados? Porque não passa duma apologia barata (apologia do mercado capitalista tirano) com pitadas de charlatanismo, exacerbação idealista do individualismo e até bandidagem fascistóide e burguesa, que só serve à matriz da corrupção, que certamente advém do próprio mercado: um sistema baseado na concentração dos meios de produção e no lucro acima de tudo só pode ser corrupto e, hoje em dia, cada vez mais autocrático com seus bilionários, monopólios, conglomerados, OMCs, FMIs, FIESP, CIESP, etc. etc. etc. a decidir tudo de cima para baixo a despeito do povo, dos trabalhadores e mesmo dos partidos ou organizações democráticas.

Na construção da sociedade comunista (abolição do capital, fim da divisão e antagonismo de classes, abolição do sistema de trabalho assalariado em nome do trabalho fundante, dissolução do Estado-coerção, meios de produção socializados para a sociedade, propriedade comunitária, etc. etc. etc.), o mercado sem dúvidas terá de ser mitigado ou até destruído, conservando dialeticamente o que possa haver nele de de positivo para a humanidade.

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‘Big Brother’: parece que só no Brasil a esquerda morde a iscarmadilha da Globo capitalista e golpista…

O ‘Big Brother’ (produto-entretenimento superficial e importado com marketing, propaganda, clichês e diálogos e cenas manipulados em que subcelebridades egoístas e malévolas se devoram para ganhar dinheiro) faz sucesso no mundo todo, mas não sei se a esquerda dos respectivos países morde a isca tão fácil assim como a esquerda brasileira, partidos, movimentos sociais, que se envolvem a tal ponto no ibope lucrativo, mordem a isca do marketing de identitarismo da Globo capitalista, emissora hegemônica que defende diariamente as contrarreformas neoliberais e o mercado. Preferem ser aceitos, empregados, cooptados pelo capitalista branco e hetenormativo do que realmente destruir a estrutura capitalista! É degradante.
Basta dar uma olhada nas redes antissociais.
A esquerda brasileira (aqui, sim, igual à do resto do mundo em retaguarda pós-moderna), contaminada de identitarismo, de arrivismo, em falta de construção revolucionária e lutas de classes, morde a isca da Globo, porta-voz de banqueiros e elite econômica. A Globo – progressista e liberal nos costumes, mas conservadora na economia – “sacou” isso e se dá bem jogando com o identitarismo. Não é à toa que a extrema-direitalha à lá Bolsonaro (mas também no resto do mundo) acaba agregando e enganando setores populares da classe trabalhadora, que identificam a esquerda lato sensu com esse “lixo cultural” importado, transbordando ideologia pequeno-burguesa e individualismo. Precisamos de Arte (e o Brasil a tem de sobra), da criação de uma nova cultura crítica e popular, de Economia Política, de Filosofia da práxis, de jornalismo e debates públicos que conscientizem o que acontece no país, não disto, muito menos da Record charlatã, retrógrada e evangelofundamentalista.
7 de fevereiro de 2021

Lula e a utopia da conciliação de classes

“Você está lembrado qual foi a atitude que eu tomei quando eu ganhei as eleições? Você está lembrado que eu coloquei todo ministério em um avião e levei todos os ministros para os quatro lugares mais pobres do Brasil? O que que eu queria com aquilo? Eu queria que um Meirelles, que era banqueiro, eu queria que um Palocci, que era médico, eu queria que um Furlan, que era empresário, conhecesse uma palafita, que vissem o homem e a mulher [que] no mesmo lugar que eles defecavam eles comiam, eu queria que eles vissem a quantidade de meninas com dois ou três filhos com pai desaparecido, eu queria que eles vissem o vale do Jequitinhonha, queria que eles conhecessem o mundo tal como ele é, não o mundo de Brasília. Então a esquerda tem que assumir compromisso”. – Luís Inácio Lula da Silva, entrevista a Glenn Greenwald no cárcere, 21 de maio de 2019 (vídeo completo; transcrição em texto)

“Twitte” oficial de Luís Inácio Lula da Silva a partir de entrevista sua em fevereiro de 2021.

Jamais me esquecerei – e quero ainda pôr isto em cena teatral tragicômica – de Lula, a maior liderança popular e orgânica de centro-esquerda do mundo contemporâneo, o único a encher de gente tanto o Nordeste quanto a Avenida Paulista, partícipe das maiores greves do país, ex-metalúrgico de base, co-fundador de um Partido dos Trabalhadores, Presidente do Brasil duas vezes em eleições históricas e de massas, na cadeia, em entrevista a Glenn Greenwald (em que, inclusive, lembra enfático que nunca declarou que faria um governo socialista), ORGULHOSO em contar que seu ato primeiro de governo foi reunir seus ministros, o banqueiro Meirelles, o empresário Furlan, o médico Palocci e levá-los para ver como vivem os brasileiros nas palafitas (ele mesmo viveu em uma, sabe na pele como é!), metro cúbico em que onde se come é também onde se faz as necessidades fisiológicas. Se eu fosse pintor, já teria pintado a cena memorada em estilo portinaresco.

Este episódio factual é o suprassumo da utopia da conciliação de classes, que se tornará visivelmente insustável com a Presidenta Dilma Roussef! Utopia na acepção negativa da palavra. É o cúmulo da ingenuidade! Ou talvez não seja ingenuidade: “Vim mais à FIESP do que à CUT“, declarou o Presidente Lula em 2010, já deixando o segundo governo, a empresários de São Paulo, e não em tom de arrependimento, e sim para mostrar ao empresariado capitalista que eles “nunca ganharam tanto dinheiro” quanto no seu governo, que esteve mais ao lado deles do que da Central Única dos Trabalhadores… De qualquer forma, trata-se de um dos piores e melhores momentos da História do Brasil! Quem quer entender o que vivemos hoje precisa mergulha na reflexão daquele acontecimento. É exemplo do que a esquerda não deve fazer, é exemplo tácito de que devemos lutar para fazer o oposto! Um ex-metalúrgico (profissão extinta, aliás), com a máquina do Estado brasileiro nas mãos, servindo de mediador político entre subproletariado e apáticas burguesia e pequena-burguesia, que odiarão a mínima ascensão social promovida, no momento mesmo em que o capital hegemônico estrangeiro, especialmente da reação dita imperialista dos EUA, tampouco admitirá o protagonismo brasileiro! As lutas de classes são um dado científico, e as primeiras linhas do Manifesto Comunista de 1848, o qual o ex-deputado federal petista José Genoíno (partícipe na Guerrilha do Araguaia e de reputação destruída após o famigerado “mensalão”) cita no final de entrevista de 4 dias atrás como norte da fileira pela qual ele luta, mostrou que “opressores e oprimidos sempre estiveram em oposição, travando luta ininterrupta, ora velada, ora aberta, uma luta que sempre terminou ou com a reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou com o ocaso conjunto das classes em luta”. (Resta saber, tendo como base de discussão a argumentação lançada pelo grande filósofo Álvaro Vieira Pinto em Consciência e Realidade Nacional, o momento em que as lutas de classes nacionais, internas, seriam menos importantes e mais secundárias do que as lutas de classes entre o país subdesenvolvido e as forças externas hegemônicas, mas Vieira Pinto defende essa tese antes do golpe de 64, pensando em ampla integração desenvolvimentista nacional e com boas reformas estruturais em torno de João  Goulart… A revolução pode ser incerta, mas a contrarrevolução, neste continente que luta há séculos por sua emancipação, é sempre certa, daí a necessidade da construção revolucionária e da luta pela hegemonia antes da conquista do poder governamental, tal como propõe Antonio Gramsci.)

Mas não poderia ser mais tragicômico o episódio referido: Henrique Meirelles (24° Presidente do Banco Central do Brasil sob o governo Lula) depois foi ser ministro da Fazenda do governo ilegítimo de Michel Temer pós-golpeachment, depois Secretário da Fazenda e Planejamento do governo estadual austero do tucano João Doria, ou seja, nem quis saber da prisão de Lula, retirado propositalmente da eleição, e de seu impacto ao país, enfim, tem cabeça de banqueiro (salvo engano, a sua candidatura à presidência em 2018 foi a mais cara de todas, talvez mais cara do que a do tosco Amoedo do Partido “Novo”: Meirelles, o gorduroso indolente, se deu ao luxo de tirar milhões do bolso, mesmo sabendo que perderia!), assim como Luiz Fernando Furlan (ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo Lula) tem cabeça de empresário, e ambos devem embarcar nos últimos anos – ou desde já aquela época da coalização entre PMDB e PT – na monomania midiática desprezível e renitente de contrarreformas neoliberais (defendidas agora por Lira e Pacheco no DESgoverno Bolsonaro, que já em campanha em 2017 e antes da posse, em 2018, primou pelo ódio racista às classes subalternas e defesa vocal do patronato), contrarreformas que nos atiram no atraso e atacam a classe trabalhadora, que dirá os brasileiros quase sem classe que vivem em palafitas, já que, de lá para cá, também aumentou o número de seres sociais e até famílias nas ruas, pivetes nos sinais – doenças que tinham acabado, assim como o Brasil retorna ao Mapa da Fome do qual tinha se livrado pelo projeto petista (Fome Zero e outros); Antonio Palocci (ex-ministro da Fazenda no governo Lula, tendo renunciado) talvez seja caso ainda pior, pois, como todos sabem, voltou-se direta e pessoalmente contra Lula (que o rebateu e o justificou chamando-o de “médico, frio” diante do juizeco-asset Sérgio Moro), acusando Lula em processo de corrupção para se safar em delação premiada (a Polícia Federal acabou concluindo que a delação de Palocci não se sustenta).

Eis a índole bandida da burguesia e da pequena-burguesia, e toda política conciliatória pragmatista significa nos colocar nas mãos dessa gente cujo rosto sem máscaras é Bolsonaro, porta-voz de todos os vícios, esculhambações, incompetências, crueldades e pensamentos mais secretos e sinceros da educada e bem asseada burguesia, tal como o fenômeno que ocorre no romance O Retrato de Dorian Gray, do socialista Oscar Wilde, e tal como Hitler em 1932 em discurso num clube de industriais alemães, afirmando que para a classe dominante perpetuar seus privilégios, seria preciso sacrificar as outras classes, porque a crise havia mostrado que “não há o suficiente para todos” (como se vê, o nazifascismo, surgido do capitalismo, é o extremo-oposto do generoso e justo comunismo, cuja fórmula Marx inscreve na Crítica do Programa de Gotha: “de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade“)…

O próprio sociologóide weberiano FHC, muitas vezes visto como o contraposto de Lula (adversários clássicos e representantes políticos de classes em conflito entre si), denominado “príncipe dos tucanos”, incólume pela justiça elitista, que surge sempre na mídia grande como se tivesse sido exemplo de presidente (na verdade, seu governo fraco e pró-FMI testemunhou significativas greves, fome, desleixo social), disse, anos atrás (cerca de 2008) em entrevista ao Canal Livre, que Lula, apesar de ter sido metalúrgico, surgido das Grandes Greves do ABC Paulista, nunca viu o mundo sob o prisma das lutas de classes, e sim da conciliação, de uma democracia cristã ou algo do tipo. Quão certo ele está! Sentando-se com o empresariado da FIESP de um lado e sindicatos e organizações de trabalhadores do outro, esse intruso (para as elites) vindo num pau-de-arara do sertão pernambucano, mas ingênuo “antileninista”, não duvido que com a melhor das intenções e em busca do bem comum (o qual será sempre superficial na sociedade de classes, a menos que vire bem comunista, isto é, tomada, expropriação, distribuição e socialização da propriedade privada dos meios de produção), julgava encontrar para ambas as partes luz no fim do túnel. A luz era um trem.

Na verdade, foi pior do que isto, foi pior do que ingenuidade. “Vim mais à FIESP do que à CUT“, declarou Lula em 2010 a empresários em São Paulo, no ano em que deixava seu segundo governo. E tal frase não era em tom de arrependimento, e sim para mostrar ao empresariado capitalista que eles “nunca ganharam tanto dinheiro” quanto no seu governo, que esteve mais ao lado desses do que da Central Única dos Trabalhadores.

O “cavalheiro da esperança” vã, Prestes, nos anos 1980, já tinha um pé atrás e insistia em entrevistas que Lula deveria ler teoria, ser marxista, uma vez que era quadro orgânico advindo da classe trabalhadora e da base da pirâmide social. Não basta sentir na pele, se não se assimila no cérebro. Aqui, há toda a problemática da Crítica (da teoria) e da prática a ser resolvida dialeticamente em unidade (muito bem formulada por Gramsci), jamais com dualismo. Mas o PT possui ojeriza da teoria e nem mesmo a sua Fundação Perseu Abramo estimula a práxis a partir de uma teoria minimamente marxista. As escolas do MST, que possuem como guia Paulo Freire, vão até onde? Quem poderia suprir essa defasagem em Lula, a “cabeça” de Lula para finalmente chegar à vitória federal após quatro derrotas (ainda que tenha chegado sempre no segundo turno) foi José Dirceu, que era comunista na juventude, mas não mais na maturidade sob o marqueteiro eleitoreiro Duda Mendonça e a Carta ao Povo Brasileiro para acalmar o mercado com a vitória em 2002. Hoje, sim, com a reputação destruída, Dirceu retorna ao discurso socialista (basta assistir o final de sua entrevista com o liberal social Fernando Haddad), assim como José Genoíno, ambos tentando recuperar o tempo perdido… Este último assumiu, na entrevista já referida de 4 dias atrás, que o “PT teve ilusões com o compromisso democrático da burguesia”. Estranho que tenha sido preciso um trauma tão grande, que fez até mesmo camadas populares, não só a pequena-burguesia, ter ressalvas a um partido que se chama dos trabalhadores após a intensa campanha midiática de demonização com táticas da Guerra Fria, financiada pelos capitalistas com o dinheiro da classe trabalhadora, para surgir a consciência do óbvio.

De fato, mesmo nos estertores recentes, quando as instituições burguesas mostram-se falidas, quando a Constituição de 1988 demonstra suas fragilidades sociais e políticas e uma franja pilantra e alucinada chamada extrema-direita irrompe com discurso radical, não cabe à esquerda ser conservadora e defender as intuições que só prejudicam a classe trabalhadora, e sim ser ainda mais radical e mostrar a farsa do outro lado. Não cabe falar em “democracia em vertigem”, pois esta democracia é a ditadura do capital, e há uma outra democracia possível, popular, direta, de conselhos a ser defendida, não a “democracia” das instituições conservadoras na economia. (Aliás, o documentário de Petra Costa é crítico, ao contrário do que muitos dizem, porque não só registra o fato do partido ter se distanciado das bases em nome do pragmatismo, como também mostra o Lula que confrontava os bancos nas campanhas em que perdeu, até investir na ampla agregação nacional, quando ganhou.)

O máximo que Lula conseguiu chegar foi em histórico vídeo do tradicional dia 7 de setembro de 2020 (Dia da Independência do Brasil), ainda que com trilha de fundo forçada, já liberto, em que destoa muito acima do discursesco deplorável e esquecível do medíocre, limitado, tacanho, tartamudo Jair Bolsonaro e critica o capital (fez quase lembrar o célebre discurso de Lincoln, que distinguia o capital do trabalho, assim como Marx, que lhe escreveu efusiva carta na Associação Internacional dos Trabalhadores) e mostra-se um verdadeiro líder protagonista e calejado, mas isto não passa de retórica, pois as pautas petistas são as mesmas, agora sem boom dos commodities, e há mesmo socialistas, comunistas, marxistas já se perguntando se o discurso anticapitalista do PT não serve para conquistar eleitoralmente as esquerdas sem entregar realmente pautas compatíveis com a fala… Só haverá transformação real nesse partido (e sua renovação para transformar o Brasil, já que é o maior do chamado “campo progressista”) quando a Juventude Socialista do PT deixar de ser agremiação de militontos, virar realmente socialista e expulsar, junto à classe trabalhadora, a cúpula jurídico-pelega, ou então é melhor disputar a teoria revolucionária num partido dito comunista ou apostar as fichas e a energia na criação dum novo partido…

O fato é que a centro-esquerda petista, cada vez mais burocrática (ou pelega, se quiserem, mas sem surpresas, pois o PT nasce não do marxismo e sim do sindicalismo que já acabou enquanto espaço amplamente agregador das lutas e que se limitava a melhores condições de trabalho e a melhores salários, sem nada falar de mais-valia ou mais-valor), surfando com extrema competência administrativa e sensibilidade social no boom dos commodities, desconsiderando até mesmo reformas em troca de programas sociais, entre o pragmatismo, o assistencialismo, o consumismo, o eleitorismo e outros ismos, fortalecendo a carteira assinada, mas sem consciência revolucionária (foi fácil a direitalha surgir e destruir tudo, pois não havia estofo construído por baixo), pintou de lindos esmaltes as unhas da elite capitalista, até o esmalte se desgastar e revelar as garras dos monstros…

7 de fevereiro de 2021

Estado e sociedade em Gramsci

Texto integral

Resumo

No artigo disponível acima, em profundo contato com os Cadernos do Cárcere e outros textos gramscianos e marxistas fundamentais, praticamente a cada parágrafo, eu mostro que, para o líder dirigente do PCI, militante da Internacional, deputado preso pelos fascistas e grande intelectual marxista Antonio Gramsci, Estado e sociedade estão em relação dialética, não dualista.

A separação entre ambos só interessa à ideologia direitista-burguesa, que demoniza o público, torna o Estado pura coerção, reivindica a tirana autorregulação do mercado (neoliberalismo e correlatos) e camufla a dominação de classes na sociedade civil (tida como espaço da “livre iniciativa”), seja sob a dominação da fábrica/empresa capitalista ou do consenso em escolas, mídia, jornais etc. Há, por outro lado, ingênua fenomenologia pós-moderna, sobretudo anarquista, pior ainda quando cita Gramsci (sem o estudar), que cai na armadilha liberal e, ao invés de lutar pela hegemonia da classe subalterna para esta tornar-se dominante (isto, sim, é Gramsci puro!), rejeita a luta política, reafirma a sua subalternidade.

Ao separar a superestrutura marxiana e engelsiana em dois níveis (“sociedade civil” e “sociedade política”), Gramsci une os dois níveis em teoria inovadora e fatídica sobre o Estado através do termo indissociável estrutura-superestrutura. (Basta citar o poder do lobby nas decisões dos parlamentos, o vínculo podre entre empresariado e políticos profissionais, a legislação burguesa que molda as ações da sociedade sob a forma mercadoria ou o notório fato de que as forças militares do Estado servem à defesa da propriedade privada dos meios de produção da burguesia…)

Gramsci, enfim, mostra que a sociedade civil é um momento do que ele chama de Estado integral ou ampliado e uma arena das lutas de classes. “Todo Estado é uma ditadura.” Esta teoria sustenta as estratégias práticas gramscianas da revolução no Ocidente (“guerra de posição”, “guerra de movimento” etc.) e a tese da “sociedade regulada” (comunismo), que é construída à medida que o Estado-coerção esgota-se e dissolve-se na sociedade civil para o fim da divisão de classes após a conquista do poder por trabalhadores revolucionários, de forma organizada e gradativa (tal como em Marx, Engels et al., com a diferença de que G. inova ao defender a conquista da hegemonia antes da conquista do poder governamental).

Leia o texto integral:

Dia péssimo – Arthur Lira eleito presidente da Câmara dos Deputados com apoio corrupto de Jair Bolsonaro

Jair Bolsonaro e Arthur Lira (Progressistas-AL): clientelismo, corrupção – direitalha mamateira e extrema-direitalha.

Dia triste. Abre-se um novo capítulo, com certezas e incertezas. Se ontem sentia-se o cheiro de impeachment por tantos crimes, hoje tudo se torna mais complicado.

Bolsonaro fará uma “reforma ministerial” para acomodar o Centrão em cargos fartos da alta burocracia federal, depois de torrar nosso dinheiro com emendas parlamentares bilionárias (cerca de R$3 bilhões, mais meio milhão de reais a véspera da eleição, em plena crise e pandemia) para comprar a velharia do Congresso. O Centrão lhe dará ainda mais musculatura, mesmo sendo este o DESgoverno mais inepto e tendo já nos isolado do resto do mundo. Quem quer mudar o Brasil, precisa entender que Lula (que também teve de fazer uma reforma ministerial para se sustentar mais, embora tivesse equipe competente e amplo apoio popular), Dilma e qualquer outro ficou nas mãos do Centrão, portanto é preciso investigar a base social e eleitoral na sociedade brasileira desse Centrão (uma direita sem ideologia, apenas fisiologista e mamateira). Só “paredão” (Paredón) não adianta, porque esses canalhas não brotam do “nada” nem vêm de Marte. Também é preciso insistir que a direitalha, incluindo PSDB, mídia e demais partidos de centro-direita, têm um enorme dedo de responsabilidade no que estamos vivendo, porque a direita no Brasil só ganha eleição apelando (Jânio Quadros, Collor, Bolsonaro – e basta lembrar da compra de votos pela reeleição de FHC), ou seja, não teve a mínima vontade de atacar a extrema-direitalha como se deve. À esquerda, nossa crítica se deve à falta de radicalidade nas pautas, à falta de estudo da teoria marxiana e de estratégicas socialistas que contribuam para uma construção revolucionária entre o povo, que prepare a sociedade civil pela disputa da hegemonia e eventual tomada de poder. Para ajudar na investigação desse obstáculo aos avanços sociais que é o Centrão, cumpre começar o básico, ou seja, a sua faceta institucional. O Centrão, hoje, é constituído pelos seguintes partidos: PP (40 deputados), Republicanos (31), Solidariedade (14) e PTB (12), mas, dependendo da situação e de quem der mais, juntam-se a estes o PSD (36 deputados), o MDB (34), o DEM (28), o PROS (10), o Partido Social Cristão (9), o Avante (7) e o Patriota (6).

O importante é que vocês entendam que, na hora do pragmatismo, nosso problema não é porra de fascismo nenhum. É direitalha e Centrão. Esquerda que fizer pesquisa a respeito disso terá caminho para começar a mudar o cenário a médio e longo prazo.

E, por trás da direitalha e do Centrão, o capital, a estrutura. Não seriam quem são não fosse a defesa do lucro, de setores fundamentais do empresariado brasileiro, etc.

Mas o mais importante é entender o papel da classe trabalhadora e do povo-nação nisto.

Agora, vamos a uma crítica ao tal “centro democrático”, que inexiste, apesar da ingenuidade da esquerda não-revolucionária, que parece adorar ser eternamente resistente e sadomasoquista, ao invés de usar sua plataforma mais bem estruturada e solidificada para trabalhar para governar e ensinar trabalhadores a governar:

O tragicômico da situação: PT, parte do PSOL (que depois foram vencidos e tiveram de votar em Erundina), PelegodoB, PDT e PSB (o menos de esquerda de todos), ou seja, partidos de centro-esquerda ou ditos de esquerda (138 deputados) apoiaram Rossi (crítico de Bolsonaro, apoiador das contrarreformas neoliberais), crentes de que o “habilidoso” Rodrigo Maia (DEM-RJ), que não passa dum banana e conivente, conseguiria elegê-lo contra Arthur Lira (Progressistas-AL). São uns ingênuos, para dizer o mínimo e no eufemismo… A direitalha só estava fechada com Rossi para chanteagar Bolsonaro a lhes dar mais. Tão logo isso ocorreu às vésperas da eleição, eles debandaram do lado de Maia para o lado de Lira. Não há ética nenhuma, nada importa a não ser dinheiro para seus redutos eleitoreiros e cargos fartos. Basta ver quantos votos Rossi recebeu, e de quem foi… Rs… A esquerda se presta a este papel ridículo! E, se parece sonhadora demais quando se desgarra desse pragmatismo da democracia liberal burguesa, deve procurar saber por que não tem força, para além de eleições, e sim em termos de construção social gradativa e estável (tal como propõe Gramsci).

Teria sido mais digno lutarem e votarem na Erundina ou num nome próprio, forte, ainda que mediador para além da esquerda, se é que há algum.

Faz lembrar de um episódio típico que eu ainda quero escrever para uma peça, colocar em cena! É como Lula, em seu primeiro ano de governo, levando seus ministros, o banqueiro Meirelles, o empresário Furlan e o médico Palocci para irem ver como o brasileiro vive em palafitas. E daí?! Não existe conciliação de classes, sobretudo quando já nada tem a ver com nazifascismo. Meirelles fez parte do governo ilegítimo do Temer, depois do Doria, é banqueiro, enfim; Furlani, cabeça de empresário, e Palocci (homem “frio”, segundo o próprio Lula diante do juizeco Moro) voltou-se contra Lula, invenntando mentiras contra ele em delação premiada para se safar. Essa ingenuidade na esquerda só é justificável por sua fraqueza, mas deve-se justamente buscar a força popular (não a força da velharia oligárquica e burguesa) para não se incorrer mais nesses episódios ridículos, que só levam a derrotas degradantes e vexatórias !

Com Arthur Lira, que ontem tinha discurso de paz e harmonia e hoje, mesmo dizendo que governará com direita, centro e esquerda, o tom será revanchista, com mais retrocessos à vista. Com ele, como com praticamente todos os antecessores, a Câmara Federal, antes de ser a Casa do Povo, é uma câmara anecoica, surda aos verdadeiros anseios da maioria.

Quanto a Bolsonaro (enfraquecido, apesar da maior musculatura  do seu DESgoverno) e seus milicos, não terão vida fácil: mês a mês o governo abrirá os cofres para saciar o Centrão, nosso dinheiro esfolado sem dó, sobretudo o dinheiro suado de milhares de brasileiros que trabalham na base da pirâmide social e que nada recebem em troca, nem sequer administram o que produzem ou lhes é ensinado a tomar os meios de produção. A tal da direita rachou. O Brasil ainda está sem projeto, sem futuro, sem emancipação, sem liderança.

Ps.: Rodrigo Pacheco (DEM-MG), apoiado por Bolsonaro e pelo PT, foi eleito no Senado Federal.

Ps.: A bandida Bia Kicis, investigada por disseminar fakenews criminosas e defender atrocidades direitistas, das poucas ferrenhas apoiadoras do DESgoverno Bolsonaro (junto à pilantra Carla Zambelli), presidirá a Comissão de Constituição e Justiça, a mais importante da Casa, pois é ali que se decide se passa ou não um projeto de lei. Eis um dos frutos abomináveis do “toma-lá-dá-cá”.

Ps.: Li nos jornais que há imensa expectativa da bancada ruralista em passar todo tipo de retrocesso e regressão: liberação de mais agrotóxicos, revisão dos processos de demarcação de terras indígenas, flexibilização do licenciamento ambiental e a regularização fundiária na Amazônia, etc. O que é o inferno de Dante perto disto?!

É degradante ser apenas resistente pelos tempos que virão. É preciso mais, é preciso pôr tudo isso abaixo! Não tenho carro nem sei andar de bicicletas para participar das carreatas em pandemia (as quais apoio e incentivo), mas tão logo houver imunização geral, é rua para mobilização popular, no mínimo.

Sobre o tripé marxiano ou marxista – a tese das “três fontes” em Engels, Kautsky, Lênin, Gramsci, Chasin, etc.

Texto em construção

Após muitas perguntas sobre esse termo que eu devo ter inventado, cumpre-me apresentá-lo, sobretudo neste momento de tantos desvios e deturpações com relação à teoria revolucionária. O termo é meu, mas não é nada de original ou de novo; trata-se da tese das “três fontes” e “três partes” do marxismo, ora criticada, ora reivindicada.

O marxismo não é monolítico; é, muitas vezes, oscilante, até contraditório e com divergências ferrenhas na própria luta ideopolítica. Porém, a teoria marxiana revolucionária é constituída por alguns princípios socioeconômicos, científicos, filosóficos e políticos básicos sem os quais não há marxismo de fato, porque tratam-se de descobertas seminais e próprias. (Por exemplo, sem a teoria do valor não se identifica a exploração do capitalismo; sem a concepção materialista da história, não se explica a estrutura e a superestrutura, etc.)

Engels

Exposição mais ou menos coerente do método dialético e da ideologia comunista defendida por Marx e por mim, numa série de domínios bastante vastos“, segundo escreve o próprio Friedrich Engels, a obra Anti-Dühring (1877 – recomendo a edição da Boitempo), que formou a primeira geração de “marxistas”, já visava se opor às deturpações do que seria o socialismo; livro “contemporâneo” a Marx, que, mesmo estando ocupado com O Capital, revisou e ajudou sobretudo a parte de Economia Política. A ideologia marxiana é dividida por Engels (ainda que interdependentes entre si) em Filosofia, Economia Política e Socialismo. Abaixo, o índice do livro (a parte da Filosofia será posteriormente criticada por Lukács, na medida em que a dialética engelsiana, com enfoque demasiado na natureza, desconsideraria o homem, o que compromete a práxis revolucionária):

Seção I – Filosofia

111. Subdivisão. Apriorismo
IV. Esquematismo do mundo
V. Filosofia da natureza: tempo e espaço
VI. Filosofia da natureza: cosmogonia, física, química
VII. Filosofia da natureza: mundo orgânico
VIII. Filosofia da natureza: mundo orgânico. Conclusão
IX. Moral e direito: verdades eternas
X. Moral e direito: igualdade
XI. Moral e direito: liberdade e necessidade
XII. Dialética: quantidade e qualidade
XIII. Dialética: negação da negação
XIV. Conclusão

Seção II – Economia política

111. Teoria do poder. Continuação
IV. Teoria do poder. Conclusão
V. Teoria do valor
VI. Trabalho simples e trabalho composto
VII. Capital e mais-valor
VIII. Capital e mais-valor. Conclusão
IX. Leis naturais da economia. Renda fundiária
X. Da História crítica

Seção III – Socialismo

Seção 111 – Socialismo
I. Aspectos históricos
11. Aspectos teóricos
111. Produção
IV. Distribuição
V. Estado, família, educação

Kautsky

As três fontes do marxismo (1908), livrinho de Karl Kautsky, teórico importante para o marxismo e que tivera contato com Marx e Engels no século 19, mas que logo no século 20 será chamado por Lênin de “o renegado Kautsky” por lamentavelmente ter apoiado a guerra imperialista de 1914, já expunha as três fontes a partir do que fora organizado por Engels em Anti-Dühring, porém de maneira mais acessível. Kautsky expõe as três explícitas influências: a economia política inglesa (Adam Smith e David Ricardo), a filosofia alemã (sobretudo Hegel e Feuerbach) e o socialismo francês (que Engels, em seu célebre ensaio Do socialismo utópico ao socialismo científico, opúsculo retirado do Anti-Dühring, chamará de “utópico”, isto é, o socialismo de Saint Simon, Charlie Fourier, Robert Owen, mas no qual Marx, antes de fundar o socialismo científico, entra em contato teórico-prático em sua experiência com a classe trabalhadora francesa revolucionária).

Lênin

As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo (março de 1913), de Lênin, além do “Karl Marx (Breve Esboço Biográfico Seguido de uma Exposição do Marxismo)” de novembro 1914 são dois textos que estão nos meus 3 tomos calhamaços das Obras Escolhidas de Lênin, que, ao menos em termos teóricos, foi fiel a Marx, embora de maneira apressada e, portanto, um tanto quanto reducionista, mas trata-se do beabá: Lênin divide seu breve texto em materialismo e dialética (a partir de Hegel e Feuerbach), economia (Smith e Ricardo, mas sobretudo a teoria da mais-valia de Marx) e o socialismo enquanto lutas de classes. Para Lênin, enfim, há a concepção materialista da história, a teoria da mais-valia e as lutas de classes. Lênin cita duas obras importantes de Engels, Anti-Dühring e Ludwig Feuerbach, afirmando que são livros de cabeceira de “todo operário consciente”. O seu esboço biográfico de Marx seguido de uma exposição do marxismo é um tanto mais explicativo, inclusive sobre o valor.

Gramsci

(Aqui, temos um dos pontos em que Gramsci supera Lênin; há outros, e pretendo enumerar todos ou os principais em outro ensaio.)

Antonio Gramsci, que, nos Cadernos do Cárcere, dispõe de um laboratório terminológico e criptográfico original, refere-se (em parte para escapar da censura fascista, em parte para dialogar com outros autores que usavam tal termo) ao marxismo como filosofia da práxis. Defensor de uma filosofia de base historicista, Gramsci refutou todo e qualquer vestígio de metafísica, mecanicismo, economicismo vulgar e idealismo no tratamento do pensamento de Marx.

No § 33 (“Questões gerais”) e no § 46 do Caderno 11, Gramsci se contrapõe ao ensaio supracitado de Lênin (com quem militou enquanto membro do comitê executivo da Internacional Comunista e a quem define, nos Cadernos, como o “maior teórico moderno da filosofia da práxis”). Ele não descaracteriza as formulações expostas ali por Lênin, mas em Gramsci o tratamento do marxismo surge de maneira bem mais crítica, problematizada e complexa, porque suas condições são outras, enquanto que as preposições leninianas reforçaram a vulgata russa (promovendo parte considerável da vulgata marxista ocidental). Para Gramsci:

“Um estudo acurado da cultura filosófica de Marx […] é certamente necessário, mas como premissa ao estudo bem mais importante de sua própria e ‘original’ filosofia que não pode ser esgotada em algumas ‘fontes’” (Q 11, 70, 1.508 [CC, 1, 223]).

Gramsci parece se referir diretamente ao opúsculo de Lênin:

“Uma concepção muito difundida é a de que a filosofia da práxis é uma
pura filosofia, a ciência da dialética, e as outras partes são a economia e a política; daí se afirmar que a doutrina é formada por três partes constitutivas, que são ao mesmo tempo o coroamento e a superação do mais elevado nível que, por volta de 1848 [data das revoluções de 1848 e do Manifesto Comunista], tinha atingido a ciência das nações mais desenvolvidas da Europa: a filosofia clássica alemã, a economia clássica inglesa e a atividade e a ciência política francesa. Essa concepção – que é mais uma investigação genérica das fontes históricas do que uma classificação nascida do interior da doutrina – não pode se contrapor, como esquema definitivo, a qualquer outra organização da doutrina que seja mais adequada à realidade” (Q 11, 33, 1.448)

Essa “outra organização” é exatamente a filosofia da práxis.

Voltando à “cultura filosófica de Marx” citada por Gramsci, (Caderno 11, § 25):

“A filosofia da práxis nasceu sob a forma de aforismos e de critérios práticos por um mero acaso, a saber, porque o seu fundador dedicou
sistematicamente as suas forças intelectuais a outros problemas, notadamente econômicos; nestes critérios práticos e nestes aforismos,
contudo, está implícita toda uma concepção do mundo, uma filosofia.”

Segundo a filosofia da práxis, política, filosofia e economia são reciprocamente traduzíveis (Q 4, 46, 472-3). Além disso, para Gramsci, não se pode deixar de tratar dos aspectos pertinentes à arte, economia, ética e até mesmo das teorias das ciências naturais, elementos que não aparecem nem de modo implícito no texto de Lênin.

No Caderno 11, Gramsci pergunta-se várias vezes sobre a tradutibilidade recíproca de várias linguagens filosóficas e científicas; a indagação tem como objetivo compreender a “integração” entre filosofia clássica alemã, literatura e prática política francesa e economia clássica inglesa na filosofia da práxis. Para Gramsci, a vulgata russa exposta por Lênin e que remontava a Plekhanov do materialismo marxismo promovia uma justaposição das três fontes, mas a justaposição dos três grandes movimentos culturais do século 19 foi fruto, na crítica de Gramsci e até em estudos de Labriola, da sociologia positivista (v. Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci  (1926-1937), tradução de Luiz Sérgio Henriques, Brasília: Fundação Astrojildo Pereira: Rio de Janeiro: Contraponto, 2012; cf. Paolo Nosella, A escola de Gramsci, São Paulo: Cortez Editora, 2018).

Para resolver a problemática da “integração” que preserve a originalidade da filosofia da práxis, Gramsci aposta no conceito de imanência (Caderno 10 § 9):

“O momento sintético unitário, creio, deve ser identificado no novo conceito de imanência, que da sua forma especulativa, tal como era apresentada pela filosofia clássica alemã, foi traduzido em forma historicista graças à ajuda da política francesa e da economia clássica inglesa”

Giancarlo Schirru, em “La categoria di hegemonia e il pensiero linguístico di Antonio Gramsci” (In: Egemonie, coordenador Angelo d’Orsi com a colaboração de Francesca Chiarotto, Ed. Libreria Dante & Descartes, Napoli. 2008, pp. 397-444, 2008), observa que as notas dos Cadernos detêm-se longamente, e não sem oscilações, sobre as modalidades de como descrever essa conexão [entre filosofia, política e economia], ou seja, de “como a filosofia da práxis chegou à síntese dessas três correntes vivas na nova concepção de imanência, depurada de qualquer vestígio de transcendência e de teologia” (p. 421). Vale dizer que para Gramsci a filosofia da práxis deve criticar e superar a religião – “ópio do povo” para o Marx  da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – para um progresso intelectual  da massa e da classe trabalhadora!

Gramsci, que havia entrado no curso de Letras da melhor universidade de seu país através de uma bolsa (era pobre), ainda que não o tenha concluído devido a vida política atribulada, sabia por meio da Ciência Linguística o reconhecimento da autonomia de cada linguagem. Segundo Paolo Nosella (A escola de Gramsci, 2018), quando esboça o conceito de “tradutibilidade”, Gramsci “rechaça as tentativas do bolchevismo de reduzir o marxismo a instrumento político contingencialmente útil que identificava, mecânica e interesseiramente, política, filosofia e economia, e, até mesmo poesia, música e arte em geral“.

A “unidade” pode ser entendida e até praticada dialeticamente se (Caderno 11, 22)

“[…] a filosofia da práxis for concebida como uma filosofia integral e
original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e, superando, integra em si os seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicional, expressões das velhas sociedades. Se a filosofia da práxis é pensada apenas como subordinada a uma outra filosofia, é impossível conceber a nova dialética, na qual, precisamente, aquela superação se efetua e se expressa.”

Portanto, Gramsci posiciona-se como contrário a reducionismos explicativos do “marxismo vulgar”. Atenta que o tratamento sistemático da filosofia da práxis não pode se dar de maneira reducionista para não se negligenciar nenhuma das partes constitutivas, caso contrário as explicações fáceis levam a noções mecânicas e até idealistas no interior do próprio marxismo, sobretudo quando este penetra no seio da classe trabalhadora.

Gramsci rascunha (Caderno 7, § 18; 1, 236-237):

“A unidade [do marxismo] é dada pelo desenvolvimento dialético das contradições entre o homem e a matéria (natureza – forças materiais de produção). Na economia, o centro unitário é o valor, ou seja, a relação entre o trabalhador e as forças industriais de produção (os que negam a teoria do valor caem no crasso materialismo vulgar, colocando as máquinas em si – como capital constante e técnico – como produtoras do valor, independentemente do homem que as manipula). Na filosofia, é a práxis, isto é, a relação entre a vontade humana (superestrutura) e a estrutura econômica. Na política, é a relação entre o Estado e a sociedade civil, isto é, intervenção do Estado (vontade centralizada) para educar o educador, o ambiente social em geral. (Deve ser aprofundado e posto em termos mais exatos.)”

Ainda sobre o materialismo vulgar, Gramsci atesta no § 16 do Caderno 11:

“[…] É notório, por outro lado, que o fundador da filosofia da práxis [Marx] jamais chamou sua concepção de ‘materialismo’ e que, falando do materialismo francês, criticou-o, afirmando que a crítica deveria ser mais exaustiva. Assim, jamais usou a fórmula ‘dialética materialista’, mas sim ‘racional’, em contraposição a ‘mística’, o que dá ao termo racional uma significação bastante precisa”

Gramsci, acima, me parece se referir ao posfácio à segunda edição de O Capital, em que Marx explica como seu método dialético é oposto ao de Hegel – pondo este “de pé”, mitiga seu invólucro místico e procura o que há ali de racional.

Para Gramsci, a influência de David Ricardo é particularmente significativa tanto na economia quanto na filosofia, porque a teoria do valor e a lei da tendência em Marx deriva dele (Q 7, 42 e Q 10 II, 31, 1.275), além da noção de homo oeconomicus, uma descoberta a que também se deve a Ricardo, implicando no marxismo “uma nova ‘imanência’, uma nova concepção da ‘necessidade’ e da liberdade etc.” (Q 10 II, 9, 1.247) que levou Marx e Engels à superação da filosofia hegeliana e à construção dum novo historicismo sem traços de lógica especulativa (Cartas, II, 205).

Por fim, é impossível compreender totalmente Gramsci se não se compreender outras fontes e autores extrínsicos ao marxismo nos quais ele se debruçou, como Benedetto Croce, George Sorel (e seu neoidealismo e bergsonismo), Giovanni Gentile, depois, Maquiavel (para Gramsci, o “Príncipe moderno” é o Partido Comunista). Ou seja, assim como Marx teria procedido com Hegel, Smith, Ricardo, Gramsci empreende uma assimilação-superação, uma fusão de socialismo deglutindo outras correntes intelectuais para uma formulação revolucionária marxista original. É de Sorel, por exemplo, que Gramsci tomará emprestado o termo “bloco histórico”, mas sob outro ponto de vista, marxista, gramsciano, ou seja, “bloco histórico” enquanto a unidade dialética entre a superestrutura e a estrutura e, a partir de tal superação, o estímulo à criação revolucionária de um novo bloco histórico.

Contudo, se as fontes são discutíveis, constituem para G. três caracteres inseparáveis do marxismo: filosofia, economia e política“, escreve Giuseppe Prestipino no Dicionário Gramsciano.

Chasin

Investigando os textos marxianos, o Prof. brasileiro José Chasin concluiu que neles não haveria comprovação textual da ideia do “tríplice amálgama” ou da incorporação da herança hegeliana e que a própria colocação da questão em termos de três fontes seria enviesada, porque toma elementos alheios ao novo padrão reflexivo instituído por Marx. (Cf. Chasin, “Ad Hominem – Rota e prospectiva de um projeto marxista”, Revista Ensaios Ad Hominem, São Paulo, n. 1, t. I pp. 37-40.) É o caso de sopesar o quanto tal argumentação é pertinente em termos de práxis e de renovação do marxismo, o quanto é ou não academicista, como encarar as citações explícitas nos textos marxianos a partir de tal afirmação polêmica, etc.

Dois parágrafos sobre Aristóteles e Adam Smith em Marx

Aristóteles opunha economia (valores de uso indispensáveis à vida) à crematística (ligada à incessante produção e busca pela riqueza) e já condenava, em sua Política, o dinheiro que é usado para um fim em si mesmo, para a acumulação, ao invés de ser a justa medida na sociedade para que não haja carência de um lado nem excesso do outro. “A troca não pode existir sem a igualdade, nem a igualdade, sem a comensurabilidade”, escreveu Aristóteles citado por Marx em O Capital. O legado de Adam Smith em Marx é bastante “simples”: o autor de Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, mais conhecida simplesmente como A Riqueza das Nações (1776), trabalha a partir das ideias de Aristóteles em sua Política (que já distinguia duas dimensões da mercadoria: o valor de uso e o valor de troca) e na Ética a Nicômaco (que lega à época moderna a compreensão da teoria do valor-trabalho e do valor-utilidade), assim como Marx fará no século posterior (Aristóteles é citado várias vezes no primeiro livro de O Capital); desde a economia mercantil a que se referia Aristóteles, já que as mercadorias devem ser equiparadas ao serem trocadas umas pelas outras, devem conter algo igual quantitativa e qualitativamente, e este “algo igual” é o valor.

Em finais do capitalismo manufatureiro e nos primórdios do capitalismo industrial do século 18, Smith procura explicar o valor de troca pelo trabalho empregado na produção da mercadoria (Marx partirá deste ponto), não pela utilidade, argumentando que coisas vitais como água possuem valor baixo de troca, enquanto coisas menos úteis como jóias têm alto valor de troca. Mas o que é o valor? Há dois significados da palavra valor para Smith – valor enquanto utilidade de um determinado objeto e valor enquanto poder de compra que o referido objeto possui em relação a outras mercadorias. “O primeiro”, conclui Smith, “pode se chamar valor de uso e o segundo, valor de troca”. Eis precisamente o ponto de partida de Marx para O Capital, além de muitos outros autores e até mesmo Shakespeare.

25 de janeiro de 2021

Resposta contra Jones Manoel e sobre a Coréia do Norte

Eu já vinha fazendo críticas à “nova linha” do PCB, conforme pode ser lido aqui, mas o motivo deste texto começou com meu “story” acima, compartilhado no Instagram.

Fiquei sabendo da resposta de Jones Manoel acima em parte por camaradas próximos, em parte porque militantes ferrenhos e seus fãs  vieram me linchar após sua resposta, já que eu não o acompanho.

Minha tréplica abaixo estendeu-se muito mais do que deveria, porque precisei fazer apontamentos teóricos fundamentais a militantes, alunos, estudantes, seguidores e camaradas próximos e vindouros, que vão me ler e que me pedem explicações que de nenhuma outra forma podem ser dadas senão com base em economia, história, filosofia, etc. Já que se estendeu, fica sendo o meu ponto final sobre a questão. Além do mais, abaixo, faço também inédita análise econômica revolucionária sobre a Coréia do Norte, que eu não vejo ninguém fazendo.

A Guerra das Coréias e contra os EUA é a “Guerra Fria” de muitos camaradas das novas gerações, o Paralelo 38 é o seu “Muro de Berlim”, a Coréia do Norte, a sua “União Soviética”. É degradante ter de escrever o óbvio, que a Coréia do Norte é também uma sociedade de classes e que, portanto, há uma sociedade dominante que explora economicamente as outras, a trabalhadora. Ou seja, trata-se dum novo fenômeno interimperialista (termo leniniano), só que, hoje, sem o “socialismo real”, num caráter ainda mais desvantajoso e claustrofóbico. As analogias históricas generalizam condições especiais, mas fatos conhecidos se repetem em certas situações. Já vimos como tudo isso termina, em desilusões, em crises, e sabemos de suas consequências para o fôlego de qualquer movimento comunista, restando ao marxismo fazer antecipadamente uma crítica radical (“Ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e a raiz para o homem é o próprio homem“) e de baixo com relação ao monopólio do poder, em favor da teoria revolucionária original do valor e pela tomada do Estado e dos meios de produção pela classe trabalhadora.

Comunismo sem marxismo (sem o tripé marxiano) é manco, apologético e não tange a resolução dos problemas sociais na prática.

A diferença entre opinião e burrice.

Não trata-se de “opinião”. Trata-se de Crítica, como é de praxe no marxismo. “Opinião” reside no senso comum. Essa tentativa de desqualificação serve somente para uma militância acrítica e pouco letrada, não acostumada a debate de alto nível, que, infelizmente, está trocando o “conhecimento mais profundo […] em função da tática do agir” (eis a definição de Lukács para o “stalinismo”, como veremos mais adiante). Defesa apologética que sacrifica a construção revolucionária, e que espero que seja conscientizada a tempo. Me admira que Jones Manoel não tenha dito que sou um “propagandista do imperialismo” ou “Quinta Coluna”, como outros da gangue, ou seja, ao menos reconhece que sou marxista.

Esse sujeito, meio famoso em redes sociais, publicou esse comentário fazendo referência a uma publicação da UJC.

Aqui, cabe uma recapitulação. Há poucas semanas, a mesma UJC – União da Juventude Comunista publicou o mesmo tipo de homenagem a Josef Stálin, mas logo apagou. Foi muito criticada. Militantes da UJC aplaudiram. Eu soube disso através de um camarada que chegou a ser da UJC, mas que justamente se afastou devido ao incômodo diante da apologia de caracteres estranhos ao marxismo estimulada por certos quadros. Minha posição torna-se ainda mais necessária para mim porque toda a querela envolve jovens em formação uma base de militância crítica que precisa ser constituída para, digamos, 2030!

Stálin lendo! Só poderia, mesmo, ser um desenho. E é um livro com imagem de Lênin! Aquele que, um ano antes de morrer, chamo Stálin de “rude […] intolerável no cargo de secretário-geral” e que nesse cargo tinha “um poder imenso, e não estou certo de que saiba usar esse poder com suficiente prudência”, pedindo que outro o substituísse (“Carta ao Congresso”, em ‘Obras Escolhidas’, tomo III, páginas 640-641). Obs.: Também no mesmo trecho Lênin não diz maravilhas sobre Trótski.
Não pretendo fazer de Stálin ou de Kim Jon Un espantalhos para liberalóides (são muito mais representações de construções histórico-sociais complexas), mas é fundamental voltarmos, durante todo este texto, a Stálin, pois, primeiro, a ideologia apologética da qual critico e desmistifico foi urdida durante o período de Stálin (não à toa, os mesmos o resgatam com revisionismo idealista) e, segundo, sem ele, em sua postura interimperialista junto aos Aliados liberais e anticomunistas, talvez nem mesmo a Coréia do Norte existisse.

Cumpre informar apenas que Mauro Iasi, figura importante do PCB e que faz parte dos melhores quadros do partido, teve de intervir, após a atitude da UJC, com um texto contra o stalinismo intitulado “Dois métodos e uma decisão: a poesia do futuro ou os fantasmas do passado?”. (Podemos observar o termômetro desse velho racha sempre iminente no PCB aqui, na área de comentários deste post, em que Iasi conclama “Stalinismo nunca mais”.) A gangue fanática e aborrecente, movida pelo revisionismo histórico de Jones Manoel (Domenico Losurdo é bom autor, mas não para tratar de Stálin) e outros marmanjos, chegou a pedir a expulsão de Iasi (um homem que chegou a ser candidato à presidência da República pelo PCB!), quando, na verdade, falta pulso firme e um núcleo duro de intelectuais orgânicos (José Paulo Netto e Marcos del Roio não são mais orgânicos no partido, e muitos inteligentes já se afastaram) para expulsar a gangue anacrônica de Jones Manoel, porque não adianta simplesmente mostrar teoria a quem é basista, a quem apenas pretende aquecer e cultivar as bases.

Poderíamos colocar boa parte da responsabilidade desse conteúdo e forma no capitalismo financeiro e seus correlatos, “de vigilância”, do Vale do Silício, isto é, nas redes antissociais, que tomam de assalto a atenção e superficializam o debate, mas não se pode eximir da responsabilidade aqueles que pretendem usar para si os termos “comunismo”, “comunista”, “marxismo”, “marxista”, e essa querela já é velha no marxismo e no comunismo antes mesmo da Internet.

A linha desse setor do PCB e da UCJ é muito clara: qualquer “socialismo real” foi/é melhor do que o capitalismo, estimulando uma defesa intransigente dos modelos do “socialismo real”; serve para o embate ideológico e só, porque a prática é morta, já que as condições hoje não são mais as mesmas; assim, olham para o passado e muitos deles pretendem copiar modelo – quem copia modelo é conservador; essa visão é particularmente falsa, porque, embora eu concorde em parte com a afirmação de que o “socialismo real” teve fins mais grandiosos e, em diversos momentos, humanitários do que o capitalismo, que hoje se reduz à barbárie e números financeiros, uma crítica marxista revolucionária ao “socialismo real” não significa adesão ou defesa do capitalismo, ao contrário, significa uma dialética do continuum histórico da luta e aponta para o futuro na superação do passado pela transformação do presente.

Noto uma defasagem com relação ao que eu chamo de “tripé marxista” (no Anti-Dühring, ainda que de maneira demasiadamente sistemática, é dividido em Economia Política, sobretudo a teoria do valor, Filosofia, que envolve a dialética, e Socialismo, que abarca as lutas de classes, a distribuição e a perspectiva revolucionária). Jones Manoel e outros desconsideram a teoria do valor (já não é marxismo, então, porque sem compreender a lei do valor não se identifica a exploração capitalista e da apropriação do trabalho alheio), usam as lutas de classes com excelência na agitação, mas ainda de modo afunilado (não sei como ficará após a aproximação eleitoral do PCB com o PSOL pequeno-burguês) e nem passa pela cabeça deles o que seja dialética. “Concepção materialista da História” (frase frequente em Engels, nas obras e em cartas), então, é pretexto para revisionismo histórico. Nada de estrutura e superestrutura. De fato, para uma militância acrítica ou para um projetinho de poderio (não de poder), não se precisa da dialética, da teoria do valor, da visão abrangente das lutas de classes nem da concepção materialista da história. É importante deixar claro que não sou acadêmico, nem estou vinculado a qualquer academia neste momento, aliás, academia não possui práxis nem ensina marxismo a vero; marxismo aprende-se na marra, na luta, na teoria, na prática, de forma autodidática mas dialógica, e nunca antes a bibliografia clássica e contemporânea foi tão acessível.

No âmbito da filosofia da práxis, estamos diante de um grupo que, ao entrar na luta anti-colonial, anti-imperialista e anticapitalista, troca a teoria revolucionária pela prática propagandista do agir, privilegiando a tática em detrimento da teoria, que apenas é usada em suas generalizações a partir da tática; um grupo de comunistas que, mergulhado na categoria da universalidade vazia (interesse como universal), esquece-se da categoria da particularidade (interesses de classe). Essa inversão que não aprofunda o conhecimento histórico – certamente um legado do período stalinista -, provoca muitos desastres, ainda que as intenções sejam boas ou até sinceras (excluindo os oportunistas e arrivistas). Todo o problema entre os apologéticos e os verdadeiros marxistas se encontra no fato de que os primeiros perdem-se na categoria vazia do universal, e não consideram a categoria da particularidade. Para explicar melhor essa questão, é necessário um aprofundamento teórico e filosófico, no qual me é impossível neste momento, porque, para isso, seria preciso voltar (com o Marx da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e da Ideologia Alemã) a Hegel, mas exerço esta tarefa em outras oportunidades. 

Todo o meu incômodo reside no fato de que a UJC não está ensinando à juventude em formação – cuja militância deve ser decisiva para a construção revolucionária internacionalista no Brasil – as teorias marxiana e engelsiana do poder e do Estado. (Tampouco a teoria do valor – sem a qual não se identifica a exploração no capitalismo -, no caso das empresas da China, que está voltando a ter o maior PIB do mundo, como teve no século XVIII.) Resultado: análise rasa de conjuntura, defesa meramente apologética do poder e do Estado, caráter “basista” e idólatra, nenhuma construção realmente revolucionária debaixo, nenhuma apuração classista.  A síntese de tais teorias encontra-se sobretudo no Anti-Dühring de Engels, que formou a primeira geração de marxistas. Sem esse leque de teorias, indissociáveis da prática revolucionária, não teremos excelentes quadros e lideranças. Estes se afastam. Os que ficam, estão apostando todas as fichas no fracasso de formas mais ou menos reacionárias e conservadoras.  Vez ou outra, temos de agitar a proposta revolucionária original, que ainda está em processo de construção, junto à proposta de Antonio Gramsci de formação de intelectuais orgânicos que sejam soldados junto à direção partidária e da vanguarda.

A grandiosa obra ‘Anti-Dühring’, de Engels, que formou a primeira geração de marxistas, já combatia falsos socialismos.

Antes de tudo, meu incômodo tático com relação à China e à Coréia do Norte reside em perguntas fundamentais para uma pedagogia revolucionária, já lançadas no texto “Os verdadeiros marxistas e comunistas e seus quatro principais adversários internos“:

(A) O que a China e suas empresas e o que a Coréia do Norte e seu aparato militar farão diante de um processo revolucionário brasileiro e latino-americano? Como ajudarão? Quais serão suas condições? Lembrem-se que a União Soviética respeitou diplomaticamente as delimitações terríveis dos EUA nas ditaduras militares-empresariais que ajudaram a implantar em nosso continente. Lembrem-se que, quando Angola quis se emancipar pela via do socialismo, Cuba foi ajudá-la, não a União Soviética, que já havia deixado de ser uma superestrutura revolucionária há tempos… (B) O que faremos, extirpados os elementos do “Estado profundo” brasileiro, ou seja, aquele que sempre se mantém, na ditadura, na redemocratização, com Collor, FHC, Dilma, Lula, Bolsonaro, e extirpados capitalistas brasileiros importantes, ou seja, o que faremos quando tomarmos gradativamente o poder diante de uma nova diplomacia perante China e Coréia do Norte com nosso novo Estado? É isto o que deve ser debatido, escrito, estudado, planejado, ensinado! Todo o resto é lobotomização…

Todos os membros da “gangue” que vieram tirar satisfações comigo (não vou considerar aqueles que simplesmente são fãs de Jones Manoel, que sequer são marxistas, o que achei um absurdo, e que só prova que a teoria não está sendo disseminada), desviavam-se da minha renitência à teoria da revolução, do poder e do Estado presente em Marx e Engels. Os piores momentos do movimento comunista são aqueles em que se desconsidera Marx e Engels, que se desconsidera a teoria para uma militância de simples ação propagandista. A quem interesse isso? Aos parasitários do Estado, assim como interessa à burguesia? Ficou claro que não leem nada de teoria, porque não houve qualquer ponderação ou contrargumentação entre o nosso objeto de discussão e a teoria!

Definitivamente, não estamos falando no mesmo nível!

Enquanto eu insisto na teoria a partir da qual se configura uma práxis coerente de acordo com a nossa realidade nacional e internacional, para eles é vital – com oportunismo de uns e ingenuidade de outros ainda em formação (tive alguns “pupilos”, que se interessavam por minhas recomendações, mas que logo rompemos, porque lhes incomodava minhas críticas a Jones Manoel) – realizar uma prática sem teoria, de agitação, de “militância” (em sentido comum), de apologia ao aparato, ainda que isso nada diga respeito direto à classe trabalhadora norte-coreana ou chinesa, quanto mais à classe trabalhadora brasileira e seus anseios e desafios. Excluem as particularidades de classes, defendem o tempo todo, não sem dogmatismo xucro, a particularidade da universalidade, que, por si só, é vazia… Veremos também, mais adiante, como isso é fruto dum absurdo hiperracionalismo, expressão que Lukács usava para o “stalinismo” enquanto ação política que não sabe manejar estratégia e tática, teoria e ação. Nem preciso dizer que são os mesmos que, com revisionismo e idealismo, também defendem o período de Stálin.

Todo ser humano é livre para ter a opinião que quiser sobre a Coreia Popular e Kim Jong-Un. Essa não é a questão central. Via de regra, essa opinião é desinformada e carente de estudos quando o tema é a Coreia, mas tudo bem.

Quero falar de algo mais importante: burrice.

Para Jones Manoel, a “burrice” é “mais importante” do que a Crítica revolucionária (que ele desqualifica como “opinião”)!

A Coréia do Norte é fruto dos interesses das classes dominantes após a sangrenta Segunda Guerra Mundial, que, por sua vez, foi um ponto de chega de diversas causas estruturais, notadamente as crises capitalistas; como sempre na história, após a conflagração monumental, essas classes acertaram de se encontrar para dividir o quinhão às custas do povo. O nascimento da Coréia do Norte está relacionado a uma “revolução passiva”, em termos de Antonio Gramsci (para um apanhado de escritos gramscianos do cárcere sobre a revolução passiva, cf. O Leitor de Gramsci. Escritos escolhidos: 1916-1935, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, da página 315 à 317), ou seja, um “transformismo pelo alto” entre as classes dominantes, em que se exclui as outras classes subalternas (fenômeno muito comum na história do Brasil, mas não com tal agudeza geopolítica). Mesmo que tenha contado com mobilização de massa (que não deixa de ser comum nas “revoluções passivas”), não houve uma revolução autêntica, orgânica, popular como em Cuba ou em Angola ou mesmo na Rússia.

É claro que, no caso das Coréias (e também na Coréia do Norte!), outros elementos das classes subalternas – praticamente escravizadas pelo domínio imperialista do Japão – também influíram na “revolução” (por exemplo, a invasão da Manchúria pelos japoneses mobilizou enormes forças anti-imperialistas na Coréia e na China), mas os interesses de classes dominantes logo suplantaram-nas e as acoplaram a seus aparatos estrangeiros no momento de pegar o mapa e traçar a divisão e estabelecer quem dominaria o que. Pelo suporte direto da União Soviética, que, no período do pós-guerra, só dispunha economicamente para valer de sua indústria bélico-militar (v. Eric Hobsbawm, Era dos Extremos, de 1994), não restara à Coréia do Norte outra saída senão investir em fábricas de materiais pesados e armamentos, já com Kim Il-Sung, “produção” essa que se arrasta até os dias de hoje. Essa produção, que não deixa de ocorrer com a espoliação do trabalho dos norte-coreanos, sempre estará associada à defesa territorialista, já que trata-se de um país teluricamente fraturado e ameaçado por todos os lados, “produção” bélico-militar acentuada após o desmanche do bloco soviético e o abandono do marxismo (abertura ao capital nos negócios) pela China. Baluarte final da resistência comunista, para alguns…

Note-se que o termo “revolução coreana”, porém, não é usado em consenso na historiografia (usa-se “Guerra da Coreia”), mas não deixa de fazer sentido quando se pensa na guerrilha anti-imperialista e na tomada de poder (que, porém, foi estimulada por agentes do alto escalão do monopólio de poder da URSS e mesmo da China). Assim, Kim il-sung, em seu ímpeto anticolonial, já estava ligado desde sua juventude militante ao alto aparato de URSS e China, e logo foi reconhecido como líder de toda a península. (Stálin enviou Lavrenti Beria, uma das figuras mais polêmicas do “período stalinista”, para tratar da implementação do regime.) É preciso admitir, portanto, que o povo e os trabalhadores da Coréia do Norte não estavam inteiramente emancipados. Quem realmente governava o país não era Kim Il Sung, mas sim o todo-poderoso embaixador soviético Terenty Shtykov. O próprio Kim Il Sung não tinha muitas escolhas no jogo interimperialista e não fez como um Che Guevara em Cuba, que se indispôs com o alto escalão da União Soviética em determinado momento, porque tinha ideias socialistas próprias (cf. o percuciente livro de Luiz Bernardo Pericás, Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba, São Paulo: Editora Boitempo, 2018, que venceu o Prêmio Jabuti de 2017).

Reforço que a classe dominante da União Soviética, entre outros nichos, vivia de “economia bélico-militar permanente” a partir do excedente de trabalhadores e camponeses desde a sua acelerada industrialização forçada em 1929, que o próprio Stálin chamava de “revolução pelo alto”, ou seja, uma atitude coercitiva que levou milhares de camponeses à morte (sobre esse trágico período da história soviética, cf. o documentado livro de Fabio Bettanin, A coletivização da terra na URSS. Stálin e a “revolução pelo alto” (1929-1933), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981) – tal fato é determinante na história da Coréia do Norte. A definição “Estado satélite” (o jornalismo prefere “Estado fantoche”), em que um governo depende da classe dominante (e da classe trabalhadora) de uma potência estrangeira para sua própria existência, sem a qual não pode existir, não é nenhuma novidade para diversas regiões correlacionadas à antiga União Soviética, tanto que o desmanche do domínio central de Moscou em meados dos anos 1990 – de maneira vendida e ridícula, é verdade – desmanchou também o restante do bloco – com exceção da Coréia do Norte, que teve de enfrentar o seu conhecido e violento período de fome (prova da dependência em relação à URSS), mas que permaneceu por ter logrado aspectos próprios de identidade e de economia, não sem carregar até hoje a sina da guerra soldada à essa identidade e “economia industrial-militar” (os trabalhadores não têm outra escolha, precisam obedecer com suas forças produtivas a indústria bélico-militar para a sua própria sobrevivência imediata e enquanto país).

No Brasil, o termo “revolução coreana” remete a um livro considerável. Li, há alguns meses, o livro de Paulo Visentini (com apoio de Helena Melchionna e Analúcia Pereira), A Revolução Coreana. O desconhecido socialismo Zuche (2015), pela editora UNESP. Sua abordagem não é totalmente pelo método marxista. O livro erra em não tratar da “revolução passiva”. Completamente favorável à Coréia do Norte (os autores a visitaram) e debruçado em ampla documentação e registros de diversos países (mesmo os Estados Unidos) envolvidos no contexto histórico, o livro explica o suficiente para os ocidentais. Pretende desfazer a forma caricatural com que o Ocidente vê a CN e mostrar “tanto […] a real configuração do regime norte-coreano, de impressionantes conquistas socioeconômicas, quanto as complexidades que caracterizaram todo o processo revolucionário e continuam a tensionar o sudeste asiático“.

A grosso modo, para quem não sabe, a região do Sul foi logo objeto de interesse dos capitalistas dos Estados Unidos e Europa, enquanto que a União Soviética sob Stálin e o Politiburo dominou a região do Norte, o que arrefeceu os conflitos.

Ou seja, a Coréia do Norte é fruto das tortuosidades do percurso do movimento comunista em período pós-revolucionário e até contarrevolucionário, de um lado, e do capitalismo imperialista, do outro. (Não à toa, como justificativa para desenvolver o seu arsenal nuclear, tem sido importante na Coréia do Norte manter acesa a memória dos terríveis ataques aéreos dos Estados Unidos sobre sua região e a trágica morte de milhões de civis durante a guerra.)

É fundamental esse entendimento histórico sobre a correlação de forças! Sem ele, qualquer defesa é rala e apologética e acrítica em relação ao aparato, e mesmo em relação à reação imperialista do capitalismo.

Representantes de elite: Churchill, Truman, Stálin durante a Conferência de Potsdam. A Coréia do Norte é fruto de interesses de classes dominantes gladiando-se. Este berço faz da Coréia do Norte uma distopia, conforme veremos ao adentrar na questão da indústria bélico-militar e a lei do valor no marxismo.

A prova de que a Coréia é fruto das formas interimperialistas de ambos os lados (o Stálin que aperta as mãos de Harry Truman e Churchill, na Conferência de Potsdam, é um Stálin de postura interimperialista) é que a organização do líder Kim II-Sung, conforme mostra o livro de Visentini, possuía muitas frações, com membros do Exército Vermelho (ele próprio fez parte do Exército) ou que lutaram com Mao Tsé-Tung. Ou seja, as disputas de poder na URSS e o abandono do marxismo, como também, posteriormente, na abertura econômica da China, forjaram o que a Coréia do Norte é hoje, além de definições internas próprias. (O desmanche do bloco soviético acentua sua crise, que logo é abrandada com a dolarização décadas depois.) Esse amálgama formou o que seria o “socialismo” para a Coréia do Norte hoje, ou seja, quando ela surge, o marxismo e o próprio movimento comunista, por diversos motivos, estão emperrados no gargalo do monopólio de poder pelo alto. O seu caráter nacionalista foi a grande sacada para não terminar como a Alemanha Oriental. O fato inconteste é que a Coréia do Norte amarga aquelas querelas, como se fosse um resquício final delas frente à globalização do planeta.

O Paralelo 38 é fruto do desprezível controle das classes dominantes dos quatro cantos do globo para segregar e dividir fisicamente a classe trabalhadora mundial, mas é também – para o bem, para o mal – o “Muro de Berlim” do futuro…

E, justamente por isso é que cabe a nós, marxistas, nos adiantarmos, termos um discurso radical, uma prática radical e totalizante em torno do valor, do poder e do Estado, calcada na teoria original formativa, ainda que esta tenha de ser, aqui e ali, atualizada de acordo com as condições.

Sei que é um vespeiro sem tamanho tomar qualquer posição no caso da Coréia do Norte. É notório que lá se pratica o maior e mais longo jogo de truco do mundo moderno. Não tem santinho e nem legado importante a se defender. O máximo que se pode apoiar é a integridade da população. Defendo que é prioritário olhar com crítica marxista a respeito da classe trabalhadora norte-coreana, já que lá, como aqui, cada um a seu modo, há a apropriação do produto do trabalho alheio (componente do mais-valor descoberto por Marx, segundo o Engels do Anti-Dühring, p. 222), e já que norte-coreanos trabalham (com consentimento ou coercitivamente ou sem qualquer outra escolha em nome da sobrevivência perante as forças imperialistas externas) sobretudo para produzir rendimentos à classe dominante cleptocrática do tipo Clódio da economia nacional, do aparato de Defesa e seus filigranas (afinal, só restava aos “padrinhos” soviéticos uma “economia armamentista permanente“), que, em troca, lhes garante a segurança nacional contra um mundo hostil (a pilhagem existente em todo Estado e capital), constantemente ameaçando levar o mundo inteiro junto consigo, caso tenha de capitular ou acabar.

Esse caráter distópico (um povo que movimenta suas forças produtivas para a própria sobrevivência imediata elementar e a serviço de uma classe dominante que circunda a indústria bélico-militar, que produz o armamento nuclear que, paradoxalmente, o protege e evitaria o seu suicídio) só pode ser fruto de um choque conflitivo entre o aceleramento e o desaleceramento da História, entre o fluxo de capitais que tudo contamina e o fechamento regulador… Mostrarei no decorrer deste texto que, mais ou menos equidistante da economia de mercado, da ditadura do capital e da inserção nos ditames do comércio internacional, os meios de produção da Coréia do Norte são concentrados por uma família que se pretende “monárquica”, pela elite, altos oficiais, pelo Exército e pelo aparato do Partido dos Trabalhadores, que praticamente se confunde com o Estado.

Cabe introduzir uma diferenciação básica do Estado no marxismo entre Oriente e Ocidente, tal como mostrada brilhantemente por Gramsci, que aduz (Caderno 7, § 16, escrito entre 1930-1931):

“[…] No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma relação apropriada e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento de caráter nacional. […]”

Esta é parte de importante frase em que, segundo o gramscista brasileiro Carlos Nelson Coutinho, Gramsci resume sua posição que define a novidade de seus conceitos de Estado e revolução em relação à experiência dos bolcheviques (Coutinho, Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios, 2. ed. São Paulo: Cortez, 1996, p. 58). Desta observação, surge em Gramsci a reivindicação de que, enquanto as revoluções socialistas no Oriente, partindo da velha ordem, precisavam diretamente conquistar o Estado, porque assim conquistavam todo o resto, no Ocidente tal revolução é mais complexa (tal como o Lênin de Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo já considerava), precisa considerar uma guerra de posições na sociedade civil (arena das lutas de classes e principal espaço do setor privado), que é tão forte ou mais do que o Estado, e que pode-se e deve-se conquistar a hegemonia antes de se conquistar o poder, mas isso é assunto para outros textos…

Nesse sentido, só para fechar, há duas propostas do dirigente do PCI que nos interessa (Cadernos do Cárcere, 8, S 130; 3, 279-280) a respeito de Coréia do Norte: primeiro, a “estatolatria” não deve “ser abandonada a si mesma, não deve, especialmente, tornar-se fanatismo teórico e ser concebida como ‘perpétua’: deve ser criticada, exatamente para que se desenvolvam e se produzam novas formas de vida estatal, em que a iniciativa dos indivíduos e dos grupos seja ‘estatal’, ainda que não se deva ao ‘governo dos funcionários’ (fazer com que a vida estatal se torne ‘espontânea’)“.

Deriva de tal formulação temática uma segunda, a ideia de “iniciativa individual” em Gramsci (8, s 142; 282-283), que em nada deve ser confundida com iniciativa privada, individualismo, liberalismo, nada dessas farsas, porque se dá pela “identidade-distinção entre sociedade civil e sociedade política [lembre-se que Gramsci divide a superestrutura nesses dois campos de sociedade] e, portanto, identificação orgânica entre indivíduos (de um determinado grupo) e Estado, de modo que ‘todo indivíduo é funcionário’, não na medida em que é empregado pago pelo Estado e submetido ao controle ‘hierárquico’ da burocracia estatal, mas na medida em que, ‘agindo espontaneamente’, sua ação se identifica com os fins do Estado (ou seja, do grupo social determinado ou sociedade civil)“. Aqui, considerando a censura do cárcere fascista, podemos até substituir o termo “grupo social determinado” por classe trabalhadora.

Voltando à Coréia do Norte, o conflito sanguinário de proporções mundiais da Segunda Grande Guerra produziu um país que, na ausência de uma economia vigorosa, vive em certo grau de distopia e permanente produção bélic para barganhar acordos, ou seja, como necessidade de sua própria sobrevivência, sua única alternativa é desenvolver tecnologia nuclear para sobreviver, mergulhando na indústria bélico-militar (legado da União Soviética, que, tendo saído mais pobre de 1945 do que de 1917, dispunha principalmente de tal indústria como “economia permanente”), uma das mais caras do mundo: sob o paradigma do complexo industrial-militar dos EUA, ou seja, a partir da pressão do capitalismo de reação imperialista (mas não só), os trabalhadores norte-coreanos trabalham principalmente para a sobrevivência paranoica de si mesmos em nome da Defesa das Forças Armadas, entregue a uma classe dominante cleptocrática do tipo Clódio, que se apropria do produto do trabalho alheio, ainda que seja estranho compará-los com a classe capitalista corrupta e podre. Guardadas as devidas proporções, os EUA não parecem, de longe, muito diferentes (talvez outros “imperadores” que se revesem nos tipos entre Neros e Adrianos sejam mais adequados enquanto encarnações dos comandantes-fantoches desse país, ornem mais com a arquitetura fake de Washington – simulacro como quase tudo nos EUA – justamente replicada a partir da arquitetura do Império Romano), mas, na Coréia do Norte, o caso é ainda mais agudo e sufocado, sem domínio expansivo pelo mundo e num nível de absurdidade e despojamento de qualquer fantasia.

É uma “super-superestrutura”…rs

O fato de Kim Il-sung (1912-1994), lá atrás, a partir de sua luta de guerrilha antijaponesa, ter lutado no Exército Vermelho da URSS – que se urdiu sob a égide de uma revolução comunista -, ter entrado num partido chamado Partido Comunista Chinês e adaptado tal comunismo em seu país, não muda a realidade da observação científica. Não há marxismo que se resigne a essa realidade, não há autonomia da classe trabalhadora (talvez haja soberania, isso, sim, e uma soberania exemplar, invejável para a “América Latina” cuja elite e povo tudo aceita dos EUA), nem há o intuito de uma sociedade comunista sem classe, caso a Coréia do Norte vencesse os EUA.

Kim Il-Sung assina o Acordo de Armistício Coreano em Pyongyang, Coreia do Norte, 1953. Foto: Hulton Archive / Getty Images

Por trás das classes dominantes ligadas ao aparato e da cortina de mentiras que caricaturiza o país há uma nação habitada por cerca de 24 milhões de pessoas dignas que merecem nosso olhar humano e revolucionário.

Sim, não tem outra forma de caracterizar o comentário do sujeito sobre Trump e Kim Jong-Un.

Preciso, primeiro, externar toda a ojeriza deste sujeito aqui que vos escreve a qualquer forma monárquica (fruto da sociedade de classes), que sempre faço questão de dizer aos ingleses, por exemplo. Tenho horror a linhagens sanguíneas! O desenvolvimento histórico-social sempre pôs a pessoa de um soberano em confronto com a Revolução. E o marxismo possui postura equidistante com relação a isso. Não à toa, o Manifesto Comunista já estabelecia o fim da herança…

O aperto de mão costumaz dos representantes das classes dominantes, após se lucrar muito com a indústria bélico-militar às custas da classe trabalhadora. Donald Trump e Kim Jon Un apertam as mãos em encontro na zona desmilitarizada que separa as duas Coréias, em Panmunjom, Coréia do Sul, 30 de junho de 2019.

O grego Hesíodo, antecipando a modernidade não sei quantos mil anos atrás, quando escreveu O Trabalho e Os Dias, nos legou um pensamento divisor na história da humanidade: a grandiosidade do ser humano está no trabalho, não em ter “sangue azul”…

Estou ao lado da classe trabalhadora, não do herdeiro sanguíneo Kim Jon Un. Nesse particular, quando a Coréia do Norte retoma a tradição monárquica das Coréias através da Dinastia Kim ou Linhagem do Monte Paektu (ao invés da sucessão de membros do alto escalão político, tal como ocorria na URSS e na China), ela aposta numa enorme regressão, pior do que qualquer representação cidadã, e que hoje se adequa ao antigo modelo que lembra a vassalagem e o feudalismo. A implementação desse modelo “monárquico” ajudou a “nacionalizar” o comunismo na Coréia ao fundi-lo com uma tradição antiga, torná-lo mais popular e entendível? É possível, mas ele apenas levou a um culto à personalidade (que logo foi expurgado na União Soviética pelos sucessores de Stálin), bastante superado para o marxismo, porque personifica metafisicamente a vocação histórica da classe trabalhadora e escamoteia essa vocação da classe produtora em si para si. Um aspecto político e cultural desse tipo hereditário só interessa a classes dominantes espoliativas em qualquer canto.

Tenho gigantesco horror da carcomida família real britânica, que não passa de um “bibelô” diante do parlamentarismo inglês e da burguesia, o que piora ainda mais a justificativa de sua existência ainda hoje. Há direitistas que alegam que a família real britânica, com seus palácios, ao menos garante rendimento turístico – guardadas as enormes proporções e diferenças, é também o que ocorre com o turismo na Coréia do Norte, que procura zelar por sua imagem, construções oficiais do governo e espaços limpos e bem ordenados…

Uma vez, um sujeito, contra o meu ímpeto antimonárquico, disse-me que visitou a Holanda ou a Suécia, ou viu em algum lugar, já não lembro, viu lá o “povo feliz diante do seu Rei”. Isto me dá náuseas, assim como certos direitistas têm nojo do vídeo que compartilhei em meu perfil no Instagram de Chávez ensinando Gramsci brilhantemente num comício popular na Venezuela. Ora, vemos, neste vídeo, uma boa parcela do povo inglês feliz diante do criminoso de guerra e imperialista Winston Churchill… E daí? Mas, definitivamente, não estamos falando da mesma coisa quando falamos em realeza e um líder mais orgânico vindo do povo (ainda que do seio militar) feito Chávez, comprometido com o marxismo e com a revolução, ainda que tenha implantado amplas reformas.

Tanto pior nos exemplos ocidentais, porque aí a monarquia é atrelada à religião cristã e a dEU$, enquanto que a Coréia do Norte ao menos tem forte caráter irreligioso na sociedade e como política de governo, ainda que o cheondoísmo tenha ganhado popularidade (tendo até um partido próprio entre os três únicos partidos legalizados do país, o Partido Chondoísta, junto ao Partido dos Trabalhadores oficial e ao “Partido Social-Democrata”).

De qualquer forma, desde a “revolução burguesa” e a criação dos Estados-nacionais contra a aristocracia, já não existe monarquia nem clero em parte alguma, porque a estrutura já não é feudal, então tais países vivem de “bibelôs”, enquanto as verdadeiras decisões estão em outros domínios. Perto deles, Kim Jon Un é certamente mais ativo e mais engajado, mas a forma de “casta” não muda.

O Príncipe Charles vive apenas para viver dos rendimentos de seus súditos, assim como Kim Jong-il. Em termos de simpatia, tenho muito mais horror ao conservador Charles, que, não sei por que, me faz lembrar da oligarquia Sarney.

Operário e o “líder supremo”: para onde vai a “mais-valia”? Há mais-valia na Coréia do Norte? Explicarei sobre isso mais abaixo. Na fotografia, Kim Jon Un sorri durante uma visita à Fábrica de Lubrificantes Chonji, que produz óleos, óleos para transformadores e graxas lubrificantes. Na ocasião, declarou que a fábrica produz produtos “tão bons quanto os importados”. Foto: KCNA via Reuters, 2014.

Um dos membros apologéticos, Rafael Caixeta, que, para minha surpresa, me acompanhava e estava em minha lista de contatos do Facebook, escreveu para mim, depois do linchamento virtual que fez questão de empreender após o post de Jones Manoel (“Fernando Graça puta merda em bixo, tu falando da RPDC só mostra que enfiou a boca na propaganda imperialista, vergonhoso ler uma merda dessas, pior ainda vindo de tu.“); disse-me que Kim Jon Un “visita cada fábrica e fazenda diariamente”… Ora, isso é de um ridículo… A um marxista interessa saber sobre condições de trabalho e para onde vai a mais-valia roubada da classe trabalhadora pelas fábricas de toda a parte do mundo! Qualquer “gado” eleitoreiro é capaz de bater palma para visitas oficiais sobre seu “político de estimação”, até mesmo os de direita… Ele as visita para ver se tudo está conforme a ordem. Qualquer político ou chefe de Estado visita fábricas e fazendas, assim como proprietários fundiários e capitalistas visitam suas propriedades privadas de meios de produção. Isso nada agrega ao marxismo, só à apologia do culto à personalidade, que personifica em termos idealistas, não materialistas, a vocação comunista e rapta a sabedoria histórico-universal da classe trabalhadora para um chefe… É o lado reverso da moeda da ideologia neoliberal, que personifica nos autocráticos Jeff Bezos ou Elon Musk o sucesso, a meta, a perfeita administração, a indissociabilidade de nossas vidas com relação a esses superiores e outras besteiras incentivas pela mídia hegemônica que só camuflam a exploração de trabalhadores e despossuídos dos meios de produção… Que ele é “muito amado pelo povo, que está sempre junto ao povo”… Já escrevi, acima, do meu horror a formas monárquicas. Também falam isso da Rainha Elizabeth II… Os “neomonarquistas” (sic) inventam sobre Dom Pedro II, símbolo da elite brasileira atrasada e escravista, nos mesmos termos… Sempre guardando as devidas diferenças e proporções, tais analogias apenas servem para que eu mostre o conteúdo da forma ideológica (outro conceito fundamental no marxismo e polissêmico), que toma o falso pelo verdadeiro.

É horrível, portanto, que um herdeiro desse tipo veja uma amizade de “força mágica” num capitalista falido e megalomaníaco da extrema-direitalha dos EUA feito Donald Trump, conforme revelam as correspondências de ambos. Os apologéticos dirão que Kim Jon Un apenas vê Trump como aquele que melhor evitou um conflito bélico para o seu país e população, mas, dessa forma, novamente estão trazendo a categoria da universalidade e desconsiderando os interesses de classe (particular) no contexto da indústria bélico-militar, sobre o qual escreverei mais abaixo.

Para finalizar, ele me citou a Assembleia Popular Suprema da Coréia do Norte, mas a APS é o mais alto cargo do Estado, segundo a própria Constituição da Coreia do Norte; a APS está abaixo dos marechais e políticos do Presidium do Politiburo (um de seus membros é o Presidente da APS) e subordinada ao Politburo. Há Comitês Populares locais, além das autoridades centrais. Sim, aqui também há os CONSEGs do PSDB e afins… Não é a APS uma organização da classe trabalhadora. Não é ali que encontraremos o espírito revolucionário – assim como também não o encontramos na institucionalização do Congresso Federal do Brasil. Ou seja, os apologéticos residem todos eles no nível superestrutural voltado ao aparato ou ao simbolismo retórico descolado da realidade…

O domínio se concentra nas mãos do semi-monarca e do chefe militar (pouco conhecido, mas que está em quase todas as fotos públicas com Kim Jon Un).

Quando Trump e Kin Jon Un – ambos de linhas dinásticas e sem organicidade a não ser em comportamento cultural – dão as mãos, são dois representantes de classes dominantes (plutocratas, burocratas, capitalistas), uma em vantagem econômica, a outra em aparente vantagem militar, jogando com o mundo entre a destruição em massa e as negociatas decididas pelo alto, excluindo as classes subalternas, sem o consentimento das classes despossuídas que lhes sustenta na base da pirâmide social.

A Coreia é um país que formalmente, pelo direito internacional, está em guerra com os Estados Unidos. Há décadas uma das prioridades da política externa dos EUA é a “mudança de regime” na Coreia e o país é cercado por mais de 30 mil soldados dos EUA e armas atômicas. Aliado a isso, na prática, a Coreia do Sul é um estado cliente na dimensão militar dos EUA.

Não custa lembrar que Bush chamava a Coreia de um dos países do “eixo do mal” e o Governo Obama, a partir da assassina Hillary Clinton, colocou a “mudança de regime” na Coreia como prioridade no seu governo.

Aí, depois de anos, aparece um governo nos EUA que muda de abordagem em relação a Coreia. O Governo Trump viu na Coreia a sua grande oportunidade de ganhar um Nobel da Paz e deixar sua marca na política externa.

É risível, porque Trump foi indicado ao Nobel da Paz por um parlamentar norueguês da extrema-direita (Christian Tybring-Gjedde) pelo acordo histórico entre Israel e Emirados Árabes… Fora isso, ninguém nunca jamais cogitou Prêmio Nobel da Paz a Trump. (Ademais, pululam os exemplos de equívocos crassos dessa instituição; deram, anos antes, o Prêmio a Obama logo em início de mandato, ele que, prometendo em campanha retirar tropas do Iraque, tornou-se o 1º presidente dos EUA a estar em guerra durante todos os dias de seu governo.)

JM chama Hillary de “assassina”, mas nada diz de Trump. Ao contrário, quase o vê de forma positiva. Faz parecer, inclusive, que ansiava o Prêmio Nobel da Paz àquele cara…

Aliado a isso, o Governo Trump, de forma bem inteligente, se aproxima de Rússia e Coreia como forma de quebrar a unidade de parceiros estratégicos da China. Trump, seguindo um preceito clássico da diplomacia dos EUA, sabe que é necessário manter Rússia e China separados e a Coreia é uma peça importante nesse xadrez.

O Governo da Coreia, é óbvio, aproveitou essa abertura diplomática para tentar negociar um alívio das pressões diplomáticas, econômicas e militares e reduzir a força dos EUA na Coreia do Sul – a influência dos EUA na Coreia do Sul, impede qualquer tentativa de reunificação.

O governo democrata de Joe Biden já deixou que vai acabar com a política de Trump para Coreia, e retomar a linha anterior do Governo Obama: máxima pressão e agressão.

A exposição acima mal se esforça para ser marxista.

Não vai “retomar a linha do Governo Obama” coisa nenhuma, vai “retomar” a linha de sempre (que teve mesmo sob o início do Governo Trump) do paradigma complexo industrial-militar (aconselho que se estude a respeito), que possui sua própria lógica independentemente da cara dos governos, Democrata ou Republicano, e da qual a classe dominante da Coréia do Norte também participa, por causa do legado “econômico-bélico” da União Soviética (é a forma específica da lei do valor do sistema capitalista mundial na economia norte-coreana).

Não se iludam: esse encontro pode ocorrer também com o liberal do establishment Joe Biden, recém eleito, sempre após um período de ataques mútuos e ameaças.

É a Realkpolitk, stupid!

Lembrem-se vocês que, antes dos encontros e troca de afagos entre Trump e Kim Jon Un, houve contundente período de tensões em 2017 (lembro que os mais exagerados falavam em destruição total do mundo como na época das crises dos mísseis em Cuba nos anos 1960 durante a “Guerra Fria”, já que estava em questão uma ameaça nuclear), só arrefecido em 2018: Trump, divulgando novas sanções econômicas, chamou Kim Jon Un de “pequeno homem foguete” e, diantes das ameaças nucleares da Coréia do Norte, afirmou que atacaria o país asiático com “fogo e fúria” (“fire and fury”) nunca antes vistos, enquanto Kim Jon Un falou em bombardear Guam, território ultramarino dos EUA no Oceano Pacífico, havendo exercícios militares e envio de submarinos nucleares dos EUA.

“Estamos preparados para lançar fogo e fúria na Coréia do Norte!”, twittou Donald Trump em 8 de agosto de 2017 para aquecer sua base extremista, enquanto figuras importantes de seu gabinete o desmentiam. Mas intrigas políticas não bastam. É preciso entender o paradigma do complexo industrial-militar, que lucra com a indústria bélica independentemente da cara do governo, se é Republicano ou Democrata, e que, pela lei do valor do capitalismo mundial, envolve também a Coréia do Norte e sua classe dominante.
Interessa ao paradigma do complexo industrial-militar fomentar tensões aparentes entre suas representações políticas, porque a indústria bélica é uma das mais caras do mundo (em certas situações, é a mais cara e lucrativa para as classes dominantes de rapina). “Kim Jon Un da Coréia do Norte, que é obviamente um homem maluco que não se importa de matar ou deixar morrer de fome o seu povo, será testado como nunca antes!”, twittou Donald Trump em 22 de setembro de 2017.
Poucos meses depois… Representantes da indústria bélica, uma das mais caras do mundo, e do paradigma do complexo industrial-militar, Donald Trump e Kim Jon Un trocam afagos (nas correspondências entre os dois, os afagos são ainda maiores e íntimos e fala-se textualmente em “amizade”) durante encontro em Hanói, capital do Vietnã, em 27 de fevereiro de 2019. Foto: Saul Loeb/Agence France-Presse (AFP).

Foi uma tensão explícita, mas, na verdade, apenas a nível aparente.

Naquela época, o NYTimes teve de redigir guia para acalmar seus leitores sobre o possível conflito Coreia do Norte/EUA – tratou os perigos como “reais”, mas “exagerados”: informaram que as ameaças da Coréia do Norte existem desde seu primeiro teste nuclear, há mais de 20 anos, mas que não são ameaças reais, segundo o guia, enquanto que as ameaças verbais de Trump também eram vazias e desmentidas pela sua própria equipe de gabinete.

A lógica do paradigma do complexo-industrial o retroalimenta, daí as constantes guerras; e ele precisa do Estado, enquanto espaço de domínio da classe dominante sobre as outras classes e como ente que faz a guerra.

Dois efeitos da trama:  (1) favorecimento da “lucrativa” indústria bélico-militar, tanto da parte dos EUA quanto da Coréia do Norte; (2) as tensões criam expectativas na Bolsa de Valores, há uma leve queda, além de medo na população e aquecimento das bases extremistas nos países; quando, finalmente, há o encontro e o pacto (momentâneo ou não) de paz, as ações voltam a subir e os golpistas do mercado se lambuzam.

A simples contextualização de Jones Manoel, acima, desconsidera completamente todos esses fatos, o encadeamento do acontecimento e já parte para a suposta tentativa do governo Trump de ganhar o Prêmio Nobel da Paz!

Não há dúvidas, para mim, de que o capitalismo hegemônico dos EUA tenha de ser esmagado de vez, que, se preciso for, países como o Brasil formem um bloco para este intento, e que ele não fará qualquer falta – o problema é o agora e o depois.

É, mesmo, trágico saber que o fim da Coréia do Norte, no contexto atual, significa as forças capitalísticas da Coréia do Sul se apropriando da redoma, significa um aliado militar a mais dos EUA passando a fazer fronteira com a China – e com a Rússia.

A História, porém, já mostrou que não é seguro nos pendurarmos na tecnocracia estrangeira sem despender um violento e autônomo trabalho de construção revolucionária interna, a História já mostrou que isso não leva a futuro concreto algum, que o movimento comunista perde-se quando regimes dos quais eles se penduram caem.

Quando Stálin dissolveu a Internacional para agradar os Aliados liberais e anticomunistas, instaurou-se, em nome da luta contra o imperialismo capitalista, a defesa apologética da União Soviética (mesmo antes, já nos anos 1930 como consequência do Grande Expurgo) em detrimento da construção revolucionária nos PCs pelo mundo, mesmo no Brasil, até o regime ser desmantelado e amargarmos décadas de contarrevolução e tapinhas nas costas entre os chefes de Estado do Kremlin junto aos presidentes do capitalismo hegemônico, respeitando diplomaticamente todos os descalabros que o capitalismo hegemônio dos EUA (ou o “imperialismo”) nos lançava com o beneplácito da elite nacional do capitalismo dependente.

Portanto, o detalhamento acima de Jones Manoel não consegue nem ao menos ser marxista, porque é totalmente superestrutural e “jornalístico”, no mau sentido, ou melhor, panfletário. Fornece o básico do teatro de marionetes entre os chefes de Estado, mas não chega na estrutura. Interessa apenas para agitação momentânea, é tática pura, sem teoria e práxis. E não apenas porque é uma simples resposta a mim – toda a análise da Coréia do Norte, em qualquer texto ou fala sua, gira em torno da mesma tática limitada e alheia.

No entanto, é justamente esse o cerne do escamoteamento jonesmanoelesco que torna a sua plateia deficitária: no hiperracionalismo em favor da luta anti-colonial e anti-imperialista, ao esconder as lutas de classes entre ambos os países em questão e dar enfoque nas representações políticas superestruturais, leva-se jovens em formação e militância acrítica à defesa ou à defenestração de símbolos que camuflam as lutas de classes, o verdadeiro terreno do marxismo. A quem interessa esconder o caráter classista da questão? A quem interessa mera defesa apologética do aparato, que conforme ensina a dialética, não é eterno? A parasitas do Estado e de aparato partidário?

Nem sequer explicita – nem na resposta a mim tampouco em qualquer texto ou fala sua sobre a Coréia do Norte, e tenho certeza disso mesmo sem o acompanhar – a contradição entre as decisões das classes dominantes: há alguns anos, não apoiar a Coréia do Norte implicaria em apoiar a Coréia do Sul e os EUA, mas, de lá para cá, as Coréias estreitaram mais ou menos a relação, para o bem de seus povos, e a Coréia do Norte teve uma aproximação com os EUA. Essas contradições só podem ser ensinadas partindo-se da estrutura.

No âmbito geopolítico, é indiferente o mandatário dos EUA, quando o governo é controlado pelo complexo industrial-militar e precisa gerar guerras para perpetuar o capitalismo hegemônico de Wall Street (com seus bancos e companhias de petróleo), conforme Eisenhower já alertou no começo dos anos 50.

Isso significa que as classes dominantes dos países, mesmo quando erguem a bandeira do comunismo e do marxismo, é marcada por interesses particulares de classes.

Lutas de classes. Como se revistasse uma tropa, Kim Jong-un visita uma fábrica entre oficiais militares e trabalhadoras têxtil. A um marxista interessa saber do excedente dos rendimentos ou da mais-valia, base da exploração da produção. Todo o resto costuma derivar daí. Foto: REUTERS.

Vou partir, agora, para uma exposição estrutural e marxista, que é o que está faltando quando pseudomarxistas tratam desses assuntos:

Visentini, em seu livro supracitado, mostra que, apesar das montanhas e das pedras que dificultam a agricultura e apesar de ter metade da população da Coréia do Sul, a região da Coréia do Norte era a mais industrializada, através de minérios e hidroelétricas e parte siderúrgica, do que a região do Sul, que era mais pobre e dominada basicamente por proprietários de terras, tendo que ser “socorrida” durante a Guerra pelas potências ocidentais e seus interesses de classes. Há uma virada nos anos 1960 e 1970, em que o PIB se inverte e o Sul torna-se mais rico (com seus conglomerados familiares) do que o Norte, configuração que permanece hoje. A história da Coréia do Norte, assim, nasce em contraposição a esse Sul. (Quem assistiu ao instigante filme sul-coreano Parasitas, de 2019, sabe que, dado o seu espelhamento das guerras de classes contemporâneas, poderia ter sido gravado em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Recife de Kléber Mendonça Filho, em Nova Iorque, daí o seu súbito sucesso e identificação mundiais…)

Veremos que, após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, a União Soviética só dispunha de sua indústria bélica; não à toa, a Coréia do Norte, através dessa influência direta, devastada pela guerra, só poderá investir para valer em fábricas estatais de produção de armas e maquinários pesados.

Kim Jon Un e oficiais militares visitam fazenda de salmão na Coréia do Norte, em 2015. O que significa a fazenda ser “propriedade do Estado”? No marxismo, o Estado apenas é um espaço de domínio e poder da classe dominante. O marxismo apenas louva o Estado quando este é tomado pela classe trabalhadora, que expropria a burguesia (ou a classe dominante) em favor da sociedade. Foto: REUTERS/KCNA SOUTH KOREA

Todo marxista deve se perguntar: quem detém os meios de produção daquela industrialização? Outro dia, Ciro Gomes, com seu “trabalhismo” charlatão, disse que a Petrobrás pertence ao “povo brasileiro”; isto é certo apenas em termos retóricos, porque o lucro dessa empresa, que é uma sociedade mista, é administrado não pela classe trabalhadora, mas por burocratas do Estado e do governo federal do momento, além de outros domínios privados influírem. Assim, as plataformas submersíveis da Petrobrás e outros exemplos, a priori, não têm dono privado, mas são fruto de matérias-primas privadas da classe dominante e da redistribuição do sistema capitalista, e a ele servem, porque o Estado é a forma política do capital. Assim, Dilma, em determinado momento, quis destinar grandes porcentagens dos royalities do pré-sal à Educação e Saúde públicas, os plutocratas brasileiros dependentes dos plutocratas estrangeiros não deixaram; eu seria o primeiro a louvar a implementação, mas, por ser marxista, não nutriria qualquer ingenuidade caso não fosse apenas através de um “Estado operário” (em transição para o definhamento desse “Estado”) ou de Conselhos Nacionais de professores e estudantes (na Educação) e de médicos e enfermeiros (na Saúde).

Repito que há, na Coréia do Norte, uma classe dominante do tipo Clódio que detém os “meios de produção” e que é proprietária de grandes reservas e depósitos minerais com minérios que valem trilhões de dólares, além de metais raros usados na produção capitalista de smartphones na China e na Coreia do Sul. (Essa classe dominante não é uma burguesia clássica com seus CEOs, presidentes, conselhos dirigentes autocráticos, etc. engordando e acumulando em torno da mais-valia dos trabalhadores, mas a apopriação do produto do trabalho na Coréia do Norte não deixa de ser um componente do mais-valor, e tal classe dominante circunda o Estado, que tal como Gramsci nos ensina, é/era tudo no Oriente, enquanto que a “sociedade civil”, que no Ocidente é bem mais constituída, era no Oriente mais ou menos amorfa.)

Recentemente, pode-se procurar nos noticiários que as empresas da China (como a Baoyuanhengchang) entraram num acordo com a Comissão de Investimento e Parcerias da Coréia do Norte, que é encarregada de atrair investimentos estrangeiros, para desenvolver minas de ferro norte-coreanas. Deve haver uma chamada pelo alto a partir da qual os trabalhadores norte-coreanos se dispõem a cumprir.

Sabemos que a economia da Coréia do Norte é operada sob sigilo pelo aparato militar. Há um mercado clandestino (ou “mercado negro”, conforme alguns dizem) muito ativo. Todos sabem que a Coréia do Norte usa a sua moeda (o won) e também o yuan chinês e até mesmo o dólar dos EUA (o atrelamento da moeda norte-coreana ao dólar foi um dos esforços de Kim Jon Un desde que tornou-se chefe de Estado em 2011 e, segundo um site do mercado dos EUA, fez com que a inflação na Coréia do Norte caísse de 926% em 2010 para apenas alguns por cento hoje).

Até onde se sabe, há duas “economias” na Coréia do Norte – a estatal, que emprega funcionários do Estado e uma economia subterrânea. O preço varia entre o preço estatal e o preço de mercado. Já no informe de Marx “Salário, Preço e Lucro”, como também no Anti-Dühring de Engels, ou mesmo décadas antes, no próprio Manifesto Comunista (!!!) inovador, no capítulo II – Proletários e Comunistas, o trabalho assalariado é visto como a exploração moderna, depois da vassalagem e da escravidão, que deve ser abolida no processo revolucionário pela tomada dos meios de produção. Uma afirmação dessas (trabalho assalariado enquanto exploração) faz a esquerda média e social-democrata ou social-liberal ficar confusa (sobretudo numa época de informalidade e uberização), mas só pode ser explicada através da teoria do valor, que promove a compreensão de que o salário é apenas parte, migalha do “lucro” tomado da própria classe trabalhadora pela classe capitalista. Isto é o beabá do marxismo. Esse salário, na Coréia do Norte, vai variar de acordo com qual parte das duas economias o trabalhador atua – a estatal, concentrada, ou a do fluxo de capitais, embora uma e outra não deixem de confluir.

A partir disso, conclui-se que: 1) Da frase de Engels, “[…] o lucro do capital, bem como todas as demais formas de apropriação do produto do trabalho alheio, não remunerado, como mero componente desse mais-valor descoberto por Marx”, que há um valor a mais, um excedente do trabalho também na Coréia do Norte; 2) Não se pode esquecer da frase de David Ricardo que “marcou época” (segundo o mesmo Engel), dando consistência à Economia Política e a partir da qual Marx em seu gênio aprofundou-se: “O valor de uma mercadoria depende da quantidade de trabalho necessário para sua produção, e não da maior ou menor remuneração que é paga por esse trabalho” (Princípios de Economia Política e Tributação, Capítulo I, “Sobre o valor”, Seção I).

Mas não está ainda cristalino, pois é estranho comparar a espoliação da Coréia do Norte com a espoliação que vemos em “economias de mercado” explícitas. Aqui, portanto, é importante uma analogia, ainda que anacrônica, mas elementar dentro do movimento comunista e para o marxismo.

Lembremos que o rendimento das classes dominantes da burocracia da URSS (muitas vezes chamada de “capitalismo de Estado”, denominação que o próprio Lênin já utilizava em brochura de 1918 e posteriormente em 1921 para tratar da NEP) passou a ser constituído em larga escala de mais-valia (ou excedente, se preferirem, para diferenciar dos modelos capitalistas de mercado hegemônico) a partir do Primeiro Plano Quinquenal iniciado em 1928. Assim como na Coréia do Norte, ainda que fosse impossível identificar, de maneira isoladamente, a regulação da economia soviética pela lei do valor (característica básica do capitalismo), a regulação acaba sendo imposta pelas relações econômicas, ora atribuladas, ora arrefecidas, com o sistema capitalista mundial hegemônico. Marxistas da época e nos últimos anos (cf. Luis Fernandes, O Enigma do Socialismo Real: um balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais, Rio de Janeiro: Mauad, 2000) identificaram que havia, na URSS, e isso é notório hoje na Coréia do Norte (os próprios oficiais fazem questão de mostrar imagens ao planeta), uma “economia armamentista permanente“, que não deixa de ser uma forma específica assumida pela lei do valor do sistema capitalista mundial na economia soviética e, agora, na norte-coreana.

“Mais-valia” dos trabalhadores para o círculo paranóico da guerra e da própria defesa: um homem numa estação ferroviária em Seul assiste a um noticiário de televisão em outubro de 2020, mostrando desfile militar comemorativo do 75º aniversário do Partido dos Trabalhadores da Coréia do Norte, realizado na capital de Pyongyang. Milhares de soldados sem máscara durante a pandemia e expectativa de exibir suas armas mais recentes e avançadas. Foto: Jung Yeon-je / AFP via Getty Images.

O fetiche da mercadoria, na Coréia do Norte, pode ser visto a cada novo super-míssel, a cada novo tanque, a cada novo teste de arma nuclear exibidos em paradas militares e festejados por Kim Jon Un e equipe militar sempre circundante. Tal como na maior parte do mundo contemporâneo, o fetiche da mercadoria, hoje, é encontrado a cada nova inovação tecnológica. (Não só no capitalismo japonês ou sob a Apple, que rouba invenção criada em laboratórios científicos como o Instituto de Massachusetts e militares com “dinheiro público” dos contribuintes dos EUA; até mesmo na China, que, enquanto bebê da produção, possui, de um lado, um capitalismo de exploração explícita do trabalho e horas compulsórias para sustentar o seu status recente de potência, e, do outro, um capitalismo de alta tecnologia – Huawei).

Porém, o mais importante não é o fetichismo em torno da bomba, mas seu caráter dissuasivo. Ela não é feita necessariamente para ser usada, mas para evitar quem a possui (Coréia do Norte e outros países que investem pesado na indústria bélico-militar) de ser atacado.

Em 2017, as autoridades da Coréia do Norte declararam que este novo míssel balístico “coloca área continental dos EUA no alcance de armas nucleares”. Foto: divulgação.

A competição militar dos países interimperialistas torna os “valores de uso” na meta principal da produção capitalista (cf. Ibidem), desnudando completamente a barbárie do capital – em seu centro e franjas ou nas intersecções, nas redomas e nas barreiras.

Podemos, enfim, dizer que grande parte da economia da Coréia do Norte se concentra nessa espécie de “economia armamentista permanente”, ainda que em configurações diferentes com relação ao que ocorreu na União Soviética, mas é fundamental fornecer esse achado para uma crítica marxista da exploração do trabalho e da sociedade de classes.

De acordo com o famoso historiador marxista Eric Hobsbawm (1917-2012), em seu livro Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994), a União Soviética saiu da Segunda Guerra em 1945 economicamente pior do que quando saiu da Revolução Russa de 1917, e os EUA emergiram como potência (Plano Marshall e outros motivos), mas, por sua vez, saíram da guerra preocupados com uma nova crise mundial nos moldes de 1929, ao passo que, vencido o nazifascismo pelo Exército Vermelho e pela luta comunista civil na Resistência dos países europeus, os EUA, tendo se tornado a grande nação da reação imperialista, incentivaram o anticomunismo. O que tinham os russos? Nada além de sua indústria bélica. Não é necessário ser um gênio para entender que a Guerra Fria e seus conceitos de direita e esquerda não passaram muitas vezes de retórica vazia e requentada que maquiou verdadeiros e robustos lucros econômicos para as classes dominantes por trás das marionetes, enquanto os efeitos eram drásticos nas lutas de classes nacionais que levaram a ditaduras militares na nossa “América Latina”, por exemplo.

(Trívia pessoal: lá pelos idos de 2013, durante minhas ambições cinematográficas em São Paulo – cheguei a cursar um semestre de Cinema e Audiovisual em Santos -, adquiri uma câmera de cinema soviética de 16 mm que era o meu xodó, fabricada na União Soviética pela Zenith, mas que vendi quando adquiri uma câmera analógica, porque é difícil hoje em dia trabalhar manualmente com filme e conseguir película, que eu tinha de arranjar no boca-a-boca: enfim, a Krasnogorsk-3 soviética, mesmo sendo pequena e de mão, era particularmente pesada e visivelmente composta por material bélico!…)

Ainda assim, é fato que a guerra entre EUA e URSS nunca foi apenas aparente. Durante a Guerra da Coreia, pilotos americanos e soviéticos entraram em combate. A crise dos mísseis em Cuba em meados dos anos 1960, da qual muito já se falou e escreveu, quase levou a uma guerra nuclear e pânico no mundo todo. As duas potências sempre estiveram em guerra: da Coreia ao Afeganistão. Vide o conceito de guerra by proxis.

De qualquer forma, a indústria do petróleo e o complexo industrial-militar se conjuminam e estão entre os mais ricos do mundo, têm os maiores financiamentos.

E durante o século XX o que não faltou foram conflitos armados. Hobsbawm menciona esse grande arranjo em seu livro.

Portanto, apesar dos projetos conjuntos com a “capitalista” Coréia do Sul em áreas de energia e outras, tudo o que a Coréia do Norte possui é a indústria bélio-militar para barganhar acordos e dissuadir.

Sua única alternativa é desenvolver tecnologia nuclear para sobreviver, daí o caráter distópico da Coréia do Norte, caso contrário há um suicídio muito mais terrível do que o desmanche da Alemanha Oriental, cujos traumas logo cicatrizaram. (A Alemanha Oriental, definiu Heiner Müller, não deixou de ser uma vingança da geração anterior, comunista ou não, contra os nazistas. Também a Alemanha Oriental era dominada pelo aparato de tipo soviético-tecnocrático, e conseguiu produzir pertinente cultura.)

Gastos com defesa são importantes em regiões de conflito, ou que tenham iminência de conflitos. Infelizmente, capitalistas e chefes de Estado lucram com guerras.

Kim Jon-un assiste a lançamento de um míssel de Hwasong-12 em 2017 para testar equilíbrio de força militar com os EUA. Foto: Reuters.

Voltemos à classe trabalhadora, raiz da sociedade, já que detém as forças produtivas, e que é a base mesmo da indústria bélico-militar com seus especialistas e técnicos mais ao alto. Um trabalhador têxtil de empresa estatal em Pyongyang está produzindo valor para a classe dominante tecnocrática e, em troca, recebe do “Estado” uma migalha em forma de salário. Se a irmã deste trabalhador trabalha em uma fábrica afiliada à China ou à Coréia do Sul na Coréia do Norte, ela recebe um salário-migalha de quantia maior (pois o lucro excedente e a mais-valia roubada pelos capitalistas desses dois países são maiores) e irá produzir valor para a classe capitalista da Coréia do Sul ou da China e, em parte, para a classe dominante da Coréia do Norte. Esse desarranjo torna o sistema norte-coreano bastante desestabilizado e instável, mas vacinado contra a economia de mercado autorregulado (nome jornalístico: neoliberalismo), que não deixa de ser também tirano, autocrático, exponencialmente hierarquizado. Uma coisa, porém, não justifica a outra.

Operários norte-coreanos fabricam têxteis no parque industrial conjunto de Kaesong, em 2013. A teoria marxiana do valor é a única que consegue identificar a exploração econômica; numa fábrica, ao fim do expediente estabelecido pelo dono cleptocrático, os trabalhadores não levam para casa o que produziram como valor de uso; o produto final é usado como valor de troca pelo proprietário daquele meio de produção; o salário é pago através de pequena fração do próprio lucro total arrancado da classe trabalhadora.
Abundam, nessas fotos da Coréia do Norte (poderiam ser no bairro do Brás?), a quantidade de trabalhadorAs produzindo um excedente que servirá de rendimentos à classe dominante do Estado: assim como aqui, esse lucro é detido pela classe capitalista explícita no setor privado.

Ainda assim, a Coréia do Norte parece ter pequenos empresários e estimula o conhecimento do empreendedorismo, da tecnologia e do capital de risco de certos membros de elite através do Choson Exchange. Li que há um site de comércio eletrônico (Manmulsang, em oposição à Amazon do bilionário semiescravagista Jeff Bezos), um serviço de compras pelo celular (Okryu, ainda que o acesso à internet e a celulares seja muito restrito) e um aplicativo de navegação (Gildongmu), sendo que fundadores desse tipo precisam superar obstáculos incomuns.

Um liberal defende a “liberdade de expressão”, sem jamais alcançar a necessidade da igualdade econômica dessa liberdade de expressão, que o capitalismo, por seu próprio funcionamento, nunca oferece. Um marxista vai mais fundo e se interessa pelo caráter econômico das relações. Nesse sentido, sabemos que do lado de cá nossa expressão é, hoje, mercantilizada pelo monopólio das redes antissociais para meia dúzia de bilionários tão infantilizados quanto Kim Jon Un (penso num Mark Zuckeberg, um adolescente marmanjo), nossos dados são vendidos ou fornecidos de bandeja para aparatos governamentais na velha relação incestuosa entre empresariado e corporativistas. Vivemos um mundo de louco: o tripudiador Trump é banido do Twitter, uma plataforma privada, e é como se o presidente dos EUA (!) perdesse a voz… Países como a Coréia do Norte também cerceiam a expressão e também aglutinam a produção do trabalho para uma meia dúzia.

O que mais podemos saber sobre as classes na Coréia do Norte? Andray Abrahamian, da George Mason University Korea, em Seul, que já trabalhou em cooperação estreita com empresas norte-coreanas (ele escreveu em 2020 o livro Being in North Korea), informou em 2020, no contexto da pandemia de COVID-19, que o Estado norte-coreano vai “coagir a comunidade empresarial” a comprar títulos de divisas cada vez mais caros para lidar com suas recentes crises, mas que haverá uma suposta “negociação” dos valores dos mesmos:

“Estamos falando de alguém que tem uma pequena empresa com dez empregados, cuja família ganha alguns milhares de dólares por ano e têm condições de viver numa casa boa, com alguns eletrodomésticos? Ou das pessoas que comandam estatais e ganham vários milhões de dólares por ano individualmente?”

Temos aqui um aspecto explícito das lutas de classes, ainda que não venha a público! Que empresários são esses? Parte da mais-valia desses empregados (privados?) vai também para o governo? Pode-se chamar tais empresários de burguesia, sendo que possivelmente não possuem os meios de produção principais e estão subordinados às matérias-primas detidas pelo aparato? São “pequena-burguesia”?

Abrahamian comentou ainda que é provável que a emissão de títulos de divisa crie tensões no interior da liderança norte-coreana:

“Haverá elementos no governo que vão querer se certificar de não estarem sufocando as empresas. Haverá outros que se preocupam muito menos com isso e se interessam no acúmulo de capital no curto prazo para os órgãos do Estado central.”

Prova tácita da correlação de forças das lutas de classes. Um país não é um bloco monolítico, é sempre muito mais complexo do que parece. Os interesses de classe, que formam diferentes ideias e ações no campo da superestruturra política, precisam sempre ser descobertos quando vamos ensinar ou aprender sobre determinada situação histórica.

Assim, além dessa franja empresarial, o excedente do trabalho na Coréia do Norte vai todo para uma espécie de cleptocracia (surgida como sintoma da guerra interimperialista), que centraliza poder militar e meios de produção enquanto propriedade dos membros do poder central.

Também na Coréia do Norte há uma espécie de “anarquia da produção“, ainda que do avesso se comparada com a nossa, de economia de mercado capitalista, sob outras configurações de caráter oriental (novamente a diferenciação gramsciana se faz presente). A contradição da sociedade burguesa em que o processo do trabalho no capitalismo é uma atividade coletiva, mas sua posse e usos não o são é chamada por Marx e Engels de “anarquia da produção”, que gera as crises periódicas típicas do capitalismo por conta da contradição entre as forças produtivas (detidas pelos trabalhadores) e as relações de produção da classe dominante capitalista.

Nem mesmo a pressionada Coréia do Norte, como já vimos, aboliu tal contradição entre atividade coletivizada e posse e uso “privados”. Em Engels (no célebre ensaio “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, opúsculo retirado do Anti-Dühring), é explícito que a classe trabalhadora é que irá pôr fim à anarquia social da produção através da revolução. (Trata-se de um elevado ponto de chegada da conscientização na história humana ocidental e que nos remete ao clássico Rousseau, para quem a origem da desigualdade entre os homens reside na propriedade – Discurso Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens.)

Ainda em Engels, em etapa avançada do comunismo, “Na medida em que desaparece a anarquia da produção social, a autoridade política do Estado também desaparece”. O que Engels diria da Coréia do Norte e do mundo hoje?

Não é a classe trabalhadora que está no domínio, mas meia dúzia de tecnocratas que não fazem parte da classe trabalhadora. De fato, esses tecnocratas possuem mais ou menos um papel de liderança. Não quero me aprofundar neste aspecto, porque periga cairmos na mera fenomenologia do poder, que é superficial, quando, na realidade, nos interessa estudar a mais-valia e a exploração econômica, a partir das quais surge qualquer elemento ditatorial ou liderança orgânica.

“O trabalhador produz não para si, mas para o capital”, mostrou Marx no livro I de O Capital. Como se fosse o avesso frio das zonas quentes do fluxo de capitais, o trabalhador norte-coreano produz não para si, mas para a classe do aparato do Estado, que promete defendê-lo de um mundo hosti. Que isso retorne em bens públicos já são outros quinhentos, porque é algo que países “desenvolvidos” de economia de mercado e governos social-democratas também o fazem, mantendo a sociedade de classes e a exploração econômica do trabalho, ainda que com direitos trabalhistas (ou não).

O capital, através do valor excedente (mais-valia), acumula, forma capital constante, remunera juros e recolhe tributos. O nosso setor público dos países de economia de mercado possuem orçamento que, em determinado momento de execução, independe do valor de troca do trabalho e de valor excedente. O limite de gastos com pessoal é determinado em lei. O setor público, a priori, tem função social e não mercantil, ou seja, teoricamente não vende os serviços baseado em valor de troca. Mas está conjuminado ao sistema capitalista. Aliás, foi construído pela burguesia para isto na forma de um Estado burguês e de um Direito burguês, que garantem a troca de mercadorias na legislação e a defesa da propriedade privada em termos policiais, militares, coercitivos, tal como Engels mostrou em apanhado histórico no Anti-Dühring, a partir do qual Pachukanis se debruçará décadas depois em sua obra Teoria Geral do Direito e o Marxismo. (Revolucionário empenhado na superação da burocracia soviética, intelectual comprometido com Lênin e com o marxismo, ele será executado no Grande Expurgo.)

A resposta para desfazer o nó entre “público” e “privado” só pode partir de uma etapa anterior, está num estudo sobre o trabalho, que funda o ser social, conforme Marx e posteriormente Lukács, na sua ontologia, nos legaram.

Esta pesquisa bibliográfica, de Janaína Lopes do Nascimento Duarte, explica a partir de Marx e de autores marxistas brasileiros contemporâneos, o que é trabalho produtivo e trabalho improdutivo na sociedade burguesa; o trabalho produtivo, produzindo um bem material ou imaterial, uma necessidade do estômago ou do desejo, está diretamente no processo imediato de produção e é comprado pelo capitalista para produzir valor maior, enquanto que o trabalho improdutivo é comprado pelo consumidor para consumir seu valor de uso.

Ainda que os assalariados do comércio não estejam diretamente no processo imediato de produção, são produtivos interiores à produção capitalista e à circulação de capital, são funcionais ao modo de produção capitalista e estão inseridos como classe despossuída no seu processo global de produção; os funcionários públicos, por sua vez, que são classe média/pequena-burguesia, também encontram-se de fora do processo direto de produção de mais-valia, não vendem força de trabalho diretamente ao capital, mas estão ligados ao Estado, instituição absolutamente necessária ao sistema capitalista, pois seus salários provêm de fundo constituído pela redistribuição dos rendimentos do sistema capitalista através dos impostos, que correspondem a uma parte dos rendimentos (salários, lucros e renda da terra) apropriada pelo Estado. (Como parte do sistema, os docentes, de uma forma geral, tanto público ou privado, ou seja, tanto o improdutivo quanto o produtivo, a partir de reformas educacionais acríticas e de ideologia neoliberal, acabam formando cabeças para o mercado de trabalho…) Mas o trabalhador de uma fábrica norte-coreana não pode ser comparado com um funcionário estatal brasileiro, pois o primeiro produz como um trabalhador do setor privado capitalista… Os empregados domésticos, por sua vez, ou os empregados temporários de escritórios, também são improdutivos, porque sua força de trabalho é comprada para o valor de uso particular de servir as famílias, ou seja, é um trabalho que se troca por rendimento e não por capital. Mas esse rendimento só pode provir do valor criado pelo processo de produção. Um trabalhador que contrata um empregado doméstico lhe dará parte de seu salário; contratado por um empresário, terá parte da mais-valia dos possuidores; contratado por um proprietário de terra, terá parte da renda fundiária do proprietário. Os serviços temporários de atores, músicos, prostitutas, auxiliares de escritório vendem trabalho improdutivo para o lucro, sendo que estes serviços foram certamente pagos com a renda ou derivam do trabalho produtivo, podendo estar subordinada à produção de mais-valia ou escapar de tal processo, dependendo do caso. O trabalhador autônomo, também exterior à produção, não gera sobre-valor, porque sua força de trabalho é utilizada por seu valor de uso próprio, mas está preso ao sistema capitalista através da redistribuição dos rendimentos.

Mesmo com tantas formas de trabalho improdutivo, explicadas rapidamente acima, toda a produção é produção do trabalho produtivo, porque, mesmo afastados dos muros das empresas capitalistas, só podemos produzir mercadorias com as matérias-primas e os instrumentos de trabalho produzidos pelas grandes empresas, por causa da brutal axiomática sistêmica do capital ou da forma mercadoria.

Disso podemos apreender que o trabalho, na Coréia do Norte, mesmo sendo assalariado a partir do “Estado”, não deixa de ser produtivo no contexto da indústria bélico-militar e de outras “economias” que por ali passam, mas, em grande parte, é um funcionamento heterodoxo ao modelo ocidental – seria errôneo dizer que todos os funcionários de lá são classe média/pequeno-burguesia (que, aqui, fazem parte da burocracia estatal), quando, na realidade, parecem muito mais com o operariado produtivo, dada a configuração do trabalho e o produto do trabalho.

O recente caso ocorrido na Região Industrial de Kaesong ilustra bem meu ponto. Como se sabe, apesar da planificação, cresce o comércio em vários pontos e há áreas industriais na Coréia do Norte, ou seja, passa ali algum fluxo de capitais; o complexo militar de Kaesong significou uma aproximação com a Coréia do Sul, que forneceu eletricidade, água tratada, petróleo e material de construção para a manufatura, enquanto a Coréia do Norte fornecia a região e os trabalhadores; a Região Industrial foi temporariamente pausada em 2016 quando se soube que os militares da Coréia do Norte estavam realizando um teste de bomba de hidrogênio.

A indústria bélico-militar, urdida a partir dos rendimentos do Estado pela classe trabalhadora, exerce múltiplos papéis na Coréia do Norte, que é um resultado das guerras interimperialistas do século 20 com novos elementos neste 21: lucro, fetichismo, defesa, caráter de dissuasão sem uso. Foto divulgada pela KCNA, agência estatal de notícias da Coréia do Norte, mostrando inspeção de armas nucleares em local não revelado. Tem sido importante para a Coréia do Norte divulgar fotos para mostrar ao mundo que está em equilíbrio de poderio militar. EFE/EPE/KCNA.

Ou seja, a classe dominante norte-coreana usa a maior parte dos recursos para a Defesa, além de serviços básicos públicos, obras faraônicas e propinas para a elite. As fazendas e fábricas são povoadas de trabalhadores que não parecem ter real autonomia revolucionária, assim como os daqui; o rendimento geral é detido, as próprias fazendas e fábricas não são da classe trabalhadora, mas de uma classe dominante nacional, ainda que possa se dizer que são do “Estado”, logo seriam “propriedade pública”, entretanto não é novidade nenhuma, para quem leu Engels (ver a foto de trecho do Anti-Dühring lá em cima), que o Estado é o Estado da classe a ser tornado supérfluo “no momento em que não houver mais classe social para manter em opressão”. A Coréia do Norte é melhor do que o luxo da nossa burguesia (há relatos de que Kim Jom Un e seu pai sempre se aproveitaram de prazeres exagerados) e do que Wall Street sustentando o complexo industrial-militar dos EUA, e vice-versa? É o avesso? O outro lado da moeda? Não me parece melhor, mas, para responder, seria preciso não uma opinião, e sim um estudo antropológico, da qual não é plenamente possível por causa do fechamento do regime… As conclusões a partir da exploração econômica por meio da teoria do valor podem ser suficientes.

Agora, vamos problematizar novamente o caráter heterodoxo da Coréia do Norte a respeito do trabalho.

No Tomo II dos Grundrisse, tratando do papel do Estado na relação das condições gerais da produção, Marx assinala: “Pode fazer trabalho ou investimentos que sejam necessários, sem serem produtivos no sentido do capital, isto é, sem que o sobre-trabalho contido neles se realize como mais-valor por meio da circulação, do intercâmbio”.

Um operário estatal da sociedade burguesa, exemplifica Marx, que constrói uma estrada deixa modelado seu sobre-trabalho que, a priori, não se pode vender, por ser estatal; é pago pelo custo de sua força de trabalho, despende um sobre-trabalho não retribuído que não se pode concretizar em mais-valia, pois não se troca no mercado. Os empregados públicos são pagos com o rendimento (impostos), não com o capital variável. Conclui Marx: “Por conseguinte, todas as condições gerais, coletivas da produção – enquanto não possa ocorrer sua criação pelo capital enquanto tal, sob suas condições – se cobrem com uma parte do rendimento nacional, do erário público, e os operários não se apresentam como trabalhadores produtivos, ainda que aumentem a força produtiva do capital”.

No entanto, expandindo o pensamento para além do capital, Marx ensina:

“Onde reina o capital (tal como ali onde há escravidão, servidão ou trabalho compulsório de qualquer tipo), o tempo de trabalho absoluto do trabalhador é posto como condição para que ele possa trabalhar o necessário, i.e., para que possa realizar o tempo de trabalho necessário à conservação de sua capacidade de trabalho em valores de uso para si. Em qualquer tipo de trabalho, a concorrência faz com que o trabalhador tenha de trabalhar o tempo completo – portanto, o tempo de trabalho excedente. Pode acontecer, entretanto, que esse tempo de trabalho excedente, apesar de contido no produto, não seja trocável. Para o próprio trabalhador – comparado aos outros trabalhadores assalariados –, é trabalho excedente. Para aquele que utiliza o trabalho, é certamente trabalho que tem um valor de uso para ele, como, p. ex., seu cozinheiro, mas não tem nenhum valor de troca, de modo que toda distinção entre tempo de trabalho necessário e excedente não existe. O trabalho pode ser necessário sem ser produtivo. Todas as condições gerais, coletivas, da produção – enquanto sua produção ainda não pode se realizar pelo capital enquanto tal, sob suas condições – serão custeadas, por conseguinte, por uma parte da renda do país, pelo erário público, e os trabalhadores aparecem não como trabalhadores produtivos, muito embora aumentem a força produtiva do capital.” (Grundrisse, p. 712)

O emprego público ou estatal, mesmo sendo assalariado como outro qualquer, está, do ponto de vista econômico, “em outra relação, se não de capital, enquanto capital”.

O beneficiário imediato deste sobre-trabalho não é diretamente o capital privado, mas as finanças da empresa e do Estado. Acontece que não existem “capital privado” e “Estado” sem classe dominante por trás, ou seria como tratá-los de maneira abstrata e pouco concreta.

É de se assinalar que geralmente as empresas estatais ocidentais são implantadas em áreas de baixa rentabilidade ou alto risco, ainda que necessárias para o funcionamento social. É exatamente por isso que o capital privado prefere que o Estado burguês o brinde com os ganhos indiretos pelo capital, descartando intervir de forma direta na sua exploração; obtém a baixo lucro e incorpora a seu processo produtivo, transferindo esses ganhos ao produto final que sai de suas empresas privadas e aumentando os lucros capitalistas ao reduzir o custo de financiamento.

A partir de informações das alfândegas internacionais (a Coréia do Norte não publica estatísticas sobre seu comércio externo), sabe-se que o país exporta mais (intercâmbios que ultrapassaram 6,5 bilhões de dólares, cerca de 20 bilhões de reais) do que países como Malta, Senegal, Líbano, Cuba ou Afeganistão, e que 85% dos produtos que entram na Coréia do Norte advêm da China (o resto, Pyongyang compra da Índia, Rússia e Tailândia). A China, por sua vez, compra 82% das exportações norte-coreanas, além de Índia, Paquistão e Angola também contribuírem nas negociações com a Coréia do Norte. Assim, é muito claro que a Coréia do Norte participa da “economia mundial de mercado”, isto é, do fluxo de capitais. É impossível imaginar um país descolado do resto da circulação mundial, sobretudo em décadas de globalização.

A Coréia do Norte exporta carvão (35% no total, segundo a matéria supracitada), quase totalmente comprado por Pequim; o comércio de carvão mineral (hulha) gera receita em torno de bilhão de dólares, ainda de acordo com a matéria acima. As sanções e embargos, portanto, muito comuns nessas áreas, impactam sobremaneira a classe trabalhadora da Coréia do Norte. A Coréia do Norte também exporta produtos têxteis (camisetas de malha, casacos, jaquetas, ternos e calças) que ultrapassam os 100 milhões de dólares. O segundo comprador destes produtos, em 2015, foi a Espanha (361.000 dólares). A França, ainda segundo os dados da matéria, comprou moluscos norte-coreanos pelo valor de 703.000 dólares. É o jogo das altas classes dominantes, em que o grande montante, gerado pelas forças produtivas, não é administrado pelos de baixo.

Pyongyang importa uma vasta gama de produtos: tecidos sintéticos, aparelhos de televisão, telefones, automóveis, pneus, computadores, óleo de soja, peixe congelado, mas a Coréia do Norte procura, como todo país que se preze, petróleo, e nisso, ainda de acordo com a matéria supracitada, seus principais fornecedores em 2015 foram China (62,5% do total), México (24,3%), Rússia (10%) e Turquia (2,5%).

O desequilíbrio estrutural gerado pelo fato de comprar muito mais do que vender é suprido em parte pelo investimento chinês no país, pelo superávit turístico (sobretudo de cidadãos chineses), pelas remessas enviadas pelos 50.000 trabalhadores norte-coreanos de vários setores do exterior, ajuda humanitária e empréstimos sem juros de seus aliados, além do contrabando.

Imagem sem data de Kim Jon Un inspecionando o míssil Hwasong-14. Segundo matéria do El País internacional, a Coréia do Norte “já dispõe de armamento nuclear suficiente para atingir a Coreia do Sul e o Japão. Até mesmo no caso de um ataque convencional, o país conta com um Exército de um milhão de soldados e 15.000 canhões e lançadores de mísseis direcionados, na fronteira, para o país vizinho. Seul e os 24 milhões de habitantes de sua região metropolitana seriam atingidos quase imediatamente. Um míssil lançado da fronteira levaria apenas 45 segundos para cair no centro da capital sul-coreana.” Mesmo que tais informações possam ser exageradas, interessa publicamente à Coréia do Norte que sua imagem seja associada a esse poderio bélico.

A Coréia do Norte é, infelizmente, repito, uma distopia (uso esta expressão sem qualquer intenção pejorativa ou caricata), é uma sociedade em permanente estado militar de paranoia produzida pelo mortífero combate das classes dominantes durante a Segunda Guerra Mundial e a traumática fratura geográfica; a sociedade dos EUA vive também a sua particular paranoia em defesa de seus privilégios, primeiro contra “o comunismo”, depois “contra o terrorismo”, e a sua prosperidade não é mais do que uma conquista bélica, ainda que seja uma sociedade muito mais complexa, multiétcnica, multicultural, por conta da história e da abertura (mesmo com protecionismo).

Assim, os apologéticos não estão defendendo a classe trabalhadora norte-coreana. Defender o povo contra uma guerra nuclear até a Organização das Nações Unidas o faz, e qualquer liberal… Isso é, de fato, o mínimo, em termos humanistas.

Em âmbito filosófico, é ainda mais simples: pode-se dizer que se está em favor e a serviço da classe trabalhadora (o universal), mas as ações são de acordo com os interesses e condições de classe (o particular), então a primeira categoria, com ganhos e equívocos, não é totalmente cumprida no nível prático.

Os trabalhadores norte-coreanos mantém, com seu trabalho, a máquina estatal, mas não detém os meios de produção através de organizações autônomas da classe trabalhadora, tal como elaborou Marx na Crítica do Programa de Gotha. Arrisco a dizer que, uma vez que o Estado não é tudo no Ocidente, tal como Gramsci ensinou, uma vez que a sociedade civil ocidental tem maior capilaridade do que no Oriente, em que o Estado era tudo, é possível que do lado de cá do mundo haja mais organizações classistas de trabalhadores independentes do que na Coréia do Norte.  (Recentemente, conforme foi noticiado, uma fábrica de alfajor e de doces na Argentina faliu; os próprios trabalhadores, que iriam para a rua, tomaram conta da fábrica e a transformaram em cooperativa, sem excedente, sem lucro, sem patrão, sem mais-valia. Infelizmente, essa tomada dos meios de produção é um mísero exemplo, que deveria se espraiar em áreas fundamentais da economia, fosse o governo peronista realmente revolucionário… Além do mais, se deu não por um processo revolucionário, mas pela falência da fábrica – e possivelmente do capitalista, que com certeza não é o dono do terreno, sendo este dono um proprietário fundiário que dele devia cobrar aluguel. Não faltaram brasileiros, aqui e aqui, um pouquinho mais lúcidos, afirmando que, finalmente, essa tomada do meio de produção pela classe trabalhadora é um exemplo comunista no qual Marx e Engels se orgulhariam. Ninguém pode dizer, se utilizando dum eurocentrismo marxista etapista – que o próprio Marx tratou de mitigar na Carta a Sigfrid Meyer e August Vogt e na Carta à redação da Otechestvenye Zapiski – que a Argentina é “rica” e “suficientemente desenvolvida” para aquela movimentação operária; ao contrário, está numa crise violenta. A Coréia do Norte é país subdesenvolvido ou em desenvolvimento, mas era mais rica que a do Sul, conforme já supracitado, tem um campo industrial, fabril, fazendas, e, se hoje dizem que é comunista, precisava ser comunista de fato, radicalmente comunista.)

Essa máquina, como toda máquina estatal, é controlada por uma classe dominante sobre as outras, no nível superestrutural: toda máquina totalitária precisa de um forte esquema burocrático, militar, policial, propagandístico, educacional, etc.

O excedente, na Coréia, é usado para manter essa máquina, que não gera valor. Há propriedade privada dos meios de produção detida pelos altos oficiais da classe dominante.

Nesse sentido, a única coisa que os trabalhadores norte-coreanos podem fazer é vender para o Estado (que se confunde com o burocrático Partido dos Trabalhadores) a sua força de trabalho, uma vez que os trabalhadores não são os detentores dos meios de produção. Esta é a condição da classe trabalhadora por lá, assim como para a classe trabalhadora aqui – embora, do lado de cá do mundo, os meios de produção são detidos por uma explícita classe capitalista e pelos donos do PIB, que escolhem seus representantes políticos para gerir o Estado burguês. Nos EUA, o que nasce de ciência através de volumosos investimentos públicos em laboratórios militares e meios acadêmicos, logo é vendido e monopolizado para bilionários da Apple. Na Coréia do Norte, é administrado pela classe dominante tecnocrática.

Os apologéticos dirão que o aparato está à serviço da população e dos trabalhadores contra as pressões do Ocidente e do imperialismo (capitalismo hegemônico reacionário) das potências dos EUA e da Europa. Ninguém nega que o regime não se abre por conta da pressão do Ocidente sobre o país. Anos e anos de isolamento contribuíram para o fechamento do regime.

Os apologistas, entretanto, precisam de uma antropologia política para afirmar aquilo, mas eles não a têm. Uma forma de se romper as amarras dogmáticas de um certo comunismo e marxismo é a análise antropológica: como os atores se representam, como agem, pensam no cotidiano, em suas mais variadas formas, aliado à concepção materialista da História. Marx e Engels, em vida, faziam questão de coletar dados e entrar em correspondência com organizações de trabalhadores pelo mundo que não conheciam… Não existe, porém, aprofundada e ampla pesquisa empírica na Coréia do Norte, que não esteja vinculada ao governo (que, lá, se confunde com o próprio Estado), muito menos as de caráter antropológico.

Resta a eles, então, uma prática propagandista e ideológica de acordo com o aparato extrínseco, nada mais.

Um colega meu distante visitou, anos atrás, Pyongyang, a capital da Coréia do Norte. Pedi breve relato a ele para este texto. Seu relato foi o seguinte (ipsis litteris):

“O país consegue garantir habitação, saúde e educação gratuita pra maioria da população. Pyongyang é uma cidade interessante, com ruas amplas e arborizadas, tudo muito limpo e bem cuidado, há uma boa estrutura de lazer, cinemas, teatros, pistas de patinação/skate, clubes aquáticos etc. O interior é mais pobre, mas não miserável. Segundo o embaixador brasileiro na época, sr. Roberto Collin, a grave crise alimentar da década 90 já havia sido superada. Longe de ser o país perfeito, mas também distante do que nos é noticiado corriqueiramente.”

E daí? Nos países “nórdicos”, que são “a maravilha” para a esquerda reformista, também há parecidas características em relação à vida cotidiana (às custas dos trabalhadores dos países subdesenvolvidos, vários deles imigrantes desempenhando serviços e trabalhos que a classe trabalhadora europeia já não mais exerce).

Isso é positivo em si mesmo?

Em termos de marxismo, não.

Para a teleologia marxiana e marxista, isso é o básico e isso é pouco.

É a proposta econômica da social-democracia e dos “pelegos” do liberalismo social.

Quando a vida da classe trabalhadora parecia melhorar em fins do século 19 através das conquistas sociais e trabalhistas e por melhores direitos, Engels ; “melhores salários” e “jornada de trabalho” , Marx “Salário, Preço e Lucro”. Eles continuam sendo a vanguarda.

Como, então, essa crítica pode se dar em um país que não tem uma classe capitalista explícita, e cuja economia de mercado é subterrânea, de contrabando e clandestina?

Há os detentores dos meios de produção, que definitivamente não são os trabalhadores norte-coreanos.

Rafael Albuquerque, em seu recente livrinho Por que não houve socialismo na experiência soviética? (São Paulo: Instituto Lukács, 2020), em que, a partir de Marx, Engels e Mézsaros, se utiliza de três argumentações …

“1) A permanência da cisão antagônica entre classe produtora e classe dominante;

“2) O fortalecimento do Estado;

3) A permanência do sistema do capital” (Ibidem, p. 12)

… nos fornece logo na introdução o substrato teórico-prático do pensamento revolucionário e emancipatório de Marx a respeito do trabalho nos diferentes tipos de sociedades de classes:

“Diante da investigação de diferentes formas de propriedade, no seu estudo das formações sociais pré-capitalistas, Marx apreende que a expropriação do trabalho de uma classe social por outra é um ponto em comum das sociedades que viveram sob alguma forma de sociedade de classes, como as escravistas e feudais e a moderna sociedade capitalista global consolidada. N’O Capital, portanto, Marx argumenta que, em qualquer forma de sociedade na qual uma parte da sociedade domina os meios de produção (e consequentemente exista a separação entre a existência ativa dos produtores e as condições inorgânicas desta existência), o trabalhador (seja escravo, servo ou trabalhador assalariado) está destinado a realizar trabalho para além da quantidade de tempo necessário para garantir a sua autopreservação, adicionando uma determinada quantidade de tempo de trabalho excedente (mais trabalho do que seria suficiente para garantir a sua existência enquanto produtor). Este ‘mais trabalho’, portanto, é fundamental numa sociedade dividida em classes na medida em que é responsável por produzir os meios de subsistência para o proprietário dos meios de produção. Neste sentido, para Marx, o mais-trabalho, esta parte do tempo de trabalho que não pertence ao trabalhador, não foi inventado pelo sistema do capital [Karl Marx, O Capital. Crítica da Economia Política, Volume I, São Paulo: Abril Cultural, 1983].”
O encontro entre força de trabalho e meios de produção, cuja finalidade é produzir valores de uso, não tem, em princípio, um caráter capitalista, uma vez que tal relação é condição perene da humanidade para produzir sua vida em qualquer forma societal. (A capitalização, sabemos, virá num processo bem avançado do desenvolvimento da história humana, sobretudo a partir do século 16, tendo encontrado o seu ápice no 19.) Por esta razão, de início, Marx dá um tratamento genérico aos meios de produção no interior do processo de trabalho, já que, per se, eles não têm uma natureza capitalista e só adquirem este conteúdo histórico quando o trabalho, a força de trabalho que os utiliza se transformou numa mercadoria, ou seja, quando se estabelece a relação especificamente capitalista, cuja condição essencial é a conversão da força de trabalho em mercadoria.

Essa relação capital-trabalho pode ser vista na Coreia do Norte: o trabalho, lá, é mercadoria.

E, assim como na Coréia do Sul, os marxistas revolucionários desejamos a tomada de empresas como Kia, Samsung, LG ou Hyndai (inclusive, as três instaladas enquanto multinacionais aqui no Brasil) para os trabalhadores livremente associados, assim também enxergamos o problema social na Coréia do Norte à tomada dos meios de produção pela classe trabalhadora, não por uma família e seus cupinchas militares, que só se justificam enquanto Defesa contra o capitalismo imperialista, mas mesmo essa justifica é meio verdade, meio falsa, porque pressupõe desviar o foco e não encarar o problema.

Frente a esse xadrez geopolítico, o rapaz, como bom imbecil, resume as coisas a “amizade”.

Frente a esse xadrez das lutas de classes, o rapaz, como bom imbecil, resume as coisas a “xadrez geopolítico”.

Em nenhum momento resumi à “amizade”! Apontei o fato inconteste da aliança entre classes dominantes ou suas representações, ao invés de tratar a Coréia do Norte como um todo abstrato, enquanto os Estados Unidos aparecem aí em cima representados com seus governos momentâneos, o que também é uma definição prematura que mal considera o paradigma do complexo industrial-militar.

A palavra “amizade”, que jamais usei, é usada pelos próprios protagonistas, que, depois de se ameaçarem superficialmente de morte e destruição, agitando seus “gados”, dão-se as mãos. O recente livro Rage, de Bob Woodward, revela 25 correspondências trocadas entre Kim Jong-un e Donald Trump. Em uma delas, o próprio Kim fala em amizade com “força mágica”. Ou seja, o “líder supremo” dos pseudomarxistas tem uma amizade do tipo “força mágica” com um capitalista falido da extrema-direitalha dos EUA!

Criticar isto não é criticar o “povo” norte-coreano.

E aqui reside, em exemplo tácito, a minha enorme crítica à “nova linha” do PCB e à UJC.

Leu tanto Lukács e nunca aprendeu o que é “análise concreta de situação concreta”.

A definição do marxismo enquanto “análise concreta de situação concreta” não é de Lukács, mas de Lênin (em seu texto “Kommunizm” de 1920, publicado no Jornal da Internacional Comunista Para Países do Sudeste Europeu), cujas reclamações e preocupações finais em relação às falhas do burocratismo são ainda válidas e pertinentes, conforme podemos ver no texto “Sobre o significado do materialismo militante” (em que cita dois burocratismos sobrepostos a serem mitigados: o burocratismo russo, mais antigo, legado pelo czarismo despótico e que os bolcheviques não conseguiram superar, e o burocratismo novo, soviético). A degeneração dos Sovietes com a industrialização acelerada, a militarização do trabalho e a expropriação de camponeses (proposta deplorável de Trótski que Stálin implantará) se dá em grande parte por uma maior acomodação da nova classe ao burocratismo – faltaram afirmação e legitimação do poder dos Sovietes. Lênin, antes, teve de se defrontar com muitas contradições; é preciso lembrar que o autor de O Estado e a Revolução, enquanto revolucionário clandestino, segue à risca as preposições do Engels do Anti-Dühring a respeito do definhamento do Estado a partir do momento em que a classe trabalhadora revolucionária o toma e socializa os meios de produção para a sociedade, mas, no plano do real, diante de capitalismo atrasado, do isolamento, da fome, da revolução alemã fracassada e outros problemas, o Estado não superou totalmente resquícios da velha ordem.

Ademais, quando Lênin trata da “análise concreta de situação concreta”, obviamente ele tem um horizonte revolucionário a partir de táticas de acordo com as necessidades e condições.

Mas, aqui, “análise concreta de situação concreta” é reduzida a pura tática conjuntural a serviço do aparato. Não se exerce qualquer ação calcada no marxismo.

E atenção com a palavra “concreto”!

“Quando exagero os caracteres abstratos deste concreto, chego a um ponto onde a racionalidade do nexo racional anterior cessa” (Lukács, Pensamento Vivido: Autobiografia em Diálogo, Instituto Lukács, São Paulo, 2017, p. 136)!

Finalmente, já que Lukács foi citado, é ele quem nos fornece cirurgicamente a chave para explicar esse fenômeno da “nova linha” do PCB – tratam-se de resquícios “stalinistas” na ação política. Vejamos o que o próprio Lukács ensina, e como casa perfeitamente (Ibidem, grifos meus):

“A verdadeira essência do stalinismo, em meu entender, consiste no fato de que o movimento operário conserva teoricamente o caráter prático do marxismo, mas, na prática, a atuação não é regulada pelo conhecimento mais profundo das coisas; pelo contrário, o conhecimento mais profundo é construído em função da tática do agir. Em Marx e Lênin, o dado primeiro era a linha fundamental do desenvolvimento social, desenvolvimento que se faz no interior de uma direção bem definida. No âmbito dessa linha fundamental resultam em cada época determinados problemas estratégicos e seus respectivos problemas táticos. Stalin inverteu essa sequência. Considerou primordial o problema tático e derivou dele as generalizações teóricas. Por exemplo, estabelecendo o pacto com Hitler, Stálin usou uma tática correta no confronto com o líder nazista, mas extraiu daí a conclusão teórica totalmente falsa de que a Segunda Guerra Mundial seria igual à Primeira, isto é, que o lema de Liebknecht – “O inimigo se encontra no próprio país” – seria válido também para a defesa anti-hitleriana dos franceses e ingleses, o que, evidentemente, não era verdade. Ainda hoje [1971], a dificuldade da política russa consiste em que ela nunca se pergunta o que é decisivo do ponto de vista histórico-universal, mas parte de determinadas questões táticas. Basta pensar no conflito entre Israel e Egito. De uma mera tática de grande potência, deduz-se que os egípcios seriam socialistas e os israelenses, não, quando, evidentemente, nenhum dos dois é socialista.” (Ibidem, página 136, grifos meus)
Isto explica por que não estamos tratando da questão no mesmo nível. Eles estão na simbologia, na retórica e na particularidade da universalidade vazia, ainda que a intenção possa ser boa – excluindo os oportunistas. Considerando a categoria da particularidade, eu estou na crítica revolucionária marxista.

Esse tipo de “marxismo” é impotente e incapaz de qualquer ação política. Fala em materialismo, mas é idealista, desinformado e perdido no mundo.

Esse tipo de marxismo é a própria bibliografia marxiana! É inacreditável como simplesmente se despreza a teoria em nome da supervalorização da conjuntura!

Não há ação política alguma – há militância acrítica, pseudomarxista em favor do aparato, não da autonomia da classe trabalhadora em favor da construção de uma sociedade comunista sem antagonismo de classes.

“Esse tipo de ‘marxismo'”, que negligencia a teoria do valor (defendendo o trabalho assalariado, exploração do capitalismo), a teoria do poder e do Estado e outras mais possui uma potência apenas basista, mas que é incapaz de qualquer ação política transformadora que não seja a parasitagem no Estado, em detrimento de CONSELHOS e COOPERATIVAS colocados no topo, acima e diretamente envolvidas na produção da sociedade.

Já não é mais marxismo, nem em sua análise social nem como práxis de uma construção revolucionária. Não à toa, Kim Jon Un não é nenhum grande elaborador marxista; o Juche e o Kimilsungism serviram para a “norte-coreianização” do comunismo, mas não servem à luta revolucionária a não ser em termos simbólicos, ideológicos e retóricos; a mera apologia emperra a construção revolucionária e despreza o marxismo. Repercute, afronta jornalistas neoliberalóides brasileiros e ocidentais que propagam a falsa dicotomia-armadilha de ditadura versus democracia, serviçais da burguesia, mas nada diz à realidade brasileira, por exemplo. É comunismo? Mas um comunismo cujo referencial é a classe dominante da burocracia, não a organicidade tal como ensinou Antonio Gramsci contra o centralismo burocrático, em nome do centralismo democrático e orgânico, em que sujeitos do mais profundo da massa, transformando-se em intelectuais orgânicos, sejam a direção do partido, mas não como “funcionários”.

É idealista, porque insiste no modelo do aparato tecnocrático pairando acima da classe trabalhadora e no culto à figura do “líder supremo” com todas suas simbologias míticas subsequentes; é desinformado, porque não esclarece as lutas de classes e a mais-valia ou o excedente dos trabalhadores; é perdido no mundo, porque luta para classes dominantes que estão pouco se lixando para nós, e tampouco consegue esboçar uma nova diplomacia mais digna.

Na melhor das intenções, esse “comunismo” ou “marxismo” pretende ser a defesa de uma luta anti-colonial, anti-imperialista, anticapitalista, mas, por sua própria defasagem teórico-prática interna, descamba para uma defesa de classes dominantes que estão longe de ser trabalhadoras; ao invés de construção revolucionária, conduz à parasitagem cleptocrática do Estado.

Que os coreanos, do Sul e do Norte, encontrem seu próprio caminho de paz. Eles não precisam da China ou dos Estados Unidos para isso, pelo contrário.

Que o Brasil e a “América Latina” trabalhem por uma radical construção revolucionária na ótica das lutas de classes através da teoria do poder, do Estado e do valor, senão a prática e a militância continuarão a desejar.

11 de janeiro de 2021

DENÚNCIA: Médicos privados e do SUS estão receitando ivermectina e azitromicina para COVID-19!

Uma pessoa da minha família pegou COVID-19 e a médica do SUS (!) receitou ivermectina (que o sacripanta Jair Bolsonaro, reforçando seus crimes de responsabilidade, voltou a defender hoje junto ao medicamento Annita, mas que só mata piolho e lombriga) e azitromicina (antibiótico também sem comprovação científica, conforme vários estudos demonstraram), além de outros remédios menos absurdos contra os sintomas (prednisona, novalgina, vitaminas D3 e C), ou seja, como se fosse um “kit”!

Enquanto o resto do planeta Terra (que não é plana) começa a se vacinar!

Ao escrever este relato, recebo de contatos outros relatos contando que médicos da rede privada também estão receitando tais medicamentos.

Um colega – do Direito, não da Medicina – me diz que a azitromicina, conforme mostra a bula, pode servir para complicações respiratórias, já que o sintoma mais fatal da COVID-19 é a falta de ar… Mas isso não retira o que dizem os estudos internacionais e não responde aos meus questionamentos, que escreverei no final. E o pior e tão preocupante quanto: o uso desenfreado de antibióticos durante essa pandemia pode levar a “apagão” contra bactérias resistentes, conforme pesquisadores e médicos têm alertado.

Leio que um ou outro prefeito direitista também incentiva tais “kits” – ao invés de fazerem como prefeitos e governadores mais sensatos, que correm atrás da vacinação.

Não nos interessa se esses médicos votaram 17 nas urnas em 2018, não nos interessa se não passam de sicofantas – nos interessa a Ciência, ou é caso para serem impedidos de exercer a função! Será que essa médica faz parte do “grupo” de “tratamento precoce contra COVID-19”, que se julga apto e “independente” a receitar insanidades, mesmo quando sob riscos de efeitos colaterais?! Sem consenso nenhum com a comunidade médica, epidemológica e científica?! A troco de que?! Simplesmente não existe ainda qualquer “tratamento precoce” para COVID-19, a doença do novo coronavírus. Os usuários não estão nem mesmo sendo “cobaias” (e nem poderiam), porque, conforme escrevi acima, estudos com tais medicamentos já foram realizados e divulgados.

Um receituário é a via final, é o resultado de um longo processo que envolve estudos científicos e imunológicos de outros profissionais gabaritados! E tais estudos têm sido amplamente divulgados.

Aos médicos e profissionais da Saúde que me acompanham, se manifestem! Ninguém faz nada?! Fica por isso mesmo?! O que está por trás?

Por que essa defesa insistente de um governo que não está nem aí para a pandemia e para os óbitos diários (antes, renitente em relação à ineficaz hidroxicloroquina, como se Bolsonaro fosse um garoto-propaganda do lucro farmacêutico escuso e do negacionismo), um governo que destruiu o ministério da Saúde e nossa expertise em vacinação?!

Por que o alinhamento de certos médicos com essa defesa renitente?! A troco de que?!

É uma quadrilha de corrupção em conluio com laboratórios? Essa gente não é “maluca” de graça, e fanatismo que atropela ciência e anos de estudo – e até reputação! – só pode ter interesses! Quais?! Como?!

E a conivência mafiosa do Conselho Federal de Medicina e do Conselho Regional de Medicina?! A troco de quais interesses?!

Quer dizer que a “categoria médica”, ostentando seus privilégios (a Medicina, no Brasil, é curso elitista de classe média, e as exceções confirmam a regra), só esbraveja quando é para ser contra os médicos cubanos – que vieram suprir a falta dos médicos brasileiros, que não vão à periferia e aos rincões do país? Ruy Castro escreveu que tal categoria e suas organizações, diante da pandemia e da incompetência, deveriam já ter feito algo para impedir e até derrubar (juntar-se aos mais de 50 pedidos de impeachment, por exemplo) o sujeito que ocupa a Presidência, uma vez que ninguém melhor do que os próprios médicos para julgarem o seu papel neste momento de crise sanitária.

O que realmente está acontecendo?

Ps.: Notícia de ontem – Morre aos 36 anos pastor “bolsonarista” que defendia cloroquina e ivermectina. São várias as notícias de casos assim…

Ps. 2: Infectologias reforçam posição contra tratamento precoce da COVID-19.

Assisti ‘Amarcord’, de Fellini: impossível não associar fascismo ao Brasil com Bolsonaro

Eu, que me emocionei certa vez no CineSesc da Rua Augusta ao assistir A Estrada (1954, filme que comprova que é possível entrar na estética e sair na ética), que já chorei umas três vezes assistindo (1963, um dos meus filmes preferidos, às vezes o preferido junto ao Nosferatu de Murnau, de 1922), que me arrepio todo sempre que revejo o final sobre a incomunicabilidade de A Doce Vida (1960) com aquele sorriso da jovem em fade out, mais enigmático do que o da Monalisa, assisti, ontem, Amarcord (1973) pela primeira vez. (Obs.: Mais uma vez, a certeza – já enunciada por Tarkóvski em Esculpir o Tempo – de que nenhum outro compositor senão Nino Rota consegue compor uma música que contenha alegria, fanfarronice, melancolia, tristeza num mesmo tema, tal como pede todo Fellini, cujo olhar cinematográfico passeia sempre com amorosidade e sem julgamento pelos mais variados tipos humanos…)

No antológico e semiautobiográfico filme Amarcord, Federico Fellini retrata como o fascismo de Mussolini (subversivismo reacionário, para usar a expressão do grande Gramsci, preso pelos fascistas), que durou mais de 20 anos (de 1922 até o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945), junto à Igreja Católica, aprisionou os italianos numa perpétua adolescência. Em todo filme sobre Hitler ou Mussolini, há uma multidão de fanáticos, desprezíveis em sua ingenuidade ou proposital crueldade, enquanto outra multidão era perseguida, presa, assassinada; a imposição hipócrita da ordem de cima abaixo, enquanto os soldados não passam de beberrões irresponsáveis; um desejo sexual infantil a praticamente cada cena, reprimido e comum nas épocas de fundamentalismo, repressão, ordem. Destaque para uma faixa que diz “Deus, Pátria e Família” durante parada militar fascista, insígnias ultrapassadas e retrógradas que foram usadas na eleição de 2018 no Brasil. Destaque para a fumaça que permeia a cidade sob domínio fascista. Destaque para a bela cena em que alguém da resistência toca a Internacional Comunista, contra os fascistas.

Guardadas as enormes proporções e diferenças (o nazifascismo foi derrotado militarmente, mas ainda não totalmente ideologicamente), é mais ou menos o que vemos no Brasil com o sacripanta Jair Bolsonaro hoje (até quando?) e as Igrejas Evangelofascistóides: um certo infantilismo aborrecente, que pulula desde o linguajar chulo (discussões políticas com expressões infantilóides do nosso tempo de ensino médio e fundamental) até a irresponsabilidade social (com ou sem pandemia, mas sobretudo durante a pandemia). A esquerda sempre avisamos que não seria de outra forma.

O problema é que a sociopatia criminosa do DESgoverno já perdeu a graça e, antes que coisas piores aconteçam (sempre é possível piorar), resta acabar com a palhaçada mortífera ainda este ano, não importando se ele vai vender a própria mãe que o pariu, além de cargos e emendas, ao Centrão para safar a si e seus filhos delinquentes. Que os próximos adversários da classe trabalhadora venham, e vamos enfrentá-los! Nada de eleitorismo, nada de aludir a 2022, assumindo que o traste possa terminar seu mandato. Não pode. Fuzilamento, exposição do corpo em praça pública – não, calma, só estou me referindo ao final do Mussolini; basta seguir o rito da democracia burguesa falida e farsante, abrir um dos mais de 50 pedidos de impeachment ou interdição (desde que isso não o torne inimputável), embora a cassação da chapa Bolsonaro/Mourão tenha também fartas provas e motivos.

Ps.:

https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro-volta-a-imitar-mussolini-ao-nadar-em-praia-lotada-entre-seguidores/

(Enquanto o Brasil, que tinha expertise em vacinação e agora queda perdido sob a incompetência, conta mais de 200 mil mortos de COVID-19… Faltou, na matéria acima, apenas revelar que não são bem “seguidores”, ao menos não em termos de “apoio popular”, como ele pretende fingir, e sim PMs e seguranças devidamente posicionados na “cena”, aguardando ele chegar para a armação, conforme uma moradora de Praia Grande contou. O “marketing” serve para mentir “apoio popular” e se fazer de “humilde”, mesmo gastando milhões de horrores no cartão corporativo. Espanta que nem a mídia hegemônica nem figuras políticas desmascarem isso em rede nacional, tal como a “fakeada” e suas enormes incongruências mereciam melhores esclarecimentos.)

“‘Mussolini é o arquétipo de líderes populistas como Bolsonaro, Trump e Salvini’, diz autor italiano” (BBC Brasil, 06 de setembro de 2010).

“Bolsonaro posta frase de Mussolini” (1/06/2020) – que Trump também já havia compartilhado antes. Tanto no rosto/semblante quanto no comportamento “esquentado”, Bolsonaro é também quase uma cópia arremendada de Hitler, ainda que lhe falta qualquer elaboração política como a que havia, em nível baixíssimo, em Mussolini (a cara do Onyx Lorenzoni) e Hitler.

Colagem retirada da Internet – Mussolini e Hitler, Lorenzoni e Bolsonaro.
Esta colagem fui eu quem fiz em abril de 2019. Acima, o ex-cabo Adolf Hitler dá as mãos e se curva perante o General Paul von Hindenburg, presidente da República de Weimer que, por senilidade, pressão ou conivência, o nomeará como chanceler em janeiro de 1933. Abaixo, os avatares brasileiros, o ex-capitão expulso Bolsonaro e o general Hamilton Mourão, seu vice, ambos miscigenados de ideias mais ou menos nazifascistóides. Papéis trocados.

Abaixo, Amarcord em péssima qualidade visual, mas facilmente acessível para quem quiser assistir sem ter de baixar:

Marxismo e feminismo e “marxismo feminista” – recomendações de livros, autoras e autores

Notas Prévias

– Trata-se de uma “antologia” em construção. Veremos, através da própria vida-obra de diversas autoras proeminentes do marxismo, que, nem do ponto de vista teórico, muito menos do ponto de vista prático e histórico factual, no fundo, quando o assunto é Crítica e Emancipação, o marxismo não é oposto ao feminismo (há feminismos, e aqui, é claro, entende-se o método e o conteúdo do feminismo enquanto crítica classista da exploração da mulher e pela transformação socioeconômica estrutural da sociedade, menos quando o feminismo se reduz a um movimento sóciopolítico arrivista de classe média, o que o faz adequar-se à retaguarda do liberalismo), embora tal intersecção entre feminismo e marxismo, tanto no método quanto no conteúdo, seja mais complexa e problemática do que pareça (ou, talvez, falsa, não havendo, para algumas autoras, separação entre as lutas e teorias). Hoje, já existe um feminismo marxista; também existem marxistas mulheres que não fazem questão de usar o termo feminismo ou que o tornam indissociável do marxismo, sem contar as feministas ecléticas que se utilizam, vez ou outra ou sempre, do método marxista para determinados fins teóricos e práticos. Não faltam ainda hoje e não faltaram marxistas e comunistas mulheres que exerceram críticas ferrenhas ao ecletismo e ao feminismo liberal pequeno-burguês das próprias mulheres… É consenso, entre elas, que esse feminismo não é alternativa superior ao marxismo nem pode lhes oferecer plena emancipação e crítica.

– A conclusão que podemos estabelecer através das autoras logo citadas (que escreveram e pensaram a partir de uma prática pela transformação da realidade e do status quo) é que, sem o marxismo, o feminismo, assim como todas as outras fileiras e campos ideopolíticas novas e antigas, torna-se meramente representativo e desejo de ascenção e inclusão efêmeras, manco, ingênuo, até politiqueiro, superficial e arrivista, incapaz de compreender as raízes dos seus problemas e resoluções, cooptável pela própria estrutura que pensa combater e não a supera; sem as contribuições teóricas e de luta específicas das mulheres, o marxismo, por sua vez, que desde o início esteve conjuminado a elas, seria distante, possui lacunas teóricas e problemas básicos de práxis diante dos desafios do nosso tempo. Vale lembrar que, mesmo estatisticamente, as mulheres estão em peso na massa e na classe trabalhadora, no arcabouço fundador e mantenedor de nossas sociedades e cada vez mais a ocupar espaços intelectuais, tornando-se impossível não vislumbrá-las no topo das lutas e dos debates, assim também com negros e miscigenados.

– Antes de qualquer coisa, “marxismo” refere-se, é claro, ao gênio Karl Marx (1818-1883), um revolucionário cuja obra, basilar, seminal, a grosso modo – simplificando muito para não sairmos do objetivo específico desta pequena antologia – expõe e estuda, através da concepção materialista da história (expressão frequente de Friedrich Engels, seu parceiro intelectual e de militância) e de um novo método dialético, a sociedade de classes burguesa e a estrutura capitalista exploratória, defendendo para a sua superação a construção do comunismo pela classe trabalhadora, tal como os capitalistas modernos tomaram o poder político e econômico da aristocracia no curso do desenvolvimento da história humana. Traçamos o marxismo em três partes que se intercalam num tripé, tal como propõe o Anti-Dühring: a teoria do valor (a partir da crítica da Economia Política), que identifica a exploração do capital; a filosofia dialética e a concepção materialista da história, cujo “elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real“; o socialismo enquanto lutas de classes e teoria do poder, da revolução e do Estado. É impossível, aqui, nos aprofundarmos nestas três partes, coisa que faço sempre que posso em outras oportunidades. O importante, por enquanto, é sabermos que não há marxismo (ou há um pseudomarxismo) quando se esquece ou se negligencia uma das partes supracitadas.

– Na obra de Marx, não há identidade sexo/gênero, nem mesmo em cartas ou notas (a menos que descubra-se algo inédito para o MEGA) de maneira aprofundada, apenas algumas colocações muito pertinentes e por si só fundamentais, conforme veremos. O Manifesto (1848) da Liga Comunista (que contava com a participação de mulheres) já trazia a necessidade da “comunidade de mulheres” independente contra a dominação burguesa, antecipando de maneira impressionante as lutas feministas e propondo uma via revolucionária. Somente podemos acusar Engels de homofóbico (em um ou outro episódio, como no caso do pioneiro gay e socialista  Karl H. Ulrich, ou para tratar da pederastia grega antiga), mas de uma maneira tão pueril e sarcástica que, naquela sociedade vitoriana hipócrita, fundamentalista e puritana de então, que aprisionava, condenava e cerceava os destoantes, é algo que torna-se quase batido e nada criminoso. É certo que o miolo da obra de Marx é eurocêntrico (vale lembrar que, saindo do atraso político e econômico da Alemanha de então, por forças maiores ele se exila na Inglaterra, onde o capitalismo industrial estava muito mais desenvolvido, com todas as agruras sociais provenientes desse desenvolvimento – a elite inglesa foi catapultada a partir do ouro brasileiro, vale dizer), mas em cartas e em trechos de várias obras Marx não deixou de mostrar interesse, até o fim da vida, e sobretudo nos anos finais, em muitos outros países e nas regiões periféricas do capital.

– Como se sabe, não são poucos os conceitos nem pobres as teorias implicadas a partir de tal simplificação do que é o marxismo, mas há um termo marxiano que nos importa, por enquanto: Marx nos fala no “ser social” – até então, não se aprofunda em gênero, raça, sexo, identidade ou outro componente deste “ser social” e jamais tomaria qualquer uma dessas categorias como central do ser social, porque o que funda este ser é o trabalho, esta, sim, uma categoria (ou até mesmo ação) fundante. O caráter fundador do trabalho no ser social unifica toda a raça humana, mas, sem as particularidades (inclusive de classes sociais!) do ser social, essa afirmação seria puramente idealista, abstrata e fora da realidade concreta. Dito isto, é importante também afirmar que, uma vez dispostos os termos “marxiano”, “teoria marxiana”, “obra marxiana” e afins (para identificar as próprias obras de Karl Marx), todos sabem que o termo “marxismo”, por si só, e já ampliado a partir do homem que lhe deu o nome, apesar de calcado em fundamentos contrários a ecletismos, dogmatismos, deturpações e deformações, nunca foi inteiramente monolítico nem em táticas e estratégicas nem no método e na teoria (“Tudo o que eu sei é que não sou marxista”, teria dito ironicamente o próprio Marx, mas a respeito de pseudomarxistas franceses já do seu tempo, conforme registra Engels numa carta).

– No marxismo (ou na própria obra marxiana), a relação sujeito – objeto não é prejudicada por um suposto predomínio do sujeito econômico (da sujeita econômica) em detrimento do sujeito histórico (da sujeita histórica); nem há objeto sem sujeit@ ou sujeit@ sem objeto. Marx frisa, nas Teorias da Mais-Valia (Theorien über den Mehrwert), que há uma conexão entre a produção intelectual e a produção material e que esta última não deve ser considerada “[…] como categoria geral, mas em forma histórica determinada. […] Se não se concebe a própria produção material em sua forma histórica específica, é, então, impossível compreender o que é determinado em sua produção espiritual correspondente e a ação recíproca entre ambas”. E, embora Marx nada tenha escrito especificadamente sobre subjetividade, pululam em sua obra passagens que fornecem bases para uma construção teórica da subjetividade (Eduardo F. Chagas, “O pensamento de Marx sobre a subjetividade”, Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 2, p. 63-84, Maio/Ago., 2013, p. 66), que jamais é autônoma ou pura muito menos simplesmente natural e imediatamente dada, mas construída socialmente, estando em movimento, produzida numa dada formação social e em determinado tempo histórico. Em consequência, tal subjetividade se constitui na relação com a sociedade (hoje, capitalista – e que estágio e tipo de capitalismo?!) que a forja e a mantém.

– É consenso contemporâneo no marxismo, sobretudo em suas fileiras mais radicais, que o direito ao voto às mulheres e a proibição da discriminação de gênero ou raça, além de outros direitos individuais conquistados no curso do século 19 e 20, não significaram, por si só (e isto é explícito no século 21), “a plena igualdade social da mulher ou do negro, mas sim, instrumentos melhores para a reprodução do patriarcalismo e do racismo em condições mais estáveis e menos conflituosas” (Alysson Mascaro, “Direitos humanos: uma crítica marxista”, Lua Nova, São Paulo, págs. 109-137, 2017, p. 132; cf. também I. M. Wallerstein, “The ideological tensions of capitalism: universalism versus racism and sexism”, 1991, In: BALIBAR, E.; WALLERSTEIN, I. M. Race, nation, class: ambiguous identities, London: Verso, pp. 29-36., p. 34). Talvez possamos discutir se tudo não passa de uma questão de tempo: a curto e médio prazo, a elevação social dos status de amplas camadas sociais; a longo, a construção revolucionária, mas por que entrar pela janela, quando há a porta, não raro invadida pelo genócidio negro (fruto da colonização/escravização/capitalismo) ou pela violência contra a mulher (fruto da propriedade privada nas mãos do homem)? E é possível chegar a um objetivo histórico transformador tomando outro rumo sem a perspectiva desse objetivo? Em que medida as lutas fracionárias “identitárias” se acomodam a um arrivismo de mentalidade pequeno-burguesa e fazem com que a esquerda se distancie dos estratos da base da pirâmidade, cooptados então por formas direitistas e até fundamentalistas? Etc.

– Também há um consenso no marxismo, neste nosso tempo contemporâneo, de que não são a ecologia “pura”, o pós-modernismo, o individualismo metodológico, o desconstrucionismo e afins as alternativas superiores ao marxismo para perceber a realidade e propor radicalidade emancipadora (Michael Lowy, A Teoria da Revolução no Jovem Marx, São Paulo, Boitempo, 2012 [1997], p. 21-22), mas que eventuais lacunas e até insuficiências no marxismo podem ser corrigidas por um procedimento aberto do marxismo não apenas aos movimentos sociais “clássicos” dos operários e camponeses, mas também “dos novos como a ecologia, o feminismo, os movimentos em defesa dos direitos humanos ou pela libertação dos povos oprimidos, o apoio aos índios da América Latina, a Teologia da Libertação” (Ibidem, p. 22), desde que (acrescento eu) isso não se torne um ecletismo vago, difuso, como, no geral, ocorre, desde que possamos trazê-los, em suas específicas seções, para as lutas de classes reais, verdadeiro terreno da construção revolucionária totalizadora.

– Algumas questões frequentemente levantadas quando se encara o feminismo marxista, conforme veremos em várias autoras e militantes: as questões que tangem a relação entre desigualdade (ou diferença) dita “natural” (etnia/gênero) e desigualdade social, questões da dupla jornada na mulher, trabalho produtivo e improdutivo, donas de casa e proletárias, o valor na especificidade feminina, etc.

– Sobre a categoria gênero, veremos que trata-se de termo incontornável para toda marxista feminista, mas cabe aqui um preâmbulo: havendo desconsideração intencional ou inconsciente dos fenômenos estruturais como dialeticamente determinantes da superestrutura (teoria social básica no marxismo e da concepção materialista), a tendência da abordagem de gênero torna-se o chamado “identitarismo”, desvinculação da luta antissistema, cooptação, arrivismo, mero desejo de adequação, inclusão e ascensão, epifenomenologia, etc. Arrisco a dizer que todo “identitarismo” é fruto de uma defasagem teórica.

– Notamos que o capital, nas últimas décadas, tem incorporado LGBTTIQA+s e o movimento negro como backlash de maneira mais ou menos análoga ao que se iniciou na segunda onda do feminismo. O cenário torna-se ainda mais difícil quando há uma extrema-direitalha regressiva abertamente racista, homofóbica e misógina, em sua defesa ultrapassada, moribunda e decadente de família tradicional, porque, diante desse confronto, a crítica marxista radical não ganha capilaridade para agregar as fileiras “identitárias”, ávidas por serem aceitas e incluídas no sistema representativo, simbólico, econômico, ingressar no trabalho assalariado exploratório, a lutar contra o capital. Mas, ao menos do ponto de vista ideopolítico, não é difícil elaborar essa construção, se for mostrada a raiz do preconceito, tal como as marxistas feministas de peso já o fizeram e ainda o fazem, conforme veremos.

– Estendendo a reflexão à ética marxista lukacsiana, não há ética no modo de produção capitalista; no limite, resta uma moral bem estreita vinculada à reprodução de mercadorias e mão de obra pauperizada, enfim, não há possibilidade de “liberdade” ou plena emancipação no capitalismo, na ordem capitalista… Aqui, cai por terra mesmo todo reformismo, embora tenha sido a grande revolucionária Rosa Luxemburgo quem escreveu, com boa dose de realismo, que reformas (obviamente, reformas estruturais e não de arranjamento ou manutenção do capital) só fazem sentido no interior de uma estratégia que tem por norte uma revolução anticapitalista, comunista.

– Progressismo não é a mesma coisa que revolução. “Forças progressistas” não são necessariamente “forças revolucionárias”… Marx, no informe “Salário, Preço e Lucro”, diante de uma epidemia de greves por melhores salários e melhores jornadas de trabalho, caracteriza tais reivindicações como “divisas conservadoras” e defende a bandeira da abolição do trabalho assalariado (pela tomada do Estado e dos meios de produção a serem socializados a todos)…

– Na ampla construção do socialismo, vamos precisar de todo mundo; somente um reacionário vislumbraria um socialismo só de homens cis-heteronormativos ou só de brancos ou só de estadounidenses ou só de europeus etc. etc. etc… (Não faria sentido, já que o capital engloba e domina tudo e todos – o capital é totalizante, e assim deve ser o socialismo, inclusive em suas táticas e estratégias revolucionárias.) Por outro lado, abdicar das lutas de classes e centralizar uma especificidade é brigar entre si, pulverizar a luta e fazer o jogo do sistema vigente de classes. O objetivo principal do marxismo é destruir com o antagonismo de classes e a exploração de uma classe pela outra. Quando o assunto é “identitarismo” e luta da mulher, negros, LGBTTIQA+, etc., costumo lembrar que Marx e Engels mostraram, em A Ideologia Alemã e em outros textos, que a classe dominante, ao deter os meios de produção da sociedade (e, por conseguinte, diremos também os meios de comunicação), domina por tabela a ideologia dominante que se encontra na superestrutra dessa sociedade. Em nosso tempo histórico moderno, tal classe dominante é constituída pelos capitalistas (detentores dos meios de produção – fábricas, empresas, terras, matérias-primas, ferramentas, commodities, etc.) e proprietários fundiários (que detêm os terrenos onde estão os meios de produção). Eis o que chamamos de burguesia (cf. nota de Engels à edição do Manifesto Comunista de 1888). Ora, pode-se identificar uma burguesa mulher (vide Luiza Trajano, bilionária dona da rede de lojas Magazine Luiza), mas é exceção que confirma a regra: a (i)lógica é patriarcal, a burguesia é o homem, macho, heternormativo, branco, eurocêntrico ou estadounidense das cidades e, por deter os meios de produção e a ideologia dominante, acaba essa classe reproduzindo na sociedade todas as formas de violência, exploração e preconceitos aos que fogem do modelo majoritário, sexismo, LGBTfobia, racismo, etc. Esta explicação, ainda que ligeira (seria preciso incrementar apontamentos dialéticos, impossível agora), é fundamental para a solidariedade de classes dos despossuídos com todas suas diversidades em torno de uma emancipação estrutural anticapitalista, processos revolucionários, construção revolucionária.

Feminismo e Marxismo: autoras, autores e livros

Loreta Valadares (1943-2004), professora, militante na luta armada contra a ditadura, comunista, marxista cultivada, escreveu aquele que é, de longe, o texto mais combativo e inteligentes sobre feminismo e marxismo dos últimos tempos.

– A primeira referência a respeito de feminismo e marxismo que eu recomendo é o fervoroso texto de 10 páginas de Loreta Valadares (1943-2004), militante nos anos 1960 do Movimento Estudantil da Ação Popular (AP), quando o PCdoB não era PelegodoB (e tinha quadros realmente comunistas e revolucionários, ao invés de uma Manuela d’Ávila), bravamente participante da luta contra a ditadura militar, presa e torturada, o que lhe afetou a saúde para o resto da vida, posteriormente destacada professora de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, “A ‘controvérsia’ feminismo x marxismo” (Revista Princípios, N. 18, jun/jul/ago, 1990, páginas 44- 49), texto arguto, mas não sem uma boa dose de ferocidade militante. É muito bonito constatar a postura implacável de uma militante veterana, que não “virou a casaca” como tantas outras e outros, intrépida em sua luta, apesar dos pesares. Primeiramente, Valarades é taxativa: “É falsa a polêmica feminismo X marxismo”. Alguns apontamentos a se fazer a partir desse texto: (1) Ao contrário de muitas autoras feministas, Valadares entende que o materialismo histórico não se opõe ao feminismo enquanto concepção sobre a específica opressão da mulher na sociedade. Valadares denuncia os feminismos que pretendem que o marxismo negue a si mesmo, denuncia o ecletismo no socialismo, que sai do terreno da realidade e deixa de ser ciência. Escreve ela, combativa: “São as correntes feministas que se têm colocado em oposição ao materialismo histórico e à sua visão científica e metodológica das questões mais gerais da ciência social, sem cujo esclarecimento se torna impossível a explicação do desenvolvimento da vida social em seu conjunto. Consequentemente, fica-lhes difícil – se não impossível, dentro de sua visão estreita do problema específico – admitir o ponto de vista do materialismo histórica sobre a opressão da mulher e os caminhos de luta para sua emancipação; isto porque buscam a explicação sobre as origens e as formas de opressão da mulher fora das leis objetivas do desenvolvimento social e independente das causas últimas que originam as relações de dominação das sociedades antagônicas” (página 6). (2) Conhecedora da estrutura e da superestrutura, critica – citando as obras, e não de forma leviana – autoras feministas como Simone de Beauvoir, Juliet Michell e Schulamith Firestone, que viam no marxismo (mesmo em Marx e Engels) uma “redução” de tudo ao econômico e ao “homo aeconomicus”, e as ataca exemplarmente. Ela usa a obrigatória carta de Friedrich Engels a Joseph Bloch para afirmar que tais correntes feministas (na verdade, trata-se de um equívoco não só de certas feministas, mas geral) não compreenderam o marxismo, tomando-o como um economicismo vulgar. Acrescento que não falta apenas conhecimento da concepção materialista, mas da própria Dialética. (3) Não é errado concluir que, para Loreta Valadares, assim como para as mais brilhantes marxistas que veremos no decorrer desta antologia (limitada, mas incontornável), é através da própria luta anticapitalista, estrutural, classista e marxista que ocorrerá consequentemente a emancipação feminina, sem que se desconsidere os elementos específicos e próprios de tal emancipação.

– Aliás, o catatau de mais de 570 páginas Mulheres Na Luta Armada – Protagonismo Feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional), de Maria Cláudia Badan Ribeiro, recentemente lançado, pode jogar outras luzes à intersecção marxismo – feminismo, mesmo que, a priori, tenha um significado mais associado ao comunismo militante do que ao marxismo, e mais histórico do que teórico. Ora, qualquer lacuna nesses dois eixos podem ser resolvidos hoje a partir dos fatos expostos no livro. De qualquer forma, documenta sobre as próprias mulheres à extrema-esquerda inseridas numa orientação revolucionária. A ler.

– Jamais esquecer do caráter vanguardista, inovador e pioneiro do próprio Manifesto Comunista (1848) da Liga Comunista (que contava com a participação de mulheres militantes) e seu longo trecho a respeito da condição das mulheres, encaradas pela burguesia como meras reprodutoras da classe a ser perpetuada, enfim, mera propriedade do burguês. Havia, naquele momento, conforme o próprio Manifesto expõe, todo um planejamento comunista em torno da construção da “comunidade de mulheres” independentes para resolver a necessidade de eliminação da posição da mulher enquanto instrumento de produção, sendo essa uma das pautas na luta contra a sociedade burguesa.

Jenny, Lara e Eleanor com o pai Karl Marx; o parceiro Friedrich Engels logo atrás. Não é menor lembrar que as três filhas de Marx tiveram finais trágicos. O desejo de emancipação feminina chocou-se à realidade do status quo patriarcal.

–  Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, explicam que a opressão específica tem íntima relação como processo de surgimento de propriedade privada, transformando a própria mulher em propriedade do homem.

– É Engels, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1883), que coloca a gênese da opressão específica da mulher e seu processo de formação com o aparecimento da sociedade de classes, “com elas se entrelaçando e refletindo seu antagonismo e sua luta ao longo da história, nas diversas etapas e em diferentes formações econômico-sociais” (conforme explica Loreta Valadares em seu texto supracitado). É preciso notar, porém, que a análise engelsiana sobre a origem do patriarcado é muito criticada aqui e ali, não só por feministas. Mesmo entre marxistas é entendível que Engels, tendo se debruçado no que havia de mais novo à época naqueles finais do século 19 em matéria de antropologia e naquele que hoje é considerado um dos fundadores da antropologia moderna, isto é, Lewis Henry Morgan (que, em seu Ancient Society, divide a história humana em três estágios fundamentais de desenvolvimento social: selvageria, barbárie e civilização, cada um destes caracterizado por formas materiais distintas), muito citado em todo o livro de Engels, pode ter caído em alguns equívocos e limitações de Morgan, de acordo com a antropologia mais avançada.

– Não é menor lembrar que as três filhas de Marx tiveram finais trágicos. O desejo de emancipação feminina chocou-se à realidade do status quo patriarcal. Os primeiros homens marxistas, por sua vez, viram a derrota da revolução comunista e o recrudescimento de um novo tipo de capital. No fundo, na raiz, a luta era/é a mesma!

A Mulher e o Socialismo (1879), de August Babel, representa “a primeira produção teórica de particular importância para um enfoque marxista da questão feminina, justamente por sua grande difusão e abordagem específica do problema”.

– Permitam-me citar só mais um homem (muito citado pelas próprias mulheres, aliás), à guisa de contextualizar o tema feminista no marxismo. Embora encontremos trechos sobre a opressão das mulheres em Marx e Engels, é o livro A Mulher e o Socialismo (1879), de August Bebel, que representa “a primeira produção teórica de particular importância para um enfoque marxista da questão feminina, justamente por sua grande difusão e abordagem específica do problema” (tal como escreve, ipsis litteris, Joana El-Jaick Andrade em  artigo acadêmico sobre esse livro). Loreta Valadares, no texto primeiramente citado, afirma: “(…) A opressão específica da mulher caminha e se desenvolve “pari passu” com a opressão social, de classes, caracterizando, assim, a mulher como oprimida enquanto ser sexual e ser social (Bebel, in A Mulher e o Socialismo), com seus correspondentes reflexos e formas na superestrutura (…)”. Bebel via a necessidade de atrair as mulheres para o movimento e de difundir os princípios do socialismo para as amplas massas trabalhadoras. A obra é dividida em três partes: a situação das mulheres no passado (antes e depois do cristianismo), as condições das mulheres no presente e a projeção das transformações operadas dentro de uma futura sociedade socialista. O livro discute a construção da nova sociedade socialista e o livre exercício da sexualidade, o Programa Socialista e a igualdade entre os sexos, etc. Conforme Joana El-Jaick Andrade escreve (página 11): “A saída apontada por Bebel para a questão feminina, com vistas à “redenção e emancipação” de todas as mulheres, residiria na compreensão de seu verdadeiro lugar no movimento socialista e sua participação na(s) luta(s) de classes”.

Eleanor Marx.

Eleanor Marx (1855-1898), filha de Karl Marx e Jenny von Westphalen, militante, autora, tradutora, pioneira do feminismo socialista. Escreveu, com seu parceiro Edward Aveling, o tratado “A questão da mulher: de um ponto de vista socialista” (1886). Trata-se, segundo Luiz Bernardo Pericás (Professor do Departamento de História da USP), de um texto “que deveria figurar em importância ao lado de Reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels e de Um teto todo seu, de Virginia Woolf”. De acordo com Pericás, “Seu “feminismo” era bastante distinto daquele defendido pelo pensamento mainstream da segunda metade do século XIX. Ainda que muitas de suas amigas fossem sufragistas, a campanha pelo voto, na visão de Eleanor, mesmo que importante, seria um objetivo limitado. A reforma eleitoral para as senhoras de classe média dentro da sociedade capitalista não dava conta de resolver o debate social mais amplo, já que, segundo ela, “a dita questão do ‘direito das mulheres’… é uma ideia burguesa. Eu propus lidar com a Questão Sexual do ponto de vista da classe trabalhadora e do conflito de classe”. Ou seja, os direitos das mulheres e do proletariado eram parte da mesma luta.”

Nadezhda Krupskaya na juventude e com Vladimir Lênin. Ambos canalizaram o papel feminino decisivo na Revolução Soviética.

Nadejda Krupskaia (1859-1939) não foi apenas “esposa de Lênin”, porque desempenhou um papel destacado e próprio como pedagoga revolucionária; escreveu sobre  a construção de uma nova pedagogia socialista que nos interessa até hoje (a prova é que o livro encontra-se esgotado), tendo sido vice-ministra da Educação da União Soviética por mais de dez anos, responsável pela criação de um novo sistema educacional e pela construção de inúmeras bibliotecas no período soviético nos primeiros anos da Revolução. Mas não para aí. Tudo indica que foi Nadezhda quem escreveu o primeiro texto feminista significativo sobre a situação das mulheres na Rússia: o panfleto “A Mulher Trabalhadora” (para ler em inglês, clique aqui – no original em russo, aqui, inclusive com uma nota da própria autora relatando as circunstâncias clandestinas em que o texto foi escrito e divulgado em 1899 sob o pseudônimo Sablina e publicado dois anos depois através da imprensa clandestina Iskri, “Faísca” em russo). O texto foi banido, devido a sanguinária repressão czarista durante a Revolução de 1905. O próprio Lênin nunca ignorou uma das reivindicações mais importantes da Revolução Soviética, a das camponesas e mulheres trabalhadoras em busca de pão, paz e terra, tendo escrito em vários momentos a respeito, como se pode conferir neste texto explicativo aqui. A própria Nadejda escreveria, em 1933, o texto “A Emancipação da Mulher segundo Lênin“, dez anos após a morte do companheiro. Vale lembrar, por fim, de um volume brasileiro de 1956 intitulado O Socialismo e a Emancipação da Mulher com 14 textos significativos de Lênin sobre o trabalho na mulher da fábrica e na agricultura no regime capitalista, sobre o aborto, a classe operária e o neomalthusianismo, a luta contra a prostituição, o direito ao divórcio, discurso no Primeiro Congresso Pan-Russo das Operárias, a contribuição da mulher na construção do socialismo, as tarefas do movimento operário feminino na República dos Sovietes, a situação da mulher no poder soviético, divórcio diante da família, dois textos (em 1920 e em 1921) sobre o Dia Internacional da Mulher, além de um texto de 1920 por Clara Zetknin, “Lênin e o movimento feminino” (“o movimento feminino era para ele parte integrante e, em certas ocasiões, parte decisiva do movimento de massas. É desnecessário dizer que ele considerava a plena igualdade social da mulher como um princípio indiscutível do comunismo”).

Alexandra Kollontai (1872-1952) foi um dos principais nomes da participação feminina no bolchevismo. É, ainda hoje, considerada figura central do “feminismo marxista” (cf. Jinee Lokaneeta, “Alexandra Kollontai and Marxist Feminism”, de 2001, e Andrea Nye, Feminist Theory and the Philosophies of Man, capítulo 3, “A Community of Men: Marxism and Women”, seção “Marxist feminists: Zetkin, Kollontai, Goldman”). Militante ativa nos principais episódios do pré-revolução e mesmo nos anos subsequentes, estando no topo da vanguarda e do novo governo junto a Lênin e outros, tendo sido uma das lideranças do Genotdel (“Seção da Mulher”), o Departamento de Mulheres Trabalhadoras e Mulheres Camponeses criado em 1919 com o objetivo de melhorar as condições das mulheres e as atrair para a causa socialista. Sempre se opôs ao feminismo liberal burguês, que buscava objetivos políticos de sufrágio, mas não a elevação revolucionária da classe trabalhadora. É brilhante a sua posição a respeito do universal e do particular no feminismo em A Base Social da Questão da Mulher (1909), em que ela defende o seguinte: “O instinto de classe – o que quer que as feministas digam – sempre se mostra mais poderoso do que os nobres entusiasmos da política ‘acima da classe’. Enquanto as mulheres burguesas e suas ‘irmãs mais novas’ [proletárias] forem iguais em sua desigualdade, as primeiras podem, com total sinceridade, fazer grandes esforços para defender os interesses gerais das mulheres. Mas uma vez que a barreira é derrubada e as mulheres burguesas têm acesso à atividade política, as recentes defensoras dos ‘direitos de todas as mulheres’ tornam-se defensoras entusiastas dos privilégios de sua classe, satisfeitas em deixar as irmãs mais novas sem nenhum direito. Assim, quando as feministas falam com as mulheres trabalhadoras sobre a necessidade de uma luta comum para realizar alguns princípios das ‘mulheres em geral’, as mulheres da classe trabalhadora ficam naturalmente desconfiadas.” Argumentava que, mesmo adentrando no trabalho assalariado, as mulheres ainda se mantinham na função reprodutora da família. Defendeu, portanto, a socialização do trabalho reprodutivo para acabar com a exploração do trabalho doméstico e a exploração dos homens neste papel. Assim, teve papel de liderança nos debates que criticavam o modelo estabelecido de família. É conhecida por sua defesa arrojada – mantida por toda a vida – do amor livre e do amor camaradagem, expressão última da solidariedade de classe (ler a edição pela editora Expressão Popular, A Nova Mulher e a Moral Sexual). Quando o regime fechou, quase foi expulsa do partido, mas acabou indo exercer funções diplomáticas no exterior. Escreveu “Base social da questão feminina” (1908), “Sociedade e maternidade” (?), “A nova mulher” (1918), “A moral sexual” (1921), Amor Livre (1932), Comunismo e Família (1970), A Autobiografia de uma Comunista Mulher Emancipada Sexualmente (1971), Relações Sexuais e Lutas de Classes: Amor e a Nova Moralidade (1972), A luta das mulheres trabalhadoras por seus direitos (1973), entre outros.

Alexandra Kollontai no Conselho de Comissários do Povo no Palácio Smolny – Governo da Rússia liderado por Lênin, 1918. Da esquerda para a direita: Isaac Steinberg, Ivan Stepanov, Boris Kamkov, Vladimir Bonch-Bruyevich, Trutovsky, Alexandre Shiliapnikov, Prosh Percevish Proshyan, Lênin, Joseph Stálin, Alexandra Kollontai, Pavel Dybenko, Koksharova, Nikolai Podvoiski, Nikolei Gorbunov, V. I. Nevski,Aleksander Shotman, Gergoy Chicherin.

 

Clara Zetkin, Alexandra Kollontai e outras no III Congresso da Internacional Comunista, 1921.
VIII Congresso da Internacional Socialista, Copenhagen, 1910. Ao centro, Alexandra Kollontai e Clara Zetkin. Atrás delas, Rosa Luxemburgo.
Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo, duas importantes revolucionárias, a caminho do Congresso do SPD. Magdeburg, 1910.

Clara Zetkin (1857-1933) foi uma das primeiras agitadoras e propagandistas do feminismo socialista, tendo levado o feminismo ao topo da agenda política no primeiro congresso da Segunda Internacional, e demonstrou que o fundamento do feminismo sendo a emancipação das mulheres encontra um limite estrutural: o capitalismo (quem valida tal afirmação histórica é a professora Mirla Cisne em “Feminismo e marxismo: apontamentos teórico-políticos para o enfrentamento das desigualdades sociais“, Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 211-230, maio/ago. 2018, página 220). Em 1889, Clara Zetkin profere a conferência “Pela libertação das mulheres”, considerada a primeira declaração política da classe trabalhadora europeia sobre a questão da mulher (Ana Isabel Álvarez González, As origens e a comemoração do Dia Internacional das Mulheres, São Paulo: SOF/Expressão Popular, 2010, página 61), em que declarou: “As mulheres operárias estão totalmente convencidas de que a questão da emancipação das mulheres não é uma questão isolada. Sabem claramente que esta questão na sociedade atual não pode ser resolvida sem uma transformação básica da sociedade […]. A emancipação das mulheres, assim como de toda a humanidade, só ocorrerá no marco da emancipação do trabalho do capital. Só em uma sociedade socialista as mulheres, assim como os trabalhadores, alcançarão os seus plenos direitos” (ibidem).

– A grande revolucionária Rosa Luxemburgo (1871-1919), ao que se sabe, nunca se definiu como “feminista” e, isto é certo, já que tinha relações próximas com Clara Zetkin e outras da luta comunista, nunca endossou o feminismo liberal de sua época, mas escreveu sobre a condição feminina na sociedade de classes e sobre (e para) a mulher trabalhadora. Presa pelas forças reacionárias, assassinada pela extrema-direita que depois se associaria ao nazismo, são de Rosa Luxemburgo alguns dos postulados mais influentes e algumas das frases mais potentes, memoráveis e contundentes de todo o marxismo, como podemos constatar em Reforma ou Revolução?, “O que quer a Liga Espartaquista?” e no lema de seu grupo revolucionário, “Socialismo ou barbárie!”; para o nosso tema, é sua uma das frases mais fortes dessa intersecção, já em 1902, em “Uma questão tática”: “A emancipação política das mulheres teria que fazer soprar um forte vento fresco inclusive na vida política e espiritual [da social-democracia], que eliminasse o fedor da hipócrita vida familiar atual que, de modo inequívoco, permeia também os membros de nosso partido, tanto trabalhadores como dirigentes”. Dois são os textos de destaques de Luxemburgo sobre a emancipação das mulheres no bojo da revolução comunista e do marxismo: o ainda pertinente “O sufrágio das mulheres e as lutas de classes”, de 1912, e o belíssimo “A Proletária“, de 1914. Neste segundo, em ocasião do Dia Internacional da Mulher (ou melhor, “Dia da Proletária”, segundo Rosa), a “proletária assalariada moderna” é alçada como protagonista da classe trabalhadora. É um toque simbólico e concreto feminino à imagética do proletariado tantas vezes masculinizado (mas não sem razão, inclusive estatística). Rosa contrapõe a defesa burguesa por direitos políticos pelas mulheres (pauta única do chamado “feminismo liberal” e das sufragetes) com o poder efetivo a ser conquistado pela mulher proletária e, se a vida parlamentar nega a participação feminina, o partido revolucionário abre as portas para as mulheres e trabalhadores, onde encontram ali “um campo incalculável de trabalho político e poder político”, etc. Termina esse texto com fortes palavras de ordem: “Proletária, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. (…) Corra para o front, para a trincheira!” Não há dúvidas de que, para Rosa, já no Partido Social-Democrata Alemão, com todas suas querelas internas até o revisionismo crasso, venal, “vira casaca”, como depois na sua Liga Espartaquista (com Karl Liebknecht, Clara Zetkin, Franz Mehring e outros) e no Partido Comunista, o ponto central era a revolução pela classe trabalhadora, mas, ao saber das especificidades da mulher dentro de tal classe, ela defendia, nos títulos citados e também em cartas para Clara Zetkin e Sonia Liebknecht, seções de mulheres em áreas intelectuais, jornalísticas, partidárias, enfim, na luta prática. Rosa Luxemburgo, diga-se de passagem, sempre foi calcada na teoria marxiana e criticava desvios e revisionismos! A prova disso foi a grande querela com o oportunista Eduard Bernstein… Comprometida com a teoria marxiana, em “O sufrágio das mulheres e as lutas de classes”, escreve pontos econômico-teóricos relevantes para os debates correntes entre as feministas de hoje: “Apenas é produtivo aquele trabalho que produz mais-valia e rende lucro capitalista – enquanto o domínio do sistema de capital e de salário se mantiver. Deste ponto de vista, uma dançarina num café, que produz lucro para o seu patrão com as suas pernas, é uma mulher trabalhadora produtiva, enquanto que todas as tarefas das mulheres e mães do proletariado dentro das quatro paredes de casa é considerado trabalho improdutivo. Isto soa cru e louco, mas é a expressão precisa da crueza e da loucura da ordem econômica capitalista de hoje.” Veremos adiante como a brasileira Heleieth Saffioti amplifica a crítica da exploração da mulher para abranger a dupla jornada (trabalho doméstico e produtivo), o que a faz desconsiderar a mais-valia; mas certamente Rosa, mulher de costumes pioneiros, vanguardistas e destoantes para sua época, jamais diria que o trabalho doméstico não é exploratório, apenas diferencia ambos a partir da observação da estrutura… Nancy Holmstrom, professora de Filosofia, editora do The Socialist Feminist Project (Monthly Review Press, antiga revista socialista de Nova Iorque) e co-autora de Capitalism For and Against: A Feminist Debate (Cambridge University Press), entre vários outros artigos e livros, explica o trecho rosaluxemburguiano em “Rosa Luxemburgo: um legado para as feministas?“: “Usei esta citação mais do que uma vez para clarificar o sentido do trabalho (im)produtivo no capitalismo e para distinguir opressão de exploração capitalista. Algumas feministas ficam muito ofendidas pela posição marxista de que o trabalho doméstico é trabalho improdutivo e algumas defendem “salários para o trabalho doméstico”. Mas tal como a citação de Luxemburgo torna claro, designar o trabalho doméstico como improdutivo dificilmente é um insulto, nem é sexista. Um carpinteiro que trabalhe para o governo é igualmente improdutivo no sentido capitalista, apesar de ambos, obviamente – e muito importantemente – serem produtivos num sentido geral. É fundamental entender o que “produtivo” significa em termos capitalistas, especificamente, a produção de mais-valia, porque isto é o que faz o sistema capitalista funcionar.” Rosa discute, naquele texto, o trabalho produtivo e improdutivo, o trabalho operário e doméstico, e denuncia a exploração capitalista do trabalho de homens e mulheres – “milhões de mulheres proletárias […] produzem lucro capitalista tal como os homens – em fábricas, oficinas, agricultura, indústrias domésticas, escritórios e lojas”, escreveu ela. “Proletária, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. (…) Corra para o front, para a trincheira!” 

Rosa Luxemburgo discursa para uma multidão na 2ª Internacional, em 1907, na cidade de Sttugart, Alemanha. Foto: ullstein bild Dtl. / ullstein bild via Getty Images.
Comício comunista em Santos para reivindicações e em homenagem aos operários Sacco e Vanzetti, executados na cadeira elétrica nos EUA quatro anos antes. A repressão dos cães da burguesia assassinou o manifestante Herculano de Sousa e prendeu as comunistas Guiomar Gonçalves (à esquerda – gostaria de mais informações sobre ela!) e Patrícia Galvão (à direita na imagem, mas não na vida). Diário de S. Paulo, edição de 25 de agosto de 1931: sério conflito.
Patrícia Galvão, a Pagu, em apresentação mais digna do que no jornal: crítica ferrenha do feminismo liberal e pequeno-burguês, aliada das mulheres trabalhadoras.

Até onde e até quando pode e deve um(a) artist@ e intelectual, mesmo sem desenvolver teoria, lutar e envolver-se na prática da transformação da sociedade? Patrícia Galvão (1910-1962), mais conhecida como Pagu, foi uma força da natureza; escritora que estreou aos 18 anos na Revista Antropófaga, militante comunista do PCB (das primeiras presas políticas do Brasil, presa duas dezenas de vezes, torturada durante a ditadura Vargas após uma greve dos estivadores na minha Santos, onde, aliás, ela irá morar no fim da vida e onde foi encarcerada na Cadeia Velha De Santos, que hoje se chama Oficina Cultural Pagu), incansável tentadora da revolução brasileira, rompida com o Partido Comunista (que a abandonou e a obrigou a assinar uma retratação em que se apresentava como “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”) em 1940 após exílio e acerto de contas com todo o seu passado, poeta, crítica dos costumes, intimamente próxima dos modernistas de 22 (“nem Anita nem Tarsila eram escritoras, nenhuma assumiu até o fim ideias tão radicais e renovadoras, nenhuma correu os riscos e sofreu o que sofreu por elas, nenhuma defendeu com tanto ardor a arte de vanguarda, nenhuma se pode comparar, em termos de atuação ética e estética, com ela”, conta Augusto de Campos), agitadora cultural, jornalista, desenhista, tradutora, etc. Em 1931, com o companheiro Oswaldo de Andrade (1890-1954), funda o pasquim O Homem do Povo, “um jornal com características agressivas e despudoradas, com fortes nuances ideológicos da esquerda marxista” ( Anselmo Peres Alós, Parque Industrial: influxos feministas no romance proletário de Patrícia Galvão”, Caligrama: Revista de Estudos Românicos, v. 15, n. 1, 2010, p. 188). As provocações de Oswald contra o atraso geral e o temperamento revolucionário de Pagu produziam uma alquimia sem precedentes na política e na cultura brasileiras, e deve-se sublinhar que ela era absolutamente independente e original. Desenhava charges satíricas e possuía uma coluna fixa intitulada “A Mulher do Povo”, em que criticava o feminismo pequeno-burguês e os valores elitistas das mulheres paulistas (que reproduziam, não sem o provincianismo da época e de capitalismo periférico, o movimento de mulheres sufragistas da Inglaterra do início do século XX). Alguns desses textos estão preservados ainda hoje. Em 1933, Pagu lança o importante Parque Industrial, primeiro romance proletário do país, sob o pseudônimo (exigência do Partido) Mara Lobo, obra de nítida inspiração marxista com influxos feministas que retrata a condição das mulheres proletárias numa São Paulo a se industrializar freneticamente. Ou seja, no panorama literário regionalista de 30 (lembremos de O Quinze, de Raquel de Queiroz, que retrata a seca, ou Menino de Engenho, de José Lins do Rego), Pagu apresenta um Brasil urbano, isto é, mais desenvolvido material e ideologicamente, portanto mais condizente com o anticapitalismo do marxismo; eis outro fato que destaca esse romance. Mas não para aí: a obra conjuga o problema da opressão ao proletariado às reivindicações das mulheres, superando o feminismo da época. Também neste romance já há críticas ao feminismo pequeno-burguês, complacente à estrutura social do capital. No entanto, é interessante que Pagu não dirige sua crítica ao movimento sufragista em si, mas principalmente à despreocupação de tal movimento a questões estruturais e mais amplas, como a condição da mulher proletária e até das mulheres negras (Ibidem). No primeiro caso, a obra encontra associação com o pensamento teórico-prático das comunistas de todo o mundo, inclusive as supracitadas. No segundo aspecto, o enfoque antecipa uma luta ainda hoje continuada e candente – antecipou, focando sua narrativa na realidade das mulheres proletárias, pertencimentos identitários superpostos que feministas particularmente lésbicas e negras levantaram nos EUA a partir das décadas de 1970 e 1980. O convívio de Pagu com operários, a partir de 1931, quando se filiou ao PCB, lhe fez concretizar, no romance, um projeto modernista por excelência: pululam em sua escritura elementos da linguagem coloquial, cotidiana, até mesmo considerada “grosseira”; o texto apenas é prejudicado (anacrônico) por jargão e estereótipos da época (Ibidem, p. 193). “(…) saem para o almoço das onze e meia. Desembrulham depressa os embrulhos. Pão com carne e banana. Algumas esfarelam na boca um ovo duro.” É nos intervalos do tear, quando se consegue mais tempo para conversar, que Rosinha Lituana, operária de aguda consciência de classe, militante do Partido Comunista, dissemina as ideias entre os colegas. Rosinha e Otávia são comprometidas com a revolução e o movimento proletário; Corina é aprendiz de costureira, jovem e miscigenada que acaba engravidando e caindo na prostituição após falsa promessa de casamento, terminando na prisão. Alfredo é o único personagem masculino da narrativa a se comprometer com o ideário revolucionário. “Acorda com o alvoroço de mulheres entrando. São as emancipadas, as intelectuais e as feministas que a burguesia de São Paulo produz.” E segue um diálogo das feministas liberais sobre futilidades: cosméticos, coiffeur, tailleur, namorados, criada que é demitida por se atrasar e esfriar demais o banho da patroa, etc. “- O voto para as mulheres está consequido! É um triunfo!/- E as operárias?/- Essas são analfabetas. Excluídas por natureza.” A acidez faz com que a “denúncia” de Pagu do preconceito presente entre as próprias feministas não caia em panfletagem barata (no máximo, o livro é uma panfletagem arguta, mesmo se considerada “maniqueísta” – trata-se de um retrato cru das lutas de classes!) ou numa crítica simplista, mas, ao invés, continua contundente. Nota-se a influência que Rosa Luxemburgo (“uma militante proletária alemã, que a política matou porque ela atacava a burguesia”) exercia em Patrícia Galvão, já que um dos capítulos do romance é intitulado “Em que se fala de Rosa Luxemburgo”… “- (…) a burguesia é a mesma em toda parte. Em toda parte, manda a polícia matar os operários…/(…) – Matam os operários, mas o proletariado não morre!” Destaca-se, ainda, como a sexualidade dos personagens é retratada e, nesse particular, mesmo sendo obra comunista crítica a uma determinada matriz específica do feminismo, não deixa de tocar em pontos de especificidade feminina: passado no bairro operário do Brás – “Brás do Brasil, Brás de todo o mundo” – , o romance expõe erotismo e sexismo na sociedade capitalista, e denuncia a objetificação das mulheres operárias “reduzidas a objeto de desejo, de reprodução e mão de obra barata pela sociedade capitalista e patriarcal” (Ibidem, páginas 191 e 192). Hoje, entende-se que, “(…) criticando a sociedade burguesa, de um ângulo socialista, [Pagu] é levada a ferroar a aristocracia paulista, ferindo velhos círculos sociais frequentados pelos modernistas de 22. Concentrando-se nas mulheres operárias e lumpemproletáarias, satiriza o feminismo burguês, acompanha moças pobres seduzidas com promessas casamenteiras por conquistadores ricos, seguindo particularmente a trajetória de Corina rumo à prostituição” (Antônio Risério, “Pagu: vida-obra, obravida, vida”, em Augusto de Campos, Pagu: Vida-Obra, São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 21). Assinale-se mais uma vez o caráter vanguardista e pioneiro dessa situação (que encontra paralelo com Raquel de Queiroz, guardadas as enormes diferenças): um romance escrito por uma (jovem) mulher brasileira na década de 30; mais: o primeiro romance realmente engajado escrito por uma mulher na década de 30. Em 1945, de volta ao Brasil após um périplo pelo exterior (vale lembrar das viagens que fez com Tarsila do Amaral e outros vanguardistas décadas antes), ela publica outro romance, em parceria com seu novo companheiro, o jornalista Geraldo Ferraz: A Famosa Revista é importante narrativa ficcional antisstalinista de estilo livre em poesia e prosa que recusa a narrativa tradicional e atua num experimentalismo bastante distinto daquele empreendido dois anos antes pelo livro de estreia de Clarice Lispector – e sem o seu demasiado subjetivismo. É de se questionar por que Pagu acabou sendo relegada dentro dos estudos de literatura brasileira. Talvez tenha sido essa posição marginália que fez com que outro underrated da cena cultural brasileira, o exímio poeta e transtradutor Augusto de Campos, se aproximasse da figura/personagem de Pagu para lançar Pagu Vida-Obra na década de 1980, volume obrigatório, porque a aprofundou (até então, era evocada superficialmente como aquela que teria acabado com o casamento de Oswald e Tarsila), unindo antologia e perfil biográfico: “luminosa agente subversiva de nossa modernidade”, diz a abertura de uma nova edição depois de anos fora do catálogo. Em Santos, onde passou seus anos finais, um pouco mais tranquilos (tudo mudou após a burocracia da URSS, após a Segunda Guerra Mundial, após o período “democrático” do Brasil entre duas ditaduras), continuou sendo jornalista e foi tradutora e agitadora cultural, uma espécie de “mestra”, tendo estimulado e propiciado a carreira teatral do dramaturgo Plínio Marcos, o mais pungente retratista dramatúrgico das nossas mazelas sociais. (Por fim, só mais alguns adendos. O prontuário de Pagu nas dependências da extinta “Ordem Social” e no Deops é extenso, cobrindo duas décadas de atividade, de 1931 a 1950 – “mais de 200 páginas, cheias de interrogatórios, relatos, fotos e textos do próprio punho da escritora”. Ela era considerada comunista de “alta periculosidade”. Pois bem. Vale mencionar, para coroar a intensa participação de Pagu na construção revolucionária brasileira, que sua última prisão foi no auge dos 40 anos de idade, em setembro de 1950: presa em flagrante no centro de São Paulo, quando escrevia “no chão, com tinta branca, lavável, dizeres referentes à propaganda do Partido Socialista Brasileiro”. Ela escreveu: “Contra os imperialismos russo e americano”. Não precisou desenvolver teoria; ela era a própria teoria em carne e osso e em prática.)

“Pagu indignada no palanque”.
A brasileira Heleieth Saffioti (1934-2010) lega uma enorme contribuição ao marxismo no Brasil e à situação específica das mulheres.

– A brasileira Heleieth Saffioti (1934-2010), pioneira da intersecção entre marxismo e feminismo no Brasil, tendo sido orientada em sociologia pelo grande Florestan Fernandes, marxista cultivado, escreveu textos importantes sobre a condição e opressão das mulheres no Brasil, isto é, no capitalismo periférico. É Saffioti quem irá escrever: “Rigorosamente, não existe um só feminismo, pois há diferenças de bandeiras levantadas, de ênfase posta numa ou noutra reinvindicação, de estratégias de luta. Tais distinções decorrem do enfoque político dado por cada grupo ou movimento feminista à questão feminina” (O Poder do Macho, São Paulo: Moderna, 1987, p. 93). Já em seu livro inaugural, A mulher na sociedade de classes: mito e realidade (escrito entre os anos de 1966-1967 e publicado pela primeira vez em 1969), Saffioti combina feminismo com marxismo (ou seja, parte da crítica da sociedade de classes para tratar especificadamente da mulher em tal sociedade a ser superada). Com este livro, em plena ditadura militar (mas antes do AI-5), ela não titubeia: o problema da mulher não é fato isolado da sociedade, portanto para superar a opressão contra as mulheres é preciso destruir o regime capitalista e implantar o socialismo. Ainda que o capital seja maleável e permita mudanças progressistas, não apresenta nem apresentará plena integração social feminina, porque, conforme Saffioti mostra na obra, as características ditas naturais (sexo e raça) são mecanismos em desvantagem no processo competitivo e tornam-se coniventes para a conservação da estrutura de classes (Editora Vozes, 1976, p. 30). O livro não deixa de tratar especificadamente sobre a condição da mulher em tal sociedade de classes. Nos parece também fundamental que, muitas décadas depois, ela tenha destoado da abordagem comum (quiçá dominante) no feminismo de tratar o gênero como central: em seu Gênero, Patriarcado, Violência (2004), a marxista faz forte crítica dos usos da categoria gênero. Saffioti reivindica a importância da categoria “patriarcado” em detrimento de “gênero” ou, ao menos, alerta contra a utilização exclusivista do último. Associa o patriarcado a uma articulação da industrialização do capitalismo. Argumenta que o “gênero”, enquanto categoria central, mesmo sendo útil, até mais rico e vasto, serviria justamente por isso para maquiar o patriarcado. Saffioti parece bastante crítica a certos autores e autores feministas contemporâneos, sobretudo dos EUA. O antropólogo cultural conhecido como ativista e teórico da política de sexo e gênero Gayle Rubin (1949-), segundo ela, teria se utilizado do “gênero” de maneira neutra, sendo que, para Saffioti, e isto certamente deve-se à sua influência marxiana e marxista, o “gênero” “carrega uma dose apreciável de ideologia”: a ideologia patriarcal, que cobre uma estrutura de poder desigual entre mulher e homens, inclusive – eis uma das argumentações mais polêmicas do livro – a partir do exclusivismo da categoria “gênero”, que não ataca o coração da engrenagem da exploração-dominação, mas ao contrário, a alimenta. É uma perspectiva convincente. Retoma Joan Scott (1941-), cujo trabalho é identificado com a história das mulheres a partir da perspectiva de gênero, para apresentar as relações de gênero imbricadas a relações de poder hierarquizantes ao longo da história, mas identifica que Scott não faz ressalvas à concepção foucaultiana de poder – uma noção pós-moderna de “poder” dissolvido na sociedade -, o que compromete um projeto de transformação social. Aqui, novamente temos uma explícita influência marxista. Saffioti, que teve formação marxista, sabia dos vícios pós-modernos e que os tais “micropoderes”, se é que existem, só sobrevivem a partir da estrutura que os reproduz. Dessa forma, não parece que ela se distancie de Rosa Luxemburgo ao abranger a exploração da mulher tanto no caso do trabalho doméstico quanto no caso do trabalho assalariado, ainda que, ao tomar tal postura, acabe por omitir a exploração material da expropriação de mais-valia em O Poder do Macho (ibidem, p. 51): “(…) Tanto a dona-de-casa, que deve trazer a residência segundo o gosto do marido, quanto a trabalhadora assalariada, que acumula duas jornadas de trabalho, são objeto da exploração do homem, no plano da família”. Detalhe para esse final, “no plano da família”, ou seja, num elemento superestrutural. Saffioti, no mesmo texto, apresenta um entendimento coerente do preconceito na sociedade de classes: “o conceito pressupõe a utilização de um instrumental teórico que permita o entendimento do fenômeno, o pré-conceito nasce do jogo de interesses presente na vida social da defesa de privilégios, da correlação de forças político-sociais” (Ibidem, p. 28). A respeito da relação entre natureza e concepção materialista da história, afirma Saffioti (Ibidem, p. 10): “A identidade social é, portanto, socialmente construída. Se, diferentemente das mulheres de certas tribos indígenas brasileiras, a mulher moderna tem seus filhos geralmente em hospitais, e observa determinadas proibições, é porque a sociedade brasileira de hoje construiu desta forma a maternidade. Assim, esta função natural sofreu uma elaboração social, como aliás, ocorre com todos os fenômenos naturais. Até mesmo o metabolismo das pessoas é socialmente condicionado”. Em Rearticulando Gênero e Classe Social (in: Uma Questão de Gênero, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 192 e 194), repõe no mesmo plano como sistema de dominação-exploração base e superestrutura. Para a autora (Ibidem, p. 186), “A formação da identidade de gênero é um exemplo de produção no reino do sistema sexual. E um sistema de sexo/gênero envolve mais do que ‘as relações de procriação, reprodução no sentido biológico”, ou, noutros termos, as identidades de gênero e as sexualidades são construções sociais, nas quais não se parte do nada, mas de condições materiais, uma vez que “o vetor direciona-se, ao contrário, do social para os indivíduos que nascem. Tais indivíduos são transformados, através das relações de gênero, em homens ou mulheres” (Ibidem, p. 187). Saffioti entende que a acumulação e centralização no modo de produção capitalista são base material para a realização das contradições e antagonismos nas quais operam o sistema sexual: “[…] a contradição entre as categorias de gênero nem é a única, nem opera autonomamente” (Ibidem, p. 199).

Sartre e Simone de Beauvoir em protesto: ela segura uma edição do Cause du Peuple (“Causa do Povo”), jornal da esquerda proletária criado durante o Maio de 68, ativo até 1972 e novamente ativo de 1973 a 1978. Note a foice e o martelo.
Simone de Beauvoir e Sartre socializaram com o Che e Fidel Castro. No âmbito do marxismo, precisam ser filtrados.

– Após a crítica demolidora de Loreta Valadares, já supracitada, resta-nos ainda falar em Simone de Beauvoir? Ela combatia o preconceito de que as mulheres não podiam se apresentar como filósofas, refletiu a condição histórica da mulher e a construção social do machismo. Ainda assim, em O Segundo Sexo, a autora demonstra uma incompreensão do materialismo e da estrutura e superestrutura, enfim, do marxismo, caindo no equívoco comum de tomar o marxismo como um economicismo vulgar que não serviria às discussões feministas, e que o “homo aeconomicus” marxista seria limitado ou até mesmo não serviria aos estudos feministas, algo já refutado por Valadares e muitas outras, e veremos, em outras autoras contemporâneas (embora uma Rosa Luxemburgo jamais tenha abdicado da questão da mais-valia, conforme vimos acima), que o próprio fator econômico na forma de valor encontra forte respaldo na crítica do marxismo feminina (Roswitha Scholz?). Ou seja, a própria obra O Segundo Sexo teria encontrado um grande filão se contribuísse para as questões do patriarcado (lembrar de Saffioti ou mesmo Eleanor Burke Leacock, que veremos adiante) enquanto produto da estrutura e produtor de mercadorias. É Roswitha Scholz, marxista feminista da qual veremos mais adiante, que escreve em seu “Simone de Beauvoir Hoje” (2011) que, enquanto a filosofia existencialista de Heidegger expressava “o sentimento básico da população de classe média nacional-socialista” (ou nazista), “De Beauvoir, pelo contrário, inclui também ideias marxistas na sua teoria. Isso, no entanto, não tanto em relação às causas sócioeconômicas da opressão das mulheres, mas sim, como é usual numa visão existencialista-fenomenológica, com uma intenção mais descritiva, a fim de determinar O Segundo Sexo com fundamento em primeiro lugar existencialista.” Bem, a base é o existencialismo urdido em parceria com Sartre – seu companheiro intelectual e com quem teve encontros memoráveis com o Che e com Fidel (lembrar que a Cuba revolucionária deu garantias do aborto às mulheres, por exemplo). Sartre foi figura mais ou menos cosmopolita, engajada e de renome mundial que afirmou em Crítica da Razão Dialética que o Marxismo “permanece como a filosofia insuperável do nosso tempo. Não conseguimos ir além dele.”, ainda que ele próprio  tenha incorrido em alguns equívocos esquemáticos e no dualismo (ao invés da dialética) sujeito-objetivo, mas isso é assunto para outro texto… Pois bem! Estamos, então, diante de autores que precisam de filtro aqui e ali. Nesse sentido, há um texto pouco referido de Beauvoir, intitulado “O Pensamento de Direita, Hoje” (ensaio de 1954, publicado em livro no Brasil em 1967 – período oportuno, diga-se de passagem – pela Editora Paz e Terra). Podemos dizer que, nesta obra, Simone de Beauvoir, em defesa da ciência, inscreve-se entre as críticas pioneiras do pós-modernismo – embora em seu tempo não se falasse nisso com a insistência de hoje. Tal crítica só pode ter derivado do marxismo, que é moderno por excelência. Antes do A Destruição da Razão de Lukács (embora no mesmo Zeitgeist de pós-nazismo) e de maneira corajosa para uma autora mulher, Simone de Beauvoir, ainda que não de maneira mais aprofundada e erudita, já identificava o irracionalismo de Oswald Spengler, Martin Heidegger, Arnold Toynbee, Karl Jaspers e outros… Mas os temas mais pertinentes giram em torno de um ataque à burguesia e ao pensamento da direita – que vão do anticomunismo crasso, ao subjetivismo, misticismo, individualismo, elitismo, rejeição da ciência, características vulgares que formam o pensamento reacionário. Em “O pensamento de direita, hoje”, ela criticou “os teórico burgueses que professam um subjetivismo psicofisiológico: as ideias refletem não o objeto pensado, mas a mentalidade do sujeito pensante”. Ora, essa elaboração crítica certamente é uma herança marxista. Ela ainda desmascara a “naturalização da História”: “A natureza é um dos grandes ídolos da direita. Ela surge como antítese da história e da práxis. Contra a história a natureza nos oferece uma imagem cíclica do tempo; vimos que o símbolo da roda elimina a ideia de progresso e favorece a sabedoria quietista. O retorno indefinido das estações, dos dias e das noites encarna concretamente a grande roda cósmica. A evidente repetição dos invernos e dos verões torna [para a direita] irrisória a ideia de revolução e manifesta o eterno.” Como podemos constatar, Simone de Beauvoir está ao lado da revolução socialista.

“Vote comunista”. Ângela Davis discursa no Partido Comunista dos EUA, nos anos 1960; marxista e comunista convicta, teve ojeriza do feminismo até perceber que o problema estava no feminismo pequeno-burguês e liberal, meramente arrivista, ou seja, que deseja se integrar ao sistema capitalista, e não revolucionário.
“Sim, eu sou comunista e considero isso uma das maiores honras, porque estamos lutando pela libertação total da raça humana.” – Ângela Davis em Uma Autobiografia.

Ângela Davis (1944-) contou recentemente que, após a publicação de seu famoso livro Mulheres, Raça e Classe (1981), todos passaram a chamá-la de feminista, ao que ela respondia: “Eu não sou feminista, eu sou uma revolucionária negra”, até se dar conta que sua ojeriza referia-se a um certo tipo específico de feminismo, “o feminismo infelizmente mais representativo”, de acordo com ela: o feminismo “branco”, burguês ou pequeno-burguês, o feminismo liberal, etc. Assim, é autora que nos importa, porque, diante de pautas ditas “identitárias” que segregam a luta ou buscam ascensão arrivista no sistema capitalista exploratório, Davis, por ser autoproclamada comunista, sabe que não se privilegia raça e gênero em detrimento da classe, mas que é nas interseções entre as três categorias que podemos encontrar o potencial revolucionário. (Noutras palavras, permitam-me um exemplo relevante ao nosso panorama atual, ainda que tosco: há parcelas “identitárias” da esquerda brasileira que, por falta de teoria revolucionária de certos partidos ou por desejo arrivista, batem palmas para uma Maju Coutinho, jornalista negra e mulher, pela primeira vez em posição de maior destaque na Rede Globo, sendo que esse “liberalismo” escamoteia não apenas a relação capitalista exploratória entre patrão e empregado, como também o fato de que tal representatividade efêmera – e reduzida – está nas mãos do capitalista, sempre macho, heteronormativo e branco, no caso, os Marinho e seus chefes executivos, propagadores dum “jornalismo” “neoliberal” e privatista financiado por banqueiros e grandes empresas, portanto racista – aliás, o diretor de jornalismo da emissora, Ali Kamel, é autor de um dos livros mais infames deste país, Não Somos Racistas. Uma Reação aos que Querem nos Transformar Numa Nação Bicolor.) Portanto, cabe tomar cuidado com o prefácio de Djamila Ribeiro na recente edição da Boitempo para Mulheres, Raça e Classe, que lastimavelmente desvia a centralidade da categoria trabalho para a questão racial (questão facilmente cooptável, quando solitária, conforme o exemplo já mencionado), sendo que Davis segue no miolo de sua obra o caminho contrário, muito mais revolucionário e coerente: percebe de que modo o capital instrumentaliza o racismo e o sexismo para nos colocar uns contra os outros e perder de vista a centralidade do trabalho e o nosso inimigo comum, a burguesia. Tomando o livro de Davis dessa forma, temos um primor da luta marxista contra o capitalismo, um apelo de unificação entre todos os grupos subalternizados que devem eles mesmos ultrapassarem o racismo e o sexismo para pôr foco na luta contra o capitalismo global, que forma, mantém e gera o racismo e o machismo. (Numa minúscula resenha mais ou menos “diplomática” intitulada “O Marxismo de Ângela Davis“, Silvio Almeida, destacado intelectual negro brasileiro contemporâneo, escreve: “a importância de Mulheres, raça e classe transcende as perspectivas teóricas ou práticas de grupos específicos e se mostra relevante para o marxismo enquanto “método” ou “ciência da história”. Davis nos lembra que o marxismo tem como prioridade o movimento do real da materialidade histórica, e por isso o conceito de classe deve ser “elevado” em direção ao concreto. Classes são formadas por indivíduos, cujas relações são determinadas pela lógica capitalista da produção e pelas formas históricas de classificação racial ou sexual. Atentar para a forma adquirida pelo racismo e pelo sexismo no interior do capitalismo permite ao marxismo não ser engolfado pelo idealismo ou por esquemas mecânicos que inviabilizam uma concepção verdadeiramente científica da sociedade. Trata-se, portanto, de ponto de partida para o desafio de responder à questão se a relação entre capitalismo, racismo e sexismo se explica por fatores históricos (nunca houve capitalismo sem racismo e sexismo) ou lógicos (não há capitalismo sem racismo e sexismo).” É importante, enfim, que a ontologia marxista do ser social (para lembrarmos Lukács) não se confunda com o cientificismo academicista e que não se opere nem se desvie a centralidade do trabalho para explicar a racionalidade do capital ou a substitua pela “centralidade da questão racial”, para que a problemática negação da “não hierarquização das opressões” se resvale, necessariamente, no relativismo, pois essa concepção é fruto de uma vertente “marxista” fácil de ser cooptada pelas próprias formas mercadológicas que Almeida identifica e denuncia, é uma vertente que teme a radicalidade do pensamento marxiano, sintetizado na revolução. Não será possível remontar, nos objetivos deste curto espaço, detalhes sobre a questão, mas basta dizer que o machismo se sustenta a partir do fato da propriedade privada ser detida pelo homem heternormativo na sociedade de classes (e que a fileira que pretende superar tal sociedade é o comunismo), assim como o racismo se estabelece a partir da acumulação primitiva e suas consequências na colonização e escravidão, posteriormente, no capital, e que em sua superação pela via do comunismo é que há a expressiva superação do sexismo e racismo.

Eleanor Burke Leacock (1922-1987), antropóloga, feminista e marxista.

Eleanor Burke Leacock (1922-1987) foi a mais importante antropóloga marxista estadounidense,  que deu enormes contribuições ao estudo das sociedades igualitárias (primitivas ou modernas), à evolução do status das mulheres na sociedade, ao marxismo e ao movimento feminista. O seu volumoso e importante Mitos da Dominação Masculina: Uma Coletânea de Artigos sobre as Mulheres numa Perspectiva Transcultural (Instituto Lukács, 2019) é estudo altamente recomendado, tanto como discussão crítica do estado da arte quanto como um relato de história pessoal/política que informa o processo de investigação científica. A obra desmascara os diversos mitos por trás da ideia de superioridade masculina “natural”. (Lembrar da crítica de “O Pensamento de Direita, Hoje” a respeito da naturalização da História, muito comum nos autores burgueses e na direita.) Com base em uma extensa pesquisa histórica e intercultural, Leacock mostra que as reivindicações de superioridade masculina são baseadas em mitos cuidadosamente construídos sem base histórica factual. Ela também documenta vários exemplos históricos de relações igualitárias de gênero.  “Norteada pela busca incessante para desvelar o que constitui a essência do mito da dominação masculina, Eleanor Burke Leacock dedicou-se com afinco à pesquisa antropológica para corroborar a tese marxiana de que a humanidade constrói seu próprio mundo desta ou daquela forma sobre a base das condições objetivas historicamente postas (…)”, afirma um trecho da descrição do livro pelo Instituto (é possível baixar em .pdf, mas o preço de cerca de R$8 para um livro de mais de 400 páginas não pode ser desperdiçado). A ler.

Silvia Federici (1942-).

– Feministas italianas veteranas e contemporâneas como Silvia Federici (1942-), radicada nos Estados Unidos (em que o movimento feminista deste país influenciou sua luta e trabalho?), e que possui livros traduzidos no Brasil, onde é muito requisitada para eventos, sempre esgotados, e Maria Rosa Della Costa (1943), desafiam a teoria marxiana da acumulação primitiva, mostrando como a despossessão de corpos femininos também fez parte desse processo, repensando a relação entre capitalismo e patriarcado e o lugar do trabalho doméstico e não remunerado no esquema marxiano. Podem existir alguns equívocos regressivos aqui e ali em matéria de crítica da Economia Política (por exemplo, Federeci reivindicava, desde os anos 1970, o assalariamento para o trabalho doméstico das donas de casa, e é preciso sopesar como essa questão é vista por outras feministas, se isso uniria as mulheres domésticas às trabalhadoras externas, e mesmo a partir da crítica ontológica marxista do assalariamento), mas eis o que fica de basilar em seu pensamento e luta: em entrevista ao El País Brasil em 2019, Federici, diante da pergunta “Pode-se ser feminista e não estar contra o capitalismo?”, responde, pondo abaixo o arrivismo de certos grupos: “Não. Não pode. O feminismo não é uma escada para que a mulher melhore sua posição, que entre em Wall Street, não é um caminho para que encontre um lugar melhor dentro do capitalismo. Sou completamente contrária a esta ideia. O capitalismo cria continuamente hierarquias, formas diferentes de escravização e desigualdades. Então, não se pode pensar que sobre esta base se possa melhorar a vida da maioria das mulheres, nem dos homens. O feminismo não é somente melhorar a situação das mulheres, é criar um mundo sem desigualdade, sem a exploração do trabalho humano que, no caso das mulheres, se transforma numa dupla exploração.” Dois livros destacados de Federici com tradução no Brasil e corpo crítico já disseminado: Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2004) e Revolução ao ponto zero: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas (2013).

Roswitha Scholz (1959-), marxista feminista contemporânea, tem contribuído à vinculação da categoria gênero à teoria crítica do valor. Teórica do valor-clivagem.

Roswitha Scholz (1959-). Jornalista alemã. Contemporânea. Ainda não me aprofundei para delinear pontos divergentes, mas os pontos convergentes parecem muito enriquecedores. Conhecida pela crítica do valor (partindo, assim, da teoria marxiana) vinculado à clivagem de gênero, o que lhe permitiu desenvolver a teoria do “valor-clivagem”, “valor-dissociação” ou “dissociação-valor”, dependendo da tradução. Parece que a teórica do valor-clivagem encara o patriarcado como produtor de mercadorias (tomando como referencial o título de uma reunião virtual recente de mulheres brasileiras a discutir a autora), postura fundamental e central para o casamento do feminismo com o marxismo; esta parece ser uma visão coerente e fecunda. (Resta problematizar, como vimos com Heleieth Saffioti, a questão do patriarcado diante da categoria gênero?) Começar pelo artigo “O Valor é o Homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos” (de 1992, embora a própria Scholz, em Nota Prévia de 2017, veja deficiências nesse texto, recomendando, a título de compreendermos com maior profundidade a teoria da dissociação-valor, consultarmos o livro O Sexo do Capitalismo. Teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do patriarcado, além de ensaios seus e de outros e outras na revista teórica Exit! Crise e crítica da sociedade das mercadorias). Em “Simone de Beauvoir Hoje” (2011), Scholz revê o legado da autora francesa a partir do feminismo e do marxismo. É preciso se perguntar se essa autora, uma vez debruçada na crítica do valor e divulgadora da teoria do valor-clivagem, supera e resolve, de uma vez, e de que modo critica – como a brasileira Loreta Valadares o fez em seu texto supracitado – a velha querela de feministas como Simone de Beauvoir, Juliet Michell e Schulamith Firestone que viam no marxismo (mesmo em Marx e Engels) uma “redução” de tudo ao econômico e ao “homo aeconomicus”.

O percuciente livro Crítica ao Feminismo Liberal: Valor-Clivagem e Marxismo Feminista (2020), de Taylisi Leite.

– Da brasileira Taylisi de Souza Corrêa Leite (Doutora, Mestra e Especialista em Direito), o importante livro Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e feminismo marxista, lançado neste ano de 2020 pela Editora Contracorrente (salvo engano, a autora é orientanda de Alysson Mascaro, que sempre bebeu muito na fonte de um Pachukanis, cuja filosofia do direito dá as bases marxistas para uma crítica e superação do direito burguês): em seu percuciente livro, Taylisi parte do valor-clivagem de Roswitha Scholz para criticar, desmascarar e denunciar o feminismo de cooptação liberal. Tudo aponta que trata-se de livro obrigatório para formarmos e vacinarmos as camaradas mais novas e sacudirmos no combate contra as armadilhas capitalistas. A ler.

Mulher, Estado e Revolução: política da família soviética e da vida social entre 1917 e 1936 (1993), de Wendy Goldman (1956-), parece apontar os retrocessos históricos da época “stalinista” (basta compará-los com as conquistas factuais anteriores e até com os escritos de Lênin, Nadejda Krupskaia, Alexandra Kollontai, outros e outras na fase histórica anterior).  Não posso ainda dizer se essa autora tem ou não um aprofundamento no marxismo, mas é historiadora especializada em Rússia e União Soviética, sabendo retratar as grandes experiências e conquistas da libertação da mulher e do amor livre na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) depois de uma revolução comunista com uma vanguarda de intelectuais marxistas – e por que falharam, quando entrou em cena a burocracia stalinista. A ler, principalmente para o combate interno (ainda que anacrônico e extemporâneo, mas que se impõe alheio à nossa vontade) contra o “stalinismo”, que fisga até mesmo uma ou outra camarada menina mais incauta a embarcar nesse idealismo machofrênico, além de meninos aborrecentes (não sem a influência de marmanjos pseudomarxistas sem caráter e reacionários, praticamente direitistas). Esses dias mesmo, vi uma suposta feminista marxista (perfil “Solidariedade Feminina! no Instagram) omitindo (a troco de que?!) os danos, inclusive femininos, no período Stálin (cuja própria filha chamava-o de homem conservador, relatando que pessoas da própria família é que começaram a sumir antes dos demais). Goldman parece contribuir enormemente para a historiografia recente daquele período – espera-se que tenha problematizado as condições táticas particularmente difíceis da Rússia isolada do resto do mundo que não logrou a revolução, ao invés de um retrato simplório ou moralista, mas que exponha os danos do Grande Expurgo para a própria revolução, sem contar, depois, a dissolução da Internacional para agradar os Aliados liberais e anticomunistas, desmantelamento cujas consequências amargarmos até hoje. Enfim, é uma autora mais do que interessada em Stálin. Basta olhar os seus títulos subsequentes: Women at the gates : gender and industry in Stalin’s Russia (2002) – este trata de gênero e indústria, Terror and democracy in the age of Stalin : the social dynamics of repression (2007), Inventing the enemy : denunciation and terror in Stalin’s Russia (2011) e Hunger and war : food provisioning in the Soviet Union during World War II (2015). Infelizmente, estes outros livros parecem não contar ainda com uma tradução no Brasil.

Lise Vogel (1938-), Susan Ferguson (1962-), Tithi Bhattacharya (1971-) e Cinzia Arruzza (1976-), também contemporâneas, apesar das diferenças geracionais e apesar de atuarem (na prática e na teoria) em países e culturas bastante distintas entre si, com problemas e resoluções específicos, são todas feministas marxistas que apresentam uma teoria unitária para explicar como o movimento do capital, enquanto forma a partir da qual a sociedade capitalista se produz e se reproduz, concretiza-se articulando gênero, raça e classe, bem como trabalho produtivo e reprodutivo.

Povo e Centrão e (des)governo Bolsonaro

O quanto você, que se diz de esquerda, conhece realmente o Brasil e os brasileiros da base da pirâmide social?

São os descendentes periféricos da escravização in loco de 3 séculos e da Abolição feita nas coxas, da miscigenação mais explícita na cor de pele, filhos, depois, da migração-consequência-do-desajuste-geográfico-da-industrialização-nacional, de nível técnico e crítico baixo ou ingênuo ou nenhum, são os estigmatizados, os “burros”, “ignorantes”, mais do que pobres, semi-analfabetos e analfabetos, Macabéas, mas que, paradoxalmente, neste momento de crise, são os que seguram o país no dia a dia, dada a quantidade e espessura dessa camada na sociedade, através de bicos e na informalidade. Parece que Chico Buarque lhes retratou bem na canção “Brejo da Cruz” – salvo engano, canção dos anos 1980, depois de anos de uma ditadura que impediu reformas estruturais e atirou o país na marginalização… São, mentalmente, quase crianças – para usar a poética, não fosse trágica, denominação de um camarada comunista meu, funcionário público do setor de obras, que possui contato direto com pedreiros, motoristas, etc. Só os “evangélicos” — tanto pastores bandidos, ricos e fundamentalistas quanto “pastores/intelectuais orgânicos”, i.e., mais próximos da comunidade e de sua própria cor de pele miscigenada e classe social — é que penetraram para valer nessa camada nesses últimos 30 anos, prometendo-lhes subir e crescer, ter carro, negócio, dinheiro, o que a Igreja Católica, já em declínio e secularização, sempre demonizou (o catolicismo sempre quis perpetrar a condição do lúmpen miserável, nunca tirá-lo dessa situação). Donas de casas, faxineiras, guardas noturnos em maior dignidade do que os farrapos, mas essas classes da base da pirâmide muitas vezes se misturam e se confundem, sobretudo num país continental e complexo…

A esquerda (no mundo) comeu poeira, deixou de falar em revolução desde a Queda do Muro e o desmanche da burocracia da União Soviética, distanciou-se (um dos grandes erros do PT) dos seus princípios mais radicais, é hoje identificada por camadas sociais — caso dos Coletes Amarelos, na França, que expulsam partidos de esquerda dos protestos — com o próprio sistema econômico e estatal (direitista). A boa notícia — a médio e longo prazo — é que esse cenário tem solução. É incontornável, para uma solução, a construção da organização revolucionária que saiba que é possível conquistar a hegemonia antes de conquistar o poder. Que, formando intelectuais orgânicos e soldando intelectuais revolucionários com o povo-nação e sobretudo com uma classe trabalhadora sólida e consciente (classe essa que se encontra “acima” da “massa” na pirâmide), acabe com a desigualdade socioeconômica (fruto da maior parte do desespero espiritual contemporâneo) através da tomada, distribuição e socialização da propriedade privada dos meios de produção e que, concomitante e até antes disso, supere num processo gradual o senso comum com um novo senso crítico filosófico.

Tenho um cunhado que é gerente da Caixa Econômica Federal (outro funcionário público). Me contou do perfil geral dessa massa sem perspectiva nas enormes filas das agências pelo auxílio emergencial, que acaba este mês e cujo fim mudará todo o cenário diante do DESgoverno, da pauperização causada pelas contrarreformas neoliberais desde o golpeachment e Temer, da pandemia e do capitalismo contemporâneo, que já não gera mais emprego e nem vai gerar. Não sem incômodo por conta de seu ar de superioridade e por suas expressões pejorativas, ouvi ele me contar dos “vergonhosos”, “patéticos” e até insólitos erros linguísticos que têm escutado quase que diariamente e a falta de informação e de conhecimento (das coisas mais simples e bestas) que têm de enfrentar com esse “povo”. Houve até aqueles que, mesmo sem direito ao auxílio, quiseram ir saber o que diabos o governo estava dando para o povo. Suponho que não possuem acesso decente à Internet ou arrisco a dizer, com base no depoimento do meu cunhado, que possuem acesso, mas não sabem mexer (sem contar que, nos primeiros meses, a incompetência do desgoverno criou instabilidade no aplicativo do auxílio). Também, não basta “saber mexer” – é preciso transferir o auxílio da “conta virtual” do aplicativo para a conta bancária da Caixa ou esperar a data para transferir, sendo que para sacar é mais rápido, enfim, uma série de situações burocráticas que dificultam o acesso a todos. Caso contrário, não haveria fila pelas agências, com todos os riscos da aglomeração em plena pandemia de COVID-19.

(Não houve informação suficiente a respeito do fato de Bolsonaro e do terraplanista econômico Paulo Guedes, um Bolsonaro com Phd, não quererem, desde o início, dar auxílio algum, e que este foi conquista da oposição de esquerda e de outros setores do Congresso. No início, R$600 reais, que logo foram cortados pelo (des)governo pela metade, R$300 reais, e que chegarão ao fim mesmo com a pandemia e sem vacina, enquanto o resto do globo já começa a adquirir suas doses.)

Portanto, a respeito do tema Bolsonaro, sustentação da aprovação (grande entre emprésarios semiescravagistas) e desaprovação (a maior rejeição entre os presidentes em primeiro mandato, com exceção de Collor), é a subjetividade e condição de LÚMPEN (termo usado por Karl Marx em 18 Brumário de Luís Bonaparte e outros textos) que nos importam enquanto esquerda empática, não os fascistóides minoritários. O lúmpenproletariado é, em tradução literal, o proletariado de farrapos, mas existe uma mentalidade de lúmpen em amplos setores. Antes de mais nada, essa classe do lúmpen brasileiro é formada pela chocante desigualdade deste rico país (quando se afirma que o Brasil é desigual, trata-se não de um país pobre, mas “de um lado este carnaval/do outro, a fome total” num mesmo país, cidade, estado, bairro, rua). Além dos lúmpens, há uma “nova” classe trabalhadora informal chamada de precariado. Os livros do prof. Ricardo Antunes mapeiam a condição subproletária, do precariado, dos trabalhadores intermitentes e afins no capitalismo atual, inclusive entre os jovens com a “uberização”, que trabalham sem hora fixa para enriquecer a Uber, o iFood, etc. O problema é que o auxílio emergencial, justamente por ser destinado a quem não tem salário, acaba agregando todos esses. Assim, importa-nos, em caráter de urgência, a chocante defasagem socioeconômica e educacional dos abandonados, metidos numa ignorância proposital e secular, Macabéas que embarcam em quem lhes der mais e lhes ajudar com migalhas, não importando se é centro-esquerda ou se é direita aporofóbica, tal a situação degradante em que estão! Esta é a subjetividade e condição material típicas do chamado “lúmpen-proletariado”: aderir a quem possa lhes resolver, mesmo que momentaneamente, a dificuldade material. O Estado brasileiro na forma da oligarquia sempre foi hábil em sustentar o lúmpen, tirando-lhe a consciência crítica e revolucionária em troca de leite, uniforme escolar, migalhas.

Enfim, do que eles precisam e do que precisamos? Precisam duma esquerda que deseje e concretize construção revolucionária pela conquista da hegemonia mesmo antes da conquista do poder; da “soldagem” gramsciana entre intelectuais e povo-nação; de Paulo Freire e Antonio Gramsci; que sejam parte dirigente de um partido revolucionário e de movimentos sociais, unidos à classe trabalhadora, já que o capitalismo contemporâneo dificilmente vai transformá-los em classe trabalhadora clássica; precisam surgir do mais profundo da massa e virar intelectuais orgânicos que não só saibam exercer seu simples trabalham, mas que também entendam de teoria do valor, economia, política, história, dialética e revolução; não precisam de mera política pública e assistencialismo barato para voto de cabresto que, desde pelo menos Getúlio Vargas (“Façamos a revolução antes que o povo a faça!“), não derruba os pilares do país.

Outro dia, uma amiga me perguntou se a taxação de grandes fortunas não seria um passo decisivo para a transição socialista. Eu quase ri. Sem teoria, a esquerda parlamentar não faz outra coisa senão nivelar o debate. Uma pergunta lúcida a ser ensinada, pergunta de esquerda raiz: quem administrará o montante recolhido dos lucros e dividendos, das grandes heranças, dos iates e jatinhos? A classe trabalhadora? Os burocratas de Brasília? O Congresso, que nos espolia, pois a esquerda não tem ali uma hegemonia? Já na Crítica do Programa de Gotha Marx escreve que o imposto sobre renda (pauta de vários liberais da Manchester industrial) pressupõe as diferentes rendas das classes, logo pressupõe a sociedade de classes capitalista, não a construção de uma sociedade comunista. Transição socialista é, no mínimo, um governo popular e orgânico em forma de cooperativas, no setor da economia, e de conselhos populares na política, ao invés do Estado enquanto balcão administrativo da burguesia.

Voltemos ao caso do lúmpen. Guardadas as ENORMES diferenças, motivações, intuitos e proporções, trata-se da quase mesma postura que também o Centrão — direita sem ideologia, corrupta e fisiologista do sistema — desempenha na alta burocracia federal para apoiar governos federal, estaduais e municipais em troca de emendas parlamentares milionárias e cargos gordos na administração pública… Com o Centrão, um desgoverno fraco ganha mais musculatura, mesmo com todos os seus descalabros sociais. O Centrão que apoiou FHC, Lula, Dilma, Temer e agora Bolsonaro. Quem dá mais, lá vão eles. (O gângster psicopata Eduardo Cunha, antes de ser preso, ia além: era o “Centrão” que tinha pautas retrógradas em nome de Deus e Jesus, um pré-Bolsonaro bem mais calculista, centrado, perigoso…) Sem eles, não há voto no Congresso.  Até os milicos moralistas do DESgoverno já descobriram isso. Atualmente, neste ano de 2020, o Centrão é formado por parlamentares do PP (40 deputados), Republicanos (31), Solidariedade (14) e PTB (12). Este seria o “Centrão oficial”, mas, em certos momentos, dependendo da oferta, são somados o PSD (36 deputados), MDB (34), DEM (28), PROS (10), PSC (9), Avante (7) e Patriota (6).

Ora, como são eleitos, então? Uma mera reforma política que enxugasse o número de partidos mitigaria o poderio do Centrão? Um rápido estudo a respeito das origens do “Centrão” nos levará à constatação não só do lobby capitalista em Brasília, mas da renitente oligarquia brasileira e também do “coronelismo” regional em cidades por todo o país, da falta de uma democratização socialista de base, mas seria preciso maior aprofundamento a respeito.

Temos, assim, dois lados do país, de alto a baixo, a serem resolvidos.

Ps.: Os requisitos para o auxílio emergencial, segundo a própria página da Caixa Econômica Federal, ajudam a caracterizar melhor essa “sub-classe” (não inserida diretamente na contradição entre as forças produtivas da classe trabalhadora assalariada e os meios de produção detidos pelos capitalistas) da qual não estou, neste momento, muito distante: insta-me dizer que, como professor autônomo, também tive “direito automático” ao auxílio, sem nem mesmo fazer qualquer procedimento:

Pode solicitar o benefício o cidadão maior de 18 anos, ou mãe com menos de 18, que atenda a todos os seguintes requisitos:

Esteja desempregado ou exerça atividade na condição de:

– Microempreendedores individuais (MEI);  <- É preciso saber o quanto há resquício de ideologia neoliberal nesta denominação de “microempreendedor individual”.

– Contribuinte individual da Previdência Social; 

– Trabalhador Informal.

Pertença à família cuja renda mensal por pessoa não ultrapasse meio salário mínimo  (R$ 522,50), ou cuja renda familiar total seja de até 3 (três) salários mínimos (R$ 3.135,00).

Discordo, em parte, do exímio Prof. José Paulo Netto em sua biografia de Marx…

“(…) E se eventualmente incorri em equívoco e até em erros no trato que ofereci ao meu biografado, asseguro que, em sendo eles apontados, não vacilarei em revisá-los e corrigi-los (…)”

José Paulo Netto, Karl Marx: Uma Biografia, Nota do Autor.

Discordo, em parte, do exímio Prof. José Paulo Netto quando este afirma, na Nota do Autor inicial de sua importante biografia de Marx recém-lançada, que acaba de me chegar e que devo estar entres os primeiros a alegremente adquirir, que “Enfim, não penso que Marx seja o teórico do socialismo e/ou do comunismo: penso-o como teórico do capitalismo”. Netto concordaria comigo que esta frase:

  • 1) é academicista e neutralizadora (o próprio Netto, marxista, marxilógo e comunista, escreve, na mesma Nota, contra a neutralidade e afirma de maneira exemplar que compreende a obra de Marx “como a fundação da teoria social revolucionária, e não uma síntese enciclopédica de conhecimentos que, em época posterior, constituirão os saberes autônomos e próprios das ciências sociais” – negrito meu, itálico dele);
  • 2) reduz Marx, teórico do desenvolvimento da sociedade humana (para usar definição de seu genro Paul Lafargue, que, nas reminiscências da vida íntima do sogro, relata a grandiosidade de sua teoria) e, por conseguinte, do capital (seu sério objeto a ser superado e sobre o qual, sem dúvida, ele se debruçou sobremaneira e melhor do que nenhum outro), isto é, trata-se de teórico mais abrangente, do desenvolvimento das sociedades humanas até culminarem no capitalismo (excluir o passado sobre o qual se urde o capital é perder o fio da meada), a partir da concepção materialista da história (expressão frequente de Engels), ou seja, da vida material e do modo econômico (feudal, escravocrata, capitalista, socialista, por vir, etc.), estrutura-superestrutura;
  • 3) tira de Marx a sua crítica (esta palavra renitente em praticamente todo título ou subtítulo de sua obra) contra o capitalismo (sobretudo a partir da teoria do valor) e contra os teóricos do capitalismo, seja a Economia Política de Smith e Ricardo, mais sofisticada, ou os “economistas vulgares” (expressão do próprio Marx) da burguesia, ou seja, Marx é um Crítico acima de tudo ou crítico teórico ou teórico crítico;
  • 4) subtrai a sua teoria a respeito do comunismo a ser construído – o contributo de Marx não é só teórico, mas tem dimensão prática ligada à sua ativa participação como dirigente e militante do movimento operário, portanto há uma práxis (TEORIA testada na prática), sem a qual o autor das famosas teses sobre Feuerbach não passaria dum intérprete da sociedade burguesa e do capital a serem superados, tal como ele urge enquanto revolucionário, seja na tese 11, no Manifesto ou na Crítica do Programa de Gotha (em que o próprio Marx afirma que o objeto do Programa era a sociedade comunista, e que, para tal, precisariam responder “cientificamente”) ou no próprio O Capital (a célebre página em que se afirma que, a partir das contradições entre as forças produtivas e as relações de produção, “os expropriadores são expropriados”, o capital rompe-se diante da revolução socialista), ou seja, Marx é também teórico do socialismo e/ou do comunismo, e o próprio José Paulo Netto, que já na Nota do Autor explica que não há neutralidade, sabe que ignorar isso seria retirar da teoria marxiana a sua perspectiva revolucionária (sustentada a partir da teoria do valor, que identifica a exploração do capitalismo, e da nova dialética).

E talvez outros pontos, sendo estes quatro certamente os principais. Enfim, Marx não é “teórico do capitalismo” e ponto.

Permitam-me discorrer e criticar, não sem alguma obsessão, sobre aquela frase, que me incomoda, por ter sido posta assim numa biografia de Marx por um comunista. Parece que Netto alerta aquilo aos neófitos, para desfazer estigmas preconceituosos a respeito de Marx, mas há graves pormenores nessa afirmação e na sua própria ótica sobre a obra marxiana. Talvez seja até um vício academicista, universitário, teorizante de professor universitário. (Lembrar que a universidade – sobretudo os cursos de humanas – não tem práxis!) Espero, a priori, que não seja uma divergência geracional, ou seja, de um jovem entusiasmado e proponente para a construção revolucionária neste século diante de um velho marxista (e militante antigo do PCB, não apenas marxilógo) que assistiu a traições, ditaduras, dissoluções, deturpações, ataques, fracassos, desilusões e até conquistas (não escreverei “um marxista cansado”, porque a biografia de Netto, com mais de mil notas referenciais, e, ao que me parece, enquanto começo a ler, mantém o fôlego de sua coesa erudição nestas cerca de 800 páginas, é extraordinário esforço de viço corporal que, só de imaginar, já cansa este jovem que vos escreve).

“Teórico do marxismo” é uma definição que recai sobre o “apenas interpretaram o mundo” da tese 11… De fato, é incontestavelmente o capital o grande objeto da obra de Marx – nenhum outro autor na história da humanidade senão ele é o grande teórico (aqui, acrescento:) o grande crítico! (esta palavra, usada nos títulos ou subtítulos de praticamente todas as obras marxianas, é primordial de ser usada, porque o jornalista exilado e revolucionário perseguido Marx nunca pretendeu ter neutralidade teórica nem um objetivismo vulgar!) – crítico do capitalismo e de seus teóricos, crítico dos próprios teóricos do capitalismo -, mas a sociedade comunista (primitiva e a ser construída na modernidade) também foi objeto de seu estudo.

Penso que a afirmação de Netto não se sustenta diante da minha ligeira argumentação acima. No parágrafo seguinte é que está a chave daquela sua afirmação: “(…) Para compreender o capitalismo contemporâneo, é preciso investigá-lo a partir não das conclusões marxianas, e sim da sua concepção teórico-metodológica“. Contraditoriamente, o mesmo Netto, que sabiamente escreveu que a obra de Marx é a “fundação da teoria social revolucionária, e não uma síntese enciclopédica de conhecimentos”, aqui, não fala em prática, práxis, etc. Trata-se de saber o quanto essa postura esvazia o teor revolucionário e cai no academicismo ou não, amputando o marxismo e mesmo a intenção original de sua metodologia.

Pergunto: bastaria, talvez, apenas afirmar que Marx é um teórico basilar do capitalismo (ainda que não um teórico completo, porque o capitalismo tomou outras faces posteriormente à sua morte, mas nenhum outro posterior que tenha escrito sobre o capital está à sua altura ou lhe vai além ou é mais formativo e basilar) e é um teórico do socialismo e/ou do comunismo de maneira incompleta, porque estes ainda não haviam se realizado?

De qualquer forma, Marx não escreve O Capital apenas para expor a teoria do valor e a mais-valia e outras categorias e ponto final, não é “teórico do capitalismo” e ponto final; ele escreve desejando criticar e alterar o seu objeto, e tem muito clara a sociedade a ser construída: a sociedade comunista. Ao que consta, jamais abjurou do comunismo (teve receio dele na juventude, enquanto jovem hegeliano de esquerda, conforme mostra Michael Lowy em A Teoria da Revolução no Jovem Marx, mas nunca voltou atrás).

Em outra parte decisiva da Crítica do Programa de Gotha (de 1875, portanto bem posterior à primeira publicação do livro primeiro de O Capital em 1867):

“Nosso objetivo aqui é uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir de suas próprias bases, mas, ao contrário, como ela acaba de sair da sociedade capitalista, portanto trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu.”

Logo em seguida, Marx – sem desconsiderar que cada trabalhador possui um corpo diferente, uma vida diferente, características diferentes e sem desconsiderar ainda as classes da sociedade capitalista – argui que, nos estágios iniciais da sociedade comunista (que passaram a se chamar “socialismo”), o produtor individual “recebe de volta da sociedade exatamente aquilo que lhe deu” de acordo com o tempo individual de seu trabalho, cujas deduções vão para fundos coletivos; aqui, no entanto, impera ainda o princípio que regula a troca de mercadorias e mesmo resquícios de “igual direito” do direito burguês, a serem superados num estágio mais avançado. Enfim, mais uma prova de que Marx é, sim, um teórico do comunismo. E o melhor: ainda pertinente hoje, século 21.

Se a sociedade comunista a ser construída parte da sociedade de classes capitalista e a ela deve se desvencilhar progressivamente, isto pressupõe que há uma etapa avançada da sociedade comunista. Marx trata dela parágrafos depois na mesma Crítica do Programa de Gotha:

“Numa fase superior da sociedade comunista, depois de ter desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, também a oposição entre trabalho intelectual e manual; depois de o trabalho se ter tornado, não só meio de vida, mas, ele próprio, a primeira necessidade vital; depois de, com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, as suas forças produtivas terem também crescido e todas as fontes manantes da riqueza cooperativa jorrarem com abundância — só então o horizonte [jurídico] estreito do direito burguês poderá ser totalmente ultrapassado e a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!”

Como se sabe, este lema final é a síntese do que é o comunismo.

Outro trecho, que moldará a práxis dos militantes e que já era planejado, de certa forma, no Manifesto Comunista décadas antes:

“Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.”

José Paulo Netto, praticamente em todas as ocasiões em que ensina o “Método em Marx” (em vídeos disponíveis pela Internet), também afirma que Marx não escreve, em O Capital, o que pensa sobre o capitalismo. Não é verdade. É como se Marx fosse meramente contemplativo dos desenvolvimentos dialéticos e da forma do capital… Não. Mesmo O Capital, e isto é importante de ser colocado!, fornece subjacentes ou no centro de todo aquele método acurado, de toda aquela técnica de caráter científico, a realidade social do trabalhador, a ser transformada, e instiga, aqui e ali, em páginas memoráveis, a consciência crítica do capitalismo, da condição dos trabalhadores, do lucro concentrado e roubado pelo capitalista, da ojeriza da antiguidade pelo dinheiro, etc. Não é um mero tratado economicista! Não é uma teoria do capitalismo para entendê-lo e ponto final!

Por exemplo: após apresentar, com equações praticamente matemáticas, as formas e diferenças do dinheiro simples e do dinheiro que é capital (Livro Primeiro, PARTE SEGUNDA – A TRANSFORMAÇÃO DO DINHEIRO EM CAPITAL, Capítulo IV – “Como o dinheiro se transforma em capital”, 3 – COMPRA E VENDA DA FORÇA DE TRABALHO), Marx, com linguagem que revela seu arcabouço literário e passado de quase dramaturgo, conclui o seguinte (minha edição, presenteada por uma querida aluna e do seu saudoso pai, nome importante das Greves do ABC, foi traduzida por Reginaldo Sant’Anna para a Difusão Editorial):

“Ao deixar a esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, à qual o livre-cambista vulgar toma de empréstimo sua concepção, ideias e critérios para julgar a sociedade baseada no capital e no trabalho assalariado, parece-nos que algo se transforma na fisionomia dos personagens do nosso drama. O antigo dono do dinheiro marcha agora à frente como capitalista; segue-o o proprietário da força de trabalho como seu trabalhador. O primeiro com um ar importante, sorriso velhaco e ávido de negócios; o segundo, tímido, contrafeito, como alguém que vendeu sua própria pele e apenas espera ser esfolado.(grifos meus)

Se, neste caso supracitado, subtrairmos tal conclusão a respeito da exploração do trabalho pelo capital, colocada justamente como parágrafo último do capítulo (fechado com chave de ouro com esse murro – não um murro de julgamento moralista, porque Marx, que escreveu muitas anotações e cadernos sobre Espinosa, reivindicaria uma “ética”, não uma moral), e colhermos tão somente as fórmulas do dinheiro simples e do dinheiro que é capital, não entenderemos (e mal entenderão, a título de ensino crítico) nada de dinheiro simples e de dinheiro que se transforma em capital, ou seja, dos seus efeitos práticos na nossa realidade e vida diária na sociabilidade capitalística; já não estaríamos mais falando de marxismo, tampouco considerando o próprio Marx…

Tais formulações compõem uma teoria revolucionária a ser testada na prática – que, de fato, ao longo de menos de 2 séculos de luta, foi, em menor ou maior grau, em regiões desfavoráveis ou não, testada na prática e produzido enriquecimentos a essa própria teoria. Os pormenores disso eu trato em outras ocasiões.

É claro que, porque o socialismo e o comunismo não são (não devem ser) meras imaginações paradisíacas – tal objeto ainda não era realidade concreta – era/é um objeto a ser construído, os escritos de Marx sobre socialismo e comunismo não se aprofundam mais do que podem. De qualquer forma, ao estudar a sociedade burguesa, Marx (e isto o próprio Netto sabe e ensina) estuda, com seu método dialético, o movimento do capital, e, portanto, pressupõe a sua crise e o seu fim, e as circunstâncias nas quais este fim gera a nova sociedade (lembremos da célebre página de O Capital em que se diz que: “Os expropriadores são expropriados”).

É o próprio Netto quem afirma, numa de suas conferências (https://www.youtube.com/watch?v=-DU5ENKjMqY), que não se pode tirar de Marx a sua perspectiva revolucionária – e tal perspectiva, sabe-se, não é mera utopia (Engels tratou de separar historicamente socialismo utópico de socialismo científico) e nem só desejo, mas também teoria.

Já décadas antes, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, há uma série de elaborações econômico-filosóficas singulares, das mais bonitas, a respeito do comunismo enquanto terreno da liberdade. Enfim, Marx apenas não se debruçou sobremaneira no socialismo e/ou no capitalismo porque não havia qualquer axiomática como no caso do capital, embora também tenha escrito algumas linhas (no livro III de O Capital e já no primeiro) sobre o comunismo primitivo – a antropologia da época (pensem em um Gordon Childe) ainda engatinhava… Hoje, um Sérgio Lessa talvez tenha mais respostas. Ou uma Eleanor Burke Leacock.

Marx não é um “teórico do capitalismo” e ponto. Suas últimas cartas mostram seu interesse pelas crises econômicas cada vez mais agudas e em menor distância entre elas, que deveriam derrubar de vez a sociedade burguesa (assim mesmo ele afirmava). Ou seja, há um “Marx pós-sociedade burguesa”, um enorme autor que será vigente ainda quando ela se transformar em outra coisa, e tratá-lo apenas como teórico do capitalismo é perder o tripé marxiano. (Lembrar do trecho dos Grundrisse em que Marx espantosamente torna-se nosso contemporâneo diante da automatização e até da robotização entre o trabalho e o capital.) Há uma insistência em todo Marx e em todo Engels a respeito do fim dessa sociedade, uma renitente insistência que nos parece, hoje, até mesmo uma ingênua certeza a respeito do fim próximo da sociedade burguesa! (Ai, não fossem o pérfido nazifascismo, a primeira guerra mundial, as repressões burguesas, os desentendimentos entre socialistas e comunistas, o oportunismo social-democrata, as mutações do capital e e outros fatores que danaram a revolução comunista internacional no início do século 20!)

Marx não é um teórico do capitalismo e ponto – a sua magnum opus é uma crítica aos teóricos do capitalismo (!), não só aos economistas vulgares, serviçais da burguesia, mas à própria Economia Política de Smith e Ricardo, que, nos primórdios do capitalismo industrial e diante duma burguesia revolucionária, louvavam esse sistema e essa nova classe como paladinos da distribuição para todos, o que não se concretizou, pelo contrário, só levou a crises periódicas e à acumulação de um lado e pauperização do outro… É certo que Marx jamais desejou ser apenas um teórico do capitalismo – ele deseja, ainda hoje (Netto, nessas mesmas páginas iniciais, escreve acertadamente que Marx continua vivo – e, conforme bisbilhotei, finaliza o livro com Drummond e “Imagine” de John Lennon!), deseja, enquanto houver capitalismo, ajudar a derrubar na teoria e na prática a propriedade privada dos meios de produção para a socialização e a emancipação!

Ps.: Pretendo escrever mais apontamentos, anotações e considerações à medida que eu vou lendo esta biografia que vem bem a calhar nos tempos atuais.

Início do livro. Frase de Hegel e poema de Jorge de Sena.
Citações iniciais.
Sumário.
Sumário.
Página final.
Contracapa.

Eleições municipais de 2020 – apontamentos conjunturais e estruturais

Eleições municipais de 2020 – apontamentos conjunturais e estruturais:
– Antes de mais nada, as eleições, tal como estão postas, ou seja, sob o capital, com regras eleitorais antidemocráticas e poderio econômico (fazendo com que a esquerda tenha que encontrar alternativas – assim como Guilherme Boulos, mais de 1 milhão de votos na cidade de São Paulo!, o fez com as redes sociais), não passam de pleitos para a administração do Estado burguês. Nada mais do que isso. Um candidato, por mais orgânico e unido à base social, deixa de fazer parte de sua classe ao entrar na burocracia estatal. É claro que as políticas de um governo nos afetam, é claro que um governo pode ser benéfico ou prejudicial e que as candidaturas se diferem, mas é a superestrutura institucional que se mantém intacta, que captura e terceiriza nossa autonomia e que deve ser alterada: só a construção de uma vanguarda popular e revolucionária será capaz de dar o real sentido “democrático” e orgânico das eleições, para que o governo sobre pessoas seja substituído pelos Conselhos sobre coisas e condução dos processos de produção (tal como escrevia Engels), superando a política pública, o assistencialismo e mesmo o reformismo. (Ainda sobre Engels, é preciso ler o importante prefácio que ele escreveu em seu ano final de vida, em 1895, no As Lutas de Classes na França, em que retoma toda sua luta com Marx – já morto há décadas – desde 1848, ano do Manifesto, avaliando que muita coisa tinha mudado e que tanto o direito ao voto universal quanto a campanha eleitoral eram importantes armas para a classe trabalhadora e para os socialistas, desde que não fossem fins.)
– Jair Bolsonaro não é “líder” de coisa alguma, Jair Bolsonaro não é nem mesmo um fenômeno de massas, conforme os resultados nos mostraram explicitamente. Foi dizimado. Ele perdeu feio, como, aliás, já perdeu em todos os seus apoios internacionais. Todos os seus candidatos derreteram, não arrancaram, perderam, quiseram escondê-lo da campanha, evitaram seu tom estúpido e boçal de extrema-direitalha. Um vexame. Tornou-se o tóxico dos tóxicos, o maior pé-frio do país. Envergonhado, teve de apagar uma postagem em que recomendava uma lista de candidatos. (Em SP, ele perdeu definitivamente, qualquer que seja o resultado do segundo turno para a prefeitura. O RJ é um caso à parte, deplorável, e merece uma profunda refundação que mitigue o evangelofascismo e o milicianato.)
– Além do continuísmo comedido, o grande vencedor quantitativo destas eleições foi o Centrão – DEM (26 cidades)/MDB (23 cidades)/PP (7 cidades) -, sobretudo na figura do DEM. O que é o Centrão? É uma direita sem ideologia, sem convicção, boa parte da qual apoiou – principalmente no Congresso – FHC, Lula, Dilma, Temer e agora Bolsonaro, sempre à procura de cargos e emendas, por isso é chamado de “fisiologista”, e só busca se manter na burocracia. Já domina a maior fatia da política brasileira e é decisivo para um governo continuar ou não. É um problema presente e para os próximos anos a ser resolvido para quem reivindica a grande política e deseja grandes transformações.
– O PT – que tem maioria de deputados federais -, mesmo sendo o partido com maior número de candidatos para o segundo turno (disputa 15 de 57 cidades, e venceu 178 cidades), desapareceu bastante do cenário municipal geral se compararmos com eleições anteriores a 2018 e 2016, ao mesmo tempo em que o PSOL se projetou em capitais e ganhou fôlego nas demais cidades de médio e grande porte. Na minha cidade natal, Santos, o candidato do PSOL passou o Partido “Velho” e outras velharias, até o MDB, isto é, com uma campanha mísera, ultrapassou empresários que colocaram muito dinheiro em suas campanhas. Em Santos, o PT – cuja geração é mais de esquerda e mais próxima da base social do que o PT de outras regiões do país – também surpreendeu e, mesmo diante do antipetismo, conseguiu o terceiro lugar com um candidato negro. Em São Paulo, porém, diante da chapa Boulos/Erundina, o PT foi fim de festa. Ainda é um partido forte, mas só tem conquistado os grotões. O que explica o desaparecimento generalizado do PT e a projeção populacional do PSOL? Não cabe apenas a justificativa da insistência midiática da “polarização” entre Lula e Bolsonaro, embora ela também conte. O resultado parece contraditório, já que o PSOL é ainda excessivamente pequeno-burguês, enquanto o PT tinha logrado ser um partido de massas. Não preciso citar os traumas pelos quais o partido passou nos últimos anos, que foram decisivos para alguma derrocada e declínio de projeto nacional. Trata-se da necessidade de uma radicalização diante de sistemas falidos e insatisfatórios – e de saber quem melhor desempenhará tal radicalidade, não uma radicalidade vulgar (extrema-direita), mas consistente e o mais orgânica possível de acordo com os anseios de transformação da população. É que, na ideologia, nos discursos e no programa partidário, a realidade se inverte: o PT desempenhou nos últimos anos um falseamento da representação cidadã, possui uma cúpula eleitoreira (que deveria ser expulsa pela militância socialista, fosse esta consciente e alfabetizada na teoria), se acoplou ou formou resquícios do “coronelismo” no Nordeste, possui no sudeste uma forte ala jurídica, excessivamente entranhada no sistema de Brasília, e só os seus nomes mais orgânicos e próximos da base social, que não se deixaram levar por alianças e conchavos, é que ganharam alguma confiança, enquanto o PSOL recupera a “pureza” do início do PT e construiu a imagem de partido “combativo”, “coeso” na hora de votar no parlamento, “raiz”, que não se dobra à direita e nem dá as mãos para a centro-direita, é tido pela mídia como “radical” , ainda que, na verdade, preserve a propriedade privada dos meios de produção e, pelo que tenho notado, em nada tem mostrado que irá se diferenciar estruturalmente do PT para além de política pública e programas sociais. Outro motivo, dessa vez geracional: o PSOL é constituído por uma juventude – que cresceu nos governos do PT  – disposta a mudar séculos de status quo, enquanto os “caciques” do PT são ainda a geração que, tendo derrotado a ditadura, manteve-se conciliatória e ingênua em relação à Constituição liberal de 1988.
– Houve uma explosão bem-sucedida para a vereança e prefeitura de negros, feministas, indígenas (ao menos 10 cidades), LGBTQIs, etc. É reflexo da sociedade brasileira, que começa amplamente a incluir a maioria, que paradoxalmente são os excluídos. É preciso, no entanto, senso crítico: incluí-los onde e como? O debate sobre o “identitarismo” é menos importante do que o debate sobre os limites institucionais e sobre a igualdade socioeconômica, o verdadeiro objetivo comunista. A representatividade por si só envolve uma cooptação do mercado, e nada mais. A revolução pode estar no gênero e no sexo e na cor de pele e na etnia, mas está sobretudo na classe social, na contradição das lutas de classes e na organização e solidariedade de classe. Eis um dos grandes legados do marxismo: a centralidade da categoria trabalho, que envolve todo o povo pela emancipação. Trata-se de elucidar que o capitalista é que continua sendo o heteronormativo, eurocêntrico ou estadounidocêntrico, branco, monoteísta, etc., que é do capital que surge a reprodução das mazelas estruturais e ideológicas, daí a necessidade de soldagem e unidade de classes em torno da teoria revolucionária.
– O número de brancos, nulos e de abstenções (este último por conta dos cuidados da pandemia), que tem sido crescente ao longo dos anos, foi expressivo em todo o país, tendo ultrapassado, em diversas cidades, a quantidade dos eleitos,  e merece –  merecem sobretudo os votos brancos e nulos, em que as pessoas, ao contrário das abstenções, saem de casa só para apertar tais teclas – uma pesquisa própria, séria, aprofundada, para que saibamos os motivos principais desse fenômeno, os matizes, as faixas etárias e as classes sociais. Existem alguns motivos já muito falados – a insatisfação com a política estrito senso, justificável por causa do excesso da “pequena política” de que falava Gramsci, e também por conta do acúmulo excessivo de notícias negativas, o niilismo antipolítico, etc. etc. etc. Trata-se de saber como resgatar esses cidadãos para uma construção transformadora, fora do “mais do mesmo”.

Jair Bolsonaro não pode disputar as eleições de 2022

Como podem associar Bolsonaro a 2022?! Tenho lido algumas dezenas de comentários, no rastro da eleição dos EUA que retirou o mafioso Donald Trump (que não aceita sair), associando Jair Bolsonaro à hipotética eleição presidencial de 2022 no Brasil. Para mim, é sintoma de esquerda que padece de fraqueza, depois de tanto traumas, em eterna “resistência” aos descalabros da direitalha e sem colocar as suas cartas na mesa, sem mobilização, e de cúpulas eleitoreiras! Bolsonaro não merece e não pode disputar mais eleições nem completar mandato, tem de ser derrotado já ano que vem. Esta deve ser a agenda da esquerda, considerando seus pontos fracos:
 
1) Ele não consegue emplacar nenhum candidato nestas eleições municipais de 2020, ao contrário, derreteram ou nem decolaram e tiraram ele da campanha, porque é tóxico. Povo não é bobo, não quer replicar o desleixo federal criminoso no âmbito municipal, sobretudo o desleixo na Saúde em momento de pandemia.
 
2) Sem Trump, para quem não passava de capacho, Bolsonaro se consolida como um zumbi internacional. Quem será aliado de seu obscurantismo diplomático terraplanista?
 
3) Seu filho mais velho está encurralado pela justiça. Queiroz era amigão do pai quando Flávio Bolsonaro nem tinha nascido, ou seja, está metido junto… É muita bandidagem. Além de peculato, lavagem de dinheiro, organização criminosa, há a sórdida relação dessa família inteira – família estranhíssima – com milicianos assassinos do RJ, alguns deles diretamente envolvidos no assassinato de Marielle… Vai chegar em Bolsonaro ou tem de chegar, ou pelo menos o mancha.
 
4) Ademais, é um desgoverno ruim, fraco, incompetente e absurdo, que não fez nada que preste e nem vai fazer. Sem auxílio emergencial, a rejeição aumenta. Os sinistros Guedes e Salles sempre por um fio… Mais de 50 pedidos de impeachment na mesa de um liberal meio conservador Rodrigo Maia (crítico do desgoverno, porém amigo das contrarreformas), processo de cassação da chapa a ser discutido no TSE (uma via melhor do que o impeachment, porque Mourão, embora aparentemente mais maleável, é grau 33 da Maçonaria, apesar da cassação poder levar à eleição indireta)… É verdade que a esquerda não pode virar “gado” do judiciário burguês (a importância de Pachukanis), mas estes são elementos que complementam o jogo conjuntural de forças a respeito de um projeto de país e outro rumo.

A grande polêmica entre materialismo e idealismo no marxismo

Texto ainda em construção! Apenas um esboço!

Lênin

A política de Zdanov e Stálin

A famosa expressão materialismo histórico e dialético, ou materialismo dialético e histórico, embora se deva principalmente ao pensamento sistematizado por Friedrich Engels (1820-1895) em finais do século 19, não se encontra literalmente nem em Karl Marx (1818-1883) nem em Engels, mas surge depois, com Josef Stálin (1878-1953), nas revistas e livros de filosofia da URSS (vide o compêndio Materialismo Dialético de 1922 da Academia de Ciências da URSS, Instituto de Filosofia) e no “Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico” de 1938, assinado pelo próprio Stálin (publicado no Brasil pela edições Horizonte, Rio de Janeiro, em 1945), em que este afirma que esta é a concepção do partido marxista-leninista. Um parágrafo que evidencia o caráter persecutório e direitista do Politiburo contrarrevolucionário sob Stálin foi excluído do volume das edições Horizonte, mas está presente na edição “Sobre os Fundamentos do Leninismo” da Editorial Calvino Ltda., Rio de Janeiro, 1945: “[…] Por aí se vê que extraordinária riqueza teórica era defendida para o Partido de Lenine, contra os ataques dos revisionistas e dos degenerados [grifos meus], e quão grande foi a importância da publicação de sua obra Materialismo e Empiro-Criticismo para o progresso do Partido Bolchevique.” Fazendo questão de nomear Stálin, um certo M. A. Leonov intitula o texto “O Materialismo Dialético e Histórico, Fundamento Teórico do Comunismo” (1955), em que também traz a mesma junção…
Lênin (1870-1924), duas ou três décadas antes de Stálin, sempre a partir de Marx e Engels, falava em materialismo filosófico, materialismo dialético e materialismo histórico (cf., por exemplo, “As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo“, de 1913, em que se afirma que “A filosofia do marxismo é o materialismo”). A expressão Materialismo dialético também aparece já em seu Materialismo e Empirocriticismo de 1909. Lênin já contrapunha materialismo contra idealismo, dialética contra metafísica, etc., mas para fins mais intelectuais do que deturpatórios. É notável, por exemplo, que em seu instigante texto “Sobre o significado do materialismo militante” (1922), para a revista filosófica e socioeconômica Pod Známeniem Marksizma (“Sob a Bandeira do Marxismo”), Lênin tenha conseguido equilibrar uma crítica lúcida ao sectarismo (“Um dos maiores e mais perigosos erros dos comunistas […] é imaginarem que a revolução pode ser levada a cabo só pelos revolucionários”) com a importância de educar trabalhadores com textos materialistas franceses do século 18 (algo que já era sugerido por Engels no Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna) e duma militância materialista contra o obscurantismo e a ignorância religiosas, que se apoiasse na ciência (ele chega a citar Einstein, o nome mais famoso da ciência mais avançada da época). Apresentei este texto leniniano para um jovem que havia sido evangélico; ele me contou que, a partir de então, virou materialista…
Um pioneiro dessa contraposição dicotômica oficial é Paul Lafargue (1841-1911), genro de Marx (escreveu reminiscências importantes sobre o sogro, anos depois de sua morte), um dos principais membros do movimento socialista francês, tendo desempenhado papel importante no desenvolvimento do movimento socialista espanhol, amigo próximo de Engels em seus últimos anos, tendo tratado de uma variedade de tópicos – direitos das mulheres, antropologia, etnologia, reformismo, mileranderismo, economia – sob uma perspectiva marxista bastante ortodoxa. Escreveu, por exemplo, o livro O Materialismo Econômico de Karl Marx, que Engels chegou a conhecer e cita em cartas; em 1895, ano da morte de Engels, profere palestra ao Grupo de estudantes Coletivistas de Paris, intitulada “Idealismo e Materialismo na concepção da história” , documento pioneiro numa contraposição mais explícita da dicotomia, frente à popularização do desenvolvimento das ciências na época. Nessa palestra, Lafargue alude ao “ambiente natural”, deixando claro que não se referia a uma idealização da Natureza enquanto “entidade metafísica”, “como fizeram os filósofos do século 18”, afirmando que “é o ambiente natural que forma o cérebro e os outros órgãos”.
György Lukács (1885-1971), como veremos no final deste breve apanhado que ora escrevo, se distanciará da dicotomia materialismo e idealismo, que, à época, eram identificada por ele como sectária e dogmática, recebendo a alcunha de “revisionista” por certos círculos identificados com o pensamento da burocracia soviética.
O marxista e marxilógo José Paulo Netto (1947-), Professor Emérito da UFRJ, em exposição na UnB em abril de 2016 sobre o método em Marx, rechaça com força tais dicotomias – dialética x metafísica, materialismo x idealismo -, e, em influência explicitamente luckásiana, certamente lhe transmitida por seu amigo, o conhecido marxista Leandro Konder, declara em determinado momento:
“[…] Em Marx, a concepção de teoria e a concepção de categoria é ontológica. Escutem, não tenham medo da palavra ontologia nem façam dela algo misterioso. Ontologia significa teoria do ser. É isto o que teoria significa. […] Em Aristóteles, que não é um velho da antiguidade, mas um companheiro nosso, um incômodo companheiro, na obra de Aristóteles a discussão da teoria do ser estava na parte além da física, estava na meta-física. A ontologia é aquilo que a filosofia clássica chamou de metafísica. Mas, como entre os ilustrados e entre os marxistas, metafísica virou xingamento, não é?… Porque vocês aprenderam nos cursinhos de Serviço Social, e não só nos de Serviço Social, que a dialética se opõe à metafísica. Quem sou eu para lutar contra essa tolice, que teve o aval de Engels?! Mas eu não leio as obras de Marx e Engels como as escrituras sagradas. Se eu não creio na Bíblia, vou crer em Marx e Engels?! Mas eles são teóricos, nem sempre acertaram. Ontologia é teoria do ser. Quando Lukács recupera essa palavra, que ele abominou, que ele teve medo de usar, quando ele recupera a expressão, a palavra ontologia, ele vai dizer que ‘em Marx eu tenho uma ontologia do ser social, eu tenho uma teoria do ser social’. Marx tem uma preocupação ontológica, seus enunciados se referem ao ser, ao modo de ser. Ontologia do ser social é o estudo do modo de ser e reproduzir-se o ser social. Ponto. É isso. Claro que se contrapõe a uma tradição muito forte e dominante no pensamento ocidental desde o Renascimento, e com forte ênfase no Iluminismo, pensem em Kant, que se preocupou em como conhecer. Marx se preocupou em como conhecer algo preciso, determinado. É claro que há em Marx uma epistemologia, uma teoria do conhecimento, mas, em Marx, não é a epistemologia que se subordina à ontologia, e sim o contrário. Mais-valia não é uma categoria intelectiva, criada aqui [na cabeça], ela é um modo de ser da realização do capital em face do trabalho. […]”
É válido atribuir à renitência implacável dos soviéticos em relação a materialismo x idealismo e dialética x metafísica não apenas como matéria intelectual e filosófica, mas como uma nova política para varrer o poderio contra a Igreja e a religião ortodoxa dos russos diante do marxismo? Sim, e este é um caráter que tem uma parcela positiva, em termos de transformação de valores e ideológicos. Lembremos das charges e pôsters do período.
Cartaz soviético dos anos 1930. “RELIGIÃO É VENENO! PROTEJA SUAS CRIANÇAS!” Do lado esquerdo, a igreja. Ao lado direito, a ESCOLA.
Dessa forma, não se pode , sem considerar os aspectos sociais e culturais da União Soviética; basta considerar que mesmo décadas e décadas de concepção materialista não apagaram os resquícios misticistas e religiosos daquela região, e notamos isso dando uma olhada na Rússia atual. O problema seria reduzir o embate filosófico a tais dicotomias; isto talvez seja necessário em um estágio inicial e introdutório, que deve amadurecer para outras oposições filosóficas no curso do próprio progresso intelectual do povo.

Politzer entre o marxismo e a deturpação “stalinista”

é, entretanto, apelativo, no bom sentido da palavra, isto é, incita um movimento revolucionário contra ordens estabelecidas, mesmo das religiões dominantes; motiva a militância jovem e a consciência crítica dos trabalhadores contra crendices. O perigo consiste no fato deste movimento, abandonando a dialética revolucionária, tornar-se ele próprio uma ordem estabelecida contra movimentos transformadores.
e pertinente para uma introdução ao marxismo, em que ; até chegarmos em uma amadurecimento filosófico com Lukács… Devo a Politizer nos anos 1930,
pretende estudar primeiro o materialismo, depois o materialismo dialético e, por fim, o materialismo histórico, estabelecendo as relações entre o materialismo e o marxismo.
ataca bastante a concepção metafísica do mundo e das coisas, difere as acusações de que a mais-valia da França seria a mesma da União Soviética (defendendo-a excedente para o Estado socialista, para os trabalhadores), mas
O termo materialismo dialético aparece mais de 50 vezes. Materialismo histórico, quase 20. Há uma página “sectarismo”, algo que jamais estaria nos textos do período de Stálin. Da política soviética, este livro resume-se a citar Lênin, e em uma das páginas lemos: ” Porque nenhuma sociedade fica imóvel, a socialista, edificada na União Soviética, está destinada, também ela, a desaparecer.”
Neste livrinho, os alunos de Politzer, a partir de suas aulas,
1) Por seu caráter de militância , não é mal começar  formação (o livro de Politzer é uma boa introdução, acrescido dos textos eventuais de Lênin), porque fornece o básico;
1b) Para , em caráter de transição, Teologia da Libertação de cunho marxista e a pesquisa de Rosa Luxemburgo sobre o cristianismo e o comunismo primitivos;
2) Deve-se amadurecer a formação com Lukács e sua contraposição entre racionalismo e irracionalismo;
3) Outros elementos bibliográficos da própria obra marxiana e de Gramsci, etc.
E, nesse particular, é preciso um alerta pouco divulgado, mas que faço questão de empreender em meu grupo: não confundir com o , que mostra como os correligionários de Stálin e do Politiburo contrarrevolucionário, mesmo antes da dissolução da III Internacional, feita para agradar as potências liberais dos Aliados, sobretudo EUA e Inglaterra, cooptaram praticamente todos os Partidos Comunistas, e fizeram dos PCs , décadas e décadas , que se prolongaram mesmo com os sucessores de Stálin, que, orgulhosos de terem mostrado seus crimes, também estavam cada vez mais distantes do marxismo.)

Engels, o grande historiador e iniciador da concepção dicotômica

Voltemos às “origens”. Nos debrucemos rapidamente na obra engelsiana. É nela que está a semente de Politzer e Lênin e outros.
Engels usa várias vezes, em livros, artigos de jornal e cartas (por exemplo, Carta a Laura Lafargue, 15 de julho de 1887 e Carta a Conrad Schmidt, 12 de abril de 1890) , a expressão materialistische Geschichtsanschauung (“concepção marxista da história”), ora referindo-se a Marx ou à influência de Engels em algum conhecido (por exemplo, o jovem Dr. Conrad Schmidt of Königsberg teria descoberto a materialistische Geschichtsanschauung na obra do escritor Zola, o representante mais expressivo do Naturalismo). Deve-se salientar que Engels, LUDWIG FEUERBACH E O FIM DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ (Obras Escolhidas de Karl Marx e Friedrich Engels. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, s/d. Vol. 3, pp. 171-207), e afirma:
“[..] revestia para a Igreja a seguinte forma aguda: o mundo foi criado por Deus, ou existe de toda a eternidade?
Segundo a resposta que dessem a esta pergunta, os filósofos dividiam-se em dois grandes campos. Os que afirmavam o caráter primordial do espírito em relação à natureza e admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de uma ou de outra forma (e para muitos filósofos, como para Hegel, por exemplo, a gênese é bastante mais complicado e inverossímil que na religião cristã), firmavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a natureza como o elemento primordial, pertencem às diferentes escolas do materialismo.
As expressões idealismo e materialismo não tiveram, de início, outro significado, e aqui jamais as empregaremos com outro sentido. Veremos, mais adiante, a confusão que se origina quando se lhes atribui outra acepção. […]”
Enquanto materialismo do século passado, ou seja, do século 18, mecânico, : “A segunda limitação específica deste materialismo consistia em sua incapacidade de conceber o mundo como um processo, como uma matéria sujeita a desenvolvimento histórico. Isto correspondia ao estado das ciências naturais naquela época e ao modo metafísico, isto é, antidialético [grifo meu] de filosofar, que lhe correspondia. Sabia-se que a natureza estava sujeita a movimento eterno.”
, no importante Anti-Dühring (1878), que formou a primeira geração de marxistas ao apresentar a sua ideologia comunista e a de Marx (anos depois da morte deste), e na elucidativa carta para Joseph Bloch, fala em materialismo moderno e concepção materialista da história e da natureza. A Dialética é citada sempre à parte, embora seja complementar. No artigo para jornal Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna, Engels escreve que, para os operários sociais-democratas alemães, o ateísmo “já fez a sua época”, que essa “palavra puramente negativa já não tem para eles qualquer aplicação, uma vez que eles já não estão mais numa oposição teórica à fé em deus, mas numa oposição prática: eles desembaraçaram-se simplesmente de deus, pensam e vivem no mundo real e são, portanto, materialistas”. Linhas seguintes, escreve que “[…] O conselho dos trinta e três adopta agora este programa com toda a sua visão materialista da história […]” (itálico meu). Porém, no célebre ensaio “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, lemos a seguinte explicação:
A consciência da total inversão em que incorria o Idealismo alemão levou necessariamente ao materialismo; mas não, veja-se bem, àquele materialismo puramente metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII. Em oposição à simples repulsa, ingenuamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo moderno vê na história o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas leis dinâmicas é missão sua descobrir. Contrariamente à idéia da natureza que imperava entre os franceses do século XVIII, assim como em Hegel, em que esta era concebida como um todo permanente e invariável, que se movia dentro de ciclos estreitos, com corpos celestes eternos, tal como Newton os representava, e com espécies invariáveis de seres orgânicos, como ensinara Linneu, o materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, revestem dimensões infinitamente mais grandiosas. Tanto em um como em outro caso, o materialismo moderno é substancialmente dialético e já não precisa de uma filosofia superior às demais ciências. Desde o momento em que cada ciência tem que prestar contas da posição que ocupa no quadro universal das coisas e do conhecimento dessas coisas, já não há margem para uma ciência especialmente consagrada ao estudo das concatenações universais. Da filosofia anterior, com existência própria, só permanece de pé a teoria do pensar e de suas leis: a lógica formal e a dialética. O demais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história.
Este parágrafo foi, sem dúvida, a base para as aulas de Politzer e para certas linhas decisivas de Lênin.
A dicotomia também é evidenciada na Carta a Conrad Schmidt (5 de agosto de 1890):
Houve também uma discussão no Volks-Tribüne acerca da distribuição dos produtos na sociedade futura, sobre se ela deverá acontecer segundo o quanto de trabalho [Arbeitsquantum] ou de outra maneira. Abordou-se a coisa também muito «materialistamente» contra certos fraseados idealistas sobre a justiça.
Já em seu tempo, entretanto, Engels tinha de exaustivamente desfazer equívocos. Intensos debates já se davam nos anos finais do século 19, após a morte de Marx e sobre a sua obra; Engels era o companheiro mais próximo de Marx que estava vivo, servindo de guardião ou paladino de seu pensamento. Da mesma carta, não sem falta de paciência:

A palavra «materialista» [materialistisch], na Alemanha, serve, em geral, a muitos escritores jovens de simples frase com que etiquetam, sem ulterior estudo, tudo e mais alguma coisa, isto é, colam esta etiqueta e, então, crêem ter resolvido a coisa. A nossa concepção da história, porém, é, antes de tudo, uma diretiva [Anleitung] para o estudo, [não é] nenhuma alavanca de construções à la hegelianos [Hegelianertum]. A história toda tem de ser estudada de novo, as condições de existência [Daseinsbedingungen] das diversas formações sociais [Gesellschaftsformationen] têm que ser investigadas em pormenor, antes de se tentar deduzir a partir delas os modos de ver [Anschauungsweise] políticos, de direito privado, estéticos, filosóficos, religiosos, etc., que lhes correspondem. Relativamente a isto, até agora, só pouco aconteceu, porque só poucos se puseram seriamente a isso. Relativamente a isso, precisamos de ajuda em massa, o domínio é infinitamente grande e quem quiser trabalhar seriamente pode conseguir muito e distinguir-se. Em vez disto, porém, as frases do materialismo histórico ([e], precisamente, de tudo se pode fazer uma frase) servem a muitos jovens alemães apenas para construir ordenada e sistematicamente [systematisch zurechtzukonstruiren], o mais rapidamente possível, os seus próprios conhecimentos históricos relativamente parcos — a história económica ainda anda de cueiros! — e para parecerem então muito formidáveis. E então pode, pois, vir um [Paul] Barth [que havia escrito o livro A Filosofia da História de Hegel e dos Hegelianos até Marx e Hartmann]  e atacar a coisa mesma que, pelo menos no seu meio [Umgebung], fora degradada a mera frase.

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Marx, a grande base

Marx, por sua vez, torna-se “materialista” a partir de 1843, sob a influência de Feuerbach (computado como “a fundação do verdadeiro materialismo e da ciência real, na qual Feuerbach faz da relação entre ‘homem e homem’ o princípio fundamental de sua teoria”, tal como lemos nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, que, na realidade, estão mais além de Feuerbach do que se percebe ou declara, porque, conforme conclui Ernest Bloch em O Princípio Esperança, a relação “homem e homem” desses manuscritos não é antropologia abstrata, como o é em Feuerbach, mas, ao invés, “a crítica da autoalienação humana (transferida da religião para o Estado) já penetra [no texto] no coração econômico do processo de alienação”.)
Assim, nas 11 teses (sobre ou contra Feuerbach, dependendo da tradução) de , Marx alude ao novo materialismo (que pode ser associado ao materialismo moderno citado por seu companheiro Engels), para se contrapor ao materialismo de Feuerbach e ao idealismo. Leiamos o início da primeira tese:
“A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias [ou seja, até – o de Feuerbach incluído – é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto [des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal. […]”

Marx tateia e , não contextualiza de maneira aprofundada  – esta tarefa seria de Engels, sobretudo após a morte do companheiro. O materialismo retorna nas teses 9 e 10: “O máximo que o materialismo contemplativo [der anschauende Materialismus] consegue, isto é, o materialismo que não compreende o mundo sensível como atividade prática, é a visão [Anschauung] dos indivíduos isolados na “sociedade civil”.” e “O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade “civil”; o ponto de vista do novo [materialismo é] a sociedade humana, ou a humanidade socializada.”

Em A Sagrada Família, escrito com Engels, Marx explica a gênese e o conteúdo de seu pensamento. Ernest Bloch afirma, em O Princípio Esperança, que é nesta obra que nasce a interpretação materialista da história em 1844, e com ela o socialismo científico. Conforme retoma Antonio Gramsci, do cárcere fascista: “No trecho sobre o ‘materialismo francês no século XVIII’, (A Ideologia Alemã) refere-se com bastante clareza à gênese da filosofia da práxis: é o ‘materialismo aperfeiçoado’ pelo trabalho da própria filosofia especulativa e fundido com o humanismo. É verdade que com esses aperfeiçoamentos do velho materialismo permanece apenas o realismo filosófico” (CC, 1, 320).

No esclarecedor posfácio à segunda edição do livro primeiro de O Capital – Crítica da Economia Política, Marx fala em materialismo (sem qualquer outra junção) e em método dialético (para contrapor o seu método ao de Hegel, “não apenas diferente, mas seu oposto direto”). Nesse posfácio, Marx usa as seguintes palavras, sem “ismo”s: Idee (“Ideia”), wirklichen (“real”), Ideelle (“ideal”), Materielle (“material”) ao afirmar que, para Hegel, o processo do pensamento é o “criador do real” e o “real”, apenas sua “manifestação externa, enquanto que para Marx, ao contrário, o “ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado” (tradução de Reginaldo Sant’Anna, Difusão Editorial S.A). E termina com estes parágrafos que constituem uma ácida provocação:

[…] Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional do invólucro místico.

A dialética mistificada tornou-se moda na Alemanha, porque parecia sublimar a situação existente. Mas, na sua forma racional, causa escândalo e horror à burguesia e aos porta-vozes de sua doutrina, porque sua concepção do existente, afirmando-o, encerra, ao mesmo tempo, o reconhecimento da negação e da necessária destruição dele; porque apreende, de acordo com seu caráter transitório, as formas em que se configura o devir; porque, enfim, por nada se deixa impor, e é, na sua essência, crítica e revolucionária.

Para o burguês prático, as contradições inerentes à sociedade capitalista patenteiam-se, de maneira mais contundente, nos vaivéns do ciclo periódico, experimentados pela indústria moderna e que atingem seu ponto culminante com a crise geral. Esta, de novo, se aproxima, embora ainda se encontre nos primeiros estágios; mas, quando tiver o mundo por palco e produzir efeitos mais intensos, fará entrar a dialética mesmo na cabeça daqueles que o bambúrrio transformou em eminentes figuras do novo sacro império prussiano-alemão.

Londres, 24 de janeiro de 1873

Karl Marx

A contribuição de Gramsci

Décadas depois, já no curso da primeira metade do século 20, o marxismo, para Gramsci, “supera (e, superando, integra em si seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicionais” (Cadernos do Cárcere, Civilização Brasileira, 6, 373). A teoria marxista é denominada ‘materialismo histórico‘, ou seja, atividade do homem (história) no concreto, aplicada a uma certa ‘matéria’ organizada (forças materiais de produção), à ‘natureza’ transformada pelo homem. Mas Gramsci alerta: “Deu-se maior peso à primeira parte da expressão ‘materialismo histórico’, quando deveria ter sido dada à segunda: Marx é essencialmente um ‘historicista’ etc.” (CC, 6, 359), ou seja, além de tratar da Economia, foi um autor de livros políticos e históricos.

Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci polemiza e diverge várias vezes do Ensaio Popular do prolífico revolucionário Nikolai Bukharin. (Um bom apanhado que serve como síntese para o assunto é encontrado no verbete “Materialismo e materialismo vulgar” do Dicionário Gramsciano.) No Manual de Bukarin, sobre o qual Gramsci se debruça e dedica-se em linhas inteiras nos Cadernos, o materialismo histórico é identificado com a pesquisa da causa última e única, problema esse, entretanto, que Gramsci vê como eliminado pela dialética de Marx (Q 4, 26, 445). Ainda que preserve de Engels de que a economia é, em última instância, o agente principal da história, Gramsci chama de “infantilismo primitivo” (CC, 1, 238) associar toda a flutuação da política e da ideologia (ou seja, toda a superestrutura) como expressão imediata da estrutura (a partir de tal conclusão, Gramsci desenvolve o conceito de bloco histórico, que recupera a visão marxiana do sentido dialético, mas com particularidades originais do próprio Gramsci).

O comunista sardo via resíduos de mecanicismo mesmo no materialismo histórico, como na unidade entre a teoria e a prática, em que a teoria se torna mero acessório da prática (CC, 1, 104). Para ele, os progressos das ciências modernas afirmaram o método “que verdadeiramente separa dois mundos da história e inicia a dissolução da teologia e da metafísica e o nascimento do pensamento moderno, cuja última e aperfeiçoada expressão filosófica é o materialismo histórico” (CC, 6, 366). O materialismo histórico, em Gramsci, é “uma reforma e um desenvolvimento do hegelianismo, é uma filosofia liberada de qualquer elemento ideológico unilateral e fanático, é a consciência plena das contradições, na qual o próprio filósofo […] não somente compreende as contradições, mas coloca a si mesmo como elemento da contradição” (CC, 6, 364). Trata-se de uma perspectiva em devir, em que a dialética já está contida. Diante de uma máquina, o materialismo histórico não estabeleceria sua estrutura físico-químico-mecânica (papel das ciências modernas), mas a máquina enquanto objeto de produção e de propriedade ligada a uma relação social de determinado período histórico.

Gramsci teve alguma notícia sobre História e Consciência de Classe, livro de Lukács; entra numa suposição a respeito de que se a dialética pode tratar apenas dos homens, não da natureza, afirmando que, caso tenha sido esse o tratamento do livro: “Penso que Lukács, insatisfeito com as teorias do Ensaio Popular, caiu no erro contrário: toda conversão e identificação do materialismo histórico com o materialismo vulgar só pode determinar o erro oposto, a conversão do materialismo histórico em idealismo ou até mesmo em religião” (CC, 1, 166).

Lukács e a grande mudança

No período revolucionário que se seguiu à Revolução Russa, Lukács e — em medida menor — Korsch introduziram a primeira fenda entre as ideias de Marx e as de Engels. Numa crítica deferente mas venenosa ao Anti-Düring, Lukács reprovou Engels — de um ponto de vista radicalmente hegeliano — por sua busca de uma dialética uniforme que ligasse a história humana e a história natural e, particularmente, por sua distinção entre ciência “metafísica” ciência “dialética”, sustentando que desse modo se obnubilava a dialética autenticamente revolucionária de Marx: a do sujeito e do objeto no âmbito da história do homem. Essa crítica não partia de um terreno puramente epistemológico. Com efeito, aos olhos de Lukács, o prestígio de que desfrutaram Darwin e a ciência evolucionista junto à II Internacional ligava-se intimamente a uma distinção adialética entre teoria e prática, e daí se derivavam o imobilismo e o reformismo da sua política. Embora a crítica de Lukács não tenha tido efeito imediato — ele próprio mais tarde se retratou — tratava-se de uma prefiguração da forma que assumiriam muitas outras críticas posteriores. (JONES, G. S. “Retrato de Engels.”. In: HOBSBAWM, E. (org). História do marxismo. Vol. I – “O marxismo no tempo de Marx”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 377-421).
“Zdanov apresenta, com Stalin, toda a história da filosofia como a luta entre materialismo e idealismo. A Destruição da Razão, ao contrário, que, no geral, foi escrita durante a guerra, põe no centro da reflexão uma oposição totalmente diversa, isto é, a luta entre filosofia racional e irracional. É verdade que os irracionalistas eram todos idealistas, mas eles também tinham antagonistas racionalistas-idealistas. Portanto, a oposição que exponho em A Destruição da Razão é totalmente incompatível com a teoria zdanoviana” (Lukács, Pensamento Vivido, página 132).
Importante – a crítica de Lukács não se refere a uma rejeição do materialismo e do idealismo e de seu antagonismo, mesmo na história da filosofia, já que ele usará abundantemente tais termos (inclusive a expressão “deformação idealista”) de maneira correta em obras posteriores (cf., p. ex., “O PARTICULAR À LUZ DO MATERIALISMO DIALÉTICO” em Introdução a uma Estética Marxista, escrito e lançado anos depois de A Destruição da Razão). A crítica lukacsiana é sobretudo à clivagem única de que toda a filosofia e sua história se dividissem entre materialismo e idealismo, entre dialética e metafísica.
Finalmente, por falar em Lukács, entremos na distância que evoquei no início deste texto, distância que este grande intelectual assume em relação ao marxismo-leninismo oficial de sua época. Lukács viveu muito – 86 anos – e em liberdade (ao contrário de um Gramsci, por exemplo, morto prematuramente aos 46 anos e preso), ocupou, hora ou outra, cargos políticos do “socialismo real”, podendo acompanhar mais de uma geração de marxistas e os desdobramentos entre revoluções sociais e o futuro da História.
Stálin, no texto supracitado do primeiro parágrafo, afirmava (há sempre dúvidas de que se era ele mesmo quem escrevia ou se eram seus correligionários ou um ghost writer oficial) que a clivagem principal na história da filosofia se daria entre o “materialismo” e o “idealismo”. Há uma série de deturpações contidas nesse pensamento estreito – não em relação aos vícios baratos da metafísica e do idealismo e da religião cristã, que podem ser combatidos no curso de uma revolução, porque são elementos reacionários a serviço das classes dominantes, mas no fato de que a burocracia contrarrevolucionária pressupunha, de cima para baixo, um esmagar inflexível da vanguarda revolucionária e seus remanescentes, ou seja, era, no plano prático, abertamente contra a própria dialética (a diferenciação que coloquei parágrafos acima entre o Princípios Elementares de Filosofia e o Princípios Fundamentais de Filosofia evidencia.)
Pois bem! Não muito tempo depois, porém, o grande Lukács escreveu um livro enorme e “maldito” – A Destruição da Razão, 2 volumes, de 1955, que o Instituto Lukács lançará em breve em tradução brasileira, como ação final do fim do Instituto -, argumentando que a divisão principal da filosofia, ao contrário de opor materialismo e idealismo, opunha o “racionalismo” ao “irracionalismo”. (Lukács toma como ponto de partida a confrontação Schelling-Hegel para desmascarar Nietzsche, Heidegger, etc. O “racional” – e “irracional” – sobre o qual ele se debruça refere-se principalmente ao famoso prefácio da Fenomenologia do Espírito, em que Hegel tomou posição contra o “formalismo monocromático” da intuição intelectual schellinguiana, mas – intencionalmente ou não, e esta é uma afirmação pessoal minha – Lukács acaba referindo-se também àquele “invólucro racional” que Marx alerta no posfácio de O Capital a respeito de Hegel). Assim, escapando da dicotomia oficial, Lukács abriu um importante flanco para resgatar autores decisivos dos porões da história do pensamento, incluindo alguns de seus antigos mestres (Georg Simmel e Max Weber), mesmo que fosse para criticá-los, romper com eles e superá-los.
Ou seja, ao situar no centro de sua análise o antagonismo racionalismo-irracionalismo, Lukács se posicionava de forma heterodoxa em relação ao marxismo-leninismo oficial da época. Em entrevistas para seu texto autobiográfico, Gelebtes Denken, Lukács lembra que, enquanto Stálin e seu correligionário Andrei Jdanov (este, aliás, chegou ao alto escalão do partido após o assassinato de Serguei Kirov, marcando o início do Grande Expurgo, deplorável em termos de marxismo e revolução!) tinham reduzido essencialmente a história da filosofia à luta entre materialismo e idealismo, sua ideia de escrever uma obra no centro da qual estava colocada a contradição racionalismo-irracionalismo não deixa de lhe atrair os raios (“foudres”) de certos sectários e dogmáticos pertencentes ao establishment socialista: “Os sectários”, afirma Lukács, “se mostraram seguramente muito escandalizados que o dogma de Jdanov sobre a oposição entre materialismo e idealismo como único objeto da história da filosofia – dogma tido por eles com aura de santidade – tenha sido ridicularizado e eles tentaram – através das mais grosseiras falsificações de citações – demonstrar o caráter ‘revisionista’ do livro.” (Lukács referia-se sobretudo ao texto de um certo Balogh, reproduzido em György Lukács e o revisionismo, publicado em 1960 na Alemanha Oriental, e que seguia o mesmo viés de revistas soviéticas. V. “A destruição da razão: 30 anos depois, 1986, de Nicolas Tertulian, tradução de Antônio José Lopes Alves para a Verinotio – revista online de filosofia e ciências humanas, n. 13, Ano VII, abr./2011 – Publicação semestral.)

Democratas e Republicanos

1 – Os Democratas e sua burocracia empresarial destruíram, há décadas, as tendências de esquerda e até socialistas do partido, sobretudo a partir dos anos 1960 com as lutas civis. Há um documentário com Norman Mailer em que ele conta isso. As pautas sociais – como saúde pública – não emplacam. Demorou para que um nome mais oficial, no caso Bernie Sanders, peitasse o poder econômico de Wall Street, ainda que só no discurso. No mais, há o sorriso falso e supostamente simpático de víboras como os Clinton ou mesmo Biden e Kamala, o liberalismo político e econômico e os objetivos bélicos do complexo industrial-militar, que é o que ainda garante (mas está no fim) o capital hegemônico (“imperialismo”) dos EUA. É muito importante brasileiros e latino-americanos, sobretudo comunistas, terem tal consciência diante de nossa elite dependente, para, então, saber onde é que podem estar os camaradas socialistas e internacionalistas dos EUA. Os desprezíveis Republicanos, por sua vez, que já tiveram um Lincoln, mudaram totalmente no curso do século 20 e resumem-se hoje à extrema-direitalha dos neocons (incitados sobretudo com Reagan e ressuscitados com Trump) e do tea party, ou seja, contra todas as ideias liberais da própria direita, com nacionalismo e supremacismo equivalentes ao nazifascismo europeu (e, de fato, historicamente, um influenciou o outro). Este tem sido o cenário deprimente dos EUA – direita versus extrema-direita, Estado capitalista bélico entre o low profile empresarial defensor de pautas identitárias (mera cooptação capitalista ilusória, que perpetua o homem, branco, heteronormativo e monoteísta no patronato e no poder econômico) ou o obscurantismo medíocre. Da perspectiva das duas revoluções – a da independência contra os colonizadores e a Guerra Civil entre industrialistas do Norte e escravistas do Sul, com os negros no meio, entre a exploração do trabalho assalariado e a exploração escravista,
em suas cooperativas socialistas do movimento abolicionista -, olhamos os muros contra imigrantes, o medo do terrorismo, as guerras provocadas pelo mundo, a prosperidade fruto dessas guerras e da dominação estrangeira em busca de roubar o petróleo ou do assassinato econômico, a megalomania espelhada no Império Romano (o fascista Mussolini prometia recuperar a grandeza do Império Romano aos italianos), o caos social entre o Black Lives Matter e grupos brancos armados, maior população carcerária do planeta, bilionários e trabalhadores com débitos médicos impagáveis, milhares de óbitos por COVID-19, permanente genocídio negro da polícia, etc. etc. etc. e tantos outros sintomas, trata-se dum fracasso retumbante em termos de país e de sociedade e dos sonhos cósmicos de humanismo, liberdade e democracia, fracasso muito maior que o da gloriosa Revolução Soviética, por exemplo.

2 – Nada mais esclarecedor do que o comentário chocante que li hoje mais cedo de uma mulher dos EUA – com a melhor das intenções! – nas redes antissociais, e que resume totalmente o imperialismo decadente da perspectiva deles, resume bem Biden e Trump, Democratas e Republicanos:

“Melhor o Biden, porque ele arranjará problemas em outros países, ao contrário de Trump, que arranja problemas aqui, internos.”

Carlos Marighella, 51 anos

 

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#Marighella51Anos Reunião de ensaios, cartas, manifesto e poemas de Carlos Marighella (1911-1969), incluindo textos que só circularam clandestinamente. Militante comunista desde a juventude, preso por Vargas, deputado federal constituinte (na linha de negocismo com a burguesia “progressista”) e, depois de romper com o PCB (que, considerando inviável derrotar a ditadura militar com armas, investiu em passeatas e protestos), funda em 67 o maior grupo de luta armada contra a ditadura – a Ação Libertadora Nacional (quando já não havia conversa com burguesia alguma, e até Constituições civilizadas garantem insurreição debaixo dum AI-5), Marighella, o “inimigo número 1” da ditadura terrorista, aquele que nunca chorou senão ao saber dos crimes e traição de Stálin, que lutou sem ajuda da União Soviética (Estado que respeitava as intervenções imperialistas dos EUA), o “mulato baiano que morreu em São Paulo”, que “ousou lutar, honrou a raça”, que aprendeu “a ler olhando o mundo à volta e prestando atenção no que não estava à vista”, que soube que “para viver com dignidade Para conquistar o poder para o povo Para viver em liberdade Construir o socialismo, o progresso Vale mais a disposição”, CHAMA, “de algum lugar do Brasil”, todos nós, “especialmente aos operários, agricultores pobres, estudantes, professores, jornalistas e intelectuais, padres e bispos, aos jovens e à mulher brasileira” para abolirmos “privilégios e a censura”: “estabeleceremos a liberdade de criação e a liberdade religiosa” (hoje em dia, acabar com a bancada evangélica e pastores exploradores, fechar templos como Angola), “eliminaremos os órgãos da repressão policial”, agentes da CIA e torturadores executados após “julgamento público sumário”, expropriaremos os capitalistas, latifúndio, terras, bancos, fábricas e empresas aos trabalhadores, camponeses, inquilinos, reformaremos a Educação para a “libertação de nosso povo e seu desenvolvimento independente”, “daremos expansão à pesquisa científica”, “retiraremos o Brasil da condição de satélite da política exterior norte-americana para que sejamos independentes, seguindo uma linha de nítido apoio aos povos subdesenvolvidos e à luta contra o colonialismo”.

Uma publicação compartilhada por Fernando Graça (@f.e.r.n.a.n.d.o.g.r.a.c.a) em

A hora e a vez de Gramsci

 

Fernando Graça e Antonio Gramsci.

Gramscistas, pelo seu próprio leque de repertórios, sempre estiveram entre os mais inteligentes do marxismo, mas, até agora, infelizmente, desagregados: um ou outro aqui, outro acolá; a maioria, ou os principais (a memória mais óbvia lembrará com justiça do importante trabalho de divulgação e organização gramscianas de Carlos Nelson Coutinho, ainda que incompletas, e de Marcos del Roio, com quem tive ótimo contato), não são orgânicos nos partidos nem “núcleos duros” como os leninistas e trotskistas, são confinados na academia tanto quanto os agudos “lukacsianos”. Dos governantes latino-americanos, somente o brilhante Chávez conhecia e ensinava Gramsci em comícios populares (https://youtu.be/xxnWoR61z30). Não há ainda um partido ou organização política gramscista; nem o próprio Partido Comunista Italiano de Togliatti chegou a ser o “Príncipe moderno” de Gramsci… No Brasil, a International Gramsci Society tem participantes simpáticos ou filiados ao PT, PCdoB (PelegodoB, segundo camaradas), PSOL, PCB sem que Gramsci predomine em nenhum desses partidos (que, aliás, não são organizações revolucionárias, com exceção histórica do PCB, que é simpático a Gramsci, um ou outro camarada vê com bons olhos meu projeto, sua sede em SP possui um quadro do italiano, mas só; nenhum deles senão o PT, que teve um ou outro intelectual gramscista e que passou pela experiência do poder político, poderia ter usado Gramsci lá atrás na comunicação e organização para se salvar, mas a cúpula eleitoreira, jurídica, e a enorme ojeriza do partido a qualquer teoria revolucionária impediriam o básico).

Isto precisará ser mudado!

Tal realidade, somada à defasagem ou má vontade dos próprios camaradas (pelos quais tenho afeto e/ou relação intelectual), todos excelentes marxistas, leninistas e trotskistas, em relação a Gramsci (para não citar certos preconceitos, de que Gramsci seria meramente “culturalista”, “revisionista”, “maquiavélico” – maquiaveliano, talvez, porque maquiavélico foi o Mussolini -, ou, em tom de admiração dispensável do ponto de vista praticista, “a perfumaria do marxismo” – e outros preconceitos, que se devem também à caricatura que a direitalha xucra fez e faz desse gênio aprisionado – “essa cabeça tem de ficar sem se pronunciar por uns 20 anos!”, disse o promotor fascista do seu caso – e deixado para morrer precocemente, sem contar certas leituras pequeno-burguesas, reformistas e “pop”s de Gramsci), tal realidade e defasagem é parte determinante da nossa crise de direção revolucionária dos trabalhadores!

Porque, se Marx e Engels são os formativos e se Lênin ou mesmo Trótski (que não construiu uma filosofia da práxis como Gramsci, e do qual ele, apesar do respeito intelectual, tinha enormes críticas) nos dizem quase tudo o que é necessário para a luta comunista e revolucionária, é a partir das estratégias teóricas e dos conceitos de Gramsci que resolveremos tal crise, mas de maneira integrada e orgânica, para usar um termo tão caro a ele. Por isso, é preciso estudar, ensinar e formar militância crítica em Gramsci. O meu empenho dos próximos meses e anos será o de defender esta visão.

O meu desejo dos últimos meses, e desde que ano passado desenvolvi grupos de estudos de Gramsci, tem sido o de estudar criar uma vanguarda a partir de Gramsci – sem esquecer Lênin (grande parte de Gramsci é uma “tradução” de alto nível ou tentativa de “traduzir” Lênin para seu tempo e espaço, mas Gramsci supera dialeticamente Lênin em assuntos primordiais), Rosa Luxemburgo, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, outros autores brasileiros e, INTRANSIGENTEMENTE, a defesa do tripé da obra marxiana e de Engels, tão esvaziada ou ignorada por (pseudo)marxistas e (pseudo)comunistas (a saber, a teoria do valor, a dialética e a perspectiva revolucionária, ou a crítica da Economia Política, a Filosofia materialista dialética e o socialismo).

A prática é o critério da verdade da teoria. O fato é que, enquanto teoria do partido, arrisco dizer que o marxismo-leninismo (mesmo o marxismo-leninismo-trotskismo, sendo vários camaradas deste rótulo do qual sou muito crítico, porque vejo como datado, bastante solidários e solícitos a mim) tem sido, não em sua totalidade, mas por si só, insuficiente, num impasse crítico – e, em certos pontos do nosso tempo histórico e espacial, mas não em sua totalidade!, anacrônico. Por muitos motivos que pretendo expor nos próximos meses e anos, sabemos que levam à burocratização e à centralização, ao invés da insistência na organicidade entre base e partido. Isso se deve ao pensamento dos russos (ou soviéticos) a partir de uma diferença basilar, que Gramsci viu bem, a respeito da teoria da revolução no Ocidente e mesmo a concepção de Estado entre os dois pólos. Gramsci elaborou uma inovadora e revolucionária teoria do partido enquanto centralismo orgânico, a partir da qual precisamos formar as novas gerações. Será difícil convencer os camaradas que já estão na luta e na militância desse fato, mas a minha argumentação, diante da realidade atual de conquistas e fracassos dos partidos de vanguarda, não é nem um pouco fraca.

É Gramsci — experiência revolucionária dos conselhos de fábrica; partido enquanto parte da classe, ao invés de cabide de cargos ou burocracia distante da base; intelectuais orgânicos; diferenciação entre marxismo ocidental / marxismo oriental; Estado ampliado e sociedade civil; guerra de movimento e guerra de posição; construção do nosso novo bloco histórico, (superestrutura-estrutura); estudo popular da filosofia da práxis (marxismo), que criará um novo senso comum e, criticando e superando a religião dominante, um progresso intelectual da massa; soldagem dos intelectuais marxistas e revolucionários com o povo-nação, etc. — o autor que pode resolver a crise de direção revolucionária que se arrasta há décadas e encontrará seu ponto decisivo nos próximos anos do “capitalismo tardio”, da extrema-direitalha e da esquerda insatisfatória, fraca e até liberalóide.

Vários partidos, legalizados ou não, do centralismo democrático ou de frentes, são simpáticos a este projeto de formação em Gramsci e de criação de intelectuais orgânicos. Obviamente, só até certo ponto, porque tal projeto ameaça cúpulas e a “pequena política“, tal como escrevia Gramsci. Entre os desafios, saber até onde a teoria do partido de Gramsci, bastante particular e ainda não testada na prática (eis outro motivo fundamental e positivo), seria tolerada ou aceita por eles. Um teste teórico-prático progressivamente, gradual… Entre os desafios, resolver a desagregação dos marxistas-gramscistas através da criação de marxistas-gramscistas integrados, mas não confinados na academia. Resta saber como e até onde irá minha/nossa práxis.

A atualidade de Gramsci

  • Atualidade de Gramsci” (1997), texto fundamental de Carlos Nelson Coutinho. É totalmente possível – e necessário – escrevermos um texto mais de 20 anos depois reforçando os pontos e adicionando outros mais que se fizeram evidentes a respeito da atualidade de Gramsci ao Brasil e mundo nessas últimas décadas.

Como começar a ler Gramsci?

Através de O Leitor de Gramsci, livro com escritos gramscianos pré-cárcere e no cárcere (divididos por temas), organizado por Carlos Nelson pela editora Civilização Brasileira. Também é muito importante adquirir o volumoso Dicionário Gramsciano da Editora Boitempo para consulta permanente! Os Cadernos do Cárcere não estão ainda completos no Brasil, mas Carlos Nelson e equipe fizeram amplo trabalho de tradução – são 12 volumes pela Civilização Brasileira. Todos estes estão na nossa pasta virtual do grupo! Um bom livro biográfico: Antonio Gramsci, o homem filósofo: uma biografia intelectual, de Gianni Fresu (radicado no Brasil), novo, lançado ano passado (2020). Os Prismas de Gramsci: a fórmula política da frente única (1919-1926), de Marcos del Roio, lançado em 2005 e com nova edição em 2019 (contra a direitalha e a extrema-direitalha?), serve (1) para pensarmos a fórmula política da frente única como uma estratégia revolucionária de fôlego ainda hoje e (2) apresentar o Gramsci corporificado, enquanto pensamento e ação, sem o abstracionismo costumeiro, pois é livro denso e histórico-político que trata concretamente de um período decisivo na vida de Gramsci e do movimento comunista – dos conselhos de fábricas à liderança no PCI, às voltas com a Internacional, até ser preso, período pouco explorado, ainda mais com profundidade e historicidade.

Como se sabe, Gramsci, apesar de talento para as Letras (cursou isto, inclusive), não publicou nenhum livro em vida – não teve tempo, pois, além da vida engajada atribulada de militante e depois de dirigente do Partido Comunista Italiano, logo foi preso pelos fascistas e morreu prematuramente. Escrevia textos para os jornais proletários. Na prisão, depois de muito pedir – sentiu a necessidade de deixar um legado – e sempre com o olho da censura sobre seus ombros, pôde escrever em 33 cadernos-brochura que hoje são chamados de Cadernos do Cárcere. Saiba mais neste relato importante aqui (“Antônio Gramsci, Chefe da Classe Operária Italiana”), escrito por Palmiro Togliatti, dirigente histórico do PCI e camarada de Gramsci.

Os verdadeiros marxistas e comunistas e seus quatro principais adversários internos

PELEGOS, (NEO)STALINISTAS E APOLOGÉTICOS ACRÍTICOS DE CHINA E COREIA DO NORTE, IDENTITÁRIOS LIBERAIS, CÚPULAS ENRIJECIDAS E ELEITOREIRAS

“Na luta contra eles, a crítica não é uma paixão do cérebro, mas o cérebro da paixão. Não é o bisturi anatômico, mas uma arma. Seu objeto é o adversário, que não procura refutar, mas destruir. O espírito daquelas situações já foi refutado. Não são dignas de serem lembradas; devem ser desprezadas como existências proscritas. Não há necessidade da crítica esclarecer este objeto frente a si mesma, pois dele já não se ocupa. Esta crítica não se conduz como um fim em si, mas, simplesmente, como um meio. Seu sentimento essencial é a indignação; sua tarefa essencial, a denúncia.” – Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.

“A dificuldade está agora no fato de que deve ser organizada uma nova
forma de resistência. Se tomamos, não o marxismo vulgar, mas o
verdadeiro marxismo, o marxismo de Marx, podemos encontrar lá
todos os elementos necessários para combater essas novas formas
de alienação.” – Georg Lukács, Conversando com Lukács, tradução de Giseh Vianna, Instituto Lukács, São Paulo, 2014, p. 68 (grifo meu).

É certo que o marxismo não é monolítico (e deve desmistificar e combater todo dogmatismo), muito menos em estratégias e táticas, nem mesmo o termo comunismo é monolítico; mas o marxismo em especial (e, sem ele, todo comunismo é frágil) possui algumas conquistas teórico-práticas bem assentadas e, até este momento, insuperáveis e irrefutáveis: a teoria do valor (a partir da qual se identifica a exploração do capitalismo), a dialética, a concepção materialista e a perspectiva revolucionária na compreensão das lutas de classes. (No Anti-Dühring, o “tripé” que abarca tais elementos é dividido em Economia Política, Filosofia e Socialismo.) É a partir deste legado, que se movimenta de acordo com as condições do presente e o acúmulo histórico, que se desenvolve a diversidade do marxismo e seus debates em torno de um objetivo muito claro, que é estudar e superar a sociedade capitalista e construir a sociedade comunista; mas não é sobre isto que trato aqui, e sim sobre pseudomarxismos e até pseudocomunismos na própria esquerda, que desprezam inconscientemente ou pisoteiam propositalmente ou até usurpam toda a teoria, degradando a prática.

Quem é marxista e comunista a vero, isto é, quem se senta para estudar a bibliografia revolucionária – a formativa e a contemporânea – e, com ela, sabe dos anseios históricos da população, mais profundos do que a limitada “política pública”, e que não quer ser militonto acrítico e/ou seguidor de falsários e carreiristas, enfrenta na luta política partidária interna terríveis obstáculos além dos nossos adversários diretos, a direitalha e os capitalistas. No momento, são estes os principais:

(1) Os pelegos. A velha peleguice de sempre. O “PelegodoB” (conforme dizem alguns camaradas), o sindicalismo do PT e outros. Mas, nos últimos meses, é talvez o PDT que tem representado mais explicitamente: Ciro Gomes (cujo livro novo rejeita o trabalhismo para enganar ou se deixar enganar por um charlatão feito o Mangabeira Unger, um mau reformista – como se vê, Harvard, de onde ele também pinçou a “Tábata Neoliberal” – alcunha de colegas, não minha -, formada pelo bilionário Instituto Lemann, que é sedento pela privatização da Educação e um think tank de cavalos de Tróia para a esquerda, parece ser o lugar preferido de Ciro Gomes), falastrão, fala sempre a favor dos trabalhadores e do “povo” (tentando emular o Brizola) diante das câmeras e do seu eleitorado de esquerda (vários deles, na verdade, playboys ou acadêmicos que pensam num desenvolvimentismo ultrapassado, diante da mutação toyotista do capital, que já mais nada desenvolve e cresce), enquanto, por trás, ele dá as mãos para o DEM e metade ou quase metade do partido vota com o terraplanista econômico, o ultraneoliberal Paulo Guedes, que já cada vez mais perde espaço no (des)governo Bolsonaro, um pilantra que, por sua vez, sacou como pode ser uma boa o voto de cabresto e as esmolas dos pelegos de esquerda… Pior é o PSB, que se diz “socialista” no nome, mas não o é na realidade, conforme podemos comprovar nas atitudes e votos do partido, sempre fechado com a direitalha em âmbitos estaduais e federal! O PT, que surgiu de importantes greves, vem do sindicalismo, não do marxismo, ou seja, da reivindicação por melhores condições de trabalho e salário. Portanto, tanto o informe de Marx que se desenvolverá em O Capital, “Salário, Preço e Lucro” (em que, em meio a greves por aumento de salários, ele propõe substituir o lema – segundo ele próprio – conservador “Um salário justo por uma jornada de trabalho justa!” pela divisa revolucionária “Abolição do sistema de trabalho assalariado!”), quanto o anti-sindicalismo de Lênin, são postos de escanteio. Com Marx morto, muitos “socialismos” falsários surgiram pelo mundo. (Lembrem-se do proto-nazista Spengler…). Já na velhice de Engels, que teve de escrever o AntiDühring, obra mestra que formou a primeira geração de marxistas, e em que ele elenca cronologicamente o trabalho assalariado junto a outras formas de opressão e exploração, como a vassalagem do sistema feudal, a escravidão, etc. O trabalho assalariado como forma moderna de exploração e de opressão não existe para a peleguice, portanto não há marxismo, esvaziaram a Economia Política e esvaziaram todo o marxismo; não se aprofundam numa superação do assalariamento para a elevação ontológica do ser social e dos trabalhadores (Lukács), nada fazem de concreto a respeito das lutas de classes. Pode parecer óbvio que seja assim em partidos de esquerda e de centro-esquerda, que primam por uma social-democracia cada vez mais vagabunda e impotente diante do capitalismo financeiro, que esmaga as forças produtivas, mas e quando trata-se de partido que leva comunista no nome e possui como símbolos a foice e o martelo (o governador Flávio Dino os queria retirar, mas os militantes do partido não deixaram)? É peleguice pura, pseudocomunismo, anti-marxismo; patifaria, canalhice, defasagem educacional, etc. Aliás, resta saber se a defasagem teórica é que gera a peleguice ou se é a peleguice interesseira e oportunista que gera a defasagem teórica, ou se ambas, dialeticamente… Ontem mesmo, um filiado do PelegodoB me disse que era “trabalhador de base”. Um bancário, um funcionário público se dizendo “trabalhador de base”! Defasagem educacional? O partido não ensina, e nem quer, porque precisa de sujeitos assim para se manter e manter o status quo. Um partido sério faria com que ele tivesse tempo para estudar o básico ou, se fosse um canalha, o expulsaria. Defende migalhas, esmolas. Um militonto do PCB outro dia também defendeu o simples assalariamento como “meta revolucionária” (para Marx, em seu informe, e para Engels, isto é conservadorismo), usando como exemplo a China! Entende-se por que não chegam na base – sem teoria, mal sabem o que é base. O trabalhador do setor de produção e os milhares de brasileiros da base da pirâmide social, levando este país nas costas diariamente na informalidade e no subemprego, somem diante de um bancário de classe média que se julga “trabalhador de base”, que diz que a Manuela d’Ávila (que nada sabe responder quando lhe perguntam sobre a ditadura do proletariado, que é apenas o oposto da ditadura da burguesia) é “linda e exemplo para as mulheres” (nada de Rosa Luxemburgo – não só com a crítica das armas, mas sobretudo, neste nosso momento, com a arma da crítica, pois os livros de Manuela são superficiais -, nada de Pagu Patrícia Galvão)…

(2) A nova geração do PCB, que começa nos idos de 2013 e 2015 (cuja representação mais óbvia é Jones Manoel, mas não só), com o esgotamento e o cansaço do importante núcleo duro do PCB anterior (por exemplo, na figura de um José Paulo Netto ou de Marcos del Roio, excelente intelectual gramcista), após décadas e décadas de decadência e crise ideológica, enfim, uma “nova linha” que hoje ilude filiados e mesmo não-filiados, nas redes antissociais (vários deles, dos dois grupos, chegam sempre até mim, por meus conteúdos, portanto tenho conhecimento de causa, além de ouvir fontes e ex-filiados): entre os superficiais, jovens carentes de líderes numa época sem lideranças, de capitalismo tardio e de vigilância, carreiristas, oportunistas, falsários, debilóides, pseudocomunistas e pseudomarxistas, uma verdadeira gangue de delinquentes “neostalinistas” revisionistas, ultra-idealistas em torno de um “mito” que nada nos diz respeito, extemporâneos, anacrônicos, e, no quesito do agora ou até como modelo a ser copiado (quem copia modelo é conservador, não revolucionário!), idólatras cegos, apologéticos das empresas da China (assim, como podemos ver, também eles, dizendo-se marxistas, pisoteiam o “Salário, Preço e Lucro” e a noção marxiana do trabalho assalariado enquanto exploração moderna) e do superaparato do Estado da Coréia do Norte. Notem que ataco menos esses dois países, e mais os apologéticos deles (um bom governo de esquerda precisaria se unir a eles contra o capital hegemônico, mas sem se arrastar às empresas da China ou aos mísseis e ao aparato militar da Coréia). Não pretendo, aqui, me aprofundar a respeito da Era Stálin, porque há ampla bibliografia a respeito a ser sopesada, dos dois lados, mas sem idolatria e fanatismo. Pretendo juntar, para seguidores e alunos, uma bibliografia marxista – o menos trotskista possível – contra Stálin. Criaram uma resposta automática a respeito do “neostalinismo”: que o termo não existe, etc., quando, na realidade, há bons textos sobre as suas origens. Ao olharem para trás, são “saudosistas” conservadores (lembrem-se do final do Manifesto Comunista, conclamando para olharmos para frente, isto é ser revolucionário), porque, tendo o tal “socialismo real” (para muitos, “capitalismo de Estado”) conquistado tantos valores concretos e, no geral, sido melhor do que o capitalismo, olha-se para frente, sob pena de comprometer o materialismo dialético; pior, idolatram um líder “muito cruel, muito rude” (palavras da própria filha e também de Lênin, 1 ano antes de morrer); defendem o Grande Expurgo (esses dias, expulsei um desses delinquentes de nosso grupo de estudos e de ação, porque disse que adoraria me “fuzilar”, “fuzilar um traidor” – ameaça que pode parecer infantil, mas grave, criminosa – imaginem se essa gangue conseguisse o poder); defendem uma burocracia tecnocrática contrarrevolucionária que perseguiu camaradas e revolucionários, mesmo da cultura de vanguarda, dizimou os conselhos dos Sovietes, Mandelstam, Pachukanis e centenas de outros, uma deturpação do marxismo (“socialismo em um só país”, ao invés da construção internacionalista de classe), etc. Se você crítica com vigor, é chamado de “trotskista” (não sou) e “fantoche do imperialismo”. Rasteirice pseudointelectual… O destino é o abismo, infelizmente; quadros mais sensíveis e mais cultos se afastam, desistem do estudo do marxismo, porque esses caras envenenam e contaminam tudo em seus submundos quase terraplanísticos… Esse revisionismo acrítico deságua numa defesa intransigente da China e/ou da Coréia do Norte, e também aqui esvazia-se tudo do marxismo: Gramsci (dupla de conceitos marxismo oriental / ocidental), a teoria do poder, a Economia Política, etc. para uma mera defesa apologética. Quanto à China e Coréia do Norte, as empresas chinesas e os mísseis norte-coreanos (nada contra um país soberano, erigido contra o gosto imperialista da Europa e dos EUA, se defender – o problema é que, esses dias, contaram-me que um desses juvenis, de nome Lucas Rubio, narrando a parada militar da Coréia, quase chorou, ou seja, o problema é depositar esperanças cegas nisso, com falta total de diplomacia, com espírito de tiete de torcida…), as empresas chinesas e os mísseis norte-coreanos estão pouco ligando para nós, revolucionários brasileiros e latino-americanos, mediante saber, ao invés dessa nojenta cretinice de militontos que, sem estofo teórico, ficarão perdidos quando essas formas entrarem em declínio e se transformarem, como tudo na vida: (A) O que a China e suas empresas e o que a Coréia do Norte e seu aparato militar farão diante de um processo revolucionário brasileiro e latino-americano? Como ajudarão? Quais serão suas condições? Lembrem-se que a União Soviética respeitou diplomaticamente as delimitações terríveis dos EUA nas ditaduras militares-empresariais que ajudaram a implantar em nosso continente. Lembrem-se que, quando Angola quis se emancipar pela via do socialismo, Cuba foi ajudá-la, não a União Soviética, que já havia deixado de ser uma superestrutura revolucionária há tempos… (B) O que faremos, extirpados os elementos do “Estado profundo” brasileiro, ou seja, aquele que sempre se mantém, na ditadura, na redemocratização, com Collor, FHC, Dilma, Lula, Bolsonaro, e extirpados capitalistas brasileiros importantes, ou seja, o que faremos quando tomarmos gradativamente o poder diante de uma nova diplomacia perante China e Coréia do Norte com nosso novo Estado? É isto o que deve ser debatido, escrito, estudado, planejado, ensinado! Todo o resto é lobotomização… Há uma renca de novinhos manipulados, lobotomizados nessas duas ondas supracitadas, enganados por “youtubers” que só buscam “likes”, rentabilidade, fama, holofote, e que são indigentes em marxismo. Nada ensinam sobre Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior e outros para a construção do socialismo brasileiro. Perda de energia, de tempo e de geração. Isso precisará ser impedido desde já. Tenho me empenhado, dentro das minhas limitações, a acordar incautos para estudarem a sério a teoria e desenvolverem uma prática muito mais madura.

Ps.: Mandei este presente texto em grupos de socialistas e comunistas, filiados em partidos ou não, militantes de movimentos sociais ou não. Recebi apoio, mas fui excluído de um deles, que passa dos 200 membros. Neste, que possui como membros até seguidores meus e também “neostalinistas” e pelegos com quem confrontei, recebi – mesmo expulso, através de camaradas – respostas muito frutíferas. Por exemplo, o criador, defensor explícito de Stálin, disse que este meu texto está corretíssimo em termos do que ele chama de “marxismo clássico”, e condena o meu “anti-stalinismo”. Diante de divergências e intensa discussão que meu texto provocou entre eles, este mesmo criador logo revela o caráter do pseudomarxismo “neostalinista”: “Aqui se passa a ‘mão na cabeça’ do período com Stálin”, escreveu ele. Depois: “1) Aqui se defende Stálin. 2) Aqui que se considera o período de Stálin ou Mao como períodos autoritários. 3) Se defende autoritarismo.” (Um aluno meu levantou a dúvida se não se trata de um “direitista” infiltrado, um “quinta-coluna”, pois defender autoritarismo assim, tão explicitamente?, mas não deve estar sozinho nessa mentalidade…) Nada a ver com ditadura do proletariado, que sempre significou uma contraposição à democracia farsante da ditadura do capital e da burguesa; trata-se da defesa do autoritarismo e da burocracia contrarrevolucionária. Ao defender isso e admitir minha coerência teórico-prática, apenas comprovam este meu alerta…

(3) Os “identitários” puros e pós-modernos (o pós-modernismo abandonou a centralidade da categoria Trabalho e a compreensão das lutas de classes, que unem a todos pela emancipação), ou seja, arrivistas ingênuos ou conformados que, sendo ou sentindo-se excluídos e diversos do modelo majoritário dominante, em busca de melhores condições subjetivas e materiais, não possuem qualquer outra pauta senão serem aceitos e cooptados pelo mercado (pelo modelo majoritário dominante do mercado), que através deles vai lucrar e espoliar. São talvez os menos nocivos do que os outros três, apenas não lhes foi apresentada a teoria revolucionária de acordo com suas realidades étnicas, sexuais, biológicas, etc. De qualquer forma, a casca é nociva. Construção revolucionária? Mudança estrutural? Não. Entregues ao liberalismo… Não lhes ensinaram ou não querem saber que o capitalismo é que deve ser combatido, pois o capitalista é o homem, branco, heteronormativo, etc. (Por outro lado, possuem toda razão de não quererem um socialismo só de brancos, só de homens, só de heteros, daí a necessidade da junção da causa.) Ao invés de tal visão, competem entre si. Não há, aqui, nada de Ângela Davis (comunista e marxista). Feministas, negros, LGBTs são levados a competirem dentro da própria classe em troca de um emprego, de um cargo maior, maior visibilidade, maior salário, salários iguais e afins. Há parlamentares do PSOL batendo palmas para uma Maju Coutinho como “representatividade”, quando, na realidade, trata-se de exemplo personalista, e de uma emissora que defende o neoliberalismo e a privatização diariamente, logo que promove o racismo. (Lembrem-se do livro do Diretor Geral de Jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel: Não Somos Racistas. Uma Reação aos que Querem nos Transformar Numa Nação Bicolor…)

(4) As cúpulas enrijecidas e eleitoreiras da democracia liberal burguesa, que lançam os quadros de cima para baixo para fins do grupelho político alçar vôo às buracracias federal, estadual, municipal. São determinantes para a peleguice. Existem em todos os exemplos anteriores, mesmo em partidos ditos socialistas e comunistas (afinal, a estrutura forma e mantém a superestrutura…), e em outros mais. Há, por exemplo, uma cúpula jurídica ferrenha no Partido dos Trabalhadores, e eu tenho insistido que esse partido só irá se renovar de verdade quando a “Juventude Socialista do PT” expulsar a cúpula eleitoreira e tomar a direção do partido, o que só aconteceria se tal Juventude fosse, mesmo, socialista e tivesse uma educação teórico-prática, da qual a cúpula jamais investirá para não perder seu pequeno poder… O PSOL, por exemplo, é um partido de frentes e, mesmo possuindo alas como a Revolução Brasileira e a Esquerda Marxista, amarra todo o partido numa lógica pequeno-burguesa de “manada”, sem perspectiva revolucionária, adequação ao sistema. É de se perguntar se o “centralismo”, portanto, não seria mais benéfico para o marxismo. Mesmo o Comitê Central do PCB ainda não conseguiu resolver a crise de direção, porque pensa totalmente em termos de Lênin (um partido que se confunde com o próprio Estado e não consegue mitigar a burocracia). Gramsci, com o seu “Príncipe moderno”, falava de um partido que fosse parte da classe, em contraposição a um partido com intelectuais dirigentes e filiados ou funcionários não necessariamente ligados à classe trabalhadora, que só se ligam a essa classe num momento de ruptura (espontaneísmo equivocado, ao invés de construção hegemônica). Para Gramsci (Q 13, 36, 1.634), que defende no cárcere fascista o centralismo democrático orgânico, é preciso “uma contínua adequação da organização ao movimento real, uma capacidade de temperar os impulsos da base com o comando pelo alto, uma inserção contínua dos elementos que desabrocham do mais profundo das massas no quadro sólido do aparato da direção que assegura a continuidade e a acumulação regular das experiências […] é ‘orgânico’ porque leva em conta o movimento, que é o modo orgânico de revelação da realidade histórica, e não se enrijece mecanicamente na burocracia”. O Partido emerge e realiza-se, assim, como instância reguladora e de estabilidade para a hegemonia (revolução) das forças de base e de seus grupos afins e aliados, não para o enrijecimento do núcleo dirigente central, que, em processo avançado, se se distanciar da sua vocação histórica, pode não só cair no centralismo burocrático como também não passar dum “órgão de polícia” (Q 14, 34, 1.692) de critérios discriminatórios. Isto, por enquanto, ainda não foi concretizado, daí a importância da teoria do partido gramsciano… Enfim, tanto num como noutro caso, é o oposto das cúpulas eleitoreiras e enrijecidas de que falo, que não só não são intelectuais (ou não têm sido) como tampouco descentralizam poder ao povo, filiados, militantes, sendo que estes últimos fazem papel de “militontos” (pior ainda quando são militontos eleitoreiros sem perspectiva de profunda transformação estrutural). Campanhas eleitorais e voto – o próprio Engels, sem abidcar da tomada de poder, admite num percuciente prefácio de As Lutas de Classes na França, quando ambos os direitos se consolidaram pela primeira vez na história a partir da luta do trabalhadores – são oportunidades de chegarmos na classe trabalhadora, de a organizarmos para governar e de divulgar nossa programática e luta. Mas a maior parte das cúpulas veem apenas eleições, mais nada; as eleições são um fim. Substituíram as lutas de classes, ou melhor, não percebem ou não querem perceber as lutas de classes permanentes e diárias em troca de disputas políticas e politiqueiras apequenadas. O país pode pegar fogo, não importa, isto apenas servirá daqui a 4 anos como justifica para esses irresponsáveis atacarem os candidatos adversários, todos eles lançados de cima para baixo pelas cúpulas, conquistarem a máquina pública, para administrarem o Estado burguês, ao invés de disputarem em todos os momentos posições revolucionárias na sociedade civil a fim de um novo Estado… Mas não pensem, não, que os partidos ditos revolucionários se diferenciam disto. A farsa é grande e ainda mais hipócrita neles. PCO ou Unidade Popular (este último ainda precisa esclarecer o fato de ser ou não braço institucional do PCR) não escapam disso. Os incautos da militância não notam. Uma vez tendo conquistado assinaturas do povo para a criação do partido, estes são esquecidos e, encalacradas nos vícios institucionais da ordem burguesa, sem abrir as listas partidárias para base, filiados e militância, com programas muitas vezes realmente socialistas (papel aceita tudo), contra as “leis burguesas” (mesmo enviando mensal ou anualmente comprovações para as instituições burguesas, para o TSE ou o TRE!!!), arrastam base e militância para apanhar em desvantagem na rua da polícia, pois nunca conseguem hegemonia, e tampouco se empenham de verdade para tal, porque estão conformados no poder institucional de cúpula. Este tem sido o nosso grande gargalo, o calcanhar de Aquiles, o círculo vicioso das esquerdas, que precisará ser resolvido de vez. Uma militância institucional revolucionária (parece paradoxo, revolução e instituição) precisa derrubar essas cúpulas pelegas a fim de começar a “traduzir” para nosso tempo e espaço o partido tal como teorizado por Gramsci e marxistas brasileiros.

A frase do Emicida é falsa

A frase do Emicida — “esses boy conhece Marx, nóis conhece a fome” — é falsa. Como ele não passa mais fome, é também uma frase preguiçosa de quem não quer estudar e aprender o porquê das coisas serem como são, de quem não tem brio para aprender o que os “boy” sabem. Tenho alunos proletários e até subproletários… A perifa tem de aprender também, nem que seja para cuspir. Apesar de retratar a distância real e problemática entre intelectuais revolucionários e povo, é falsa e superticial principalmente porque NÃO BASTA CONHECER A FOME. Tem gente com fome capaz de votar em Bolsonaro desde que ele dê umas esmolas. Tem gente com fome que, mais tarde, sem fome, apoia a direita, porque ganhou uns direitinhos a mais ou uma vida menos pior. Daí a importância da teoria e de Marx. Ou seja, nada de ideologicamente transformador passou por aquela consciência, apesar do material. A elite quer exatamente que conheçamos só a fome, mais nada, e que desprezemos Marx, Lênin, Gramsci, Rosa Luxemburgo, Marighella, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior et al.

Minha paixão pela teoria deu-se justamente pela empatia com o povo e os trabalhadores e por minha própria condição socioeconômica. Qualquer senhor de escravizados e qualquer patrão de empregados precisam de jovens, homens e mulheres bem alimentados para a roda da acumulação e da exploração continuar girando – e que justamente conheçam o horror da fome para, temendo sentir fome de novo, evitem-na rendendo-se à espoliação da ditadura do capital. Quando, na realidade, o que importa são os apetites que existem após se matar a fome! A frase da canção do Titãs é mais sábia: “A gente não quer só comida…” Quando, na realidade, o que importa é saber como solucionar de vez a fome! A frase de Tupak dita numa entrevista, diante do absurdo: “Eles conseguem dinheiro para a guerra, mas não conseguem acabar com a pobreza.” Os capitalistas tremem diante da teoria revolucionária! Portanto, é preciso conhecer Marx e vários outros, sim, senhor, para saber, por exemplo, o que é lúmpen; para sair da mera fenomenologia e saber por que se passa fome; para romper o círculo vicioso; para se conscientizar e mudar o sistema capitalista que gera fome de um lado e fartura do outro, etc. etc. etc.

7 de outubro de 2020

Hoje em dia, Hegel seria chamado de isentão: dialética que contempla esquerda e direita

Um breve comentário sobre o enorme e influente Hegel

Fazia parte do Clube Jacobino, mas foi o grande teórico do Estado burguês e elogiou Napoleão, que afastou a velharia medieval, mas que incorporava a nostalgia monárquica. Transformou “Deus” na Idéia (ou Conceito, Begriff) de uma maneira mais lógica, cortando tanto para a religião (ou para o idealismo filosófico) como para a ciência moderna. Para alguns, sua crítica ao Terror Jacobino é contrarrevolucionária; para outros, é construtiva. Ao defender a revolução, contraditoriamente observava a “ordem do mundo” influída por canhões, baionetas, corpos e espírito, ou seja, sem ser reacionário, mas tampouco materialista. Não à toa, como se sabe, seus alunos ou os alunos de seus alunos se dividiram entre os velhos hegelianos e os jovens hegelianos de esquerda. Os velhos defendiam o império austro-húngaro-prussiano e deram, com irracionalidade e deturpação, nos nazistas. Os novos (entre eles, o grande Marx, que na maturidade superou e inverteu o método dialético hegeliano – cf. o seu esclarecedor posfácio à segunda edição de O Capital) defendiam mudanças, e os melhores, que sabiam que a transformação não estaria nas mãos da amorfa burguesia alemã tampouco nos resquícios aristocráticos, mas dos trabalhadores, viraram comunistas.

Ps.: Apesar disso, não tenho visto bons autores de direita, tampouco autores de direita hoje em dia se debruçando em Hegel. Apenas a esquerda. A direitalha anda irracional, num nivelamento rasteiro, torpe, tosco, canalha. O capitalismo tardio só gera barbárie. Nada de cultura, nada de pensamento. A direita superestrutural, por defender o capital, não geraria outra coisa. Deve ser derrotada em todos os cantos e espaços, em nome da vida social, política, econômica e ecológica.

30 de setembro de 2020

Quem são os latifundiários que incendiaram e destruíram parte do Pantanal com aval de Jair Bolsonaro e Ricardo Salles

“Índios e caboclos”, conforme mentiu o calhorda Jair Bolsonaro na ONU, são os responsáveis por tantas imagens de horror de animais mortos, carbonizados e feridos (o Pantanal virou um cemitério de animais a céu aberto) e biomas destruídos por queimadas sem precedentes? (É o maior número mensal de focos de incêndio na história.) É claro que não, e esse cinismo assassino nem faz questão de esconder o seu propósito sórdido. Incêndios tomaram quase metade das terras indígenas no Pantanal; os dados indicaram que as queimadas começaram em terras privadas e os indígenas, que amam a natureza, relataram que “fogo veio de fora” e “destruiu tudo”. Além disso, invasões em terras indígenas aumentaram 130% no primeiro ano do (des)governo Bolsonaro e 113 indígenas foram assassinados, conforme relatório anual do Cimi, cujo coordenador reforçou: “É o aval do governo Bolsonaro que autoriza invasores a desmatar e devastar terras indígenas.”

Reportagem do G1 (“agro é pop” mesmo?) de 24/09/2020 revela alguns dos verdadeiros responsáveis pelas queimadas no Pantanal em 2020, indiciados pela Polícia Federal: 4 latifundiários(nomes deles mais abaixo), além de nomes de outros proprietários, empresários e desmatadores que eu coletei e que não estão na mídia hegemônica. A direitalha, há muito tempo, desconstruiu a imagem do MST – Movimento dos Sem-Terra ou da Funai como se os trabalhadores camponeses e os indígenas fossem os bandidos do campo, quando, na realidade, os verdadeiros bandidos são os fazendeiros, grileiros, madeireiros e garimpeiros, que roubam e concentram terras. Ainda de acordo com a própria PF, os incêndios foram causados propositalmente pelos latifundiários – nesta época de clima seco – para transformar a vegetação preservada em pasto. “Você extrai a mata nativa, e aí fica a pastagem para o gado”, explicou o delegado Alan Givigi, coordenador da Operação Matáá (“fogo” no idioma guató, homenagem aos indígenas que vivem nas proximidades atingidas), que apreendeu celulares, notebooks e outros materiais nas fazendas. O delegado de PF Leonardo Raifaini afirmou que a investigação, já adiantada, logo traria maiores informações e “(…) Se houve intenção de destruição do bioma ou não. Mesmo que seja para renovar pastagem.” Gado, carvão, cana e soja estão por trás do desmatamento milionário e criminoso no Pantanal, conforme revela reportagem do De Olho Nos Ruralistas, observatório do agronegócio no Brasil.

Tivéssemos um governo minimamente de esquerda ou socialista, apoiado no aparato de inteligência séria da PF, e esses agropecuaristas bandidos teriam suas terras expropriadas para os camponeses, trabalhadores do campo e para os indígenas. O horizonte seria rumo à propriedade coletiva e comunitária.

Grandes fazendeiros apoiadores da política ecocida do condenado por crime ambiental Ricardo Salles (aquele que quer devastar tudo, “passar a boiada”, enquanto o país queda paralisado diante dos óbitos e notícias sobre a pandemia de COVID-19) e Jair Bolsonaro, no rastro de sua explícita permissão destrutiva. A fala psicopática e chocante de Salles – que, quando quis ser deputado federal pelo Partido “Novo”, recebeu apoio de mais de 100 empresários do agronegócio e de setores de arma e munição – está alinhada com a de Bolsonaro (“esse governo é de vocês”, ele já disse para ruralistas): enquanto o país assistia sua natureza ser queimada e os óbitos de coronavírus subirem para mais de 140 mil, Bolsonaro se reunia com ruralistas para lhes parabenizar: “Vocês não entraram na conversa mole de ficar em casa.” Noutras palavras, estavam “passando a boiada”, porque “ficar em casa” – ou seja, seguir as medidas restritivas recomendadas pela ciência infectológica para barrar o contágio da pandemia – “é conversa mole de fracos”. Para estes inimigos da natureza e da vida humana, o lucro destrutivo no campo e empresarial nas cidades não pode parar, deve seguir apesar das vidas humanas e da própria vida natural do Planeta Terra. Paradoxalmente, durante essa mesma visita bandida em Mato Grosso, o avião presidencial teve de arremeter por causa de muita fumaça, mas nem esse susto fez o desprezível reconhecer a gravidade das queimadas.

O (des)governo agiu o tempo todo com perseguição e ataques contra ONGs e salvadores das florestas, cortou verbas dos brigadistas em mais da metade destinadas para a proteção ambiental, esvaziou por completo o orçamento de políticas ecológicas e estimulou em discursos e ações o ecocídio assassino para o lucro de ruralistas, agronegócio, oligarcas e capitalistas. Eleito em 2018, mas já antes da posse, Bolsonaro havia declarado: “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena. Já com o governo assentado, um levantamento revelou que mais de 100 propriedades foram autorizadas de maneira irregular em terras indígenas na Amazônia a partir de nova portaria dos serviçais de latinfundiários, que usurparam a Funai.

Mas as últimas queimadas no Pantanal passaram de todos os limites históricos, atingindo áreas de preservação, matando animais e destruindo biomas numa área equivalente ao Rio de Janeiro. Araquém Alcântara, um dos bravos fotógrafos que se empenha em registrar in loco um dos cenários mais importantes e bonitos do país, diz que o Pantanal está irreconhecível e que somente a chuva pode regenerá-lo.

Abaixo, os nomes dos 4 fazendeiros criminosos, indiciados pela Polícia Federal na Operação Matáá através de imagens de satélite e perícia local:

  • Hussein Ghandour Neto, proprietário da fazenda Califórnia, que possui 1.736 hectares de terra e onde os incêndios começaram em 30 de junho;
  • Pery Miranda Filho (preso em flagrante por porte ilegal de armas e munições, solto no dia seguinte por determinação judicial) e sua mãe Dania Tereza Sulzer Miranda, proprietários da fazenda Campo Dania, que possui 3.061,67 hectares de terra e onde os incêndios começaram em 1° de julho;
  • Ivanildo da Cunha Miranda, proprietário da fazenda Bonsucesso, que possui 32.147,06 hectares de terra e onde os incêndios começaram em 14 de julho;
  • Antônio Carlos Leite de Barros, proprietário da fazenda São Miguel, que tem 33.833,32 hectares de terra e onde os incêndios começaram em 16 de julho.

Ivanildo da Cunha Miranda, o único com rosto à mostra pelos jornais e maiores informações numa pesquisa rápida, é delator da operação Lama Asfáltica, em que detalhou esquema de propina da JBS para o governador do MT, André Puccinelli (MDB).

Há poucas informações mais substanciais sobre os outros, o que comprova que a oligarquia e a burguesia a serem derrotadas e expropriadas atuam praticamente às escondidas, enquanto os agentes públicos direitistas que lhes servem recebem todo holofote.

Hussein Ghandour Neto, Pery Miranda Filho, Dania Tereza Sulzer Miranda, Ivanildo da Cunha Miranda e Antônio Carlos Leite de Barros são os latifundiários, de acordo com investigação da Polícia Federal, diretamente envolvidos nas últimas queimadas criminosas no Pantanal com o aval do (des)governo ecocida de Jair Bolsonaro e Ricardo Salles.

Outros nomes importantes

Os maiores multados por desmate e crimes ambientais no Pantanal desde 1995 até 2018, de acordo com o Ibama e o De Olho Nos Ruralistas, observatório do agronegócio no Brasil: Geraldo Albanez, Oswaldo Cid Nunes da Cunha, Agropecuária Santa Mariana Ltda, Eurydes Beretta Júnior, Silvio Eduardo Burani, José Maria Costa, Black Ind. Imp. Expo. E Comércio De Carvão Vegetal Ltda – Me, Fazenda Ribeirão Agropecuária Ltda, Reginaldo Farias Santos, Simasul Siderurgia Ltda, Roberto Pedro Tonial, Raul Amaral Campos, Renato Alves Ribeiro, MMX Metálicos Corumbá Ltda (empresa de Eike Batista), Brpec Agropecuária S/A. Saiba mais na reportagem do De Olho Nos Ruralistas: “Eike Batista, Vale e família Steinbruch já receberam multas milionárias por desmatar Pantanal”.
Segundo reportagem do De Olho nos Ruralistas, a empresa é a BRPec Agropecuária, que recebeu em 2018 uma autuação de R$ 58 milhões, recorde entre os multados por desmatamento no bioma desde 1995, mais que o triplo da segunda maior multa; o banqueiro André Esteves, que já foi CEO do BTG Pactual, tem uma fortuna de cerca de R$ 25 bilhões.

É um trabalho extenso para uma pessoa só pesquisar e coletar todos os fazendeiros do Brasil a serem expropriados e os responsáveis diretos e indiretos pelo desmate dos anos anteriores, deste ano de 2020 e de 2019, em que o aval de Jair Bolsonaro e Ricardo Salles escancarou as queimadas. Pior: seria perigoso, num país em que jornalistas e ambientalistas são assassinados por mexerem com interesses do status quo… Para isto, há o aparato de inteligência e especialistas técnicos de institutos e organizações sérias. Para se ter uma ideia, depois da Operação Matáá ser iniciada, órgãos estaduais começaram a investigar origem do incêndio em 35 fazendas (!) de Mato Grosso do Sul. Ainda que talvez a maior parte destas tenham sido atingidas como consequência do descontrole do fogo, os fazendeiros, mesmo prejudicados, defendem as queimadas e o desmate para pastagem, e tratam-se de propriedades invadidas, roubadas, concentradas a custa de guerras seculares e sangue.

Mais ainda: descobriu-se, ao longo dos dias, que um dos focos de incêndio criminoso em Mato Grosso, que destruiu 90% do Parque Encontro das Águas, o principal refúgio de onças do Pantanal e do mundo (a Ampara Silvestre mostrou nas últimas semanas resgates e cuidados desses animais), teve origem em uma fazenda clandestina, isto é, que não aparece em dados oficiais, conforme estudo elaborado pelo Instituto Centro de Vida (ICV) com imagens fornecidas pela Agência Espacial Europeia (ESA). Tudo indica que a fazenda foi invadida e ocupada por grileiros de terras, que dificultam os órgãos públicos de encontrar responsáveis pelas queimadas e outros crimes ambientais.

No entanto, citarei alguns nomes muito relevantes, sem os quais a natureza do Brasil seria mais protegida e menos danificada.

Vale lembrar, além dos 4 nomes acima apontados pela própria Polícia Federal, o nome de Raimundo Cardoso Costa, defensor explícito de Jair Bolsonaro, latifundiário morador de São Paulo, investigado pela PF no início da operação por focos de incêndio em uma de suas duas propriedades do Mato Grosso, e que, para o Repórter Brasil (matéria importante sobre o fornecimento desses agropecuaristas para gigantes do agronegócio – “Fogo no Pantanal matogrossense começou em fazendas de pecuaristas que fornecem para gigantes do agronegócio“, https://reporterbrasil.org.br/2020/09/fogo-no-pantanal-mato-grossense-comecou-em-fazendas-de-pecuaristas-que-fornecem-para-gigantes-do-agronegocio/), afirmou que o incêndio em sua fazenda começou após a explosão de um carro (?!) e que, após as revelações, notícias, investigações, “Estão detonando a gente” (os fazendeiros do Pantanal), e, reclamando da regulação ambiental, veio com o mesmo vitimismo automático de sempre dos direitofrênicos:

“Tudo que acontece no Brasil é culpa do Bolsonaro. A mídia acha que quanto pior, melhor. Temos que ajudar o presidente a melhorar o Brasil.”

Parece a fala de um personagem caricato e padronizado. Lembra o fanatismo nazifascista, embora a direita brasileira e latino-americana seja, desde a Segunda Guerra, antinacional… O que será “melhorar o Brasil” para esses latifundiários? Destruí-lo para pasto e lucro de meia dúzia?! É isto ser “patriota”?! “Riscar os índios, nada esperar dos pretos”?!

Tanto Raimundo Cardoso Costa quanto José Sebastião Gomes da Silva, que tiveram focos de incêndio identificados em suas fazendas nas queimadas gigantescas de 2020, que chocaram o Brasil, vendem gado para empresas da família Maggi (Amaggi e Bom Futuro), fornecedoras de gigantes brasileiras como JBS (donos: José Batista Sobrinho e seus filhos, sobretudo Wesley Batista, Joesley Batista, Júnior Friboi – que estampam nos últimos anos os noticiários e as páginas políticas e policiais), Marfrig (de Marcos Antonio Molina dos Santos) e Minerva (da ‎‎Família Vilela de Queiroz). Essas gigantes são bem conhecidas por históricos de alta corrupção, propina (não há nada que não se faça hoje no capitalismo, sistema estruturalmente corrupto, já que o lucro está acima de tudo, sem propina), ilegalidade com fornecedores indiretos, ações bilionárias e, apesar de iniciativas aqui e ali de “sustentabilidade”, desmatamento.

André Maggi (1927-2001), tido por coniventes ou alienados como “herói matogrossense”, merece uma nota. Não há espaço suficiente neste texto para se aprofundar numa biografia cavada sobre esse nome, que estampa ruas e locais (o De Olho Nos Ruralistas tem as informações mais detalhadas e importantes), mas basta, como introdução, dizer que relatoria da PF comprovou que Maggi escravizou trabalhadores em suas fazendas já nos anos 1980. Em documento “confidencial”, um trabalhador relatou ter sido açoitado com um chicote de couro em fazenda pertencente à Agropecuária Maggi. No site oficial da Agropecuária, lemos o seguinte título: “AMAGGI | Desenvolvimento Sustentável para o Agronegócio”.

Eraí Maggi, presidente do Grupo Futuro, sobrinho de André Maggi, já posou sorridente com Jair Bolsonaro no hospital no final de 2018, quando este ainda era candidato. Aliás, Eraí Maggi possui ou tenta proximidade com todos os presidentes e figuras políticas de destaque, porque é considerado o maior produtor de soja do mundo.

Outro membro conhecido da família é Blairo Maggi, filho de André Maggi e primo de Eraí. Já em 2005 foi “premiado” com o Motosserra de Ouro do Greenpeace. Foi senador eleito em 2010 pelo Partido da República (PR) de Mato Grosso. (Em 27 de fevereiro de 2013, assumiu a presidência da Comissão de Meio Ambiente, Fiscalização e Controle do Senado Federal, apesar da resistência dos parlamentares ligados ao movimento ambientalista.) Também foi “Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil” durante o governo ilegítimo e golpista de Michel Temer (2016-2019). Durante a Operação Carne Fraca, falou em  “desburocratização do agronegócio” para diminuir a fiscalização sanitária. Mesmo durante a comoção nacional após o rompimento de barragem em Mariana, da mineradora Samarco, causando prejuízos ambientais, econômicos e dezenas de mortes, Blairo havia proposto o fim do licenciamento ambiental. Não para por aí. Durante a 22ª Conferência do Clima em Marrakech, uma dos encontros mais importantes da ONU, minimizou o conflito agrário, afirmando, sobre o número de mortes de ambientalistas no ano, que “é só 50” (!), quando, na verdade, naquele ano houve, no mundo, 200 mortes do tipo, sendo 50 só no Brasil, o que fez o país o campeão mundial de assassinato de ambientalistas.

Pois bem. Outros nomes de fazendeiros que precisam ser considerados, ainda que não estejam naquela lista da Operação Matáá da PF, senão como desmatadores diretos nos últimos anos e sobretudo a partir do (des)governo Bolsonaro, ao menos defensores de queimadas ou causadores de queimadas anteriores:

Há outros, muito possivelmente. Será importante um mapeamento de todas aquelas 35 fazendas investigadas a priori na Operação Matáá.

Encontramos vários desses nomes acima envolvidos em processos trabalhistas. Não é preciso dizer que, mesmo com a abolição da escravatura e o fim da escravidão enquanto modo de produção econômico, nos grotões e rincões do país ainda há pessoas em situações análogas à escravidão ou semiescravidão, nas mãos desses latifundiários e/ou de seus antecedentes.

Qual é a solução?

Processos, multas, indenizações aplicados aos fazendeiros, reflorestamento, cassação dos políticos envolvidos podem ser importantes num primeiro momento e a curto e médio prazo, mas a solução do problema não está dentro da justiça da ordem burguesa ou oligárquica. O que reproduz o crime ambiental possui uma causa a ser mitigada e extirpada. Este texto já forneceu, acima, nomes e informações substanciais para este trabalho revolucionário.

O “capitalismo verde”, que lucra com florestas em pé sem desmate, e que é a aposta dos países desenvolvidos da Europa que já fizeram uma reforma agrária, tampouco é a solução, ainda que num primeiro momento estratégico seja preciso se unir a esse setor para derrotar a oligarquia do atraso. Há uma parte do agronegócio – minoritária no Brasil? – que é contrária aos desmatamentos. São iniciativas de bioeconomia, agrofloresta, biotecnologia, bioindústria, etc. Há quatro dias, inclusive, por pressão interna e externa de investidores diante das imagens e das notícias do ecocídio na Amazônia e no Pantanal, gigantes multinacionais se uniram contra o desmatamento, o que foi recebido como boa notícia e sem críticas por parte da esquerda. Este comportamento da esquerda só pode surgir por uma defasagem da (ou preconceituosa ojeriza à) teoria revolucionária e anticapitalista.

Embora num primeiro momento possa parecer mil vezes melhor a sustentabilidade contra o obscurantismo destrutivo de parcelas atrasadas (o Brasil, mesmo no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, tem áreas que ainda lembram a Rússia feudal, pré-revolução – não fosse a Revolução Soviética, a Rússia possivelmente seria hoje ainda uma enorme Mongólia, como o Brasil é, em boa extensão, um enorme pasto, por causa dos latifundiários), pretender conciliar ambientalismo com capitalismo é cair na utopia, na ingenuidade, supor algo que jamais existiu: um capitalismo não-predatório, capaz de um desenvolvimento auto-sustentável em relação aos recursos ambientais, ou um capitalismo que não seja produtivista (produção pela produção), que não persiga em sua sanha o valor de troca, a acumulação do capital e todos seus descalabros sociais, políticos, econômicos, ecológicos, humanos, etc. (Lembremos que o pensamento prático de Karl Marx começa a amadurecer dentro do comunismo e de uma teoria da revolução a partir do furto de madeira, conforme o filme recente O Jovem Marx representa bem. “Todo o artigo de Marx sobre os furtos de madeira é uma defesa corajosa, inflamada e indignada dos miseráveis perseguidos e explorados pelos proprietários das florestas”, escreve Michael Löwy, historiador da esquerda, cujo livro A Teoria da Revolução no Jovem Marx eu uso na bibliografia dos meus grupos de estudos e formação.)

A solução tem de ser estrutural. O resto é paliativo. O planeta não pode mais esperar. Mudar a estrutura contempla grandes reformas estruturais que ataquem interesses dominantes e revolução ecossocialista.

O que é o estrutural? Nele estão o modo de produção, os meios de produção, as relações de produção, as lutas das classes, ou seja, tudo o que forma e mantém a superestrutura política. O Manifesto Comunista, na parte final, deixa claro que, onde quer que estejam, os comunistas colocamos a questão da propriedade como central para uma alteração do status quo. Os gráficos abaixo explicam.

Ser revolucionário é agir no estrutural. Uma revolução ocorre a partir de uma condição, de uma situação revolucionária em que haja a necessidade da base, sua vontade organizada a partir da sua conscientização e a insustentabilidade do topo, mas precisamos desde já agitarmos e disseminarmos nossas pautas e construirmos, no plano das ideias e da realidade, uma construção revolucionária, não só a partir da conquista do Estado, mas em posições da sociedade civil.

As terras e fazendas devem ser expropriadas e socializadas, e todos os envolvidos, sobretudo os patrões e fazendeiros grandes, responsabilizados por tribunais revolucionários formados por indígenas, camponeses e trabalhadores do campo, unidos aos trabalhadores urbanos e sua luta pela socialização da propriedade privada dos meios de produção – fazendas, terras, indústria, grandes empresas, matérias-primas, etc.

28 de setembro de 2020

“Cristofobia” é “mimimi” de cristofrênico cristofascista que lucra com as mentiras da religião…

“Cristofobia” é “mimimi” de cristofrênico cristofascista que lucra com as mentiras da religião. Mero véu. Cristãos distanciados das lutas sociais são ou iludidos ou ilusores: sacrificam as reivindicações por uma vida melhor nesta Terra em troca da alienação social, política e econômica que lhes promete um “deus” que lhes vai servir sopinha quente em algum lugar nenhum da eternidade, enquanto fulminaria o resto de sua suposta criação, mas toda essa imaginação ultrapassada, irracional, arreal, anacrônica, absurda, extemporânea serve apenas para camuflar as lutas de classes e enriquecer bandidos da fé e da politicagem e da elite econômica, mantendo o status quo, antes feudal, escravocrata e agora capitalista. Não existe “cristofobia”, porque tampouco existe “cristo”. Talvez tenha existido um Jesus histórico, que expulsou os mercadores do templo e foi perseguido pela direitalha da época. Também existiram os primeiros cristãos: comunitários. Na realidade, existem LGBTfobia, racismo, machismo. E até – permitam-me – COMUNISMOFOBIA: o medo de quando a massa e a classe trabalhadora criticar e superar, através da filosofia da práxis, o atraso e o obscurantismo, num progresso intelectual, em conjunto com fechamento dos templos evangélicos – grande parte deles sonegadores, criminosos e ilegais -, bloqueios de bens e contas bancárias de pastores milionários, cassação da concessão pública do proselitismo religioso cínico na TV, desmantelamento da bancada da Bíblia fundamentalista no Congresso, que só defende a espoliação do povo, reconfiguração do papel do Vaticano de acordo com a Teologia da Libertação de cunho marxista e outras medidas urgentes e decisivas que rapem fora pela raiz o projeto teocrático.”Cristofobia” é “mimimi” de cristofrênico cristofascista que lucra com as mentiras da religião. Mero véu. Cristãos distanciados das lutas sociais são ou iludidos ou ilusores: sacrificam as reivindicações por uma coisa melhor nesta Terra em troca da alienação social, política e econômica que lhes promete um “deus” que lhes vai servir sopinha quente em algum lugar nenhum da eternidade, enquanto fulminaria o resto de sua suposta criação, mas toda essa imaginação ultrapassada, irracional, arreal, anacrônica, absurda, extemporânea serve apenas para camuflar as lutas de classes e enriquecer bandidos da fé e da politicagem e da elite econômica, mantendo o status quo, antes feudal, escravocrata e agora capitalista. Não existe “cristofobia”, porque tampouco existe “cristo”. Talvez tenha existido um Jesus histórico, que expulsou os mercadores do templo e foi perseguido pela direitalha da época. Também existiram os primeiros cristãos: comunitários. Na realidade, existem LGBTfobia, racismo, machismo. E até – permitam-me – COMUNISMOFOBIA: o medo de quando a massa e a classe trabalhadora criticar e superar, através da filosofia da práxis, o atraso e o obscurantismo, num progresso intelectual, em conjunto com fechamento dos templos e igrejas evangélicas – grande parte delas são antros de lavagem de dinheiro, sonegação e outros crimes -, bloqueios de bens e contas bancárias de pastores milionários, cassação da concessão pública do proselitismo religioso cínico na TV, desmantelamento da bancada da Bíblia fundamentalista no Congresso, que só defende a espoliação do povo, reconfiguração do papel do Vaticano de acordo com a Teologia da Libertação de cunho marxista e outras medidas urgentes e decisivas que rapem fora pela raiz o projeto teocrático.

23 de setembro de 2020

Sobre “Arte e cultura em Trotsky”, de Flo Menezes

Arte e cultura em Trotsky

Um aluno me enviou. É um texto com equívocos e ingenuidade. Mais do que isto, é um texto superficial demais. Para tratar de marxismo e arte, não é bem esse o foco e autor adequados, ou pelo menos o são apenas como uma breve introdução ou passagem.

Não sei se terei tempo de intervir ponto a ponto, mas, felizmente, temos um Lukács, no marxismo, que ensina sobre a estética, coisa que Trótski nunca fez. Com Breton, ele caiu no anarquismo, não numa construção comunista nova. A preocupação de Trótski, todo o debate naquele período foi o de se o Estado soviético deveria ou não intervir na produção artística. É uma questão importante, mas meramente estatal. (No Brasil, sobretudo, sempre foi explicitamente a direitalha a perseguir a cultura e os artistas, e o termo “arte de direita” se tornou uma piada, especialmente nos últimos tempos com Alvim, Regina, Bozo.) Isso nada tem a ver com um debate profundo sobre arte e marxismo. Sem esse norte (arte e marxismo), e preso à questão da burocracia ou do stalinismo, o texto cai em diversos equívocos ingênuos – “liberdade”, “autonomia da arte”, etc. É um debate extemporâneo, porque o nazismo também exercia poderio policial contra a cultura e os artistas “degenerados”. Definitivamente, não é nem de longe essa a questão que importa no marxismo. Qualquer pessoa ética sabe que um artista não pode ser reprimido nem a arte e a cultura do povo serem ditadas por uma burocracia tecnocrata de cima para baixo sem a participação dos artistas e desse povo, mas isso não é pretexto para se separar o fazer artístico de princípios marxistas – inclusive estéticos, ou estaremos incorrendo numa ideologia puramente liberalóide, metafísica, burguesa e de profunda inconsciência sobre de onde se parte e para onde se aponta com o fazer artístico. Mesmo o uso de um Adorno não é o totalizante no tema. Até quando o texto supostamente apresenta um exemplo – Mário Pedrosa -, não desenvolve nada sobre arte, seja a forma ou o conteúdo, que, aliás, não são dualistas, um não existe sem o outro. Apenas usa Pedrosa para atacar uma vez mais o stalinismo. Estamos na época do Grande Expurgo?! Isso é fácil. Qualquer um faz e já fez. É um texto ralo, sem conceituação. Marxismo não se resume a política estatal.

https://www.marxists.org/portugues/lukacs/1956/estetica/estetica-marxista.pdf

Frequentemente, parece que só cabe aos trotskistas chamarem os outros de stalinistas e falarem mal de Stálin. Até já se esqueceram da burguesia e dos burgueses, mal atacam os capitalistas – os principais inimigos parecem ser os stalinistas. Estes, por sua vez, precisam continuar matando Trótski. É uma pobreza para a teoria marxista… Ficam amarrados a picuinha de russos, e russos mortos!… Uma querela mui interessante do ponto de vista histórico, mas não para conceitos e categorias fundamentais no marxismo. Meu intuito foi o sempre de sair dessa prisão, e por isso tive altas discussões com os 2 lados.

Na questão da concepção da arte, Gramsci (no Brasil, vide Waldemar Cordeiro) e Lukács foram os mais instigantes e formativos no marxismo. Da Rússia, a vanguarda revolucionária, nada melhor do que um próprio artista, ou seja, aquele que se empenha e trabalha numa práxis, tendo, portanto, a soberania para tratar da questão: então, o próprio Maiakóvski citado no texto, que escreveu um livro sobre como fazer versos, sobre poesia e marxismo, um livro absolutamente engajado e popular, em que não restam dúvidas do caráter comunista do poeta, afirmando, por exemplo, que o bibliotecário precisa ser um propagandista do livro comunista. Pena que o texto acima só fale do suicídio… Não cita nada sobre a concepção maiakovskiana da arte. Flerta com a fofoca, “triângulo amoroso” … e stalinismo. É pouco, é pobre.

https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxzYW5kcmFtc3Ryb3Bhcm98Z3g6ZTBhZDRlODQwYmRhY2M0

“Sem forma revolucionária não há arte revolucionária” – Maiakóvski.

Arte não é e não pode ser solipsismo. A arte não é voltada a si mesma, porque os instrumentos vêm do modo de produção, a arte muda de acordo com as condições socioeconômicas, e uma obra se abre para o seu tempo com propósitos políticos de agitação, denúncia, emancipação, crítica. Ao menos, tudo o que eu faço e fruo em arte corre nesse sentido… Brecht… Pasolini… João Cabral… Chico Buarque… Todos os grandiosos artistas, de todas as áreas, possuem essa veia. Qualquer um que age no sentido da suposta autonomia está procurando uma desculpa para fazer o que bem entende e se livrar da sua própria responsabilidade social, nada mais.

O que Lênin tem a ensinar para a esquerda brasileira neste momento (I)

Lênin tem muito o que nos ensinar. Talvez noutro momento, com tempo maior, eu traga mais elementos teórico-práticos lenianos. Por exemplo, o discurso de unificação de todos os setores antagônicos entre si, que aponta e identifica os verdadeiros inimigos da classe trabalhadora e da massa, não os bodes expiatórios (*), vítimas ou alvos da extrema-direitalha para desviar as urgências, mas contra os verdadeiros causadores da crise, da fome, da pobreza, da exploração urbana mundial, do latifúndio, da guerra mortífera – a burguesia, os capitalistas (**); no entanto, essa poderosa retórica só é melhor assimilada numa fase um pouco mais madura de consciência e caótica degradação generalizada. Por enquanto, rapidamente, fiquemos apenas com um fator importante que trata da pré-revolução e das estratégias gerais das esquerdas no Brasil no momento da conjuntura atual.

https://www.instagram.com/p/CD6wXw8n_67/?igshid=1kgg6kfwgrnv7

Este usuário (contra Bolsonaro) tem uma parcela de razão, ainda que superficial. Meu objetivo, aqui, rapidamente, é aprofundar o entendimento para uma teoria da revolução, com Lênin, citado pelo mestre Florestan Fernandes em seu célebre ensaio “O Que é Revolução?” (1981), cujos trechos – fotografados por mim – encontram-se no final desta página. Só preciso, antes, contextualizar alguns pontos.

O comentário acima, escrito no perfil do Instagram da deputada federal Jandira Feghali (autoproclamada comunista), não considera a estrutura corrupta de comunicação e de fakenews do (des)governo, a qual as esquerdas perderam o bonde (a extrema-direitalha, paranoica em Antonio Gramsci, o faz financiada por empresários), que é decisiva no trabalho ideológico (tanto que, mesmo a esquerda parlamentar apostando no “quanto pior, melhor”, a direitalha usaria isso contra nós, e os próprios eleitores de esquerda ficariam indignados se os parlamentares não apoiassem, por exemplo, o auxílio emergencial em momento grave de pandemia – aliás, não só a esquerda, Rodrigo Maia e também partidos de outros espectros votaram na matéria), MAS a situação social, política e econômica desejada por este comentário que registrei da tela do meu celular se encaixa no que Lênin chamava de SITUAÇÃO REVOLUCIONÁRIA, momento importante que pode ou não levar à revolução (ler trecho no final). Faz lembrar a fala de Che Guevara a respeito do criminoso bloqueio econômico dos capitalistas externos, principalmente os EUA, sobre o socialismo de Cuba, embora num momento já pós-revolucionário ou, pelo menos, com a revolução em curso avançado: “O bloqueio tem facetas negativas e facetas positivas. Entre as facetas positivas está o desenvolvimento da consciência nacional e do espírito de luta do povo, por suas dificuldades. […]” É essa consciência coletiva e esse espírito de luta que prolongam e maturam a situação revolucionária.

No caso da situação revolucionária, porém, como se pode ler nos trechos fotografados no final desta página, trata-se sobretudo da pré-revolução. Quando há conscientização correta e organização coerente com a teoria e com tal conscientização, não raro a partir de liderança orgânica e direção política revolucionária culta, essa situação revolucionária encontra condições para ser amadurecida a uma revolução que transforme as estruturas da sociedade, da política e da economia. (O senso comum daqueles que nada sabem de teoria marxista acham sempre que nós, revolucionários, queremos implantar o socialismo ou até o comunismo do dia para a noite. O momento de ruptura é decisivo, mas socialização e comunitarização, ainda que impacientes, tratam-se sempre mais de processo e construção do que de ingênuo blanquismo.)

Voltemos à sugestão do comentarista. A direita – parlamentar (as “pautas-bombas” de Eduardo Cunha e sua corja), tucanos derrotados sem querer o impeachment, mas sim o “sangramento” de Dilma, nas manifestações de ruas, na Avenida Paulista e os patos da sempre golpista FIESP ou na Candelária, nos vários agentes da sociedade civil e na mídia neoliberal – contra Dilma, no “quanto pior, melhor”, foi contrarrevolucionária, quis mudar – ou desmontar, como ficou claro depois – a forma como o Estado das políticas públicas e dos programas sociais vinha se comportando em 13 anos (“[…] as contrarrevoluções fermentam ódios coletivos e armazenam as energias revolucionárias das classes trabalhadoras e das massas populares”, escreve Florestan em outro trecho do ensaio para refutar aqueles que pensam que é impossível uma revolução na América Latina); as esquerdas, por sua vez, podem, não sem estratégia orgânica, adotar a tática para progredir à situação revolucionária, em que primeiro o sofrimento propiciado pelo capital torna-se tangível, latente, em que as agruras são sentidas para, daí, serem superadas sem lenitivos e bandaids. Com a pandemia, o capital mostrou sua verdadeira face de barbárie, mas houve mundialmente uma urgente reorganização do Estado diante do neoliberalismo, e estamos monitorando o que a direita faz e fará a respeito com as pautas historicamente de esquerda. (Ainda sobre esse aspecto, vale a pena empreender a leitura do meu texto sobre a recente debandada neoliberal na Secretaria Especial de DesestatizaçãoDesinvestimento e Mercados (!) do terraplanista econômico Paulo Guedes, com um histórico sobre as tentativas de implantar o (neo)liberalismo no Brasil.)

Em suma, a questão vai além do auxílio emergencial, que fez despencar a pobreza e a desigualdade de renda (não outras) chegar no menor patamar da História, mas que não é, segundo a mídia hegemônica, sustentável, nem eterno, enquanto a crise se agrava. Vai além, envolve o próprio projeto da esquerda; o que a esquerda quer de forma clara, o que queremos; se quer transformar a sociedade, a política e a economia ou, presa a concessões do cume e sem construção com a base, manter o status quo estrutural; de onde parte essa esquerda partidária (tendo a ojeriza da teoria marxista e pensando apenas em eleições); se trabalha pela construção do socialismo numa formação e educação teórico-práticas com a base da pirâmide; qual, enfim, o seu horizonte e objetivo coletivos, porque o puro reformismo ingênuo, a política pública como pauta única, a social-democracia, o liberalismo progressista, o crédito consumista e o Estado assistencial – que o aporofóbico e xenófobo Bolsonaro, sem a mesma competência e sinceridade biográfica que Lula, esboça usar para fins eleiroreiros e oportunistas, comprando o povo nordestino e também miseráveis, lúmpens, donas de casa desesperadas – desmobilizaram totalmente as esquerdas no Brasil (movimentos sociais, centrais sindicais, trabalhadores, mesmo os partidos de vanguarda terão que reaprender a lutar), dopam a sociedade, significam sempre um adiamento material da situação revolucionária – enquanto a concentração dos meios de produção e a acumulação continuam – e um balde de água fria na consciência e organização revolucionárias: varrem a poeira do capitalismo para debaixo do tapete até explodir a próxima crise e golpe.

Respostas ao comentário anterior.

Finalmente, leiam o que Lênin nos ensina (apud Florestan Fernandes) sobre a situação revolucionária:

(*) Lênin usou tal discurso unificador em relação aos judeus, por exemplo.

(**) Brecht usa a fórmula leniana de união antiburguesa em uma de suas peças de teatro. Ouvi da boca de Heiner Müller, em uma de suas entrevistas, e parece, salvo engano, que a peça não foi finalizada. Uma das cenas traz dois soldados de lados opostos prestes a guerrear, até que um deles – num momento de alta conscientização de classe – diz que o verdadeiro inimigo de ambos é quem está atrás deles, os comandando. O outro concorda com tal lucidez. Apertam as mãos, desertam, e vão para um hotel esperar a revolução, que não chega. Até que um deles diz (com outras palavras, mesmo sentido): “Não morremos no campo de batalha, mas morremos aqui, neste quarto de hotel.”

16 de agosto de 2020

(Neo)liberalismo no Brasil e suas tentativas: a debandada neoliberal de Paulo Guedes

Texto ainda em construção!

Todas as tentativas de implantar totalmente o liberalismo e o neoliberalismo no Brasil, ou seja, de desmantelar o fantasma de Getúlio Vargas e seus resquícios por inteiro num país dito “subdesenvolvido” ou “em desenvolvimento” e de capitalismo dependente, fracassaram.

O liberalismo (corrente complexa, mas que em Adam Smith, diante de uma burguesia revolucionária contra o despotismo da aristocracia, significa liberdade de mercado, desde que o Estado cumpra sua função social e organizativa, e que contempla educação e saúde públicas, por exemplo) e o neoliberalismo (nome jornalístico para “mercado autorregulado”, ou seja, uma radicalização do liberalismo) tiveram algumas encarnações no Brasil, mas nenhuma foi duradoura, todas fracassam em sua totalidade no suposto projeto de “modernização” do país. Não fracassaram apenas porque simplesmente o liberalismo e o neoliberalismo são, realmente, concentração e exploração, porque o liberalismo já se mostrou uma farsa em todos seus níveis econômicos, políticos e supostamente filosóficos, porque o neoliberalismo leva sempre à fusão e aquisição de Wall Street, isto também, em qualquer canto do globo, mas porque o próprio empenho dos (neo)liberais de implantar na totalidade do país e do Estado brasileiro o liberalismo e o neoliberalismo se mostrou ineficaz. Quando o liberalismo ou o neoliberalismo – a partir daqui, os termos virão unidos, salvo quando seja citação de outrem ou quando trato do liberalismo historicamente anterior – entram em curso no Brasil, sempre há um momento em que o Estado social – como aquele projetado pela Constituição de 1988 – vem à baila para consertar a sociedade e a economia, frustrando os planos dos (neo)liberais.

Não adianta procurar liberalismo efetivo no Brasil antes da segunda metade do século 20. Serão indivíduos ditos liberais, não agenda de cima para baixo. A afinidade do liberalismo com a escravidão foi mais explícita e profissional na Inglaterra. O clero, no Brasil, foi efetivamente posto de escanteio pela elite militar conservadora (e por setores civis republicanos, mas sem ainda qualquer poder hegemônico). No Brasil, contou sempre univocamente a mão da oligarquia, além de outros fatores nacionais mais complexos; não houve nem mesmo uma revolução liberal, e sim transformismos do alto, “revolução passiva”, para usar um termo de Gramsci. Da colônia para a independência, desta para a monarquia (Dom Pedro II indolente, rodeado de escravistas, falindo o projeto de industrialização do barão de Mauá), desta para a República, etc., as classes dominantes, pouco liberais, ditaram o rumo, inclusive a respeito do capitalismo que engatinhava, desenvolvendo-se não de maneira nacional e homogênea. (As Diretas-Já, movimento amplo, debaixo, popular, pareciam que iam quebrar com a maldição do transformismo pelo alto, mas logo o poder caiu nas mãos da oligarquia e da burguesia.) Enfim, da década de 1950 para trás, apenas observamos o peso da oligarquia ou do Estado desenvolvimentista (Juscelino), mesmo nos períodos das Repúblicas civis. A política do café com leite… E então veio Vargas – o primeiro e o segundo, o ditador e o democrata, muito diferentes entre si, mas com um centro igual: o Estado enquanto Salvador ou Leviatã -, ou seja, veio o Estado Novo, um novo Estado, com resquícios ainda hoje, com todos os seus acertos sociais e vícios burocráticos. Toda tentativa (neo)liberal no Brasil consiste em desmontá-lo por inteiro, o que nunca se realiza. No final dos anos 1990, parecia que finalmente aconteceria, aconteceu aquilo e ali com as privatizações, mas não vingou, não durou nem foi por inteiro. E, quando ele retorna, é claro que não se trata mais de varguismo, e sim dos seus resquícios de acordo com o tempo e com os políticos – de esquerda ou de direita.

Portanto, até agora (2020), as tentativas de implementar o liberalismo e o neoliberalismo no Brasil foram precisamente as seguintes:

  1. Após o golpe de 1964, . Não durou. A partir de 1967 ,  É verdade que Bob Fields (como passou a ser chamado) , até com o Serra , mas sempre era frustrado, chegando a afirmar: “O “. Quando era criticado pelo fato de ser um por ter apoiado a ditadura, a tal liberdade individual é a “única e implacável liberdade de comércio” (como Marx e Engels escrevem brilhantemente no Manifesto). nunca foi um problema para esse tipo de gente, desde que a economia continue sendo a economia vulgar, . Basta lembrarmos de Hayeck Pinochet: preferível uma ditadura sanguinária com o “mercado autorregulado” (neoliberalismo) do que uma democracia.
  2. Com a vitória de Fernando Collor, em 1990. Collor, além do contra os “vermelhos”, os comunistas, despontava contra os “marajás” ( ) e prometia um golpe de karatê na inflação. A economia piorou, ele não extirpou os marajás da burocracia federal, não modernizou nada e foi exposto em escândalos escabrosos de corrupção. Itamar Franco assume  novamente políticos e o Estado intervém na economia para estabilizá-la, o que dará no Plano Real.
  3. Dirão que os dois governos FHC, logo em seguida, foram neoliberais, ou até mesmo o momento mais longevo do neoliberalismo no Brasil. O neoliberalismo na chamada “era FHC” não foi totalizante nem monolítica. É verdade que pró-mercado, subserviente ao FMI e ao capital hegemônico estrangeiro, exclusão social, enfrentou greves enormes de trabalhadores e privatizações criminosas (como a da Vale), mas o PSDB, até então, e basta ver sua gestão incompetente nos governos do estado de SP, sempre alimentou o corporativismo corrupto das estatais, seja SABESP, etc. Mais do que isso, no caso de FHC, tratava-se de um governo fraco, dependente, sem nenhuma grande reforma ou tentativa de “modernização”, como nas outras tentativas. Hoje, uns 20 anos depois, podemos dizer, sem medo de errar, que a dinheirada das privatizações tucanas está em paraísos fiscais. interrompida em 2002.
  4. Do golpeachment de Dilma até o governo ilegítimo de Temer (até o desgoverno Bolsonaro). “neoliberalismo”, sobretudo no segundo governo, e apontam a figura de Henrique Meirelles. A verdade é que tratava-se de uma aliança com a direita, mas o caráter hegemônico da Era Lula era o combate a fome e à pobreza, programas sociais, investimento nos serviços públicos e , no momento mesmo em que continuava a os bancos e, ao invés de pulverizar o mercado, fortaleceu oligopólios. O primeiro governo Dilma, exitoso, viu no segundo, , Levy. Ela tentou manter os programas sociais e o Estado “inchado” (adjetivo da própria direita). O golpeachment – novamente com apoio sistemático do empresariado da FIESP e mesmo da mídia hegemônica – deu no governo ilegítimo e impopular de Michel Temer. Este, sim, marcou um outro rumo, uma outra encarnação do liberalismo e do neoliberalismo, com pitadas de conservadorismo. Nesse período, aprovaram, com lobby midiático e político, para a felicidade dos capitalistas e dos patrões, a reforma trabalhista, a lei das terceirizações e a PEC dos Gastos (para “enxugar a máquina pública”), mas não conseguiram aprovar a reforma da previdência. De qualquer forma, talvez pela primeira vez o liberalismo e o neoliberalismo pareciam ter vindo para ficar, sustentado pela mutação neoliberal do capital mundial, uberização, infotrabalhados e afins, ou seja, com a mudança da sociedade disciplinar para a sociedade de controle. Aquela sensação coletiva de que a direita tinha vindo para ficar com seu projeto conservador e (neo)liberal, assentada na infeliz eleição de 2018, se dá ou se dava por vários motivos, entre os quais: 1) desmobilização histórica, de 13 anos, quando tudo parecia bem, e que precisará urgentemente ser entendida para ; 2) 3) 4) esquerda pós-moderna, que
  5. Não é à neoliberais e outros coloquem FHC e o PSDB no mesmo bolo que Lula e o PT, como se fossem todos social-democratas: não apenas pelo fato de ser uma extrema-direita exótica, mas porque trata-se aqui, da mais radical tentativa de (neo)liberalimo, até mesmo de anarcocapitalismo, no Brasil. Para se ter uma ideia, temos – para a incredulidade de estrangeiros – um núcleo federal com o nome de Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados (!). Chamo a atenção para as inacreditáveis palavras “desinvestimento” e “desestatização”; conseguiram o raro feito de fazer com que a palavra “mercados” se tornasse a mais suave… O desgoverno Bolsonaro (comprova-se isso recordando seus votos enquanto deputado) é uma continuação do período anterior do governo ilegítimo de Temer, e teve – isto fica claro já agora – uma glória fofa, inglória, de Pirro, catapultada pelo antipetismo, não por projetos “neoliberais”, embora tenha influído na ocasião o ódio de classes da inclusão social e dos “brancos” (ou que se acham brancos) e privilegiados renegados. O terraplanista econômico Paulo Guedes, intelectualmente um Bolsonaro com Phd, mas que nunca se sentiu satisfeito com a direção econômica durante a ditadura (“primeiro, os militares estatizaram a economia toda”, “no regime militar, aumentou o grau de intervenção do governo, aumentou o número de empresas estatais, foram criadas todas essas parnafenálias de leis trabalhistas, os braços armados intervencionistas do governo eram justamente as empresas estatais, e havia controle de preços, cartéis no sistema bancário, autoprotecionismo da economia, muito subsídio, e o Brasil foi perdendo rumo”). Agora, quem perde o rumo é o Brasil de Bolsonaro e Guedes, que fracassa em seu projeto (neo)liberal (por ser neoliberal e porque estamos diante de uma pandemia, em que o capital se mostra aquilo que realmente é, lucro e genocídio). Durante a campanha, em debate com os candidatos a ministros da Economia, prometia terra arrasada, vender tudo, como se o lucro obtido, segurado pela , fosse resolver todos os problemas do país. Já em dezembro de 2018, o histórico Pepe Mujica se perguntou: “O ministro da economia, superfavorável a um mercado aberto, superliberal, vai ter que lidar com a burguesia de São Paulo, a mais protecionista que existe na América Latina. Como se resolve uma contradição dessas?” Tratou-se sempre de um desgoverno “conservador nos costumes, (neo)liberal na economia”. Há conservadores que não aceitam o rótulo, extrema-direita; e fica cada vez mais claro que novamente o neoliberalismo na economia sofreu derrota. Após, finalmente, para o aplauso do mercado e dos patrões, foi aprovada a reforma da previdência – pérfida, masCongresso do que do próprio desgoverno, que, aliás , .  Essa encarnação, embora seja uma continuação da fase anterior, merece atenção especial, por vários motivos. Primeiro, no nível ideológico, porque que de – é evangelofascistóide, evangelomilitaresco, milicianóide, de extrema-direita, fundamentalista, anacrônico, etc. Algumas declarações a partir da debandada: “Bolsonaro desmoraliza o liberalismo, mais do que qualquer presidente de esquerda“; “DNA do governo Bolsonaro não é verdadeiramente liberal“. Enfim, a própria mídia que cobre economia afirmou: sem Mattar e Uebel, o governo Bolsonaro deixa de ser liberal. Essa não importaria a esses liberais, desde que pudesse distrair a opinião pública e continuassem com seu projeto. Salim Mattar responsabilizou o establishment em não querer o que ele chama de “transformação do Estado” (segundo ele, o establishment é o Judiciário, o Executivo, o Congresso, os servidores públicos, os funcionários das estatais), trazendo a velha ideia de que a corrupção está somente no Estado: “Se tiver privatização, acaba o toma lá dá cá. Acaba o rio de corrupção.” É assim que pensa o (neo)liberal. Esta foi a base da ideologia da Farsa Jato, que pega, de forma sensacionalista, o “aviãozinho” politiqueiro, mas nem sequer toca nos capitalistas e banqueiros do poder econômico. Por fim, Mattar afirmou que os “liberais puro-sangue na Esplanada cabem num micro-ônibus”.  Tais declarações evidenciam, uma vez mais, o fracasso do (neo)liberalismo no Brasil, não apenas porque ele significa bruta concentração de riqueza, pauperização e mortes, mas a sua encontra . , a sanha do capital. Mesmo com a debandada, um dia depois, https://brpolitico.com.br/noticias/governo-edita-mp-que-permite-privatizar-partes-da-caixa/  – https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,privatizacoes-dos-correios-telebras-e-eletrobras-devem-ganhar-tracao-apos-saida-de-salim-mattar,70003398116  Ainda assim, chegou-se provavelmente na fase final do desgoverno: perdeu o moralismo anticorrupção de Moro, está entrenhado na corrupção do centrão, perdeu apoio de setores do mercado. Perdendo apoio da classe média e da classe trabalhadora mais desenvolvida, o xenófobo e racista investe agora sua imagem no Nordeste, que sempre odiou. Já quer transformar o Bolsa Família do PT em “Renda Brasil”, para a permanência no governo e para o “voto de cabresto”, mesmo com um passado politiqueiro que contraria todas essas ações. O Congresso aprovou um auxílio emergencial , mas o ministério da Economia não trouxe qualquer projeto de recuperação econômica e de ajuda aos trabalhadores – nem mesmo às empresas e indústrias que fecham. A chamada “ala desenvolvimentista” – não sabia que isso existe no desgoverno – já chama Paulo Guedes de “idiota” e “primário”. Assim, a “agenda liberal” patinou e Guedes perdeu apoio. O próprio pilantra que ocupa o Palácio do Planalto, pedindo “patriotismo” ao mercado, já admite que, diante da pandemia e para outros fins emergenciais, existe “a ideia de furar o teto [da PEC dos Gastos]”, aquela que serviu, na fase anterior, para “enxugar a máquina pública”, nos dizeres dos (neo)liberais. As promessas das esquerdas na eleição eram de revogar essa PEC maldita. À esquerda e à direita, fala-se novamente em renda básica universal e taxação de grandes fortunas.

Diante dessa reorganização global do Estado social em plena pandemia e do oportunismo, populismo e eleitorismo da direitalha, cujo comportamento político na reorganização do Estado estamos monitorando e devemos observar com atenção e cautela, é justamente neste momento histórico que as esquerdas precisam se radicalizar e dar um passo além. Essa radicalização passa pela formação revolucionária, pelo apreço da teoria da revolução e da teoria do Estado, etc. para pautas e ideias mais radicais, de socialização da propriedade privada dos meios de produção, de conselhos nacionais ao invés de ministérios na longíngua Brasília, de democracia direta e de base, etc. etc. etc.

Noutras palavras, o horizonte da esquerda – daí o papel organizativo dos setores de vanguarda – não pode ser mais apenas política pública. A grosso modo, isto tem servido apenas como lenitivo para a crise, empurrando a sujeira para debaixo do tapete até essa crise ser descoberta, ainda mais suja, e revelar seu próprio rosto, o capital. Além da limitação das políticas públicas, o dabete – a sempre pergunta “reforma ou revolução?” – profunda reforma militar, por exemplo, em face da nossa monumental desvantagem em relação ao monopólio da violência.

Comecei citando a “encarnação” do (neo)liberalismo, que teve várias tentativas. O comunismo, não a paranoia direitista (embora ela tenha lá suas razões), mas na forma da organização dos trabalhadores, na forma dos movimentos de base ou mesmo na minoritária luta armada, também teve tentativas de encarnação e reencarnação no mundo inteiro, impedidas pelo nazifascismo, pela burguesia e até pela amorfa social-democracia. As reconstruções do socialismo e do comunismo estão em curso atualmente. Conforme alunos, camaradas, seguidores e outros sabem, tenho estudado e elaborado de maneira teórico-prática a refundação do comunismo no século 21, na sua nova encarnação neste país e continente.

Um novo partido?…

É possível que um novo partido esteja prestes a nascer. Ambicioso, altamente intelectual. Seu objetivo a médio e longo prazo não é outro senão extirpar a elite brasileira e inaugurar um novo capítulo na história deste país. O objetivo a curto prazo é o de formação teórica. Para isso, é preciso um professor.

Um partido seguidor de um professor, para a educação dos quadros de um partido, seus intelectuais, militantes, revolucionários, governantes, agentes das mais diversas áreas diretas e paralelas à política… Gramsci escreve que a relação professor – aluno deveria deixar de ser um fato pessoal, como o é no meio acadêmico, para se tornar uma função orgânica (como, por exemplo, nos seminários).

Tenho observado que, dentre os partidos de esquerda (os de direita são todos pérfidos), vários grandes problemas se apresentam:

1) Os quadros não possuem formação em torno da teoria revolucionária e marxista. A perspectiva de política deles é limitada. Resumem-se a políticas públicas. É pouco. Quando muito, reformas, mas não conseguem maioria para elas; mesmo se conseguissem, a solução não está nas reformas.

2) É pequeno o número de quadros que, mesmo não tendo a formação na teoria, passam a ler teoria na bibliografia marxista; quando o fazem, já é um pouco tarde, não por causa da idade, mas porque já estão no sistema. Problema de origem do partido e dos quadros.

3) Os partidos revolucionários estão numa crise histórica, não consequem se renovar ou crescer. A burocracia os corrompe e empaca. Ademais, suas principais estratégias de organização e conscientização ficaram para trás com o modelo fordista. A esquerda grande só pensa em eleições, tem ojeriza da teoria, suas pautas se mostraram insuficientes contra o capitalismo.

4) O problema central é não conseguir maioria nunca. A partir disso, a única saída das esquerdas tem sido ir apanhar nas ruas. É pouco.

5) A esquerda tem se educado para resistir. Se puder, resiste eternamente, enquanto a direita põe as cartas na mesa. O objetivo precisa ser dedicar-se para governar.

Um partido que possa de fato partir da teoria para a prática e vice-versa. Que leve à implantação do “moderno Príncipe” de que falava Gramsci, e de seus intelectuais orgânicos, Lênin, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior e outros.

As 3 principais influências determinantes para o Brasil no próximo período pós-pandemia

1. A influência geopolítica, estrangeira. As eleições presidenciais nos EUA deste ano, que podem afastar Donald Trump, os neocons e o tea party republicano do poder federal, terá tanta importância quanto as eleições brasileiras municipais, em que frentes de esquerda contra o atual desgoverno podem surgir a partir de cidades-chaves. Sem Trump, sabemos que o pilantra do Planalto e seu desgoverno militarizado, subserviente, capacho isola-se ainda mais e não “fica bem das pernas” interna e externamente. O resto do mundo polido estranha ou detesta o atual inquilino do Planalto; mesmo os capitalistas internos, dependentes e ruins, preferem adular apenas o terraplanista econômico Paulo Guedes, um Bolsonaro com Phd, porque os engorda e sustenta. Outra influência geopolítica determinante para a próxima década: o papel global de um bebê da produção em larga escala, a China, principal parceiro comercial do Brasil, enquanto se deterioram o dólar, o PIB e o banditismo global dos Estados Unidos, onde também a fome¹ e o desemprego aumentam. (Infelizmente, não temos ainda um governo decente que pudesse, nesse momento crítico, desesperador e crepuscular para os EUA, jogar com as contradições, reunir Venezuela e a América Latina integrada, Rússia, China, África árabe e África negra para quebrar a potência hegemônica, criando uma nova moeda, por exemplo, e fortalecendo a militância socialista daquele país².) Nesse aspecto, embora a vitória de um liberal como Joe Biden aparentemente traga alguns benefícios imediatos ao Brasil e ao mundo, o seu low profile de Democrata, sem os preconceitos explícitos de Trump, apresenta maior competência para perpetuar o hegemonismo daquele país…

2. A reorganização do Estado, agora e no próximo período. A pandemia e a crise econômica que já lhe vinha antes obrigaram aos governantes uma reorganização do Estado burguês. Aos trancos e barrancos, o neoliberalismo foi golpeado em várias frentes. O terraplanismo ultraneoliberal de um Paulo Guedes – sujeito que aparece em lives com sua estante deserta (exemplo único no mundo!), vazia como sua cabeça – foi enxugado ou, em certos projetos, colocado de lado pelo Congresso. Países como a Espanha estatizaram hospitais privados, em que a saúde virava mercadoria para poucos. Sabemos que a solução vai além – é preciso socializar a indústria farmacêutica nas mãos dos trabalhadores. A saúde social e pública durante a pandemia do novo coronavírus mostrou a sua importância vital, provando a olhos vistos para quem se negava a ver que o capitalismo não dá conta do problema, e que, aliás, a única lógica do capital, diante de riscos de vida e diante de milhares de óbitos, é o lucro. Capitalismo é miséria, é exploração, é espoliação, é concentração de riqueza, é pobreza, é falta de qualidade de existência em todas as áreas. O desgoverno Bolsonaro destruiu, em menos de 2 anos, os ministérios da Saúde e da Educação e danou todos os outros, corrompe a todo o momento a frágil Constituição de 1988, mas absolutamente todos viram, até mesmo aqui, que trata-se de Estado social ou barbárie e morte. Mais do que isso, praticamente todos os países investiram num auxílio emergencial ou numa renda básica para a população durante o distanciamento físico. As esquerdas parlamentares foram protagonistas nessa conquista. Falou-se, na imprensa, em “keynesianismo”… Também voltou à baila a discussão da taxação de bilionários desprezíveis que aumentam sua fortuna em plena pandemia, enquanto os salários dos trabalhadores abaixam ou o desemprego explode em face de empresas e indústrias que fecham durante a crise capitalista e a pandemia. Nós, comunistas, sabemos que ambas as propostas da social-democracia – renda básica universal e taxação de grandes fortunas – varrem a poeira para debaixo do tapete, são lenitivos que resolvem o problema do capital apenas em alguns anos (vide a Europa), mas nos importa monitorar o seguinte: O que a direitalha – tanto a eleitoreira-populista quanto a burocrática da economia vulgar – faz e fará a respeito dessa nova reorganização do Estado para a sua manutenção do capitalismo moribundo? E as esquerdas?

3. O embate político nacional, fruto das lutas de classes (aqueles que não estudam teoria chamam vulgar e equivocadamente de “polarização”), permanente nas redes sociais e pronto para respingar nas ruas, entre fascistóides ou a direitalha no geral e a esquerda progressista, que sofreu diversas derrotas nos últimos quatro anos e que precisa (re)construir o seu retorno – dentro e fora do poder político – a partir da desmobilização generalizada, sem ainda forte liderança orgânica, e também de novas sendas de oportunidades populares (protestos antifascistas, a organização dos entregadores de aplicativos, das mulheres e suas causas, a necessidade de um renovador radicalismo comunista pela grande política³, etc.).

 

1. A fome avança nos EUA há décadas, provando que o capitalismo e a propriedade privada dos meios de produção nunca funcionaram. Cf., por exemplo, dois estudos deste vigente ano de 2020: pesquisa do Brookings Institution, revelando que a fome nos EUA já ultrapassa níveis da crise capitalista de 2008 (uma em cada cinco casas dos Estados Unidos com crianças com menos de 12 anos possui insegurança alimentar), e estudo da Household Pulse Survey, registrando que cerca ou mais de 30 milhões não têm o que comer naquele país.

2. Eu tenho estabelecido contato com jovens dos EUA que pretendem criar um novo movimento comunista no seio do “capitalismo desenvolvido”, mas internacionalista, é claro. Já participei também de reuniões online da Liga Internacional Socialista com membros dos 4 cantos do globo, e sempre há um representante dos EUA. Trump tem atacado o socialismo justamente porque o socialismo tem crescido nos EUA. A campanha presidencial de Bernie Sanders não passou de uma representação de organizações populares, ainda que pequenas (não se comparam, por exemplo, ao tamanho dos movimentos sociais do Brasil), e de toda uma geração que, insatisfeita com o fracasso das políticas capitalistas, pela primeira vez na história daquele país pode ler a bibliografia marxista sem cair na narrativa anticomunista dos pais, da TV, das escolas, da perseguição e censura maccartistas, etc.

3. Antonio Gramsci diferenciava a pequena política da grande política. A pequena política gira em torno dos pequenos elementos da conjuntura, das intrigas parlamentares, dos corredores das instituições, do “dia a dia”, das pequenas ambições, dos interesses particulares, muitas vezes superdimensionados pelas redes sociais, imprensa e TV. A grande política, estrutural, está associada a uma grande ambição, inevitavelmente ligada ao bem coletivo, e que visa manter ou destruir ou transformar o Estado, a política, a sociedade, a economia vigentes.

4 de agosto de 2020

Não há “bolsonarismo”…

Não há “bolsonarismo”, porque não há nem mesmo elaboração intelectual e política dessa direitalha de chinelos.

Há gozo da desistência; triunfo da incapacidade; niilismo e falta de perspectiva política que revivem os resquícios ideológicos do nazifascismo; espoliados abandonados, desviados das verdadeiras urgências revolucionárias e político-econômicas e iludidos pelo evangelofascismo teocrático dos saqueadores de dízimo e fé alheia; moralismo farsante anticorrupção da mídia e da classe média, que respinga em incautos da classe trabalhadora, e que nada diz sobre a corrupção que é a mais-valia e o capital (para não dizer, agora, de familícia e centrão); preconceitos de todos os tipos que só servem para inferiorizar sujeitos da mesma classe; doutrina do “foda-se, mesmo que eu me foda junto” (essa pega todas as classes, mas sobretudo as mais abastadas), não sem táticas financiadas e importadas da extrema-direitalha negacionista internacional a fim de distrair dos crimes neoliberais, antissociais dos capitalistas.

12 de julho de 2020

O casal ignorante que ofendeu o fiscal no Rio de Janeiro é da classe “média” ou trabalhadora?

ENTENDAM DE UMA VEZ!

Sobre o casal de ignorantes que ofendeu o fiscal da Vigilância Sanitária em plena pandemia no Rio de Janeiro, li vários – jornais e usuários (a maioria de esquerda) – afirmando que o casal é de “classe média” (termo da sociologia do século 20) ou (o que talvez seja mais correto em termos ideológicos, mas não materiais) são “uma amostra da arrogância da classe média brasileira” (Folha de S. Paulo). Não parece que sejam de “classe média”, pois o tal “engenheiro civil, formado” (palavras de sua própria companheira) solicitou, segundo jornais apuraram, o auxílio emergencial destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e (diz ele) logo cancelou ao arranjar um novo emprego (já perdido pela repercussão negativa do vídeo); a esposa, que demonstra excesso de arrogância e empáfia, após o episódio televisionado também foi demitida da Taesa, onde era contratada em regime CLT – portanto, até que outras informações apareçam (por exemplo, parece também que ela será investigada por supostamente ter uma empresa em nome próprio atuando sem registro nos Conselhos Regionais de Química e de Engenharia, típico de “bolsominions”, e possivelmente típico da “classe média”), são, na verdade, ao que tudo indica até agora, trabalhadores sem consciência de classe. Sim, trabalhadores como os garçons e cozinheiros que, expostos a riscos de contaminação pelo coronavírus, servem os irresponsáveis e superficiais aglomerados em plena pandemia mortífera nos bares barulhentos onde ninguém ouve ninguém, eleitores da direitalha politiqueira que é mera serviçal de empresários que só querem se locupletar. O coitado do fiscal, funcionário público (com mestrado e doutorado, diga-se de passagem, conforme jornalistas apuraram depois de pedir seu relato), é que é, sem dúvidas, de “classe média”, não importando se ganha mais ou menos do que os abordados. Este caso, superdimensionado pela televisão e pelas redes sociais, nos ajuda a entender o bate boca das classes e a confusão do senso comum, a ser identificada e superada para a emancipação geral da divisão exploratória de classes.

Nota de Engels para a edição inglesa de 1888 do Manifesto Comunista. Mais claro, impossível: “Por ‘burguesia’, entende-se aqui a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção da sociedade e exploradores do trabalho assalariado. ‘Proletariado’ designa a classe dos trabalhadores assalariados modernos, os quais, despossuídos de meios de produção próprios, precisam vender sua força de trabalho para poder viver.” E a classe média?! Ora, a pequena-burguesia é uma classe intermediária entre essas duas, não detendo as forças produtivas nem os meios de produção.

No Brasil, onde milhões de pretos e miscigenados se acham brancos apenas por terem a cor de pele mais clara ou não retinta, a ignorância de classe, a falta de consciência de classe também é tão grande e generalizada que se confunde tudo a respeito. Em parte porque, com a nossa histórica tradição autoritária, classe trabalhadora é identificada exclusivamente com miseráveis deserdados da terra, favelados e periféricos sem eletricidade e esgoto, pobres desnutridos, migrantes analfabetos, “incompetentes”, peões de obra e cais sujos de graxa, etc. Talvez em menor medida, tal é o nível do nosso subdesenvolvimento histórico, que o trabalhador também é associado com “descendentes degenerados e aventureiros da burguesia, vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, escroques, saltimbancos, delinquentes, batedores de carteira e pequenos ladrões, jogadores, alcaguetes, donos de bordéis, carregadores, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, afiadores, caldeireiros, mendigos”, isto é, a classe informe que Marx assim enumerou em O 18 Brumário de Luís Bonaparte e, desde A Ideologia Alemã, com Engels, cunhou de lúmpenproletariado (a classe de farrapos, daqueles que dificilmente aderem à revolução e buscam apenas benefícios imediatos, na “hora H” aderindo aos reacionários ou a quem lhes der mais, por causa da própria condição extrema em que se encontram). Com os programas sociais petistas e o passageiro boom dos commodities, a classe trabalhadora brasileira melhorou um pouquinho e de maneira nacionalmente homogênea, mas também ali não houve conscientização de classe, pois logo falou-se, pela imprensa e mesmo entre a esquerda governante, em “nova classe média”, “classe média baixa”, essas besteiras achadas por aqueles que identificam o trabalhador apenas como o metalúrgico ou a faxineira incansável e o pedreiro sem carro, diariamente abarrotados em transporte público. (Tais exemplos também podem ser classe trabalhadora, mas não é esse por si só o critério de definição de classes, ou é o critério farsante da ideologia dominante.) A sociologia vulgar e os institutos de pesquisa do mercado tampouco ajudam, ao contrário, confundem e nublam, propagaram a ideia de que as classes são caracterizadas apenas pela renda e pelo patrimônio, ou seja, há a primazia da aparência superficial, não pelo modo econômico que as forma, pelas relações sociais e econômicas entre elas e pela ação que as caracteriza, tal como o marxismo nos ensina.

Assim, há sujeitos da classe trabalhadora que, apenas por terem renda diferenciada e até varanda gourmet, roupa de marca e celular e carro do ano (comprados não sei quantas vezes no cartão de crédito), já se sentem “classe média” – podem até demonstrar, estando num recorte social mais digno, gostos, ideologia e aparência de “classe média”, mas não o são concretamente, porque trabalham para produzir e enriquecer o capital do patrão, assim como há “classe média” que se acha elite e, não sendo, preenche seu vazio ontológico e sua crise social deslocada com tentativas de prestígio social, diplomas, consumismo, arrogância e riqueza simbólica. Podemos notar esta última característica na “classe média” de TODOS os países. É o que constitui a ação social estreita da “classe média”, que nada de estrutural produz nem detém na sociabialidade burguesa. Nas potências hegemônicas, contudo, a classe trabalhadora como um todo, por mais digna que seja em suas condições, tem consciência de que é classe trabalhadora e não “classe média”, ou padece da mesma alienação mental que temos visto aqui? Boa pergunta que ainda preciso investigar com meus colegas estrangeiros…

Não falo apenas do “pobre de direita” e do “capitalista sem capital”… Trata-se de falta de estudo da teoria entre as próprias esquerdas!

Aprendam de uma vez por todas como definir as classes: a pequeno-burguesia (termo do século 19) é a classe intermediária que não detém as forças produtivas da classe trabalhadora (que vende sua força de trabalho em troca de um salário para sobreviver e produz algo que será roubado, comercializado e acumulado pelo capitalista espoliador) NEM detém a propriedade privada dos meios de produção da burguesia (classe moderna dos capitalistas), restando atualmente a ela as burocracias estatal e empresarial, os serviços públicos, e a pequena propriedade e o pequeno comércio NÃO-FILIADOS às redes de oligopólios transnacionais. No panorama da nossa sociedade mundial, é de “classe média” APENAS quem se situa nesses espaços citados.

(Meios de produção: máquinas, ferramentas, edifícios privados dos ambientes de trabalho, grandes empresas, fábricas, terras, fazendas, matérias-primas, etc.)

Todos os teóricos marxistas e mesmo autores anteriores que observavam, por exemplo, a Revolução Francesa, notam que, por estar deslocada na sociedade, por não deter as forças produtivas nem os meios de produção, a pequeno-burguesia sofre de profunda crise de identidade, vazio espiritual e será sempre um gatilho reacionário e fascistóide. Sabemos que, por sentir-se mais próxima ideologicamente e materialmente da burguesia (daí o nome “pequeno-burguesia”) do que da classe trabalhadora, servirá sempre como um obstáculo aos avanços sociais. A “classe média” é uma tentativa rebaixada de se aproximar ou de chegar a ser classe dominante, ao mesmo passo que estabelece uma distância intransponível para com a classe trabalhadora. No Brasil, esse cenário foi amplamente notado em 1964 ou – guardadas as devidas diferenças – em 2016: a classe dominante interna – com a ordem da externa – preparando ideologicamente a “classe média” para sua contrarrevolução permanente… As exceções confirmam a regra, e os membros esclarecidos da classe média – certos intelectuais, professores e estudantes politizados – se identificam e apoiam a luta da classe trabalhadora, ainda que de maneira limitada pela própria condição de classe deles.

Por fim, a filósofa Marilena Chauí, alertando para a farsa da “nova classe média” propagada pelos jornais durante a era petista, argui, em tese recente e incontornável, que serve para o mundo todo por conta da internacionalização do capitalismo, o seguinte: com a mutação neoliberal do capital, com o desmantelamento do modelo fordista, a “classe média” DIMINUIU enormemente, ao contrário do que o senso comum acha, enquanto que a classe trabalhadora aumentou enormemente. Ou seja, vários sujeitos que eram antes da “classe média”, por conta da forte monopolização do capital nos oligopólios transnacionais, passaram a fazer parte da classe trabalhadora (se preferir, de uma “nova classe trabalhadora mundial”). Observe que uma série de profissões, liberais ou não – médicos, dentistas, advogados, e outras que sempre se consideraram classe média – estão hoje em grande parte trabalhando em empresas privadas de “saúde”, “advocacia”, etc., são empregados e assalariados, subordinados ao dono burguês. Mesmo que, agitando bandeira do Brasil (nacionalismo de araque) e se dizendo anticomunistas na Avenida Paulista ou na Candelária, mesmo que não saibam ou não queiram, ainda assim são classe trabalhadora.

Marx bem afirmou que, com o desenvolvimento e a crise do capitalismo, a classe média tende a desaparecer no confronto inevitável que existe pela contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Noto que, justamente por ter diminuído e por estar desaparecendo aos trancos e barrancos, a pequeno-burguesia (e a “nova classe trabalhadora mundial”, que pensa ser elite) dos EUA, da Europa, da América Latina, mesmo da Ásia (quem aí ainda não assistiu Parasitas?!) tem se tornado intransigentemente violenta e de extrema-direita, desesperada com o fim de seus valores, privilégios e tradições familistas, com o seu próprio fim.

Ps.: Classe social não é apenas algo determinado economicamente – é também um sujeito social, político, cultural – não é algo, é uma ação – que se transforma por meio das lutas de classes.

10 de julho de 2020

O Partido Novo deve ser cassado

Qualquer notícia a respeito dos projetos ou lista pública das votações no Congresso prova que esse Partido Novo não faz nada de relevante para a sociedade brasileira, serve apenas à plutocracia e ao capitalismo financeiro. Um partido que usurpa espaços públicos para fins particulares. Parasitas privados de espaços públicos! Vai contra a própria Constituição. Deve ser cassado.

28 de maio de 2020

Cariocas, acordem!

O que é a vergonha humana? Eu não conseguiria viver numa cidade em que diversas crianças pretas são assassinadas anualmente na periferia pobre pela polícia militar a mando de politiqueiros direitistas, a mando de uma estratégia inútil, animalesca e atroz, a mando da burguesia, como se tudo estivesse bem ou fosse assim mesmo, porque tais assassinatos de dor tamanha justificariam a nossa história escravocrata. Não se trata de um ou dois casos, mas, ao contrário, eles se acumulam, e isto pode e deve mudar. Perco toda a vontade de voltar a ver turisticamente o Rio. Cariocas, acordem! Não é possível! Vidas estão sendo interrompidas no genocídio negro, vidas que dariam em Marielles! Levantem-se para reconstruir um outro Rio de Janeiro, pois este é terrível e não deu certo, um outro, sem milícia e sem polícia militar, sem prefeito fundamentalista e governador genocida, com menos superficialidade de cartão-postal maravilhoso escondendo uma sociedade terrível, hipócrita, segregada. É hora de acabar com a insensibilidade, com a comodidade, com a segregação. Precisa parar tudo e cair o governador, cair o secretário de “segurança pública” e cair o comandante militar. No mínimo. Isto não resolve estruturalmente o problema, mas já seria alguma coisa. Ou isto só acontecerá quando morrer o filho de alguém da zona sul?!

23 de maio de 2020

Por que a direita brasileira é tão desastrosa, medíocre e irracional?

A direita vive acusando a esquerda de ser perdulária, mas deveria se perguntar por que só elege quadros demagogos, desastrosos, não-orgânicos e irracionais. Como ela jamais entrará nessa discussão, cabe à esquerda encontrar a resposta e apresentar à nação, e uma das respostas fundamentais não será outra senão o fato de que, para a plutocracia implantar medidas econômicas que concentram o capital e o poder num país de brutais desigualdades como o Brasil sem que haja uma violenta recusa da população como um todo, só mesmo se utilizando de espantalhos…

A direita, em qualquer lugar do mundo, será sempre menos inteligente (e a direita ilustrada cai sempre na mistificação), porque precisa conservar privilégios e status quo, ou seja, se mantém fixa e linear, enquanto para a esquerda coube estudar para transformar a realidade… Só deseja transformar a realidade aquele que adota uma posição crítica e investiga as causas da realidade ser o que é.

A direita esconde, despreza ou ignora as causas dos problemas.

No jogo político do Brasil, a direita agrava os problemas.

A direita explícita só causou desastres no Brasil. Não só nas ditaduras – estas levaram o direitismo às raias do absurdo. Falo em âmbito eleitoral sob a democracia liberal burguesa: nos deu o doido do Jânio Quadros, após Vargas e Juscelino, nos anos 1960, “vassourinha contra a corrupção”, que tinha pautas conversadoras contra os costumes e renunciou em menos de 1 ano de governo, atirando o país numa longa crise política e instabilidade que, com vários outros motivos, ajudou o golpe de 64 contra João Goulart; o neoliberal e intransigente Fernando Collor na redemocratização, que em dezembro de 2018 desancou a política externa bolsonarista/olavista, mas que, na época, finais dos anos 1980, início dos 1990, era o “caçador de marajás”, contra os “vermelhos” (sim, igualzinho o Bolsonaro, como seus discursos e o último debate contra Lula atestam – embora Collor trouxesse um quê de “modernidade” comportamental e econômica, não de obscurantismo e fundamentalismo religioso armado, como Bolsonaro), contra a “baderna”, a “bagunça”, ostentando a bandeira verde-e-amarela, mas que piorou muito a economia e trouxe à tona diversos casos escabrosos que o envolviam, (o moderado e democrata de centro-direita Fernando Henrique Cardoso, que colocou o mercado acima de qualquer interesse nacional – este é uma exceção em meio a tanto exotismo e desastre, mas quantos tão polidos assim não estiveram agora com a escritidão criminosa de Bolsonaro?); e, agora, após 2 anos do golpeachment, da ilegitimidade política e da austeridade econômica de Temer, com o perdedor e golpista PSDB de FHC, que destituíram Dilma Rousseff, e a Lava Jato superficial que prendeu Lula (com todos os acertos e erros, a maior liderança da esquerda), o extremista-mor Jair Bolsonaro, patriota de araque, entreguista, manipulador, mentiroso compulsivo, absolutamente sociopático e inconsequente, exibindo diariamente seu comportamento fascistóide, no nível da perseguição de opositores em todos os setores da sociedade, com ministros absurdos, anacrônicos, incompetentes em relação à gestão da máquina pública, às necessidades do povo brasileiro e à política de Estado.

Toda a direita apoiou este lixo, gerando consequências gravíssimas em todos os setores. Mesmo aquela direita que depois tenta se disassociar, e que jamais fará uma autocrítica na mídia hegemônica paga por grandes empresas e bancos, deu apoio integral. De Abílio Diniz, passando pelo CEO do Itaú ou o Paulo Lemann até um desqualificado como o dono da Havan.

Assim como haviam aqueles que preferiam se associar à figura de Sérgio Moro, que diante da máscara indolente é também um extremista judicialesco, a elite se afasta de Bolsonaro e apoia apenas este Bolsonaro com Phd chamado Paulo Guedes, serviçal do capitalismo financeiro… Não se enganem. Assim como em O Retrato de Dorian Gray, em que o retrato demonstra todos os vícios e horrores que a aparência do rosto esconde, Bolsonaro é a cara da desprezível, aporofóbica, ruim, racista elite brasileira sem máscaras.

Treze eleições livres no Brasil, desde 1945. Dez presidentes eleitos (porque 3 foram reeleitos). O campo mais à direita elegeu quatro deles. Todos eles, outsiders. O único que foi até o fim do mandato foi Fernando Henrique Cardoso, que na verdade estava à centro-direita e tinha conseguido, junto com o MDB, convencer a direita de que podia dispensar a ditadura e disputar o jogo político.

Os outros três – Jânio, Collor, Bolsonaro – eram outsiders bem mais out do que FHC. Figuras um tanto exóticas, que somente se elegeram por estarmos em crise, por terem um discurso fortemente populista, por estourarem a política tradicional.

Nunca a direita emplacou um quadro seu, orgânico, na presidência da República, em eleições democráticas.

Só os não orgânicos.

Daí uma fragilidade. Os três de quem falei são ou foram voluntariosos, no limite do arbitrário:

– Jânio, moralista dos costumes, interferindo nas roupas de desfile de miss…
– Collor discursando, na posse, que agora era “vencer ou vencer”, dando um golpe fatal de judô na inflação (conseguiu o oposto, sobretudo saqueando poupança dos trabalhadores).
– Bolsonaro constantemente ameaçando tudo e todos para proteger sua familícia.

Difícil, assim, chegar a um consenso.

Aprendi, primeiro lendo e depois conversando com gente influente, que o governo precisa estar bem com cerca de 100 a 200 personagens importantes, desde os dirigentes do Congresso e de suas principais comissões, os dos tribunais superiores, os das agências reguladoras, os donos do PIB, a grande mídia, talvez sindicatos e movimentos sociais.

O entendimento com todos esses protagonistas é tão importante quanto o “presidencialismo de coalizão”, que na verdade se refere apenas às duas Casas do Congresso. (Não vamos, neste texto, considerar o direitismo no Congresso, centro do poderio oligárquico brasileiro! Deixo isso para outra ocasião.)

Ameaçando uns e cedendo mansamente a outros, não se vai governar o País. (Vejam a importância deste fato até mesmo para nós, de esquerda e extrema-esquerda!)

A direita desgoverna.

Chegamos a um ponto em que não podemos mais chamar a direita de direita, mas de direitalha.

23 de maio de 2020

Filosofia brasileira, tradição e língua portuguesa (anotação)

Portugal, que nos legou uma tradição literária, nunca teve Filosofia, tradição filosófica. Quando surgiu alguma expressão filosófica portuguesa, no século 16, 17, a língua escrita oficial era o latim. Assim recorda José Arthur Giannotti em alguma entrevista… Portanto, não há ainda filosofia formativa em português. Reiteiro: há alguma filosofia, mas não formativa, de base, a ponto de constituir uma tradição! (Seria preciso, para isso, concomitantemente ou primeiro, uma superação economicamente estrutural e geopolítica do espaço marginalizado e periférico dos países que usam a língua portuguesa e da própria língua portuguesa em relação às outras?) Durante o século 20, houve a tentativa duma filosofia brasileira (bastante interrompida pela ditadura, que foi terrorista física e intelectualmente), dividida entre o legado francês ou germânico, certamente com importantes filósofos e professores brasileiros que puderam prosseguir a partir da redemocratização ou não. (O dialético Álvaro Vieira Pinto é um desses que eu quero retomar em textos e aulas, sobretudo o seu Consciência e Realidade Nacional). Neste século 21, há toda uma bibliografia interessante sendo produzida pela esquerda revolucionária (internacionalista, portanto) no bojo do complexo contexto histórico do nosso país, mas, novamente, partem de outras tradições (mais germanofilia do que francofilia?), ainda que adaptadas e coerentes. Esta empreitada da criação de uma língua filosófica brasileira continua, mas não está mais em sua fase apenas inicial e embrionária, por conta das traduções sistemáticas ao longo dos séculos e décadas de livros clássicos e formadores de filosofia para o português brasileiro. (Até que ponto, no entanto, e qual o impacto no fato de que muitos desses livros foram traduzidos por tradutores e não por filósofos?) Lembrar da diferenciação entre a criação de uma língua filosófica a partir do português (obviamente não a mesma dos nossos grandiosos romances, contos e poesia, e mesmo esta, artística, já é abundante, generosa, diversa) e a criação de uma tradição filosófica brasileira (é isto genuinamente possível? seu elã não seria outro senão o contato direto com os grandes temas nacionais e com a realidade do país até influir globalmente de dentro para fora – até que ponto isso ocorre com Paulo Freire na “filosofia da educação”?)… A escrita é das mais importantes ferramentas da filosofia, junto à oralidade. O diálogo, pelo qual a filosofia nasce, se dá em ambas, na escrita e na fala.

21 de maio de 2020

O que é teoria? Marxismo e obra marxiana entre a Filosofia e a Ciência: aproximações e diferenças

O texto abaixo serve para apoio básico e introdutório do meu grupo de estudos de teoria da revolução e do Estado e como anotação para a construção de algumas partes do meu livro Filosofia da Revolução:

1

Teoria, palavra aparentemente mais científica que filosófica. Lembramos da teoria da relatividade geral de Albert Einstein (física), que era socialista declarado, lembramos da teoria da evolução de Charles Darwin (biologia), terror dos cristãos criacionistas. Ou seja, teoria enquanto construção reflexiva e de experimentos do conhecimento científico. Para alguns autores, a filosofia trata dos problemas mais gerais, enquanto as ciências estudam os menos gerais e mais específicos, sendo a filosofia, para muitos marxistas, um prolongamento das ciências, no sentido em que se apoia nas ciências e delas depende (POLITZER, 1979, p. 21). Não poderia ser diferente – o negacionismo anticientífico e irracional parte da direita… A Filosofia, partindo de problemas, lida com os conceitos e cria conceitos – criação e intelectividade influem na Filosofia, enquanto as ciências apresentam funções e categorias (esta última palavra é bastante comum nas ditas ciências sociais). Retomaremos o embate entre filosofia e ciência, aproximações e diferenças, durante todo este texto.

2

Não sejamos, então, totalmente bairristas, apesar das diferenças fundamentais – não só as ciências dependem da Lógica, que é uma criação histórica da Filosofia, como é possível observar imbricações entre teoria e filosofia, sobretudo com o que se chama de desenvolvimento histórico da ciência: por exemplo, a ontologia não deixa de comportar alguma teoria (ou várias teorias, considerando a gama de autores ontológicos) do ser. Há um invólucro filosófico nas ciências, que remonta a propria história da filosofia antiga, embora cientistas no geral não se dêem conta disso. No decorrer dos postulados deste texto, demonstrarei que as teorias servem também a uma nova filosofia que engloba as ciências, à filosofia da práxis.

3

A origem do vocábulo teoria data de finais do século 16, denotando um esquema mental: via latim tardio, theōria, “contemplação, especulação”, do grego theōrós (“espectador”). Veremos que, modernamente, esta etimologia é insatisfatória e até equivocada, mas ela elucida já alguns pontos. A teoria precisa de um “espectador”, ou melhor, do teórico, que chamamos de sujeito; mais do que isto, a teoria e este sujeito precisam de um objeto. Entre sujeito e objeto, há a pesquisa e seu método. Em Marx, há um sujeito que não apenas estuda o objeto, mas o confronta e o critica. Sua magnum opus, O Capital, é justamente a obra central em que encontramos um pesquisador às avessas com o inicio, a consolidação, o desenvolvimento e o fim ou a crise de seu objeto de estudo – o capital ou a sociedade burguesa, num trabalho obviamente inconcluso, pois ele vive e escreve quando o objeto já se desenvolveu, mas desaparece quando tal objeto ainda não se esgotou.

4

No Prefácio da Edição Francesa do Livro I, Marx responde ao editor Maurice Lâ Châtre que concorda com sua ideia de publicar O Capital por fascículos para deixá-lo mais acessível à classe trabalhadora, mas que, por outro lado, o método de análise utilizado, ainda não aplicado aos problemas econômicos, torna árdua a leitura dos primeiros capítulos, concluindo: “Não há estrada real para a ciência, e só têm probabilidade de chegar a seus cimos luminosos aqueles que enfrentam a canseira para galgá-los por veredas abruptas.” O Capital é uma obra com mais ciência do que filosofia, praticamente sem filosofia, embora não fosse possível sem essa segunda.

5

Darwin não inventou a evolução, Einstein não inventou a relatividade: ambos observaram e pesquisaram o objeto real (as espécies ou o desenvolvimento das espécies, para um, e a gravitação e o espaço-tempo para o outro), o funcionamento e desenvolvimento do(s) objeto(s) até o presente em que puderam viver e levar a pesquisa, tendo descobertas no processo. Isto é a teoria científica. Marx não inventou o capital. Pôde estudá-lo desde sua gênese até seu desenvolvimento a partir do século 16 e a sua consolidação em seu tempo, século 19, quando, aliás, guardadas as devidas diferenças e proporções, o capitalismo já apresentava crises como as de hoje. A mais-valia (ou mais valor) não é uma invenção do crânio de Marx – é um dado real da concretização do capital em face do trabalho, e nenhum outro senão Marx a expôs, e criticamente… Portanto, teoria científica não é inventar uma ideia ou interpretação da realidade nem propor uma sugestão para o futuro sem qualquer base no real, mas, sim, observar com precisão o real, possibilitando descobertas e conclusões a respeito dele. As hipóteses da teoria costumam ser bem fundamentadas. Teorias marxistas a respeito da revolução consideram o passado histórico, exemplos de revolução e como elas se deram e como podem ainda se dar (considerando a política e a economia), e veremos como isto enriquece o presente e futuro das ações revolucionárias (outro caráter da teoria, no âmbito da filosofia da práxis, não mais apenas como observação do fato, mas como projeção de um fato a ser realizado).

6

A crítica na pesquisa científica – Em O Capital, ao tratar, por exemplo, do dinheiro, Marx discorre sobre quase todos os seus papéis, como ele é usado na sociedade e no percurso histórico, o dinheiro simples, o dinheiro que é capitalizado, etc.; mas também o trata criticamente, usa Shakespeare (versos da peça Titos Andronicos, em que se amaldiçoa o ouro) e também Aristóteles, para quem o dinheiro deveria ser um elemento de equilíbrio na sociedade para não gerar, de um lado, falta, e no outro, abundância (é o extremo oposto do que ocorre no capitalismo). Tal posicionamento de Marx não deixa de já ser uma visão crítica da realidade – mas que é pertinente justamente porque expõe fenômenos reais, a riqueza real de um lado e a pobreza real de outro. A ideologia dominante dos capitalistas, da farsa do neoliberalismo ou da extrema-direita procuram esconder tais dados, desprezam tal realidade desigual ou confundem com falácias como a da meritocracia, que não consideram as classes e o fato de que não partimos todos das mesmas condições socioeconômicas.

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Não há ciência – há ciências. Interligadas (por exemplo, o eletromagnetismo): a separação das ciências como autônomas era um equívoco metafísico até mais ou menos o século 18, contestado e corrigido sobretudo a partir do século 19 com uma melhor elaboração do materialismo. Os meios acadêmicos costumam fazer uma divisão entre ciências naturais e ciências sociais. Consideremos que o que se chama de “ciências sociais” possuem suas bases estruturadas a partir do trio (completamente distinto entre si) Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx.

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Na Antiguidade, sabemos que não havia distinção entre filosofia e ciência, porque a chamada filosofia da natureza, como uma pré-ciência ou uma protociência, se ocupava da busca do saber, dos fenômenos, da compreensão da natureza e do homem (Simões, 2014, p. 25). Precisamos recapitular esse processo histórico. Até meados do século 19, a ciência ainda não tinha satisfatoriamente se emancipado da filosofia: as teorias, para os cientistas, não apenas explicavam os fatos, mas eram uma apreensão última, total, ontológica da realidade (Cervo e Bervian, 1978). É, então, a partir do século 19, através de uma visão materialista da ciência moderna, que irá rechaçar a noção metafísica da natureza, com o início da modernidade, a revolução industrial e o desenvolvimento da ciência e o desenvolvimento econômico do capitalismo, que a filosofia se torna problemática em relação à ciência e ambas tomam novas posições. Marx e Engels serão também protagonistas neste processo, como veremos mais adiante. Depois da atitude materialista, toma-se no geral uma atitude mecanicista e, por fim, positivista. Neste momento, a teoria é restringida pelos cientistas ao âmbito dos experimentos, da experimentação (Pereira, 1990, p. 53). Assim, três definições de teoria passam a fazer sentido neste período: segundo E. Mach, “as teorias apenas orientam o sábio com economia de pensamento”; de acordo com Henri Poincaré, “as teorias não são verdadeiras nem falsas, são cômodas”; para Pierre Dühen, “as teorias servem apenas para classificar os fatos e as leis” (Pereira, 1990, p. 54). Nas últimas décadas, a posição tem sido intermediária, “sobretudo quando a visão positivista não se sustenta mais na sua pretensão de abarcar todo o pensamento e fazer da Ciência a síntese orgânica da cultura” (Idem). Isto sobretudo às ciências empírico-formais, ou seja, física, química, biologia, botânica, etc. Na matemática em especial, por ser uma “ciência formal” (ainda que não se separe das ciências empírico-formais, da física, da mecânica) que estuda principalmente as grandezas e as formas sempre através de conclusões e postulados simbólicos, não existiria teoria, pelo menos não nos mesmos moldes que das outras ciências empírico-formais, “na sua afronta ao fenômeno” (Pereira, 1990, p. 57). Um “naturalista” não inventa a ave; o matemático cria simbolicamente um “triângulo”, embora esta forma foi observada certamente a partir da natureza…

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Para o pensamento clássico antigo, mesmo na Grécia antiga (Aristóteles  identificava Teoria com bem-aventurança), a teoria, por ser especulação ou vida contemplativa, opunha-se à prática e a qualquer atividade não desinteressada, que não tenha a “contemplação” como objetivo (Abbagnano, 1998, p. 167). No senso comum dos dias de hoje, ainda vemos resquício desta noção, quando se diz que tal coisa “é muito teórica”, etc., ou seja, é “abstrata” demais, e nas tentativas de se desprezar grosseiramente a prática ou o real. Enfim, uma barreira explícita seria delineada entre teoria e prática, que a filosofia da práxis tratará de apagar.

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Nos dias atuais, há uma segunda definição principal de teoria: “condição hipotética ideal, a qual tenha pleno cumprimento normas e regras, que na realidade são observadas imperfeita ou parcialmente” (Op. cit.). Este significado se dá sempre quando se diz que, “teoricamente”, deveria ser assim, mas “na prática” é outra coisa. De todo modo, “Chama-se Teoria um conjunto de regras também práticas, quando são pensadas como princípios gerais, fazendo-se abstração de certa quantidade de condições que exerçam influência necessária sobre a sua aplicação” (Op. cit.), tanto na ciência quanto na filosofia.

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O que é uma boa teoria científica? Uma boa teoria é unificadora: como se ramificasse, explica um grande número de fatos e observações em um único modelo ou estrutura. A teoria deve também ser internamente consistente. Por fim, uma boa teoria não é fechada em si; encaixa-se em outras teorias bem testadas e consideradas, cooperando com outras teorias em suas explicações. Reunindo essas três características, teorias impactaram não só as suas áreas como também a própria mentalidade da humanidade.

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Finalmente, nas “ciências humanas”, que se estabelecem sobretudo na passagem do século 19 para o 20, o ato de teorizar é mais aberto do que nas ciências empírico-formais, estritamente presas ao objeto, e do que na matemática com seus postulados e conjunturas simbólicas. O objeto de investigação das ciências humanas “é ao mesmo tempo sujeito” (Pereira, 1990, p. 58), ou seja, não é o que chamam de “natureza natural”. Portanto, “a relação sujeito-objeto das ciências empírico-formais torna-se relação sujeito-sujeito nas ciências humanas” (Idem). É por causa disto que há um debate infindável para os mentores desta área de conhecimento a respeito de um estatuto científico padrão e da proclamação de resultados, fazendo com que as ciências humanas não sejam enquadradas no estatuário científico das ciências empírico-formais. Não há consenso. Porém, neste aspecto, o marxismo, o socialismo científico, o materialismo histórico e dialético têm o seu projeto revolucionário internacionalista e de mentalidade em comum.

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Nas ciências humanas, a formulação teórica e a proclamação de resultados não se bastam no método indutivo nem na relação causa-efeito das ciências empírico-formais, porque é forte nas ciências humanas o fator da interpretação, ainda que tal fator não seja central tampouco absoluto, fazendo com que suas questões estejam em aberto quando transformadas em teorias, sistemas, doutrinas, mesmo tendo um acervo histórico, algum progresso e desenvolvimento, mas não de modo fechado e “absoluto” como nas teorias e leis das ciências empírico-formais. É um consenso entre os cientistas de que “interpretar, em sentido amplo, já não é fazer ciência”, embora possamos chamar as ciências humanas de “ciência da interpretação por excelência” (Pereira, 1990, p. 59-60). Assim, as ciências humanas galgaram importante posição ao promoverem um “encontro entre a matematização dos resultados com a interpretação do homem” (Pereira, 1990, p. 60). É óbvio que as ciências humanas não abandonam as “ciências da natureza”: aproveitam delas dados da natureza para o conhecimento cada vez mais rico do objeto, mas com exclusividade, inclusive porque não possuem um padrão formal de linguagem matematizada, unitária, universal como nas outras ciências, atuando a partir de escolas e modelos de pensamento, sem dúvida muitos deles internacionalistas, como é o próprio socialismo científico, o materialismo histórico, a filosofia da práxis, o marxismo. É, porém, nas ciências humanas que o ato teórico, que a práxis teórica mostra-se em seu momento mais complexo para além da lógica e da gnoseologia, pelo fato do caráter eminentemente antropológico ou humanista das ciências humanas. Aqui, as melhores respostas – e as mais inovadoras – surgem sem dúvida com a filosofia da práxis. Nós não somos apenas protagonistas de toda teoria, mas somos (ou podemos ser) teórico-práticos!

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Agora está claro. Não podemos abordar a teoria em termo amplo (e tal amplitude só pode ser alcançada pela filosofia, por uma nova filosofia, como veremos adiante) apenas com o pensamento clássico nem apenas com a ciência moderna (empírico-formal), porque ambas caem num círculo vicioso. Por quê? Porque 1) A abordagem clássica, “idealista” e contemplativa, tomava o conhecimento da realidade como abstração, como raciocínio ou ciência da lógica, exagerando a “teoria” e esquecendo-se da síntese, que é um elemento fundamental na articulação do pensar (Pereira, 1990, p. 64). Antes de tudo, a abstração não é o todo da teoria tampouco é a própria teoria, a abstração é apenas um momento da teoria, do ato de teorizar, não raro ligado a junções concretas… Por fim, é a síntese que liga pensamento e realidade, o real ao racional e o racional ao real, numa relação dialética. A abordagem clássica, mesmo sendo essencialista, não chega à essência das coisas, porque esconde, desvincula ou ignora a concretude (Pereira, 1990, p. 65). Quem, em pleno século 21, ainda se posicionar assim, demonstra dogmatismo religioso,consciência ingênua (como argumentava o professor e filósofo Álvaro Vieira Pinto), limitada e alienada, ou tentativa proposital de alienar outros, sendo nosso dever alertar, refutar e desmascarar tais noções metafísicas. 2) A abordagem científico-experimental também não nos ajuda numa abordagem ampla da teoria, porque, se os clássicos não puderam trazer à tona o objeto real, concreto, a ciência moderna, reagindo ao posicionamento clássico, exagerou o outro lado e também não chegou à plena síntese. A ciência moderna, focada nos experimentos do objeto concreto, esqueceu, ignorou ou desprezou a ontologia da realidade (Pereira, 1990, p. 65-66). O século 20 viu ainda outros muitos aspectos para a ciência moderna, notavelmente a questão da tecnologia, levando a uma mentalidade pragmática e utilitarista, ainda vigente neste século 21.

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Neste processo, não é errado dizer que ela subtraiu ou se esqueceu do Homem, ou da Mulher, para usarmos um termo menos dominante. Esqueceu-se do Jovem Estudante, do Trans, do Trabalhador! Em suma, esqueceu-se do protagonista do conhecimento e da ação, levando aos problemas cada vez mais frequentes das últimas décadas em relação ao complexo ciência-tecnologia, que ela parece não poder dominar, a menos que “peça auxílio a quem anteriormente abandonou como companheira inútil: a filosofia” (Pereira, 1990, p. 66). Não a filosofia clássica. Uma filosofia crítica e da práxis.

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Marx fala-nos do ser social. Não será a metafísica nem a ciência moderna que nos ensinarão sobre os protagonistas do conhecimento e da ação (nós) inseridos em classes sociais, processos históricos, relações de poder, etc. São terrenos para as chamadas ciências humanas. A significação dos seres sociais sobre o mundo não deixa de ser uma ação prática. Portanto, a teoria que não ascendeu ao nível da ação possui resíduos de mera abstração. Não se teoriza no vazio, mas em contexto x, y, ou z. A teoria não se refere apenas ao pensar ou à inteligência e ao raciocínio. A filosofia da práxis surge do aspecto teórico da prática para a unidade teoria-prática.

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Na concepção clássica (filosofia grega antiga e medieval – Platão, Aristóteles, até o cristianismo de São Tomás de Aquino, etc.), teoria, teorizar é/era abstrair, “exercício abstrato do raciocínio distante do concreto, do real” (Pereira, 1990, p. 18). Tratava-se quase de ginástica mental que leva a um círculo vicioso formal do conhecer as coisas, do adaequatio rei intelectus (adequação do objeto com a mente) e do adaequatio intelectus et rei (adequação da mente com o objeto). De certa forma, muitos dicionários e enciclopédias mostram ainda hoje definições de teoria através dessa visão metafísica, abstrata, essencialista e mecanicista… “Ora, é a contradição que gera a unidade. Unidade sem contradição não é unidade, é uniformidade. Se há tese e não há antítese, não acontece a síntese. O pensamento em si mesmo, em sendo a ausência da unidade dos contrários, torna-se tão somente uma bela moldura, mas sem estampa” (Pereira, 1990, p. 24). Portanto, apesar de nos fornecer as regras dos conceitos e os fundamentos das definições, tal pensamento clássico tem um limite e nos é insuficiente, porque não resolve problemas contraditórios (pensamento e realidade, teoria e ação, sujeito e objeto, subjetivo e objeto, ciências teoréticas específicas e ciências teoréticas filosóficas, etc.) nem nos apresenta, em sua lógica formal (mesmo sendo ela básica para estudar filosofia e mesmo as ciências), a lógica em fluxo, a dinâmica dialética do discurso que se encontra entre teoria e prática.

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Por outro lado, a teoria também é problemática na ciência moderna, cujo berço é o pensamento clássico (muitas vezes chamado de “pré-ciência” ou “protociência”). Na ciência moderna de experimentos, assim como na concepção clássica, que era abstrata, a teoria se opõe à prática, desta vez por sua visão estritamente objetual e técnica (Pereira, 1990, p. 51). Neste processo histórico entre a filosofia clássica e a ciência moderna, em que novos instrumentos científicos foram criados e muitas mudanças econômicas ocorreram, vimos surgir uma novidade para a teoria, novos elementos significativos, a saber: “a vinculação com o objeto pesquisado e, portanto, com a experiência, ou experimentação, na relação direta de causa-efeito” (Pereira, 1990, p. 30). Trata-se de uma revolução – agora, o método de abordagem do objeto pesquisado e a ser conhecido envolve dados, fatos, fenômenos, fazendo com que sem o horizonte da experimentação não se possa compreender a elaboração teórica na ciência moderna. Porém, apesar da relação causa-efeito e da experimentação, a teoria na ciência moderna não anulou a abstração mental, por causa das hipóteses variadas a serem levantadas pelo cientista sobre o mesmo fenômeno. A teoria, aqui, é resultante do experimento – bastam uma ou várias leis para a ciência moderna garantir a elaboração de uma teoria, de um sistema, de uma doutrina. Basicamente, há o momento da observação e da pergunta, depois a hipótese da pergunta, então o experimento e, por fim, a lei, o postulado, a conclusão. (Para entender este processo com um exemplo simples, Cf. Pereira, 1990.) A “ciência moderna” acontece pelas relações entre dedução-indução (modos de raciocínio lógico-formal) e análise-síntese (o mesmo processo vinculado ao fenômeno observado) (Pereira, 1990, p. 31). Há pelo menos três modalidades de ciências: ciências formais ou exatas (lógica e matemática), ciências empírico-formais (física, biologia, química, etc.) e ciências hermenêuticas ou interpretativas (as “humanas”) (Pereira, 1990, p. 31).

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“Ciência antiga/grega”, “ciência moderna” – Não existiu uma ciência grega nos termos científicos de hoje, como já vimos anteriormente, apenas uma pré-ciência ou uma protociência em forma de filosofia (Pereira, 1990, p. 49). De todo modo, a filosofia clássica ou a ciência grega antiga era qualitativa (Aristóteles falava em termos de quente/frio, etc.), enquanto que a ciência moderna é quantitativa (conforme já foi explicado acima), sobretudo a partir de Copérnico ou Galileu Galilei, quando surgem aparelhos mais sofisticados e exatos de medir o objeto e o fenômeno (Pereira, 1990, págs. 49-50). Ademais, o conhecimento de causas para o pesquisador antigo era sempre metafísico e essencialista (um tipo de pensamento primeiro a respeito do ser), enquanto que para o cientista moderno o que vale sobretudo é a interação e a funcionalidade da pesquisa. Enquanto a ciência antiga buscava a causa num sentido amplo, filosófico e não raro metafísico, a ciência moderna constrói a lei geral com uma linguagem simbólica e matematizada a partir da resolução das relações de causa-efeito do fenômeno específico. Por fim, a ciência grega antiga era antropocêntrica (a medieval era teocêntrica) no sentido físico e cognitivo, enquanto a ciência moderna se supõe excêntrica, ou seja, não gira em torno de nada além de si e existe em função de seus resultados (Pereira, 1990, p. 50).

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As seis características da ciência moderna – 1) A mensuração das medidas, temperaturas, atributos de cor, peso, forma, voltz, etc., toda uma simbologia lógico-matemática unitária, que torna a ciência moderna universalmente válida; 2) a funcionalidade, a função de todo o processo sem necessariamente se levantar questões mais culturais, ontológicas e filosóficas do por quê ou do que é; 3) o caráter seletivo de método indutivo de elementos/dados específicos para chegar à lei geral; 4) o caráter aproximativo da teoria científica, em que existe um certo nível de interpretação para o esforço de compreensão simbólica do fato, que substituirá ou representará o real, o fenômeno; 5) o caráter progressivo, isto é, cumulativo em uma trajetória histórica de descobertas e experimentos irreversíveis em relação ao passado, mas não às descobertas futuras mais desenvolvidas; 6) por fim, a exatidão na formulação unívoca, dependendo de seus resultados e da lei anterior sobre um fenômeno testado e observado (Pereira, 1990, págs. 46, 47 e 48).

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Hipótese e teoria – Nas ciências modernas, ambas (hipótese e teoria) estão ligadas ao processo de pesquisa, mas a hipótese, que surge de conjeturas e suposições a partir da observação do fenômeno, é praticamente a antessala da teoria, que, por sua vez, “exerce o papel de coroamento da hipótese, depois de experimentada e comprovada” (Pereira, 1990, p. 52). A teoria é um ponto final do processo, considerando o todo (observação, hipótese, experimento, lei), embora outras teorias surjam, mais desenvolvidas a partir daquela, porque uma teoria pode abrir espaço para novas conjunturas.

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Afirmei linhas acima que, na ciência moderna de experimentos, assim como na concepção clássica abstrata, a teoria se opõe à prática, mas desta vez por sua visão estritamente objetual e técnica, dependendo exclusivamente dos experimentos. Nas ciências empírico-formais como a biologia, a física e outras, a teoria depende do método e nele se envolve.

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Filosofia e ciência, diferenças básicas que a modernidade explicita – Um filósofo pode ter uma “linha de pensamento”, mesmo a partir de conceitos filosóficos formativos predecessores. O cientista, não. Um filósofo, pelo fato da filosofia ser um campo do saber intelectivo e criativo, pode partir de um ponto zero ou de uma “novidade absoluta” (será mesmo que existe isso?!), seja o seu estilo ensaístico ou em forma de tese. Na ciência, não: sobretudo nas ciências empírico-formais, a trajetória é sempre progressiva e não se volta à estaca zero, mantendo sempre relação coerente com o trabalho de outros cientistas globais, não existindo nas ciências, portanto, muito espaço para as interpretações pessoais como na filosofia, apenas conjeturas ou suposições (Pereira, 1990, págs. 43-44). O cientista está subordinado ao fenômeno em si e o seu experimento consagra (ou não) a hipótese como certa.

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Teoria e conceito – Não são a mesma coisa. Conceitos são criados pela filosofia. As ciências empírico-formais se contentam com as teorias. Ao passo que os conceitos filosóficos surgem de uma criação do filósofo a partir de um problema e tendem a uma generalização das ideias, as teorias, por mais gerais que possam se tornar, são sempre específicas em torno do objeto real pesquisado. Teorias não são fatos, mas podem ser nomeadas como a melhor hipótese ou suposição possível sobre um certo fenômeno. Um conceito é uma ideia geral, criada. Uma teoria é uma explicação sustentada por evidências significativas. Um conceito não possui necessariamente tal evidência. Teoria como um sistema de ideias que pretendem explicar, expor ou justificar um fenômeno real, que se apresenta na realidade, que não é criação do pesquisador, embora ele possa ser crítico. Não raro, uma teoria se mostra como um conjunto de regras, de leis sistematicamente organizadas, que servem de base a uma ciência. Veremos, mais adiante, que na filosofia da práxis a teoria pode ser também como a científica, mas ascende ainda a um outro nível diferente ao das ciências tradicionais: o de projetar, preparar e anteceder a transformação do real. Os conceitos inserem-se num processo criativo “pelo qual atores sociais buscam solucionar os problemas que eles enfrentam ao tentar entender e transformar o mundo ao seu redor”, enquanto as “teorias, por outro lado, devem ser entendidas como tentativas intencionais e racionais de resolver problemas práticos” (Berger & Luckmann, 1987, p. 33). Mais ainda, os conceitos são os elementos últimos de todos os pensamentos, constituindo uma concepção geral ou até universal. Somente a filosofia da práxis parece englobar teorias e conceitos, preservando as suas diferenças.

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Filosofia e ciências, atuação – Ao afirmar que a estrutura (o modo econômico que caracteriza as classes sociais, o trabalho, as ferramentas e meios de produção, etc.) pode ser estudada com os métodos das ciências naturais e exatas, Gramsci escreve que “precisamente por esta sua ‘consistência’ objetivamente verificável, a concepção da história foi considerada ‘científica’ (Gramsci, Caderno 10, II, S 41; 1, p. 361). Aqui, delineia-se algo muito importante para uma definição precisa e moderna de ciência (ou de ciências ditas naturais e exatas) ao apoiá-la à verificabilidade e à consistência objetiva. Para Gramsci, a filosofia, por sua vez, é uma concepção, uma conceituação de mundo.

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Com a indústria, surgiu o “especialista da ciência aplicada e organizador técnico, que age por meio da ordem e da disciplina intelectual” nas “sociedades cujas forças econômicas se desenvolveram em sentido capitalista até absorver a maior parte da atividade nacional” (Gramsci, “Alguns temas da questão meridional”, Escritos Políticos 2, págs. 405-435). Antes, o elemento organizador da sociedade era o “velho intelectual da sociedade de base predominantemente
camponesa e artesã” (Op. cit.).

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A filosofia descolada do mundo – Em A Ideologia Alemã, lemos Marx e Engels ousadamente afirmarem: “A relação entre filosofia e estudo do mundo real corresponde à relação entre onanismo e amor sexual.” (Segunda parte, 6, C, “O liberalismo humano”.) Para quem não sabe, onanismo é masturbação… Algo como masturbação mental e intelectual. Eles chegam a afirmar, citando ipsis litteris uma frase do botânico alemão Albert Wigand: “É preciso “deixar a filosofia de lado” (Wig[and,] p. 187, cf. Heß, Die letzten Philosophen, p. 8), é preciso desembarcar dela e dedicar-se como um homem comum ao estudo da realidade, tarefa para a qual existe uma gigantesca quantidade de material literário, certamente desconhecido dos filósofos (…)”m Na segunda parte desta obra, sobre a organização do trabalho, Marx e Engels criticam diretamente a elucubração filosófica sobre a substância e a negligência dos filosófos para com o real. “A luta dos filósofos contra a “substância” e sua total negligência em relação à divisão do trabalho, à base material, onde tem origem o fantasma da substância, apenas comprova que estes heróis se voltam apenas para a destruição de frases, e de modo algum para a mudança das relações, de onde estas frases deviam surgir. Por isso, eles negligenciam tranquilamente a divisão de trabalho, a produção material e o intercâmbio material, justamente tudo aquilo que subsume os indivíduos a determinadas relações e modos de atividade. Em geral, para eles se trata, apenas, de descobrir novas fraseologias para a interpretação do mundo existente, fraseologias que se esgotam em bazófias burlescas na mesma medida em que eles cada vez mais acreditam se elevar acima deste mundo e pôr-se em oposição a ele. Do que Sancho constitui um exemplo deplorável.”

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Vemos, acima, a crítica radical de Marx e Engels a todas as filosofias até então, idealistas, e da filosofia como tal em sua forma clássica, ou seja, crítica da “filosofia” enquanto teoria pura ou interpretação pura, isenta de se submeter à verificação da prática e seu critério. É a crítica ao filósofo que governa as palavras como se as palavras tomassem o lugar do mundo, filósofo como demiurgo de um pseudo-mundo.

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“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; trata-se, agora, de transformá-lo” (Marx, 1978). Nesta famosa frase, Marx está conclamando a Filosofia para a atuação ou está chamando a atenção para o fato de que agora (século 19, com todo seu desenvolvimento) é a hora e a vez da ciência? Para Marx, a ciência tem um compromisso com a transformação social. Marx acredita que os filósofos estudaram o mundo, mas limitaram-se a isso, enquanto os cientistas devem agora transformá-lo. Ele afirma: “Só no contexto social é que o subjetivismo e o objetivismo, o espiritualismo e o materialismo, a atividade e a passividade, deixam de ser e de existir como antinomias. A resolução das contradições teóricas unicamente é possível através dos meios práticos, através da energia prática do homem. Por conseguinte, a sua resolução não constitui de modo algum apenas um problema de conhecimento, mas é um problema real da vida, que a filosofia não conseguiu solucionar, precisamente porque a considerou só como problema puramente teórico.” (Marx, 1971, p. 200)

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A tese 11 de Marx é um rompimento metodológico sem precedentes com a noção clássica (Pereira, 1990, p. 80).

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(Quando Deleuze e Guattari – dois autores da segunda metade do século 20, influentes em certos círculos brasileiros de hoje em dia, embora pareçam não se encaixar neste texto, mas faz algum sentido se os pensarmos no contexto do Maio de 68 e na insistência duma filosofia da imanência contra a transcendência vertical – afirmam, com o corpo sem órgãos de Artaud e com a ética de Espinosa (filósofo clássico querido por comunistas como Marilena Chauí ou Antonio Negri), mas também com as lutas de classes e a produção em Marx, que é citado várias vezes em O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia ou no Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, que o desejo não é falta, mas criar, produzir, e que não se trata de interpretar, como pensam a psicanálise freudiana, lacaniana, presas ainda a um platonismo renitente, mas de experimentar, não há aí também alguma influência marxiana ou marxista da tese 11? O último livro de Deleuze, que em seus últimos anos, n’O Abecedário, afirma que ainda é marxista, se chamaria “A Grandeza de Marx”. No livro de ambos, O Que é Filosofia, as ciências assumem a posição de criadoras de funções, enquanto a filosofia, a partir de problemas, cria conceitos num plano de imanência, sendo imediatamente contrária à religião, que está na posição vertical da transcendência.)

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O francês Georges Labica, em seu livrinho Democracia e Revolução (2002), ao afirmar que a revolução socialista, comunista não pode se aninhar na forma do Estado burguês/capitalista, nos lembra que a tese 11 de Marx opõe a palavra alemã verändern, “que não se reduz à vaga transformação, nem mesmo à metamorfose, já que ele diz respeito às próprias formas. A vontade de mudar não pode excluir o destruir.” (Labica, 2009, p. 44.)

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É especialmente importante também a anotação de Antonio Gramsci décadas e décadas depois, já no século 20, de que a tese 11 “não pode ser interpretada como um gesto de repúdio a qualquer espécie de filosofia, mas apenas de fastio para com os filósofos e seu psitacismo, bem como de enérgica afirmação de uma unidade entre teoria e prática.” (Gramsci, Caderno 10, II, S 31, págs. 339-346.)

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Mas a querela continuava, estabelecendo um embate que precisou e, diante dos nossos problemas atuais, ainda precisa ser resolvido. Nos `Manuscritos Econômicos-Filósóficos`, Marx faz uma distinção do papel das ciências naturais e da filosofia. Segundo o autor, a primeira tem um papel mais ativo na vida prática humana através da indústria: “(…) transformou-a (a indústria) e preparou a emancipação da humanidade, muito embora o seu efeito imediato tenha consistido em acentuar a desumanização do homem” (Marx, 1971, p. 201). Aqui, Marx ao menos considera a desumanização do processo de desenvolvimento.

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Engels, o grande amigo e companheiro de luta inseparável de Marx, afirmou que, por ressaltar a transitoriedade, “Não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado para a filosofia dialética” (Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã). Aqui, há uma afirmação da nova filosofia. Em outro momento, o co-fundador do materialismo histórico e do socialismo científico lembra que, na superação de Hegel, a dialética ficou reduzida “à  ciência das leis gerais do movimento, tanto do mundo exterior como do pensamento humano” (Op. cit., ). Este aspecto da obra de Marx e Engels foi notavelmente transformador e revolucionário, a ponto de se afirmar que o materialismo dialético “não necessita de nenhuma filosofia colocada acima das outras ciências”, restando da filosofia anterior apenas “a teoria do pensamento e das suas leis, a lógica formal e a dialética” (Engels, Anti-Dühring). Aqui, é praticamente como se a ciência tivesse superado a filosofia, que teria perdido o seu sentido no mundo moderno. Trata-se, na verdade, de um tipo específico de “filosofia” que foi superada – a metafísica, como sabemos. Seria a constatação de Engels uma negação total da filosofia e o predomínio da ciência? Não é assim que a posterioridade encarou dentro do próprio marxismo. Ganhou força a tentativa de constituir melhor a filosofia da práxis, que, embora não seja separada do processo de desenvolvimento e predomínio das ciências, conquista seu espaço a partir das consequências científicas pós-Marx e Engels, como vimos anteriormente na insuficiência da teoria nas ciências empírico-formais.

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Diante de tal posicionamento tácito que sublima a ciência sobre a Filosofia, gostaria de estabelecer três conclusões: 1) A filosofia do tempo de Marx e Engels, sobretudo os alemães em questão, era condizente com a ideologia burguesa mistiticadora e com a ideologia direitista do império prussiano-germânico, ou seja, era preciso uma crítica violenta à consciência descolada do real e à filosofia que, distraída pelo método clássico, simplesmente desconsiderava os novos progressos científicos. 2) No entanto, há algo de mais profundo na crítica dos dois, que remonta toda a história da filosofia: ela anda num descompasso em relação ao mundo real e às urgências desse mundo, muitas vezes imbuída de quietismo, principalmente quando, em meados do século 19, é defrontada com o pleno desenvolvimento da ciência, que age no real ou a partir do real e pode transformar a matéria. 3) Não se trata necessariamente de acabar com a filosofia, porque a filosofia tem o seu espaço próprio de conceituação, mas de evocar a partir do desenvolvimento da ciência uma filosofia nova, uma filosofia da práxis. Isto constituirá o materialismo filosofico, o materialismo histórico e dialético, o socialismo científico, que ja são métodos de ambas, filosofia e ciência.

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Isso tudo não quer dizer que Marx não tenha também escrito em termos filosóficos, enfim. Marx não deixa de trabalhar com conceitos – herança certamente hegeliana, que ele superará constantemente… Em Hegel, conceito é a universalização das categorias. O trabalho de Marx é basicamente voltado às categorias. Luckás foi quem trouxe à tona a palavra ontologia para tratar da pesquisa de Marx: há uma ontologia imanente… Quando Marx é crítico (a palavra crítica é constante e reiteirante em toda sua obra, até mesmo nos títulos dela), é porque parte de concepções e intervenções de fundo filosófico. Além do mais, ninguém nega que Marx tenha lidado com problemas filosóficos e com conceitos. Por exemplo, há um conceito marxista de dialética, de ideologia, de alienação, etc., partindo da filosofia clássica antiga e de Hegel, mas de maneira crítica e original em sua obra. Sua teoria social só pode ocorrer no interior de um invólucro dialético. Por fim, lembremos dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, lembremos do Miséria da Filosofia, das 11 Teses de Feuerbach ou mesmo da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São obras em que pululam conceitos filosóficos, mesmo que seja para criticar a própria filosofia. Enfim, não deixou Marx de transitar ou de desconhecer a filosofia e a história do pensamento filosófica. Em carta de 3 de março de 1870 para J. M. Weber, o próprio Marx testemunha (tradução minha a partir do Marx&Engels Collected Works, Volume 41): “Em Bruxelas, além de contribuições não remuneradas a diversos jornais radicais de Paris e Bruxelas, eu escrevi a Crítica do Criticismo Crítico [Marx refere-se ao livro A Sagrada Família] em colaboração com Fr. Engels (um livro sobre filosofia, publicado por Rütten, Frankfurt am Main, 1845), Misere de la Philosophie (livro sobre economia publicado por Vogler em Bruxelas e por Frank em Paris em 1847) [Miséria da Filosofia], Discours sur le libre échange (Bruxelas, 1848) [A Ideologia Alemã], um trabalho em dois volumes sobre a filosofia e o socialismo alemães dos últimos tempos (não publicado; veja meu prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, F. Duncker, Berlim, 1859), e numerosos panfletos.”

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“O problema de saber o que é a “ciência” deve ser posto. Não é a ciência, em si mesma, “atividade política” e pensamento político, na medida em que transforma os homens, torna-os diferentes do que eram antes? Se tudo é “político”, é preciso, para não cair num fraseado tautológico e enfadonho, distinguir com conceitos novos entre a política que corresponde àquela ciência que tradicionalmente se chama “filosofia” e a política que se chama ciência política em sentido estrito. Se a ciência for “descoberta” de realidade antes ignorada, não será esta realidade, em certo sentido, concebida como transcendente? E não se pensará que ainda existe algo de “desconhecido” e, portanto de transcendente? E o conceito de ciência como “criação”, afinal, não equivale a “política”? Tudo consiste em ver se se trata de criação “arbitrária” ou racional, isto é, “útil” aos homens para ampliar seu conceito da vida, para tornar superior (desenvolver) a própria vida.” (Gramsci, Caderno 15, S 10; 3, págs. 33-332).

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Este papel real e ativo do cientista e do filósofo é reiteirativo também em Antonio Gramsci, ou seja, na primeira metade do século 20. Não basta eloquência nem escolaticismo. É preciso que o intelectual esteja inserido na vida prática como construtor, organizador, “persuasor permanentemente, já que não apenas orador puro – mas superior ao espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho, chega à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual permanece “especialista” e não se torna dirigente (especialista + político).” (Gramsci, Caderno 12, S 3; 2, págs. 52-53).

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A Filosofia pode exercer sua própria tarefa em relação às teorias científicas. Pode e deve, como já foi escrito, ser um prolongamento das ciências, apoiando-se nas ciências. Eu defendo que a elaboração filosófica pode resultar num sistema que fornece base, sentido e perspectiva crítica à nossa realidade, aos nossos problemas e à própria ciência. A filosofia pode demarcar boas teorias científicas das não-científicas (falsificabilidade). Pode refletir criticamente sobre o sujeito e sua perspectiva em relação ao objeto. Pode conceituar a respeito do invólucro filosófico que engloba sujeito, pesquisa e objeto. O método do materialismo histórico, por exemplo, sem dúvida tem um invólucro da grande mãe da ciência, a Filosofia e sua Dialética. No auge do positivismo lógico, abordagens altamente formais das teorias as tratavam em termos de sistemas axiomáticos, cujos termos teóricos estavam intimamente ligados a um vocabulário observacional que deveria fundamentar o significado empírico; uma abordagem menos formal e mais contextualizada, anunciada no trabalho de Thomas Kuhn, enfatizava a abertura da atividade científica, o valor heurístico das analogias e modelos, a elasticidade e o holismo do significado, os quais sugeriam que uma abordagem excessivamente formal distorceu o assunto.

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Uma “filosofia da ciência” tem a utilidade, no século 20 e para este 21, de destecnocratizar a ciência, ao concebé-la como uma forma humana de ser no mundo, e pode mostrar que a ciência é atividade humana historicamente determinada (assim opera a filosofia da práxis). A técnica não pode manipular homens e elementos coisificados, sendo que nenhum outro campo do saber senão a filosofia intervém neste perigoso processo. Eis aí um dos papéis da filosofia da práxis, ainda mais pungentes hoje, pelo próprio desenvolvimento científico e novas formas de sociabilidade e trabalho virtual, do que nos séculos dos marxistas precedentes – reiterar que a técnica precisa mudar o homem, que a possui, pela própria práxis. Assim, a filosofia pode evitar a tecnologização do homem e humanizar a técnica. (Em seu Bodenlos: uma autobiografia filosófica, Vilém Flusser, filósofo tcheco naturalizado brasileiro e radicado durante 30 anos em São Paulo, que se debruçou sobre uma “filosofia da ciência”, apesar dos elementos demasiadamente metafísicos e até esotéricos de seu pensamento, é justamente o que acabei de escrever “o núcleo de todo verdadeiro marxismo”.)

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Estrutra e superestrutura, as ciências e a filosofia – Numa formativa passagem do “Prefácio” à Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx escreve: “É preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo.” De fato, as ciências exatas ou físicas são capazes de delinear objetivamente as forças sociais da estrutura, o grau de desenvolvimento das forças materiais de produção, os agrupamentos sociais que derivam deste desenvolvimento, a função e posição de cada um desses agrupamentos, o número de empresas e empregados, o número de cidades e sua respectiva população, o modo de produção, etc. A filosofia pode se utilizar desses dados para a sua concepção de mundo, mas tais dados não são o seu fim e objetivo. 

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Marx não desenvolveu uma teoria específica sobre a ciência ou a tecnologia. O que aparece como central na obra desse autor são as relações de produção, as relações trabalhistas, a divisão de classes e outros. Contudo, o pensamento instigante de Marx deu espaço para uma famosa e já bastante tratada discussão sobre a tecnologia, especialmente em “O Capital”, que tangencia também a questão do papel da ciência na nossa sociedade.

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A suposta autonomia da ciência – Para Marx, a ciência não é autônoma por três motivos. O primeiro refere-se ao fato de que uma ciência que se diz autônoma é ideológica, ou seja, acredita-se ou quer que acreditem-na desvinculada das relações de produção, autônoma, negando o dado do homem como ser social e ocultando seus comprometimentos sociais. Nesse sentido, ela não é nem autônoma nem neutra. O segundo motivo é relativo à questão de que a ciência, conforme Marx, tem um papel objetivo, direto, prático, portanto político que deve ser cumprido. O terceiro motivo, enfim, refere-se ao fato da ciência estar na superestrutura e, portanto, ser formada e mantida pela esfera econômica. Quanto a isso, parece incontestável: para haver pesquisa, é preciso haver condições materiais, além de determinados utensílios e ferramentas.

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Para Marx, os cientistas, como bem está colocado nas citações acima, têm de tomar posição política, tem de fazer uma intervenção social, uma vez que as ciências estão geralmente mais diretamente ligadas ao mundo material e a uma prática do que a filosofia. A ciência é e sempre será engajada: “Uma base para a vida e outra para a ciência constituem a priori uma mentira” (Marx, 1971, p. 201). O próprio Marx foi um intelectual engajado na medida em que investiu no socialismo científico não só para compreender a sociedade, mas, sobretudo, para dar respostas a problemas concretos.

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Os principais objetivos da discussão científica são o progresso da ciência e a pesquisa da verdade (Gramsci, Caderno 10, II, S 24; 1, 333), uma verdade que certamente não é absoluta, porquanto é próprio da natureza científica, sem deixar de incorporar pesquisas e descobertas anteriores ou até de adversários contemporâneos, desmistificar mentalidades e trazer constantemente outra(s) verdade(s) num continuum.

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Gramsci, ao definir marxismo como ciência e ação, cita Lênin – “o maior teórico atual da filosofia da práxis” – em relação a Marx (criador de Weltanschauungen, concepção de mundo), e fazendo uma associação (histórica, não religiosa!) entre os dois com Jesus, concepção de mundo, e Paulo, organização, continuação, expansão da Weltanschauung (Gramsci, Caderno 7, S 33; 1, 242-243). Do desejo ou mesmo da utopia para a ciência, e desta para a prática.

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“Só uma teoria revolucionária cria uma ação revolucionária” é a frase mais famosa do grande teórico da Revolução de 1917. Lênin – protótipo do intelectual revolucionário que parte da filosofia, da ciência, da teoria, do pensamento, do espírito para a prática, para o real, com todos os erros e glórias deste processo e fluxo -, em texto famoso sobre as três fontes e as três partes constituivas do marxismo, escreve que “A filosofia do marxismo é o materialismo”, denominando-o “materialismo filosófico”, e que “O materialismo histórico de Marx é uma conquista formidável do pensamento científico” (p. 36). Temos, aqui, um equilíbrio entre filosofia e ciência. As outras duas partes do marxismo são a economia inglesa de Adam Smith e David Ricardo, da qual Marx irá retirar valiosas teorias econômicas para sua crítica em O Capital, e o socialismo utópico (que se difundiu na passagem do século 18 para o 19), que virará científico com Marx e Engels. Este materialismo – que parte do materialismo francês do século 18 e depois bebe da filosofia alemã de Hegel (idealista, mas dialético, notando a matéria em desenvolvimento) e Feuerbach (que é crítico de Hegel, e que depois Marx e Engels irão criticar e superar) – é filosoficamente fiel a todos os ensinamentos verificáveis das ditas ciências naturais e hostil às superstições e às ideias meramente religiosas, enquanto que o materialismo histórico se transforma em método científico integral e harmonioso para analisar as forças produtivas e as formas de vida social, por exemplo, do feudalismo para o capitalismo, e deste para o socialismo, depois o comunismo, ou o ocaso em conjunto das classes em conflito, conforme assinala o início do Manifesto Comunista. Conclui Lênin: “A filosofia de Marx é o materialismo histórico acabado, que deu à humanidade, à classe operária sobretudo, poderosos instrumentos de conhecimento” (Op. cit, p. 37). Em outro texto mais cavado, um verbete com breve nota biográfica de Marx com uma exposição do marxismo, Lênin é plenamente consciente do legado da velha filosofia idealista para a nova filosofia materialista e para a ciência utilizada pelo marxismo.

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Em determinado momento dos Cadernos do Cárcere, a respeito da questão da “natureza humana”, Gramsci anota: “O problema do que seja o homem […], isto é, a tentativa de criar uma ciência do homem (uma filosofia) que parta de um conceito inicialmente ‘unitário’, de uma abstração na qual se possa conter todo o ‘humano’ […]” (Gramsci, Caderno 7, S 35; 1, p. 243). Atenção para este trecho que praticamente estabelece um sinônimo: “uma ciência do homem (uma filosofia)”…

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Para Antonio Gramsci, todos têm o potencial de serem filósofos, porque todos pensamos, lidamos com problemas altos ou do “senso comum”, podemos ser críticos e até criarmos concepções de mundo. No entanto, os filósofos “profissionais” ou “técnicos” possuem maior homogeneidade, coerência e logicidade do que as demais pessoas, trabalham com maior rigor, originalidade e sistematização, conhecem também toda a história do pensamento, além do fato de que nem toda concepção da vida e do mundo, nem qualquer tendência de pensamento ou orientação podem ser chamados de filosofia. “Ele [o filósofo] tem, no campo do pensamento, a mesma função que, nos diversos campos científicos, têm os especialistas. Entretanto, existe uma diferença entre o filósofo especialista e os demais especialistas, a saber, a de que o filósofo especialista se aproxima mais dos outros homens do que os demais especialistas. Foi precisamente o ter feito do filósofo especialista uma figura similar, na ciência, aos demais especialistas aquilo que determinou a caricatura do filósofo. Com efeito, é possível imaginar um entomólogo especialista sem que todos os outros homens sejam “entomólogos” empíricos, ou um especialista de trigonometria sem que a maior parte dos outros homens se ocupem da trigonometria etc. (podem-se encontrar ciências refinadíssimas, especializadíssimas, necessárias, mas nem por isso ‘comuns’), mas é impossível pensar em um homem que não seja também filósofo, que não pense, precisamente porque o pensar é próprio do homem como tal (a menos que seja patologicamente idiota).” (Gramsci, Cadernos, 10, II, S 52; 1, págs. 410-411).

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A filosofia, no marxismo, é a práxis, ou seja, é a relação entre a vontade humana (superestrutura) e a estrutura econômica (Gramsci, Caderno 7, S 18; 1, págs. 236-237). Nesta relação, encontra-se também o desenvolvimento dialético entre natureza e forças materiais de produção, entre homem e matéria. Na economia, o valor, a teoria do valor é o centro unitário. Na política, há a questão do Estado e da sociedade civil.

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Filosofia e Política é pensamento e ação, é filosofia da práxis (Gramsci, Caderno 7, S 35; 1, p. 246). Uma filosofia que abarca a massa, porque possui uma concepção de massa, e cuja função não é o individualismo do pensador, mas a unidade social na qual ele está inserido, ou seja, direção política (Gramsci, Caderno 10, II, S 31; 1, págs. 339-346). O movimento dos trabalhadores e estudantes brasileiros e latino-americanos precisa ser, já é, herdeiro da nossa filosofia: continua o predecessor, mas o continua praticamente sem contemplação, conhecimento real sem “escolasticismo”, mas com ação e vontade ativa transformadoras.
“A precedência passa à prática, à história real das modificações das relações sociais, das quais, portanto (e portanto, em última análise, da economia), surgem (ou são apresentados) os problemas que o filósofo se propõe e elabora” (Op. cit.).

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Teoria e prática – A prática é o ato de realizar. O professor Georges Politzer ensinava que a indústria e a agricultura, por exemplo, realizam, ou seja, tornam reais certas teorias (teorias químicas, físicas, biológicas, etc.), ao passo que, para ele, a teoria é o conhecimento das coisas que queremos realizar (POLITZER, 1979, págs. 19-20). Eu acrescentaria este “realizar” (que, por si só, une uma teoria a uma prática) a também “transformar”, “alterar”, “mudar”, ou até mesmo “destruir”. Ser apenas prático é realizar por rotina, e a rotina aliena. É possível também ser apenas teórico – o que periga conceber o que é irrealizável. Portanto, é preciso haver uma interligação entre a teoria e a prática.

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Ainda que sem um horizonte de realidade e/ou de prática a teoria não deixe de ter componentes abstratos, devemos liberar a teoria de qualquer “tecnicismo” ou mesmo do sinônimo único de “pensamento puro”, tampouco associarmos a teoria apenas ao “conhecimento abstrato e intelectualista”, porque “não é a teoria que se opõe à prática pura, é a abstração” (Pereira, 1990, p. 11).

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Teoria e prática, práxis – Prática separada da teoria não é ação consciente e transformadora, é prática pura, nos impossibilita de passar da prática à práxis, ou seja, de completar a síntese e a unidade (Pereira, 1990, p. 75). Não confundir prática com práxis, apesar das semelhanças entre tais palavras. Quando falamos em teoria, precisamos considerar o aspecto teórico da prática, que abre o ato para seu significado cultural e amplia a ação para uma finalidade, uma teleologia. A filosofia da práxis ocorre justamente ali do aspecto teórico da prática para a unidade teoria/prática.

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A dialética da relação teoria/prática – Antes de tudo, quem diz dialética diz movimento, contradição e dinâmica. Então, por que é que a teoria precisa estar presente no processo de construção da práxis? Porque a prática pura não cria cultura nem transforma a História. A contradição máxima da relação teoria/prática se dá pelo fato de que não podemos nos livrar nem da teoria nem da prática. Negamos a prática pura como instintiva ou mecânica. Através da teoria, devolvemos à prática pura algum significado histórico, social, cultural, psicopolítico, geopolítico, etc. Portanto, atenção: na verdade, não existe de maneira absoluta separação entre teoria e prática! Não se idealiza uma prática sem já estar em tal prática. Eis a contradição máxima desta relação, que revela uma separação apenas de âmbito formal, um círculo vicioso mais ou menos falso de priorizar a teoria sobre a prática ou a prática sobre a teoria. (Um exemplo de contradição, corriqueiro neste século: as redes sociais. Elas “individualizam”, mas, ao mesmo tempo, imbricam todos em rede, sem a qual não existe sem tal coletividade. O próprio sistema capitalista é assim. Tanto o jovem que trabalha em call center quanto o trabalhador rural estão em realidades muito diversas, mas ambos imbricados num mesmo sistema, o que, aliás, nos leva à conclusão de que a luta anticapitalista tem de ser também unitária, fluída e totalizante. O capital é apenas comando e obediência, resposta a um trabalho que gera valor. A contradição máxima do capital, portanto: não existe sem resposta a um trabalho que gera valor, não existe sem trabalhador. A pandemia do coronavírus deixou isto explícito. Toda greve de trabalhadores escancara tal realidade e o poder das forças produtivas detidas pelos trabalhadores contra o acúmulo de capital nas relações de produção.)

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Teoria não se faz apenas com pensamento, ou nós seríamos apenas máquinas pensantes: ligado à prática, o ato teórico se estabelece a partir do que somos no mundo, um nó de relações concretas, materiais, físicas, de desejos, geopolíticas, telúricas, sociais, etc. como um todo, uma amálgama. (Pereira, 1990, págs. 84-85). Não podemos achar que a teoria se articula apenas no ato de pensar, mas sim em algum dos níveis ou camadas do real.

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Ideologia, teoria e prática – Ideologia em seu duplo sentido. Ideologia enquanto supraideia, metaideia, então nossos atos e teorias e nossa práxis são ideológicos, porque são sociais e históricos, e ideologia como aquilo que toma o falso pelo verdadeiro, a consciência falsa que Marx e Engels tratam em A Ideologia Alemã, uma consciência moldada pela classe dominante, já que é ela que detêm a propriedade privada dos meios materiais de produção, os jornais e a mídia de maior disseminação e circulação, etc.

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Teoria e prática – A unidade entre teoria e prática é como a do intelectual com o simples: elaboração e concepção que são colocados na atividade real. Para se transformar em vida, para se depurar de elementos intelectualistas que a confinam num grupo restrito, a filosofia tem de trabalhar na construção de um pensamento que seja superior ao senso comum e cientificamente coerente, encontrando nos “simples” a fonte dos problemas a serem estudados e solucionados. Tal unidade não é um dado de fato mecânico, mas um devir histórico que possui uma fase primitiva em que o sentimento é de “separação” até a concepção de mundo unitária (Gramsci, Caderno 11, S 12; 1, págs. 93-114). Ainda é preciso, nos dias de hoje, melhorar o conceito dessa unidade, porque, geralmente, a teoria é vista como acessório, complemento ou até serva da prática, por conta de resquícios de mecanicismo, quando, na realidade, as distinções entre teoria e prática não podem levar a separações nem à insistência sobre o elemento prático da ligação teoria-prática.

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Teoria e prática, mesmo – Aos comunistas, conforme bem anotou Gramsci (Caderno 15, S 22; 1, p. 260), temos dois modos de agir na unidade de teoria e prática, a saber: 1) Com base numa prática, construir uma teoria que acelere em ato o processo histórico pela identificação dos elementos decisivos da própria prática; 2) Através de uma posição teórica, é possível organizar elementos práticos indispensáveis para que essa teoria seja colocada em ação.

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Teoria e prática, transição – São nos momentos históricos de transição que a unidade entre teoria e prática está mais explícita, pois as forças práticas de transformação e a própria realidade demandam uma justificação, no momento mesmo em que partiram de alguma elaboração e pensamento precedentes que foram consolidados. Em momentos pós-revolucionários ou pré-revolucionários, o sentimento de separação, assim como a urgência de unidade entre teoria e prática, pesa muito mais.

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Teoria e prática, unidade perfeita através da ciência – A ciência é a atividade teórica ou a atividade prático-experimental dos cientistas? Ou síntese de ambas? Há sem dúvida um processo unitário do real na mediação dialética entre o homem e a natureza. De acordo com Gramsci: “A experiência científica é a primeira célula do novo método de produção, da nova forma de união ativa entre o homem e a natureza. O cientista experimentador é um operário, não um puro pensador; e seu pensar é continuamente verificado pela prática e vice-versa, até que se forme a unidade perfeita de teoria e prática.” (Gramsci, Caderno 11, S 34; 1, págs. 166-167).

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Filosofia da práxis e ciências empírico-formais – Nas ciências empírico-formais, as teorias e leis surgem após o fato, embora haja também toda uma ciência voltada para a previsibilidade e para o que pode ocorrer de acordo com sinais da realidade presente (por exemplo, os estudos sobre o impacto terrível do capitalismo no meio ambiente, o aquecimento global e os prognósticos preocupantes para os próximos anos e para este século, relacionados a estatísticas e outros dados de pesquisa progressivos a respeito do passado e do presente). Na filosofia da práxis, por sua vez, eu considero que a teoria assume uma função mais complexa: pode se referir ao acontecido, ao fato, a um objeto da ciência política, do socialismo científico e do materialismo histórico (por exemplo, a teoria do elo mais fraco de Lênin, que é uma constatação, embora Marx sempre retorne mais certo ao ter afirmado que a revolução em regiões atrasadas seria problemática, simplesmente porque os revolucionários começariam o socialismo do zero, sem riqueza capitalista a socializar, e, justamente por isso, o próprio Lênin teve depois de criar a NEP, assim como Cuba, após sua revolução socialista e na periferia do hegemonismo econômico, administra aos trancos e barrancos a sua transição socialista cercada por um mundo que internacionalizou o capitalismo, além de criminosas sanções dos EUA), mas, na filosofia da práxis e parece que somente nela, a teoria tem também o potencial de ser teoria que se antecipa à prática e influi na prática, ou seja, num devir em preparo que pode ser iminente e impelir. A teoria da filosofia da práxis projeta; modela idealmente (no plano das ideias, não o idealismo extrínseco à realidade) um processo.

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O estudo da matéria ajuda na proximidade e diferenciação da atuação entre filosofia e ciência – Se a filosofia da práxis não é propriamente ciência em si, se é tão independente e historicamente original quanto insiste Antonio Gramsci, como ela concebe a matéria? Para a filosofia da práxis, não deve a matéria ser entendida nas diversas “metafísicas materialistas” nem no âmbito das ciências naturais (física, química, mecânica, etc., sendo tais significados considerados, é claro, não são ignorados pela filosofia da práxis, mas são registrados e estudados em seu desenvolvimento histórico). Na filosofia da práxis, propõe Gramsci, as propriedades físicas, químicas, mecânicas, etc. da matéria não deixam de ser consideradas, mas só na medida em que já são “elemento econômico” produtivo, ou seja, a matéria é considerada como “social e historicamente organizada pela produção e, desta forma, a ciência natural deve ser considerada essencialmente como uma categoria histórica, uma relação humana.” (Gramsci, Caderno 11, S 30; 1, págs. 160-163).

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Filosofia da práxis e ciência política – A filosofia da práxis é uma “concepção sistemática (coerente e consequente) do mundo” (Gramsci, Caderno 13, S 10; 3, págs. 26-27). A distinção entre a filosofia da práxis e a ciência política não se dá em termos de momentos teóricos (lógica e estética) e práticos (ética e economia), mas no de fato que a ciência política ocupa um espaço na filosofia da práxis em relação aos graus da superestrutura, sendo a atividade política justamente o primeiro momento ou primeiro grau superestrutural (Op. cit.). Assim, a filosofia da práxis é mais abrangente, mas precisa: considera o modo econômico estrutural no bojo do materialismo histórico, a ciência política e a unidade teoria/prática, além de todo o legado conceitual e humanista da história da filosofia.

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O que é práxis – Práxis não é a prática pura, práxis é “o coroamento da relação teoria/prática” “como questão eminentemente humana” (Pereira, 1990, p. 70). Práxis é ação transformadora de si e dos outros, da realidade; o nível superior de tal ação transformadora (páxis) é a ação revolucionária (Pereira, 1990, p. 72). Como se vê, o campo da práxis é mais complexo e rico do que a simples prática. A práxis engloba teoria-prática. Parece-nos, até que se mostre o contrário, que os “animais” (em falta de palavra mais complexa para tratar de seres tão diversos, usamos esta) possuem instintos e também agem de acordo com algum tipo de “prática pura”, sem teoria, sem elaboradas significações e reflexões sobre seus atos pretéritos e por vir, ainda que o “reino animal”, dos “insetos” e mesmo o chamado “reino vegetal” nos apresentem tantas vezes um invejável desenvolvimento e aperfeiçoamento prático. As massas, lato sensu, se movimentam no cotidiano, agem o tempo todo, mas é em certos momentos que revelam seu potencial coletivo e organizado de práxis… A rotina nos aliena. De todo modo, nós podemos fazer a relação social e criar ou mudar a história. (Mas, atenção: Marx lembra no início de O 18 Brumário de Luís Bonaparte que fazemos a história não de maneira autônoma, mas de acordo com circunstâncias materiais mais ou menos determinadas.)

67

Se a práxis não é a prática pura, é “a prática objetivada (individual e socialmente) pela teoria” (Pereira, 1990, p. 77). Uma prática aprofundada pela consciência crítica, ou seja, consciência que percebe as determinações e condições sociais da realidade (nacional, continental, internacional) pelas quais podemos atuar, mesmo que seja para destruí-las em emancipação e liberdade. Práxis é ação “transformadora do natural, do humano e do social” (Op. cit.).

68

A prática é o fundamento da teoria. Teoria fora do horizonte da prática é abstração. Este é um princípio básico da filosofia da práxis. Por outro lado, esquecer da teoria ou até mesmo desprezá-la, como se fosse uma “contemplação inútil”, em nome da sobreposição de uma “prática”, leva-nos apenas ao pragmatismo e ao utilitarismo (Pereira, 1990, p. 80). Assim, enquanto a teoria pode ter alguma “autonomia” em relação à prática, porque a antecipa e a influi, a prática possui primazia em relação à teoria (Pereira, 1990, p. 76). Mas, justamente porque podemos idealizar ou projetar uma prática antes dela acontecer no plano da realidade, é que a teoria deve servir de instrumento à práxis social, isto é, tanto no pensamento quanto na ação, constituir um projeto humano pessoal e social, coletivo, nacional, continental, internacional, global, etc.

69

Qual teoria? Qual prática? Estas duas perguntas críticas importam muito… Certamente não são quaisquer uma. Um militante comunista, trabalhador e/ou estudante, precisa de uma filosofia e de um método de análise e de raciocínio que sejam justos para que a sua ação revolucionária de transformação das realidades e da História seja justa também: sem dogmatismo, sem soluções acabadas, mas com circunstâncias e fatos que nunca são os mesmos, procurando não separar a teoria da prática (POLITZER, 1979, p. 20). Ora, é justamente tal filosofia e tal método que se encontram no materialismo dialético, base fulcral do marxismo.

70

Teoria e prática, sabedoria de vida – Quando pinta o ranço da teoria ou ela já se extrapola para fora, vai-se para a prática; quando fracassamos ou somos fatalmente impedidos pela direitalha, mergulhamos na teoria. Com a derrota das revoluções de 1848, ele, antes protagonista revolucionário de tal momento histórico, mergulha no estudo do sistema que maravilhosamente produz riqueza e vida material como nenhum outro na história da humanidade, gerando do outro lado mais e mais pobreza e problemas humanos… Com a prisão pelo fascismo, que derrota o movimento operário e revolucionário de seu país e mina todos os seus planos, ele não pode fazer outra coisa senão mergulhar também no teórico e na teoria para compor os seus Cadernos do Cárcere. Não é justamente este o sentido de pessimismo na razão e otimismo na ação?

71

Para Antonio Gramsci, a filosofia da práxis “é igual a Hegel + David Ricardo” (Gramsci, caderno 10, II, S 9; 1, págs. 317-318). O que ele quer dizer com isso? Que as contribuições metodológicas de Ricardo para a ciência econômica (por exemplo, a teoria do valor, a regularidade) e para o trabalho de Marx e Engels, fundadores da filosofia da práxis, do socialismo científico e do materialismo histórico e dialético, podem trazer também alguma inovação filosófica, já que o princípio lógico da “lei tendencial” – pela qual encontra-se a definição científica de cânones fundamentais da economia, como o homo economicus, o “mercado determinado” -, garantiu uma descoberta de valor também gnosiológico. (Gnosiologia, teoria do conhecimento humano; termo proveniente da filosofia estética do século 18; na antiga União Soviética e período subsequente à sua dissolução, foi utilizado como sinônimo de epistemologia.) Trata-se, sugere Gramsci, de uma nova imanência, de uma nova concepção filosófica da necessidade e da liberdade. Aqui, temos substanciais atributos para a nova filosofia, não apenas para a ciência econômica. Gramsci conclui que a filosofia da práxis universalizou as descobertas de Ricardo ao extendê-las para toda a história e extrair delas uma nova concepção do mundo e da vida (Op. cit).

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“A filosofia da práxis é o historicismo absoluto, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história. Nesta linha é que deve ser buscado o filão da nova concepção do mundo. […]” (Gramsci, Caderno 11, S 27; 1, p. 156). A filosofia da práxis revela nova síntese e concepção de mundo, como nunca antes na história, e da própria filosofia.

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De acordo com Gramsci, a “teoria” da filosofia da práxis é constituída pela resposta das seguintes perguntas, além de outras: “Que é a filosofia? Em que sentido uma concepção do mundo pode se chamar filosofia? Como tem sido concebida, até nossos dias, a filosofia? A filosofia da práxis inova esta concepção? Que significa uma filosofia ‘especulativa’? A filosofia da práxis poderá algum dia ter uma forma especulativa? Que relações existem entre as ideologias, as concepções do mundo e as filosofias? Quais são, ou devem ser, as relações entre a teoria e a prática? Como são concebidas estas relações pelas filosofias tradicionais? etc. etc.” (Gramsci, Caderno 11, S 26; 1, p. 149).

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Em Gramsci, a filosofia da práxis não está simplesmente cindida como teoria da história e da política a ser construída de acordo com os métodos das ciências naturais e de um materialismo filosófico ou metafísico ou mecânico (vulgar); na verdade, o autor dos Cadernos do Cárcere concebe a filosofia da práxis como “uma filosofia integral e original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e, superando, integra em si os seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicionais, expressões das velhas sociedades.” (Gramsci, Cadernos, 11, S 22; 1, págs. 140-144.) Tal superação se efetua e se expressa numa nova dialética; para concebê-la e compreendê-la, ensina Gramsci, não se pode pensar a filosofia da práxis apenas como subordinada a uma outra filosofia (Op. cit.).

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“Uma ‘teoria’ é revolucionária”, escreve Gramsci, “precisamente na medida em que é elemento de separação e de distinção consciente em dois campos, na medida em que é um vértice inacessível ao campo adversário.” (Gramsci, Caderno 11, S 27; 1, págs. 152-156.) A filosofia da práxis, portanto, é independente e está em antagonismo com todas as filosofias e religiões tradicionais; é assim ou, então, significa não ter rompido os laços com o velho mundo ou, até mesmo, ter capitulado (Op. cit.).

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A filosofia da práxis inovou tudo e segue pertinente, porque é “subversiva”. Podemos crescer, amadurecer e progredir a partir de nossas práticas teorizadas e refletidas. O inverso também é válido. Mas o oposto é direitismo, fascismo, neonazismo, mistificação, rigidez, etc. A filosofia da práxis rejeita a mera abstração e o mero pragmatismo – são campos de alienação. Todo respaldo teórico e crítico serve ao projeto emancipatório da humanidade e também contra a mediocridade do senso comum. A filosofia da práxis, em todas suas vertentes, seja na política estrito senso ou nas artes, deve lutar por uma nova cultura e um novo humanismo a partir da crítica dos costumes, sentimentos, concepções vigentes de mundo para o social e o comum.

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“O que será conservado do passado no processo dialético não pode ser determinado a priori, mas resultará do próprio processo, terá um caráter de necessidade histórica e não de escolha arbitrária por parte dos chamados cientistas e filósofos.” (Gramsci, Caderno 10, II, S 41, XIV-XVI; 1, págs. 393-396.)

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Voltemos à concepção anterior de teoria, para resumi-la em termos marxianos. Para Marx, a teoria é um modo especial de apropriação, de apreensão da realidade e da materialidade pelo cérebro humano (V. posfácio da segunda edição se O Capital). É aquela modalidade de conhecimento pelo qual o pesquisador reproduz idealmente, ou seja, na sua cabeça, no seu cérebro, o movimento real, histórico e as tendências de desenvolvimento do objeto pesquisado. Nesse sentido estrito, a obra O Capital é a expressão tornada consciente pela atividade da pesquisa humana do movimento real do próprio capital. A análise teórico-crítica das condições da produção material como fundamento necessário para a análise da vida social que se ergue sobre esse fundamento, embora o próprio Marx saiba que a vida social vai além e é mais complexa, sendo, no entanto, o modo econômico e sua organização das produções materiais da existência dos homens indispensável de ser considerado. Usa-se o termo “marxiano” para tratar da obra mesma de Marx, desvinculando-a dos “marxismos” posteriores e principalmente de suas experiências políticas, sociais, históricas reais que muitas vezes maculariam a obra de um dos maiores gênios do século 19. É famosa, entre os marxistas, a afirmação do próprio Marx de que ele próprio não era marxista. Esta é uma posição polêmica e problemática, se o “marxiano” não servir para o marxismo. Se ficar reduzido apenas ao que se chama de “teoria marxiana”, o empenho cai no círculo vicioso das ciências experimentais transposto para as ditas ciências sociais, como vimos anteriormente, ou esquece-se da práxis, formando universitários ou cientistas que até podem ser anticapitalistas, mas que não contribuem para a filosofia da práxis. O professor José Paulo Netto tem reiterado a separação, insistindo sempre que a teoria em Marx é a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa, e que, “pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a dinâmica do objeto que pesquisa” (2011, p. 21). Esse movimento ocorre por meio de gênese, consolidação, desenvolvimento e fim (ou crise), em relação dinâmica e contraditória (dialética). Compreendemos, nesta esteira, que a teoria social em Marx gira em torno da historicidade e da valoração da sociedade burguesa a partir do socialismo científico e do comunismo crítico. Seu objeto principal é o capital, ou as relações sociais da sociabilidade burguesa, com todas suas contradições entre as forças produtivas possuídas pela classe trabalhadora as relações de produção estabelecidas por enquanto pela burguesia. Seu método é o materialismo histórico e dialético.

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Não pode ser só isso. Para finalizar, portanto, outra vez Marx, mas o Marx revolucionário, que extrapola o retrato “universitário” e intelectual do parágrafo anterior, embora aquele complemente este e este dê sentido real ao outro, sendo ambos senão um só indivisível: “A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas assim que se evidencia ad hominem [no ser humano], e de fato ela se evidencia ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar a questão pela raiz. Mas a raiz, para o ser humano, é o próprio ser humano.” (Marx, 2010, p. 151.)

18 de maio de 2020

BIBLIOGRAFIA

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Ed. de Carlos Nelson Coutinho, M. A. Nogueira e L. S. Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 6 vs., 1999-2003.

________. Escritos Políticos 1910-1926. Ed. de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2 vs., 2004.

LÊNIN, V. “As três partes e as três fontes constitutivas do marxismo” (1913) e “Karl Marx (breve nota biográfica com uma exposição do marxismo)” (1914). in: V. I. Lénine – Obras Escolhidas (em Três Tomos), Tomo II, Editorial Avante!, 1977 (edição portuguesa).

MARX, Karl. O Capital – Critica da Economia Política. Livro Primeiro. Tradução de Reginaldo Sant’anna. Difusão Editorial, 1984 [1867].

_______. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, 2010 [1843].

________. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1971 [1844].

_________. Teses Contra Feuerbach. (Coleção Os pensadores). São Paulo: Ed. Abril, 1978 [1888].

NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

PEREIRA, Otaviano. O que é teoria. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 7a. edição, 1990 [1982].

POLITZER, Georges. Princípios Elementares de Filosofia. 9a. edição. Lisboa: Prelo, 1979.

SIMÕES, Darcilia. “Ciência, teoria e método” in: SIMÕES, Darcilia e GARCÍA, Flávio (orgs.). A Pesquisa Científica Como Linguagem e Práxis. Dialogarts Publicações, 2014.

Aristóteles “explica” Bolsonaro: a comédia e a tragédia

Maquiavel – sempre muito bem vendido, sobretudo em momentos mundiais como esse pelo qual passamos – ensinou, em O Príncipe, que cabe a um príncipe (hoje em dia, chefe de Estado ou governante em geral) ser temido e amado. O ideal, afirma, é ser ambos, mas, entre um ou outro, melhor ser temido.

Bolsonaro é ambas as coisas: amado por uma tribo muito reduzida que irá se extinguir (tal como os colloridos e os “aécistas”, e quem sabe até seu PSL não passe de um fenômeno eleitoreiro, passageiro, como o extinto PRN, Partido da Reconstrução Nacional, do Fernando Collor), mais ou menos “amado” por milhares de eleitores iludidos em lua-de-mel, que, já antes da posse, está por um fio, e temido até mesmo por um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (o que seria de nós, então, reles semi-cidadãos?!), que, em seu Twitter durante o segundo turno, declarou que, “pela primeira vez em 32 anos de exercício do direito de voto, um candidato me inspira medo”, declarando voto em Fernando Haddad. Temido menos por si só, pois é um bobo da corte que presta continência para qualquer um, temido mais pelas mexidas extremas na economia, que assombram a maior parte de nós, de classe média para baixo, e pelo aparato repressivo do Estado, já que tanto elogiou a ditadura e se cerca de militares, e do que pode vir com ele e sem ele, se levar um pé na bunda de Mourão e cia. (Indiscutivelmente, convenhamos, não é amado como um Lula: o único líder capaz de encher tanto a Avenida Paulista quanto o Nordeste, amado como líder sindical, depois como presidente, depois como ex-presidente, amado nos momentos mais crepusculares e mais solares de sua trajetória, o único amado tanto por intelectuais dos quilates de um Antonio Candido e de um Noam Chomsky como pelo povão, o único que, mesmo da cadeia, despontava em primeiro lugar nas intenções de voto com SESSENTA POR CENTO! Lula, aliás, sempre foi temido apenas por irracionais e anticomunistas direitofrênicos, até por setores da elite e por adversários direitistas, não pelo povo – que o enxergava ou o enxerga como orgânico -, e agora é temido por eles pelo seu retorno e libertação à lá Mandela.)

Mas há uma terceira fileira de pessoas que sabem que o ex-capitão, ainda que pilantra e politiqueiro, é um paspalho, que seu desgoverno já é um fracasso econômico, político e social, por causa das escolhas, das declarações, das brigas internas e externas e da plataforma de governo (quem fala em “torcer” desconhece a plataforma, acha normal não ter havido debate no segundo turno), o que nos leva também a Aristóteles, cuja Poética, ainda que tenha nos chegado incompleta, ensinou bem a diferença dos conceitos filosóficos/literários entre a tragédia e a comédia.

A tragédia é a história de um homem tão cumulado de virtudes e qualidades que prefere morrer a viver sem honra. Mesmo com a segunda parte da Arte Poética perdida, justamente aquela que conceituava a comédia (fato histórico, um dos grandes mistérios da antiguidade clássica que deu brecha para aquele famoso romance best-seller do Umberto Eco), Aristóteles nos adiantou, no finalzinho da parte sobre a tragédia, que a comédia seria exatamente o oposto daquela: a história dos homens não-virtuosos e cheios de defeitos.

Foi assim com a tragédia de Édipo. É assim com a comédia de Bolsonaro, ao contrário.

Édipo ouve de um adivinho que há uma peste sobre Tebas, que as pessoas estão morrendo, porque alguém cometeu um crime, alguém matou o próprio pai e se casou com a própria mãe. Não sei quantos anos antes do moralismo cristão, esses temas já eram chocantes para os gregos e pagãos.

Desesperado, Édipo, o rei, ordena que procurem este homem imediatamente e até às últimas consequências.

Triste ironia! Todos vocês devem conhecer o desfecho… À medida que avança na busca, aproxima-se de si mesmo: o menino abandonado num pântano é ele, ele foi o assassino do próprio pai, sem saber, e a sua esposa é justamente a sua própria mãe.

Catarse! Terminado a busca que descamba em si mesmo, dá o golpe final: numa das cenas mais marcantes e arrepiantes de todo o Teatro, fura os próprios olhos, prefere morrer a viver sem honra: é um trágico por excelência.

A tragédia de Hamlet também é assim: o jovem honrado, rodeado da gente baixa e corrupta de Elsinore, que morre justamente quando começa a praticar as mesmas vilanias dos vilões, em sua sanha por vingança pelo assassinato do pai.

Se, no entanto, Édipo tivesse feito o contrário disso, terminado a investigação quando ela chega em si, ou mandado buscarem em outro lugar qualquer, ou dito que não houvera assassinato algum, que não é por isso que as pessoas estão morrendo de peste, se mentisse, estaria livre e, na concepção aristotélica, podemos dizer que seria um cômico.

No Hamlet, o tio usurpador e réprobo é o não-virtuoso e “cômico”, em tons de farsa. Assim foi muitas vezes representado no teatro e no cinema, como um sacana que não vale nada, sem escrúpulos, e mesmo Shakespeare o pinta como um beberrão, luxurioso. O príncipe Hamlet, que durante a peça vai mudando seu espírito em luto, primeiramente melancólico, para momentos de puro escárnio e fina ironia (ácida), se dissesse que o fantasma do pai está errado, que aquele nem era o fantasma do pai, que não vai procurar vingança coisa nenhuma, que o tio não é corrupto nem assassino nem ilegítimo, que a sua mãe não é adúltera, incestuosa nem conivente, que não quer o trono que é seu de direito, que Elsinore é um paraíso, que não, não há nada de podre no reino da Dinamarca, seria cômico, mas, por saber que tudo isso é verdade – uma verdade atroz que se sobrepõe aos seus princípios éticos mais nobres -, é trágico por excelência…

E Bolsonaro? Todos seus assessores ou ministros ou aliados são ou corruptos ou incompetentes ou destruidores de vários setores do Brasil: politiqueiros, malucos, aloprados, espertalhões, ruralistas, latifundiários, fundamentalistas, neoliberais, extremistas, fisiologistas do mais do mesmo, gente sem experiência na administração pública da alta burocracia federal etc. etc. etc. Na frente disso, ele próprio, parlamentar infecundo há 30 anos, encabeçando a trupe, como um pau-mandado. Sem falar nos filhos, que criou feito crápulas inconsequentes…

O que ele faz, entre a escolha da tragédia e da comédia?

Se ele eliminasse o confesso Onyx e todos os outros quatro ou cinco ministros investigados por corrupção, se não seguisse o charlatão descolarizado e folclórico Olavo de Carvalho, se recusasse seu “chanceler” absurdo e seu ministro colombiano da deseducação, se não aceitasse Moro para o “super” Ministério da Justiça, pois este é oportunista e não nasceu para ser coadjuvante, é capaz de vários abusos de poder, se soubesse que o ultraneoliberalismo de Paulo Guedes, o “super” ministro da economia terraplanista (repetindo o erro que Collor fez com a Zélia Cardoso), vai provocar um arrasa-quarteirão nos serviços públicos do Brasil e quebrar o país, se dissesse que não quer que o Brasil torne-se uma terra arrasada, se trocasse o Levy, porque, realmente, já tinha sido um erro a Dilma colocá-lo lá, se, de repente, dissesse que não, que o armamentismo e o Estado policialesco não vão resolver a violência, nunca resolveram, que o grosso da violência tem que ser combatida com a socialização dos meios de produção e transformação urbana e fim da pobreza e da desigualdade socioeconômica (como bem apontou o Atlas da Violência), se desmentisse a si mesmo, dizendo que não, que os índios não querem ser como nós, que eles têm pleno direito à sua própria terra e seu cultivo, que os ruralistas devem ser sustentáveis, ao invés de quererem lucro passando por cima de quilombos, áreas de preservação, demarcações indígenas e do próprio meio ambiente, que as mudanças climáticas são questões fundamentais, hoje, para não sermos um pária, que a educação deve ser democrática e plural e crítica, não só técnica, tampouco cívico-militar, que o imperialismo americano não deve ditar o rumo do Brasil (deixando de ser, portanto, um patriota de araque), que é preciso tirar dos bancos e dar para os previdenciários, se passasse para o lado da enorme massa que está na informalidade e abandonasse os interesses escravagistas dos megaempresários, se dissesse que o povo brasileiro merece uma revolução tributária e bancária ao invés de menos direitos sociais e trabalhistas, se contrariasse o mercado e a elite financeira nacional e internacional em favor de todos nós, se soubesse que seu extremismo direitista e seu ultraneoliberalismo não dão certo e terão de ser resolvidos pela social-democracia, se, de repente, contra tudo e contra todos, tentasse, pelo menos, não digo nem uma revolução socialista, mas um Estado de bem estar social, seria um trágico, mas colocaria seu nome na História do Brasil, não na linhagem que ficará, a do doido Jânio Quadros, nos anos de 1960, e do desastroso Fernando Collor, no início dos 1990.

Faria, aliás, como o ditador hitlerista do Chaplin, que, no final, diz o famoso, emocionante e genial discurso humanista que subverte todo seu comportamento durante todo o filme. Acho que Chaplin quis, mesmo, usar essa dicotomia em Aristóteles da forma como aqui coloco, ou terá sido inconscientemente?

O que Bolsonaro prefere fazer? Nada disso. Vai na contramão disso tudo. Permanece vicioso, dizendo o oposto do que é óbvio, seguindo em frente, como um serviçal cego a isso tudo, achando que está tudo mais ou menos perfeito, que ele e os seus vão salvar a nação com esta plataforma de desgoverno.

Um cômico caminhando para a sua tragédia, capaz de ter dito, dias atrás, que, se afundar, o Brasil iria junto com ele. Ele mesmo já sabe do fracasso.

Portanto, não há possibilidade de se escrever ou falar sobre Bolsonaro a não ser de maneira cômica, ainda que traga muitas tragédias econômicas (nada cômicas), sociAIS! e políticas … a serem resolvidas por nós, pelo povo brasileiro, movimentos sociais e estudantis, partidos de esquerda e oposição na Câmara e no Senado, cada um de nós ou – ai de nós, ai do Brasil! – pelo FMI, Banco Mundial e o Federal Reserve…

5 de dezembro de 2018

Estou pensando em escrever um livro tão estupendo!…

Estou pensando em escrever um livro (vários) tão estupendo!… (São tantos livros na minha cabeça, alguns já iniciados e inconclusos! Uns experimentais, outros mais tradicionais… Poesia, prosa, desprosa. “Terra e Flutuação: Brasília” deve sair logo no primeiro semestre de 2018, por uma grande editora, por uma editora cult, ou do meu próprio bolso.)

Mas esse é diferente. Um romance (ou peça? ou novela?) passado nas horas finais do século XIX, na biblioteca do casarão do sinhô Marco Polo Foster (encontrei esse nome numa notícia muito antiga do acervo do Estadão; era um bandido da época! rs), senhor que é acompanhado o tempo todo por seu último escravo remanescente, Pancrácio. Todos os outros escravos o deixaram, inclusive a cozinheira. Pancrácio ficou por não ter para onde ir, provavelmente por ser jovem, e ainda ganharia uns trocados. Nutre grande respeito por seu amo.

(A Lei Áurea, de 1888, e o fim da Monarquia desestabilizaram completamente a elite brasileira. Machado de Assis, nos contos e romances, retratou muito bem essa gente em decadência, essa classe decadente e elitista completamente infecunda, sem grandes projetos para o país e que nunca trabalharam, agora desesperados numa sociedade movida pelo fim da escravidão e pelo dinheiro, portanto ele servirá como influência para o livro. Lembremos também que o desprezível D. Pedro II, junto com os sempre pérfidos ricos fazendeiros, ruralistas e escravistas — antepassados desses que hoje atrasam lá no Congresso e noutros poderes –, faliu o Barão de Mauá, homem branco raro, que tinha um grande projeto de industrialização nacional; projeto que, como no exemplo americano, acabaria de vez com a escravidão e com a monarquia, impulsionando o Brasil num novo rumo, o que acabou acontecendo de forma atrasada, deficiente e sem qualquer planejamento nacional adequado.)

A filha do sinhô, garota mimada, rude, niilista, depois de chorar copiosamente aos pés do pai, acabou casando com um bom partido de uma família melhor situada na República incerta e naqueles primeiros passos do capitalismo brasileiro, mas será sempre infeliz e agora o despreza. O filho mais novo, poeta, sonhador romântico, sempre descolado da realidade prática, vê os seus projetos pessoais minguarem, vai pedir emprego para um tio velho, major que mora longe, sentindo-se completamente humilhado — bocas futuras dirão que ele não encontrou nada mais do que perdição mundana… O filho do meio, decidido, foi procurar fortuna em Nova Iorque, mas é provável que só tenha encontrado miséria e fracasso ou que tenha se alinhado com anarquistas, comunistas, socialistas europeus… O sinhozinho mais velho, típico playboy branco que tem imenso pavor da palavra trabalho (bom, até eu tenho, em minhas crises aristocráticas anticapitalistas), uma espécie de Leôncio, acaba de chegar de uma viagem divertida no exterior e também se desespera ao ver que o país mudou e que o pai está completamente arruinado. O banqueiro da família envia diversas cartas notificando urgentemente que não tinham mais do que alguns poucos contos de réis e que estavam em completo perigo. Sobraram só as terras abandonadas, as posses difíceis de se desfazer, o casarão… Nenhum amigo bajulador, nenhuma ajuda. Todos viraram as costas. O filho então desaparece da casa em busca de alguma solução mirabolante, dizendo que vai inventar isso ou aquilo, como um patético Brás Cubas, já que não quer arranjar um casamento rico, nem ir achar fortuna em Nova Iorque, muito menos procurar emprego: pode ser que simplesmente se suicide com um tiro na cabeça diante dos instrumentos de tortura que usaram contra os negros.

Esse é o contexto superficial, romancesco, embora seja pungente: talvez tudo isso transcorra em capítulos curtos e intercalados, como Machado fazia. A grande obra se encontrará depois, talvez nos diálogos metafísicos do senhor já solitário, decadente, apenas com seu escravo, naquele lento entardecer dos finais do século XIX anunciando já a aurora do século XX… Diálogos que guardam a essência de um Fernando Pessoa ou de um Jorge Luis Borges.

O patriarca poderia fazer como o protagonista na última cena do último filme do Tarkovski: numa espécie de sacrifício, queima sua casa enquanto todos discutem suas vidinhas.

Ou então algo muito melhor, numa espécie de quebra brusca de estilo literário, em forma mais moderna e longa, depois dos capítulos curtos romancescos e dos diálogos metafísicos, algo kafkiano : repara que, assim como sua própria classe social, como sua própria vida, a casa também está instável, insegura, com rachaduras, ameaçando despencar; começa então a construir uma nova do lado com o material da antiga. Na metade do trabalho, Pancrácio morre de exaustão e o pobre senhor, percebendo que tem uma casa meio demolida e outra semi-edificada, ou seja, nada, enlouquece e cava seu próprio túmulo entre as duas residências.

11 de novembro de 2017

“Eles aceitam as putas, os gays, as lésbicas, mas eles não aceitam os negros…”

“Eles aceitam as putas, os gays, as lésbicas, mas eles não aceitam os negros, não adianta, eles não aceitam os negros. Quando o negro tem grana, aí eles toleram.”

– Uma senhora na fila. Aí, eu pensei : ora, talvez só tenham aceitado os LGBTs (e até mesmo as mulheres!) quando viram que eles tinham renda e grana também. Money é o que conta. Nessa sociedade, não importa o valor, mas o preço das coisas e das pessoas. Entretanto, mesmo com grana, o negro é menos tratado do que todos esses.

Ser e não ser?

Shakespeare foi tantos homens que mal sabemos alguma coisa de concreto a seu respeito – mas Ricardo III insinua que faz o papel de muitos e Iago diz: “não sou o que sou”. Hermann Hesse escreveu, numa página que já me esqueço, que um único homem abarca a humanidade inteira. Whitman, num de seus versos famosos, afirma que é contraditório, que é imenso, que há multidões dentro de si. O maníaco Charles Manson (que não merecia estar nessa enumeração) responde, encolhendo os ombros num vídeo viral do YouTube, depois de caretas múltiplas diante do ingênuo entrevistador oculto que quer saber “essencialmente” quem ele é: “Nobody, I’m nobody.” Eu, nas horas finais dessa madrugada, sou (ou penso ser) simplesmente Fernando, único, indissociável! Já me bastam os meus próprios fantasmas!… Não quero agora falsear, pensar em princípios budistas nem mesmo entrar nesses desvarios borgeanos… Não quero, como aquele outro, meu xará além-mar, depurar minha veia poética em seres de linguagem, em heterônimos vários desapegados de mim… Não, não neste momento, onde quero ser eu! Entre fascinado e cansado, rindo de mim mesmo ou amargando minha própria angústia, relembro da ilusão do próprio verbo “ser”, que não existe no tupi, nem no japonês, nem no hebraico, e que no russo é oculto… Minha gata se aproxima – “ser” apartado de mim! -, deita em minha perna nua, à mostra por fora do meu roupão, e adormece; apesar de sua personalidade, ela não sabe o que é a morte, não tem passado, não tem futuro, vive unicamente no presente, logo é eterna. Eterna?… Ah! E o que significa ser eterno? E o que significa ser?!… Recordo automaticamente o pensamento de Schopenhauer em seu mundo de vontade e representação, para quem um gato é todos os gatos: “Sei muito bem que qualquer um poderia me acusar de louco se eu seriamente assumisse que aquele gato brincando no gramado neste exato momento é ainda o mesmo que pulava e brincava há trezentos anos atrás, mas também sei que é um absurdo muito maior acreditar que aquele gato de hoje seja um gato inteiramente diferente daquele de trezentos anos atrás.” Chega!… O esforço, entendido por Espinosa numa de suas preposições, de que cada coisa quer perseverar em seu ser, é isso que há em mim, é isso que há em mim agora, entenderam bem?, sou, até onde sei, o Fernando que me coube, me agarro nisso, excessivamente individual, excessivamente individual, concreto; mas Espinosa não foi aquele que intuía e reivindicava o panteísmo?…
Olho a porta. Silhueta encostada no batente. É a Morte? Talvez depois dela eu compreenda tudo isso!… Não – com tantas asas esqueci do que tivemos há poucos minutos. Com voz de canastrão, lanço a pergunta no ar:
– De qual canto da minha alma é que surge a tua presença?
A silhueta dá um passo e acende a luz: configuração excessivamente individual e apartada – outra pessoa que não sou eu. Na escuridão, arquetípica, inconsciente, junguiana, somos todos um só. Debaixo da luz não sou o outro, mesmo que seja humano como eu, mesmo que seja (ou não) do mesmo sexo: diante daquela nudez toda na minha frente, não ligo para minha vasta e prodigiosa memória, onde a frase de John Donne – “Nenhum homem é uma ilha” – ecoa, aparece mas se dissipa, não me atinge neste momento. Sim, diante do outro encontrei eu mesmo, único, indissociável, singular, eu, euuuuuuu!
Mas novamente me confundem horror e maravilha ou simplesmente aceitação absoluta do mistério ou então pleno insight religioso quando minha companhia dá por encerrado o assunto, ao dizer simplesmente, num sussurro em tesão:
– No nosso orgasmo esquecemos de nós: la petite mort…
2.9.2017

Aqui num hotel do Rio, de repente me bateu forte angústia…

Aqui no hotel do Rio, de repente me bateu forte angústia. Afinal, o que são os hotéis senão um simulacro da própria vida?! Passagens e deixares constantes sem muitas razões ou motivos… Pensei em escrever, em transmutar em arte ou palavras, mas não saiu nada. Fundo do poço existencial. “Tampa no esforço imaginativo”, escreveu Álvaro de Campos. Súbita, uma tristeza… Foi quando surgiu da rua a voz de um vendedor ambulante absolutamente simpático falando em alto e bom som:

Olha, a minha rosca tá pegando fogo…
Olha, paga três reais pra comer minha rosca…
Gente, a minha rosca é docinha…

Um anjo que passou pela minha tarde e me fez rir.

[12 de julho de 2017]

Varei a madrugada e fui dormir de manhã…

Varei a madrugada e fui dormir de manhã, mas meu sono foi interrompido várias vezes pelo grito de um desses moradores de rua que as pessoas chamam de nóia. Aqui na Santa Cecília (e sobretudo onde estou, no Largo de Santa Cecília acessível ao metrô, entre o centrão e Higienópolis), tem de tudo, garotos estilosos, madames, nóias. É um cara que vez ou outra passa por aqui gritando verdades e coisas muito lúcidas, mesmo que seja muito, muito chato e inconveniente. Diz coisas do tipo: Vocês só ligam pra aparência… Vocês não sabem de nada… Eu sou um cara íntegro num mundo corrupto…

Hoje ele passou umas três vezes aqui. Os policiais o conhecem e o ignoram.

Simpatizo com essas figuras que lembram os personagens loucos da literatura russa ou os desviantes dos filmes do Tarkóvski.

Ele não dá impressão de ser bêbado, pode ter problema com drogas, mas com certeza tem problemas mentais.

Problema mental = extrema lucidez?

19 de janeiro de 2017